Introdução
A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, levou à Presidência do Brasil o líder de um movimento multiforme de extrema-direita que aglutinou lideranças de origens diversas (militares, juristas, evangélicos, grandes empresários e classes médias) com propósitos parcialmente convergentes. Boa parte delas tinha pouca experiência política, adotava formas de organização fluídas e combinava modalidades de ação institucionais e extrainstitucionais, com destaque para o uso intensivo de tecnologias digitais.
Desde antes da articulação de sua candidatura, Bolsonaro exibia propósitos manifestamente contrários à democracia constitucional. Durante o mandato, mobilizou seguidores por meio de uma retórica de ódio, fez repetidos ataques públicos à democracia e patrocinou o desmonte de instituições estatais e programas federais de direitos humanos e desenvolvimento. O período representou uma inflexão importante na democracia constitucional brasileira, que, pelo menos desde 2013, já passava por acentuadas instabilidades.
A insistência de Bolsonaro sobre a existência de fraude nas urnas na eleição de 2022 foi um elemento central na sua estratégia de desestabilizar a democracia constitucional brasileira, que veio se desenrolando desde o pleito de 2018 e durante todo o seu mandato. Falas desencontradas, com variação de temas, contradições e mentiras, contribuíram decisivamente para produzir a inversão dos fundamentos normativos, a suspensão do ordenamento jurídico e a desarticulação do domínio de realidade da ordem constitucional instaurada pela Constituição de 1988. Seus efeitos políticos e constitucionais ainda estão presentes, mesmo com a sua derrota eleitoral em 2022, sua tentativa frustrada de golpe de 8 de janeiro de 2023 e, recentemente, sua condenação à inelegibilidade por oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Assim, Bolsonaro, junto com seus auxiliares e seguidores, situou-se em uma posição limítrofe com relação à ordem constitucional democrática. Adotou táticas de fricção e transgressão dos valores, símbolos, rituais e poderes da Presidência de uma democracia constitucional. Seu mandato provocou ou acelerou reconfigurações importantes no regime constitucional neoliberal democrático do país.
Neste contexto, neste artigo, é analisada a posição adotada por Jair Bolsonaro como uma estratégia de desestabilização da democracia constitucional, voltada a promover a passagem a uma situação pós-constitucional de contornos pouco definidos. Inicialmente, são apresentados os conceitos de ordem constitucional e regime constitucional, os quais servem de base para a análise substantiva. As seções seguintes apontam a desestabilização da ordem constitucional a partir da encenação do grotesco da democracia e as reconfigurações do regime constitucional neoliberal democrático nas relações entre os Poderes, as práticas eleitorais e as políticas de desenvolvimento e de direitos humanos. O foco central da discussão são os efeitos dessas mudanças para as políticas de direitos, no sentido do esvaziamento da identidade dos indivíduos como cidadãos, tornando precários os apoios institucionais ao exercício de seus direitos e promovendo formas de subjetivação receptivas ao discurso reacionário e às políticas neoconservadoras, em antagonismo aberto àqueles que se opuseram a eles1.
O artigo coloca-se como ciência política e situa-se em confluência com a sociologia jurídica integral, na medida em que se interessa pela prática do direito, sob a influência de variáveis sociais, e pelos sentidos diversos da concretização das normas jurídicas2. A ênfase do artigo está nas relações entre processos políticos críticos, mudança constitucional e políticas de direito, tratando das interações entre interesses, identidades e projetos estratégicos em suas consequências para conceitos e técnicas jurídicas. Sua orientação prático-histórica é inversa à da teoria sistêmica que formula um modelo analítico geral para explicar a Constituição do ponto de vista abstrato das relações entre direito e política como subsistemas dotados de códigos ou identidades próprias3. A pesquisa baseou-se em revisão da bibliografia, fontes documentais e de mídia, realizando a caracterização de deslocamentos, processos políticos, estratégias e noções jurídicas veiculadas pelos atores. Mais do que isso, a análise elaborada se baseia, primordialmente, nas discussões e reflexões dos autores acerca da sua experiência enquanto protagonistas e testemunhas da atualidade.
A ordem constitucional democrática e o regime constitucional neoliberal democrático
Pelo menos desde a última década, a democracia constitucional brasileira tem passado por tensões e mudanças que desafiam a análise política. A disputa eleitoral competitiva foi mantida e os direitos políticos e cívicos têm sido assegurados, mesmo que tenham ocorrido violações e ameaças bastante concretas. Diagnósticos de colapso, erosão ou desconstrução da democracia contrastam com avaliações de que a Constituição está vigente e as instituições estão funcionando. Outros argumentam que a desconstrução da ordem constitucional democrática se deu mesmo com a manutenção da Constituição de 1988 em vigor, por meio de medidas administrativas e infraconstitucionais. Ao invés de atribuir um veredito peremptório, este artigo parte do reconhecimento de que a situação atual se caracteriza pela combinação instável e reversível dessas tendências.
Para analisar essa combinação, são propostos os conceitos de ordem constitucional e de regime constitucional4. O primeiro sublinha os efeitos simbólicos, normativos e de poder político da Constituição. Designa aquilo - que se dá no plano do discurso, mas também das tecnologias de poder e das práticas institucionais e sociais - que liga e enlaça saberes, instituições, espaços e relações sociais para a direção da multiplicidade de agentes, conferindo-lhes uma referência jurídico-normativa objetiva e conformando-os como sujeitos de direitos. Ele tem o sentido de ordem de discurso que situa os sujeitos, os campos, os conceitos e as teorias, bem como as instituições, as técnicas e as práticas que delimitam os espaços, as formas de ação e os objetivos juridicamente válidos de uma comunidade política5.
Uma ordem constitucional instaura um modo de objetivação da autoridade política, no que diz respeito aos princípios ético-políticos e normas jurídicas que a regem, assim como ao domínio de realidade em que se baseia. Isso compreende seu espaço territorial, formas institucionais, instrumentos e técnicas, os sujeitos com quem se relaciona e dirige. Delimitam-se as modalidades adequadas - juridicamente válidas - de os agentes fazerem e atuarem para a produção de efeitos na realidade, bem como as formas de conhecê-la, os procedimentos e as técnicas para comprovar aqueles atos e ações. Correlativamente, conformam-se modos de subjetivação dos agentes que sob e nela vivem, e assim eles formam identidades, assumem papéis, são titulares de direitos e obrigações, destinatários de políticas sociais e reivindicadores do reconhecimento de suas condições singulares.
A título de ilustração, uma ordem constitucional democrática instaura espaços de exercício do poder como instâncias independentes (os três Poderes do Estado), sujeitos com determinadas identidades institucionais, meios de ação e recursos materiais ou simbólicos. Em outros termos, a ordem constitucional refere-se ao que é instituído como um sistema de referências jurídico-normativas para os agentes e suas relações no território da comunidade política. No jogo discursivo dessa ordem, configuram-se e atuam sujeitos com suas identidades e concepções de vida boa. Agentes coletivos formulam projetos constitucionais que convergem, por meio de alianças políticas ou confluências de interesses, em programas constitucionais de forças políticas com projetos hegemônicos antagônicos.
Por sua vez, regime constitucional designa a conformação que a ordem constitucional assume em período determinado. Ela é configurada no curso de embates entre forças políticas pela direção do Estado e do programa constitucional orientador do governo da multiplicidade de agentes e suas relações na sociedade. O regime constitucional é um modo determinado de concretização da ordem constitucional, dando base a potencialidades enunciativas e práticas para certas direções por meio da distribuição das capacidades de exercício do poder político, definindo, assim, os contornos das ações estatais e das políticas de direitos.
A democratização e a promulgação da Constituição de 1988 instauraram uma ordem constitucional democrática e social no Brasil. Seu modelo foi o constitucionalismo democrático europeu do pós-Segunda Guerra, no qual a constituição é pensada como a organização material da sociedade, dotada de força normativa, que configura o ordenamento jurídico e o governo6. Ao mesmo tempo, contudo, o texto da Constituição de 1988 tem também as marcas de acordos parciais e sucessivos entre forças políticas antagônicas no longo e inconclusivo processo de transição iniciado em meados dos anos 19707. Os acordos políticos promovidos por Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1993, para a sustentação da agenda de estabilização monetária, reformas da ordem econômica e sua candidatura presidencial8. O resultado foi a conformação de um regime constitucional neoliberal democrático. Esse desfecho significou a construção das bases pelas quais a Constituição de 1988 seria interpretada e praticada, definindo a agenda das forças políticas nas duas décadas seguintes.
Nos embates a partir de 2013, opuseram-se o programa neodesenvolvimentista do governo Dilma e as reações que associaram a restauração da agenda econômica neoliberal com a defesa de valores conservadores9. Nesse processo, houve reconfigurações do regime neoliberal democrático, mas, mesmo que tenham ocorrido episódios de ações contrárias aos procedimentos democráticos, a ordem constitucional não foi posta em questão até a eleição de Jair Bolsonaro.
O grotesco e a desestabilização da ordem constitucional democrática
Jair Bolsonaro encarnou na Presidência da República a figura pública do grotesco, privando-a de suas qualidades de representação popular10. Dada a incongruência ou a contradição entre os atributos do cargo e sua capacidade ou condição necessária para exercer o poder político, Bolsonaro expôs a Presidência como fato da soberania, desqualificando o cargo ao associá-lo à falta de qualidades daquele que o exercia. Ele foi assim capaz de maximizar os efeitos de poder de seu cargo, pois, exercido por alguém ou algo desprovido de qualidades próprias, parece não haver limites internos nem possibilidade de serem impostas limitações externas à sua ação. Em outros termos, o presidente Bolsonaro encenou o grotesco da democracia constitucional, produzindo a inversão dos fundamentos normativos, a suspensão do ordenamento jurídico e a desarticulação do domínio de realidade da ordem constitucional democrática, de modo a promover a passagem a uma situação pós-constitucional11. Esses pontos serão desenvolvidos a seguir.
A inversão dos fundamentos normativos e a suspensão do ordenamento jurídico
Bolsonaro encenou o grotesco da soberania popular na medida em que a convocou como fonte, invertendo os atributos a ela conferidos pela democracia constitucional. Ele provocou o colapso da representação política nas relações cotidianas de dominação. A soberania do povo deixou de ser a base para a construção de uma sociedade livre, pluralista e desenvolvida, e passou a significar o exercício efetivo e violento do poder por populares. A vontade do povo político foi desagregada nos desejos de indivíduos a serem satisfeitos sem qualquer mediação, pela pura afirmação de si e pela negação do outro. O popular passou a ser convocado por símbolos e ritos primários de identificação e se decalcou em supostos interesses e preconceitos de indivíduos reais12.
O popular encenado por Bolsonaro não reconhece a igualdade e a alteridade como valores pressupostos. Adotando sua individualidade como ponto de partida, ele não admite formas de organização político-social centradas no outro, articuladas como meio de equalização da diferença. Ele figura o indivíduo que exerce poder na sociedade, e está situado em posição superior em relação a alguém que lhe é relativamente subalterno numa série de hierarquias sociais. Porém, aquele indivíduo está em posição marginal na sociedade do ponto de vista de outras formas de categorização. A figuração de Bolsonaro libera esse tipo de indivíduo para exercer seus micropoderes sem limites, privilegiando seus interesses privados e apoiando a destruição das construções sociais voltadas à proteção daqueles que estão em situação mais frágil13. Bolsonaro ostenta as qualidades do povo em negativo, traduzindo-o nas formas de agir do popular do qual ele se mostra próximo. Sustenta, ao mesmo tempo, a negação do povo político e sua similitude com aqueles que rejeitam direitos, procurando prover o bem-estar por e para si mesmos e desprezando a alteridade14. A reinscrição desse personagem no espaço público passou a expor a incompatibilidade da vontade popular com a democracia constitucional, exibindo seu antagonismo.
A transgressão presidencial dos fundamentos normativos, do ordenamento jurídico e do domínio de realidade da ordem constitucional sinalizou a suspensão da vigência e da eficácia da Constituição. Abriram-se oportunidades para os apoiadores de Bolsonaro promoverem desafios à legalidade em vários espaços da sociedade. O nome da ordem seria liberdade, não a da tradição do liberalismo político, que procura formular princípios consensuais e formalizar as restrições à liberdade por leis gerais, de modo a eliminar o constrangimento arbitrário. Seria a abolição de todo limite à vontade do agente o que implica a impossibilidade de uma ordem constitucional como mediadora. Em uma situação pós-constitucional, a liberdade unilateral seria sustentada em valores cristãos e assegurada pela força física, dinheiro dos próprios agentes e seus aliados.
Discursos e ações nesse sentido tiveram consequências graves nos últimos anos. Na experiência cotidiana, tornaram-se comuns agressões, ameaças, perseguições, expressões públicas de preconceitos e prática aberta de crimes, como a homofobia e o racismo. Embates políticos assumiram a forma de discussões exaltadas, perpassadas por ofensas, desaforos, desqualificações, ataques que resultaram em inimizades pessoais entre familiares, vizinhos e colegas de trabalho.
A desarticulação do domínio de realidade
Bolsonaro promoveu a desarticulação do domínio de realidade da ordem constitucional democrática. Impôs barreiras ao acesso à informação e à produção de conhecimento científico sobre a situação econômica, social, ambiental e sanitária do país. Análises de órgãos técnicos da administração federal foram desqualificadas, acusadas de serem enviesadas e errôneas. O acesso à informação sobre ações do governo, assegurado por lei, foi restringido pela classificação de documentos a serem protegidos por períodos de até 100 anos.
Um aspecto do grotesco é o anti-intelectualismo ou negacionismo. Ao longo de todo o mandato, o presidente atacou saberes acadêmicos, desdenhou de teorias e métodos científicos, cooptou intelectuais e investigadores e cortou investimentos em ciência e tecnologia15. Privilegiou noções de senso comum, produzidas por supostos filósofos, cientistas oportunistas e técnicos pouco qualificados ou, ainda, elocubrações místicas formuladas por pastores, influenciadores digitais e outras subcelebridades. Esses autodenominados "intelectuais" e "filósofos" têm compromisso com a propaganda de fabulações como o "marxismo cultural", a "ideologia de gênero" ou o "coitadismo antirracista" e a meritocracia. O presidente passou a assumir capacidades divinatórias de acesso a conhecimentos ou informações ocultas, de deciframento de personalidades suspeitas, vontades malévolas ou mal-intencionadas de seus adversários ou auxiliares não alinhados com sua política.
Abriu-se campo a especulações, a interpretações conspiracionistas, à difusão de teorias e explicações ad hoc e sinistras, replicadas em massa por grupos em redes sociais com o apoio da própria Presidência. Eles se colocaram em competição com o campo dos saberes científicos e críticos, assim como com os seus suportes de legitimação que asseguram a objetividade do conhecimento e a validade de suas explicações. Instalou-se uma disputa permanente, aberta e pública entre discursos postos em registros diferentes, cujo efeito foi o de desarticular o domínio de realidade conformado pelo campo de saberes científico e crítico correlativos à ordem constitucional democrática.
A passagem a uma situação pós-constitucional
As ações de Bolsonaro e seus efeitos voltaram-se à superação da ordem constitucional democrática, promovendo sua passagem a uma situação pós-constitucional. A situação atual era encenada como heterogênea com relação ao passado mi(s) tificado e ao futuro sublimado. O presente seria o estágio final de um processo de decadência e a porta de entrada para um futuro próximo de redenção, em direção ao qual seria necessário acelerar o momento atual. O mandato de Bolsonaro seria fundado não só na vontade expressa nas urnas, mas também traria o sinal de uma dádiva sagrada. A soberania encenada pelo figurante desengonçado do popular conteria sinais do desígnio divino16.
O sentido do seu mandato ultrapassaria a normatividade da atualidade e sua legitimidade eleitoral. Sua origem estaria num passado mi(s)tificado da nação cristã, situado aquém do passado histórico em que a democracia constitucional brasileira foi instaurada. Seu título de legitimidade se fundaria num mandato divino sublimado que lhe conferiria uma missão que atravessaria as fronteiras da atualidade para abrir a ordem na qual Deus implantaria seu reino na terra.
A dualidade das referências temporais associa-se a metamorfoses políticas, pois, ao presente degradado da ordem constitucional democrática, opõe-se o passado de plenitude mística que é modelo para o futuro pós-constitucional. Assim, as manifestações golpistas do mandatário voltavam-se não só à mobilização de seguidores, à intimidação de opositores e autoridades ou à manutenção de apoio eleitoral, mas também tratavam de romper o tempo político da ordem constitucional, com suas eleições, mandatos e outras formalidades. A ação governamental passou a dar lugar a um espetáculo repetitivo que profetizava sem fim a passagem vindoura. Suas elocuções contraditórias e inverdades tinham caráter expressivo, uma vez que manifestavam as angústias, anseios, fantasias coletivas que alimentavam cotidianamente a esperança de um milagre. Elas reiteravam a expectativa de um fato inusitado, de uma intervenção divina, que iniciaria a passagem para a ordem mitificada. O desajeitado presidente do popular tornado soberano transmudar-se-ia no luminoso Messias, inaugurando a nova ordem na qual se daria a restauração ou a instauração dos valores da irmandade cristã.
A democracia constitucional mostra-se inadequada e as demais autoridades do Estado tornam-se antagonistas ao movimento. Elas e outros inimigos são virtualmente destituídos da sua titularidade de direitos, expostos aos ataques, às represálias e a outras violências dos bolsonaristas. Por sua vez, aqueles que aderiram à liderança de Bolsonaro desvestem-se de sua condição de cidadãos e se travestem em "homens de bem", soldados da nova ordem. Tal como o seu líder, afirmam "jogar dentro das quatro linhas da Constituição", com o que se posicionam nas fronteiras da ordem constitucional com relação à qual estão, em um vínculo de amigo-inimigo engajados em luta contínua, enquanto esperam o apoio dos quartéis (que poderiam exercer de modo próprio os seus poderes de intervenção para a manutenção da ordem, de acordo com a sua interpretação particular do artigo 142 da Constituição).
Desse modo, a linguagem da destruição - a retórica do ódio e a guerra cultural - colocou permanentemente em pauta a fuga da ordem constitucional. No limite, se possível, por um golpe, mas também pela encenação cotidiana do grotesco e pelo desmonte das políticas estatais. A estratégia de Bolsonaro teve como efeito produzir incerteza e desorientação dos seus adversários tornados inimigos, mostrando-se como um modo inevitável de exercício da soberania do povo.
O grotesco na pandemia da covid-19
A pandemia da covid-19 foi o momento de mais evidente desestabilização da ordem constitucional por meio da encenação do grotesco. A situação impunha, obviamente, a cooperação de todos os níveis de governo para minimizar a contaminação e controlar os seus efeitos. No entanto, os esforços de órgãos federais e dos governos estaduais e municipais sofreram, inacreditavelmente, oposição do presidente e de seu entourage, que atuaram para facilitar o contágio e agravar os seus impactos. Inicialmente, Bolsonaro demitiu ministros e atacou técnicos que se opuseram a seu embuste, determinando a suspensão da divulgação de dados públicos, como os boletins diários do Ministério da Saúde com as estatísticas sobre a contaminação.
O presidente ostentou a atitude de um popular preocupado com os prejuízos que a situação traria à sua contabilidade doméstica. Desdenhou levianamente dos riscos da doença e a sua gravidade. Debochou cruelmente do sofrimento dos infectados e do luto de familiares. Desqualificou como um charlatão explicações, teorias e técnicas para combater a pandemia. Excedeu de forma arbitrária os poderes da Presidência a fim de bloquear as medidas sanitárias de outras autoridades públicas. Como um inepto, atribuiu a terceiros a responsabilidade pela situação, culpando o Supremo Tribunal Federal por ter "atado as suas mãos" ao julgar inconstitucionais as suas decisões.
O espetáculo de horror clown teve como contraface a destinação de verbas federais para medidas inócuas, o bloqueio da aquisição de vacinas e a apropriação privada de recursos públicos17. A situação mais dramática foi a contaminação em massa na cidade de Manaus, no Amazonas, no início de 202118. Não se sabe ao certo se, nesse caso, a prioridade era realizar um experimento de imunização, desviar verbas públicas ou, ainda, provocar uma catástrofe sanitária para justificar medidas de exceção. Porém, não há dúvida de que se criou confusão sobre a definição da situação: as autoridades responsáveis, os saberes científicos e as saídas dela.
Bolsonaro colocou-se como o grotesco da democracia com uma estratégia que produziu a inversão dos fundamentos normativos, a suspensão do ordenamento jurídico e a desarticulação do domínio de realidade da ordem constitucional de 1988. Criou condições para uma situação de passagem a uma ordem pós-constitucional e produziu mutações no regime constitucional neoliberal democrático, como será exposto a seguir.
Reconfigurações do regime constitucional neoliberal democrático
O presidente bufão não foi apenas negatividade, pois produziu reconfigurações no regime constitucional neoliberal democrático. Essas reconfigurações compreendem as relações entre os poderes do Estado federal, a competição eleitoral, a limitação, se não a eliminação, das capacidades estatais de desenvolvimento e o desmonte das políticas de direitos humanos. Esta seção apresenta algumas das alterações mais importantes e as suas implicações, colocando-as como desdobramentos e inflexões com relação às mudanças anteriores.
Relações entre os poderes, coalizão governamental e clientelismo
No início do mandato, Bolsonaro dispensou a formação de uma coalizão partidária no Congresso Nacional, pretendendo governar com o apoio ad hoc das frentes parlamentares a projetos específicos do Executivo, e preencheu os cargos ministeriais com militares e aliados ideológicos. Derrotado nesse espaço, ele passou a atacar lideranças e desqualificar deputados. Editou também decretos que extrapolavam suas atribuições, visando produzir efeitos legislativos e criar situações irreversíveis. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, David Alcolumbre, negociaram com ministros do governo a aprovação de propostas importantes, como a Reforma da Previdência, aprovaram decretos legislativos que limitaram as medidas presidenciais e criaram uma espécie de conselho de crise para conter o presidente.
Dada a sua instável relação com o Congresso e em face do risco de um processo de impeachment, Bolsonaro aliou-se, a partir da segunda metade de 2020, com uma constelação de partidos conservadores e fisiológicos (conhecidos como "Centrão"), que assumiram a coordenação política e a promoção da pauta governamental, conferindo-lhe sustentação parlamentar estável19. Foi ampliado um sistema de transferência direta de recursos orçamentários para executar emendas parlamentares, mediado pela Presidência das casas20. Essas verbas são destinadas, sobretudo, a políticas assistenciais nas bases eleitorais dos parlamentares. A modificação representou o rearranjo do "presidencialismo de coalizão", o esquema informal de articulação entre os Poderes adotado desde a transição democrática.
O regime político brasileiro é marcado pela combinação de presidencialismo e pluripartidarismo, tornando-se necessárias estratégias para assegurar a coordenação das ações do Executivo e dos parlamentares. O presidente eleito é, em regra, minoritário no Congresso e, para ser capaz de implementar a sua agenda, precisa formar uma coalizão partidária em seu apoio21.
Ele usa suas prerrogativas institucionais como instrumentos de barganha com os parlamentares. As principais são a competência privativa de iniciativa legislativa em alguns domínios (especialmente organização administrativa, tributação e orçamento), a provocação do regime de urgência para a tramitação de projetos de lei e o poder de decreto (medidas provisórias). Outras são seus poderes de regulamentação da legislação, de gestão orçamentária, de decisão discricionária na administração, além das nomeações dos cargos ministeriais. Um dos instrumentos privilegiados do Executivo foi o poder discricionário para executar as emendas parlamentares. Dadas as regras de austeridade fiscal, adotadas desde o governo Fernando Henrique, o orçamento seria executado em função da disponibilidade de recursos em caixa e, por isso, os montantes discricionários dos ministérios e as emendas parlamentares tinham caráter de mera autorização para o gasto22. A execução das emendas dos parlamentares da base de apoio do governo era prioritária, mas, como a liberação devia ser aprovada pelo ministério, o Executivo usava esse poder para gerir sua coalizão de apoio no Congresso, podendo recompensar ou punir parlamentares a um custo político baixo23.
As lideranças partidárias no Congresso têm instrumentos de coordenação dos parlamentares e instrumentos para sua disciplina. Assim, estes tendem a seguir as orientações das lideranças e os partidos dão apoio ao presidente. Ao comporem a maioria, eles têm acesso a cargos, à execução de emendas e participam das políticas promovidas pela coalizão. Ou seja, as lideranças têm papel de mediação entre o governo e os parlamentares, mantendo o apoio destes às propostas governamentais24.
Com o enfraquecimento político do Executivo nos governos de Dilma e Temer, o Congresso aprovou mudanças nas regras constitucionais e orçamentárias que limitaram a discricionariedade do Executivo na execução das emendas parlamentares. Essas regras asseguraram uma parcela mínima da receita para emendas parlamentares e garantiram sua intangibilidade quanto a eventuais cortes de execução pelo Executivo25. Os presidentes das casas do Congresso passaram a deter o poder de distribuir as emendas e autorizar sua execução, exercendo-o direta ou indiretamente.
A aliança entre Bolsonaro e o "Centrão" aumentou o valor destinado às emendas parlamentares. A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 atribuiu ao relator-geral o poder de alterar grande parcela das dotações orçamentárias26 e a de 2021 ampliou a transferência direta das verbas daquelas emendas para municípios e estados27. O resultado foi o aumento do percentual dessas emendas em relação aos gastos discricionários do governo, que passou de 14% a 21%, entre os governos de Lula 1 e Temer, para 30,3%, em 2022, sob Bolsonaro. Dessa forma, o poder discricionário do Executivo foi limitado em benefício da presidência do Congresso que, ao invés de uma distribuição equitativa dos recursos entre os parlamentares, passou a exercê-lo em benefício dos parlamentares da base do governo28.
Foram mudados, portanto, o ponto de tomada de decisão e o mediador principal da relação entre parlamentares e governo na gestão de recursos orçamentários. Se, no período anterior, aquele ponto era o Poder Executivo e o mediador era o líder partidário, agora passam a ser a presidência das casas do Congresso e o relator da lei orçamentária. Desse modo, as negociações do Executivo para a formação e gestão da coalizão deixaram de ser centradas nas lideranças partidárias (que permanecem relevantes para os cargos ministeriais e para a disciplina das bancadas) e passaram a incluir os presidentes das casas do Congresso, dados os seus instrumentos de fidelização dos parlamentares.
Para os parlamentares, seu apoio ao governo é recompensado pela execução de suas emendas e, portanto, tendem a negociá-lo a cada votação relevante. Os recursos para uso clientelístico junto às suas bases são aplicados de forma pulverizada, sem relação com o planejamento de investimentos do governo federal em políticas de desenvolvimento e de direitos29. Se as verbas para políticas de direitos aumentaram, elas são aplicadas numa lógica clientelista, investidas em benefícios locais e para atender pequenos grupos. A paroquialização da política federal se acentuou e as políticas de direitos voltaram a ser benefícios para clientelas.
No mandato de Bolsonaro, ocorreram mudanças nas relações entre os poderes do Estado, com o deslocamento de importantes poderes orçamentários para o Congresso. Também foi promovida uma coalizão majoritária de políticos de extrema-direita e partidos conservadores, que ampliaram a utilização clientelista de recursos federais30.
Práticas eleitorais, direitos sociais e austeridade fiscal
O candidato Bolsonaro usou a administração pública de modo sem precedentes na sua última campanha eleitoral. O caso mais notório foi a reunião com embaixadores estrangeiros realizada nas dependências governamentais, que resultou na condenação de Bolsonaro pelo TSE à inelegibilidade por oito anos31. O uso mais amplo de recursos públicos para a sua campanha foi a aprovação de emendas constitucionais que concederam auxílios monetários a várias categorias profissionais e aumentaram o valor do Auxílio Brasil, prestação monetária federal destinada às famílias mais pobres32. Dados os impactos econômicos da pandemia e as consequências da guerra na Ucrânia sobre o preço dos combustíveis e dos alimentos, as medidas eram necessárias e foram aprovadas por ampla maioria no Congresso. Porém, elas contrariavam posições do presidente e seus ministros que se manifestaram inicialmente contra os auxílios. O presidente Bolsonaro propôs os auxílios em busca de apoio eleitoral e os presidentes das casas do Congresso viabilizaram a aprovação. A maioria parlamentar conservadora e de extrema-direita flexibilizou o princípio retórico da austeridade fiscal, aplicado sistematicamente pelos neoliberais contra as políticas sociais, em função de seu cálculo eleitoral.
O aumento dos benefícios no final de 2021 resultou de uma mudança de tática do presidente. Em sua escalada golpista, cujo ponto culminante foram os atos de 7 de setembro, ele não obteve os apoios políticos e militares necessários para uma ação decisiva. Naquele momento, ele era o mais impopular de todos os candidatos à reeleição desde a redemocratização. Segundo o Instituto DataFolha, entre setembro e dezembro de 2021, o governo Bolsonaro tinha entre 51% e 53% de avaliações negativas (ruim/péssimo), e entre 22% e 24% de aprovação (ótimo/bom). A nova tática produziu efeitos positivos, pois, em março de 2022, sua avaliação passou para 46% e 25%, respectivamente, e no início de outubro para 40% e 37%33. Segundo o mesmo instituto, as intenções de voto no candidato Bolsonaro passaram de 26%, em março, a 34%, em setembro de 2022, enquanto Lula oscilou entre 43% e 47% no período34.
O candidato Bolsonaro promoveu benefícios monetários aos cidadãos em período eleitoral em escala sem equivalente nas últimas décadas. As medidas representaram uma brecha na retórica da austeridade fiscal oposta pelo neoliberalismo às políticas sociais. Elas foram apoiadas pela oposição, que transformou o auxílio monetário em direito constitucional para pessoas em situação de vulnerabilidade.
O programa anarcocapitalista e o desmonte das políticas de desenvolvimento
O governo Dilma, promotor de políticas neodesenvolvimentistas e direitos sociais, foi derrubado por um movimento que sustentava uma agenda oposta. Antes de assumir, o vice-presidente Temer divulgou um programa agressivo que, em nome da competitividade, propunha suprimir a espinha dorsal dos direitos sociais da Constituição de 1988. A Reforma Trabalhista (Lei 13.467, de 2017) quebrou a estrutura da proteção aos direitos do trabalho e da organização sindical e a Emenda Constitucional 95, de 2017, limitou o aumento dos gastos públicos, vinculando-os à taxa de inflação. A mudança do marco legal do Pré-Sal (Lei 13.365, de 2016) abriu espaço para as multinacionais do petróleo e extinguiu a política que associou os investimentos na exploração de petróleo à inovação tecnológica nacional. Contudo, o desgaste resultante do escândalo promovido pelos procuradores da Lava-Jato fragilizou o governo Temer, impedindo-o de prosseguir com as mudanças.
Jair Bolsonaro defendeu um programa econômico anarcocapitalista que, em nome da instauração da ordem natural de mercado, restringiria a regulação da economia, limitando, se não eliminando, toda política pública de desenvolvimento.
Ministérios e órgãos foram extintos, com a redução de financiamentos à produção, à infraestrutura e à inovação35. As funções de planejamento e gestão econômica foram centralizadas no Ministério da Economia, enquanto as políticas de desenvolvimento passaram ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Foram esvaziadas agências e políticas federais de proteção ambiental e de populações indígenas, quilombolas e tradicionais. A presença territorial do Estado, débil em muitos espaços, foi limitada, possibilitando a expansão incontrolada de mineradoras, empresas agropecuárias e de extração de reservas vegetais, além das atividades comandadas pelo crime organizado na Amazônia e no Cerrado, como o contrabando, tráfico de drogas e mineração em reservas indígenas36. A paralisia governamental estendeu-se ao desmonte das políticas de trabalho, educação, saúde e assistência social e houve dificuldades para formular novas políticas econômicas e sociais. Os cargos de direção de importantes agências estatais foram ocupados por indivíduos sem qualificação técnica ou, pior, com posições, interesses e trajetória contrários aos objetivos dos postos que assumiram.
A Reforma da Previdência (Emenda Constitucional 103, de 2019) restringiu o acesso à aposentadoria, em detrimento das condições e perspectivas de milhares de trabalhadores. No campo econômico, a chamada "autonomia do Banco Central" (Lei Complementar 179, de 2021) e mudanças no marco do saneamento (Lei 14.026, de 2020) foram acompanhadas por lei permissiva à propriedade de terras por estrangeiros e pela intitulada "lei da liberdade econômica" (Lei 13.874, de 2019), que pretendeu dar orientação única à interpretação judicial do ordenamento jurídico. Promoveu-se novo ciclo de privatizações com a venda da Eletrobras e de partes da Petrobras, o que fragilizou o controle governamental sobre o domínio estratégico do planejamento de energia. Essas mudanças significam a "blindagem da constituição financeira"37, visto que aprofundam a "constituição dirigente invertida", pela qual toda a política do Estado brasileiro foi posta sob a tutela estatal da renda financeira do capital.
O Ministério do Desenvolvimento Regional foi descaracterizado e o novo marco legal para o planejamento do desenvolvimento regional arrastou-se no Congresso. Além dos cortes orçamentários, as políticas de desenvolvimento regional foram reduzidas a vetores de clientelismo político, dado que são o domínio por excelência das emendas parlamentares38. Políticas de desenvolvimento humano saíram da pauta, substituídas pelo elogio do uso da força nas relações privadas39.
O neoconservadorismo nas políticas de direitos humanos
No campo dos direitos humanos, as políticas não foram apenas destruídas ou desconstruídas, elas foram ressignificadas e orientadas para a construção da ordem mi(s)tificada. Dados os seus efeitos para a construção dos sujeitos da cidadania democrática, esse campo foi privilegiado para construir políticas que introduziriam outras formas de subjetivação, servindo como vetores de projeção do bolsonarismo para o futuro.
As políticas no campo dos direitos humanos durante o mandato de Bolsonaro combinaram a negação da democracia constitucional e a exploração dos seus recursos40. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) foi a vitrine do conservadorismo moral. A sua titular, Damares Alves, realizou performances públicas em prol de uma espécie de cruzada moral pela família e contra o aborto. O MMFDH propôs-se a adotar uma noção verdadeira, englobante e consistente dos direitos humanos, com base em uma narrativa bíblica da criação do mundo que atribui a titularidade natural e intransferível de direitos de todo ser humano. Este passou a ser inserido em uma ordem de criação que criminaliza o aborto sem exceção, a ser distinguido em dois sexos (macho e fêmea) e a pertencer à família monogâmica com objetivos de procriação, educação e proteção. Essa postura condena o reconhecimento à alteridade, por ser expressão de ideologias de esquerda, e rejeita direitos "especiais" para proteger certas minorias, mas se esquece de outras, e, em nome da igualdade, pretende proteger direitos de modo mais englobante, para alcançar minorias vulneráveis não organizadas41. Substitui políticas estatais pela responsabilização dos próprios indivíduos e das famílias. Daí que os programas governamentais foram diferenciados segundo os papéis dos indivíduos na família em termos de idade, gênero e função produtiva42. Em suma, o MMFDH procurou conformar as subjetividades às relações de poder social que sustentam as desigualdades produzidas por fatores históricos, econômicos e sociais43. O desmonte das políticas de direitos humanos dos governos anteriores assumiu modalidades distintas, compreendendo tanto medidas negativas quanto ativas e propositivas. A seguir, são apresentados exemplos do desmonte promovido pelo MMFDH.
Primeiro, a paralização, a redução, a inviabilização ou a inutilização das políticas e dos programas no que tange à titularidade de direitos e ao reconhecimento da alteridade. Foram extintos conselhos e outros espaços de participação e realizados cortes orçamentários ou programas foram eliminados pela simples inação. São exemplos aqueles destinados à população em situação de rua, pessoas portadoras de deficiência ("Plano viver sem limite"), à população LGBTQIA+ e ao Mecanismo Nacional de Combate à Tortura44. Algumas políticas foram esvaziadas e direcionadas a ações inócuas ou integradas a iniciativas mais amplas, tal como aquelas para crianças, adolescentes e idosos. O "Programa viver - envelhecimento ativo e saudável" realizou convênios com prefeituras para transferir computadores para atividades de lazer45.
Em segundo lugar, foi promovida uma inversão do sentido das políticas para fazer apologia de violações até então combatidas. Programas de memória, justiça e verdade passaram a elogiar o autoritarismo e a militarização da política, atacando as políticas de reparação. Outras iniciativas dedicaram-se a ações persecutórias e de propaganda do governo, como o canal que recebia denúncias e oferecia proteção às vítimas, que passou a ser utilizado para que bolsonaristas denunciassem professores ou estabelecimentos que exigiam certificado vacinal.
Terceiro, a reorientação e a ressignificação de políticas. Programas de proteção dos direitos das mulheres adotaram os papéis sociais da família tradicional, dificultando o funcionamento dos serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva. Procurou-se a projeção social da família, equilibrar família e trabalho, cultivar a solidariedade intergeracional e reforçar os vínculos familiares46. A proteção da família foi associada ao empreendedorismo, com a formação de jovens e a capacitação profissional das mulheres como microempresárias47.
As políticas de educação sintetizaram os três aspectos do programa de Bolsonaro: autoritarismo político, anarcocapitalismo econômico e conservadorismo moral. Foram interrompidos programas e políticas, extintos órgãos de participação e descumpridas metas anteriormente definidas em planos nacionais. A propaganda da "Escola sem partido" resultou em restrições impostas às atividades educacionais da rede de ensino pública e privada para coibir conteúdos relativos à orientação sexual, à educação para as relações étnico-raciais e outros temas48. O MMFDH criou cursos centrados na difusão de conteúdos de empreendedorismo e valores familiares. O diagnóstico da "área temática de educação em direitos humanos do gabinete de transição" foi enfático: tratou-se de uma política pífia e de esvaziamento da educação em direitos humanos; de ações tímidas de formação sem postura abrangente nem compromisso com os princípios e normas internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário49. O programa das escolas cívico-militares adotou padrões de colégios militares para a gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa das escolas públicas. Assumiu uma perspectiva reduzida e engessada de cidadania e a ideia de que "atitudes são incorporadas via treinamento"50. Sem falar no incentivo a projetos voltados para o homeschooling, nos moldes postos por projetos estadunidenses conservadores.
Assim, o desmonte das políticas de direitos humanos no mandato de Bolsonaro mostrou-se articulado com sua orientação política geral de superação da ordem constitucional democrática, de desconstrução das instituições e de criação de uma passagem para uma ordem pós-constitucional. Os direitos humanos foram inseridos em uma rede conceitual de outra configuração de saberes e os destinatários foram investidos enquanto indivíduos integrados em uma ordem religiosa, hierárquica, familiar e competitiva51.
Conclusão
A política presidencial no mandato de Bolsonaro pode ser sintetizada como a busca da desestabilização da ordem constitucional democrática por meio da desestruturação de suas referências normativas, do ordenamento jurídico e do domínio de realidade.
Bolsonaro encenou o grotesco da democracia constitucional, desacreditando a capacidade/viabilidade de representação política pelo sufrágio universal e promovendo uma espécie de associação mística com o povo eleito, de modo a provocar a passagem a uma ordem pós-constitucional. O presidente bufão não foi só negatividade, produtor de destruição com sua inépcia, ignorância e violência. Sonso, velhaco, marrento, ele se valeu dos poderes da Presidência para seus fins, tendo provocado reconfigurações nas relações entre os Poderes do Estado e na competição eleitoral; a limitação, se não a eliminação, das capacidades estatais de desenvolvimento e o desmonte das políticas de direitos humanos. Desse modo, apesar de o seu propósito de superar a ordem constitucional democrática ter sido derrotado, a política presidencial provocou reconfigurações no regime constitucional neoliberal democrático brasileiro. No referido período, a tríade "democracia, desenvolvimento e políticas de direito" foi substituída pelo tripé "clientelismo, anarcocapitalismo e conservadorismo moral".
A sua política teve efeitos para as relações entre os Poderes da União e para o pacto federativo. Ele promoveu o desmonte dos aparelhos e programas de proteção de direitos e de desenvolvimento, de modo a minar a estabilidade da vida e das formas de solidariedade do povo. A política de direitos humanos foi orientada num sentido neoconservador e anticidadão, que produziria identificação emocional com seus seguidores e não a sua identidade como titulares de direitos.
No campo dos direitos humanos, as políticas não foram apenas destruídas ou desconstruídas pelo MMFDH, mas também usadas para ressignificar os direitos humanos e orientar a construção da ordem mitificada. O campo foi privilegiado para introduzir outras formas de subjetivação e servir como vetor de projeção do bolsonarismo para o futuro. As políticas no campo dos direitos humanos tinham características comuns a outras áreas: elogiavam o autoritarismo político, defendiam o anarcocapitalismo na economia e promoviam o conservadorismo moral. Para além do MMFDH, todas as políticas de direitos durante o mandato de Bolsonaro caracterizaram-se pela combinação de precarização da titularidade e das condições de exercício de direitos, a promoção de um programa neoconservador, esquemas fisiológicos e clientelistas no Congresso e práticas eleitorais associadas a auxílios monetários para os pobres e categorias profissionais tendencialmente fiéis à sua liderança.
A aprovação excepcional dos benefícios abriu uma brecha na retórica da austeridade fiscal oposta às políticas sociais, patrocinada por uma coalizão de políticos conservadores e de extrema-direita. Os auxílios foram apoiados pela oposição, que foi capaz de transformá-los em direito constitucional para pessoas em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, paradoxalmente, durante o mandato de Bolsonaro, ocorreu o aumento dos valores das prestações monetárias aos mais pobres e o reconhecimento constitucional de um novo direito social.
Em meio a ataques e mudanças, a democracia política foi mantida e a ordem constitucional foi preservada, mas o regime constitucional carrega as marcas da política dos últimos governos. As respostas de autoridades judiciais e atores políticos à situação crítica provocada produziram novos esquemas de controle securitário ou epidemiológico, dos direitos de expressão e de manifestação e um novo domínio de protagonismo de autoridades policiais e judiciais no processo político.
Os governantes eleitos em 2022 iniciaram seus mandatos sob condições políticas e econômicas bem mais desafiadoras do que nos anos 2000. O programa atual é pautado não pela sucessão "normal" de governos em uma democracia, mas enfrenta o desafio adicional de lidar com os efeitos do governo Bolsonaro sobre regime constitucional neoliberal democrático brasileiro, implicando a reconstrução de instituições, a recuperação de governo da economia e o desenvolvimento e implementação das políticas de direitos e desenvolvimento humano.
A próxima tarefa de pesquisa será prospectar as consequências do período para as formas jurídicas da democracia constitucional brasileira e a maneira pela qual os novos governos, nas condições atuais da democracia, vêm promovendo políticas de desenvolvimento de modo a articular o fortalecimento da soberania nacional com a promoção substantiva dos direitos individuais e coletivos de toda a população.