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Avances en Psicología Latinoamericana

Print version ISSN 1794-4724On-line version ISSN 2145-4515

Av. Psicol. Latinoam. vol.29 no.1 Bogotá Jan./June 2011

 


"Ministério da Obrigação adverte": é preciso proteger os adolescentes ofensores sexuais

"The ministry of Obligation warns": it is necessary to protect the sexual offender adolescents

LIANA FORTUNATO COSTA*
EIKA LOBO JUNQUEIRA**
ADELI RIBEIRO***
FERNANDA FIGUEIREDO FALCOMER MENESES****

*Universidade de Brasília, Brasil.Psicóloga, terapeuta conjugal e familiar, psicodramatista, Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura - PSICC/PCL/IP/UnB, Campus Darcy Ribeiro - Universidade de Brasília -Brasília - DF - Brasil - 70910-900. E-mail: lianaf@terra.com.br.

**Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP), Secretaria de Estado de Saúde do DistritoPsicóloga, psicopedagoga, especialista em análise do comportamento, Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP) - Secretariade Estado de Saúde do Distrito Federal - Brasil. E-mail: eikalj@ig.com.br

***Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP), Secretaria de Estado de Saúde e Secretaria de Estado de Educação/ GDF, Brasil Psicóloga, psicodramatista, Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP) - Secretaria de Estado de Saúde e Secretaria de Estado de Educação/ GDF - Brasil. E-mail: adeliribeiro@hotmail.com

*****Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP), Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, BrasilPsicóloga, Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP) - Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal - Brasil. E-mail:Fernanda.falcomer@gmail.com

Fecha de recepción: 10 de noviembre de 2010
Fecha de aceptación: 24 de enero de 2011



Resumo

Esse texto enfoca um recorte da pesquisa-ação "Grupos Multifamiliares com adolescentes ofensores sexuais" e destaca a produção escrita dos adolescentes durante o processo. Foram dois textos: o primeiro foi uma carta endereçada aos pais e o segundo constituiu-se numa avaliação sobre o Grupo Multifamiliar. Foram 7 adolescentes que escreveram os textos, com idade entre 14 e 17 anos. Sobre o primeiro texto, discutimos: O adolescente como responsável pelo trabalho doméstico; O adolescente e sua necessidade de receber apoio e proteção; e O adolescente e o reconhecimento de sua fase de crescimento. Sobre o segundo texto: Os sentimentos do adolescente frente ao abuso sexual; A relação com a instituição que realiza a intervenção; Os símbolos que identificam sua ambivalência. Comentamos sobre os abusos sexuais cometidos por esses adolescentes a partir de dois pontos principais: a adolescência vista como uma fase de desenvolvimento e o papel da família na condução dessa fase.

Palavras chave: adolescente ofensor sexual, abuso sexual, família, adolescente.



Abstract

This text deals with a part of the research-action "Multifamiliar groups with sexual offender adolescents" and emphasizes the written production of the adolescents during the process. Two texts were involved: the first one was a letter addressed to the parents and the second was an evaluation of the multifamiliar group. Seven adolescents between 14 and 17 years old wrote the texts. About the first text we discussed: the adolescent as responsible for the domestic work; the adolescent and his need to receive support and protection and the adolescent and the recognition of his growth phase. About the second text: the feelings of the adolescent regarding sexual abuse; the relation with the institution that carries out the intervention; the symbols that identify his ambivalence. We comment about the sexual abuse practiced by these adolescents as from two main points: the adolescence seen as a development phase and the role played by the family in the conduction of this phase.

Key words: sexual offender adolescent, sexual abuse, family, adolescence.



Resumen

Este texto trata de una parte de la investigación-acción "Grupos multifamiliares con adolescentes delincuentes sexuales" y enfatiza en la producción escrita de los adolescentes durante el proceso. Se involucraron dos textos: el primero fue una carta dirigida a los padres y el segundo fue una evaluación del grupo multifamiliar. Siete adolescentes entre 14 y 17 años escribieron los textos. Acerca del primer texto, discutimos: el adolescente es responsable del trabajo doméstico; el adolescente y su necesidad de recibir apoyo y protección; y el adolescente y el reconocimiento de su fase de crecimiento. Sobre el segundo texto: los sentimientos del adolescente acerca del abuso sexual; la relación con la institución que lleva a cabo la intervención; los símbolos que identifican su ambivalencia. Finalmente, comentamos acerca del abuso sexual practicado por estos adolescentes desde dos puntos de vista principales: la adolescencia vista como una fase de desarrollo y el rol jugado por la familia en la conducción de esta fase.

Palabras clave: adolescente delincuente sexual, abuso sexual, familia, adolescencia.


Introdução

Esse texto trata de um recorte da pesquisa-ação "Grupos Multifamiliares com adolescentes ofensores sexuais" a qual investiga e sistematiza a proposta metodológica de atendimento a esses sujeitos numa dimensão grupal, reunindo adolescentes e familiares numa abordagem interventiva psicossocial. Essa pesquisa-ação reúne uma instituição acadêmica e uma instituição pública de atendimento psicológico a adolescentes encaminhados pela Vara da Infância e Juventude (VIJ), em cumprimento de medida socioeducativa. O recorte enfoca, em destaque, a produção escrita dos adolescentes durante um Grupo Multifamiliar (GM). Foram dois textos: um produzido ao final da primeira sessão grupal (outubro de 2009) na qual se discutiu o que é a proteção devida a crianças e adolescentes, e o outro produzido no final do último encontro (dezembro de 2009). O primeiro texto foi uma carta endereçada aos pais que também estavam presentes no GM, o segundo texto constituiu-se numa avaliação sobre o GM. Pela riqueza das informações contidas sobre os próprios adolescentes e seu contexto familiar, tomamos a decisão de elaborar uma discussão que proporcione aprofundamento desse universo tão pouco conhecido. Temos extrema dificuldade de conhecer experiências sobre atendimento a esses sujeitos no Brasil. Vários autores (Chagnon, 2008; Forensic Psychology Practice, 2006; Oliver, 2007, por exemplo) enfatizam a importância do atendimento a adolescentes que apresentem essa conduta porque 1/3 dos abusos sexuais são cometidos por adolescentes e, além disso, trata-se de uma fase de desenvolvimento que oferece a oportunidade de uma intervenção precoce que terá grande possibilidade de repercussões futuras. Comentando acerca de programas terapêuticos para ofensores sexuais, Marshall e cols. (2005) afirmam que não se tem dúvida sobre os efeitos positivos das ações, e que os programas devem atentar para serem modelados de acordo com as características e estilo de vida dos participantes. Em se tratando de ação voltada para adolescentes, os autores acima citados enfatizam a validade de investir nessa população pelo valor preventivo que a ação possui.

Adolescentes ofensores sexuais

Sobre nossa realidade brasileira praticamente não temos números que quantifiquem a incidência de violência sexual praticada por adolescentes. Serafim e cols. (2009) apontam essa falha, como também a falta de um perfil de identificação dos vários tipos de violentadores sexuais que dificulta o melhor conhecimento do fenômeno em nosso país. Oliver (2007) chama atenção de que, nem em países mais desenvolvidos, os dados estatísticos refletem a realidade. Esse autor aponta a importância de trabalhos voltados para essa faixa etária, porque esses sujeitos apresentam uma série de sinais que, se tiverem a devida atenção, pode mostrar mudanças efetivas no redirecionamento dessas condutas desviantes. Isso porque, com a concordância de Marshall (2001), esses sinais indicam uma profunda interseção com as interações dos adolescentes com sua família, em especial com pai e mãe.

Marshall (2001) aponta que adolescentes abusadores sexuais não necessariamente foram abusados sexualmente, embora esse seja um fator importante no desenvolvimento da conduta agressiva. Mas esse autor compreende, em sua teoria desse comportamento, que outros aspectos concorrem, como: experiências de maltrato físico na infância; ambiente familiar agressivo, contundente e transgressor que propicia um relacionamento destrutivo entre pais e filhos; experiências emocionais que desenvolvem baixa auto-estima no adolescente; falta de acolhimento afetivo familiar. São características de relacionamento que desenvolvem no adolescente, fantasias de dominação e força sobre o outro, como forma de enfrentamento de relações sociais e afetivas, e estratégias de "solução" de problemas.

De alguns autores consultados (Henggeler, Melton & Smith, 1992; Marshall, 2001; Mandeville-Norden & Beech, 2006; Marshall & cols., 2005; Oliver, 2007; Timmons-Mitchell, Bender, Kishna & Mitchell, 2006), todos concordam no valor do investimento terapêutico nessa idade para esse problema, tanto no que diz respeito à família como individualmente. Trata-se aqui da ação terapêutica ser vista como prevenção para reincidências com relação ao adolescente, às mudanças na relação de autoridade da família para com o adolescente. Os autores concordam em sua prática (Marshall & cols., 2005; Ward, Gannon & Birgden, 2007) ou em pesquisas (Borduin, Schaeffer & Heiblum, 2009; Hengeller & cols., 2009), que intervenções voltadas para adolescentes e suas famílias apresentam enorme potencial de diminuição de novas condutas sexuais agressivas. As intervenções grupais e que envolvam as famílias são vistas como possibilidade concreta e viável.

O Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais

Os Grupos Multifamiliares constituem-se em uma adaptação da técnica de grupo ao tratamento de famílias, no início na década de 1950, com famílias de pacientes psicóticos (Laquer, 1983). O Grupo Multifamiliar que ora descrevemos fundamenta-se nos aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária, visando ao trabalho em equipe com diferentes saberes, científicos e populares (Santos, 1999); b) da Terapia Familiar, em que a família é vista enquanto sistema e a relação é o ponto focal do trabalho, antepondo-se o interpsíquico ao intrapsíquico e utilizando-se os recursos sistêmicos, como a cir-cularização e a provocação (Minuchin, Colapinto & Minuchin, 1999); c) do Sociodrama, em que o grupo é o protagonista e as famílias possuem objetivos comuns, além de se identificarem mutuamente (Moreno, 1993); e, d) da Teoria das Redes Sociais, que enfoca a interação humana com a troca de experiências, desenvolvendo-se a capacidade auto-reflexiva e autocrítica (Sluzki, 1996). A fundamentação teórica do GM constrói um arcabouço que evidencia complexidade da temática e sustenta uma intervenção que seja grupal; contextual, no qual o planejamento das ações deve refletir as relações e o ambiente do adolescente e da família; o adolescente deve ser visto em família (Fishman, 1989) e a intervenção será dirigida para as interações familiares e o jogo relacional com os pais característico dessa faixa etária; as ações serão planejadas com a característica de ludicidade e organização de grupos e subgrupos dos participantes possibilitando que os interesses familiares e individuais dos adolescentes possam ser contemplados; e, finalmente, serão convidados a participarem do GM a família nuclear, a família extensa, amigos do adolescente e da família que estejam participando da tentativa de resolução do problema.

Para situações de abuso sexual, já foram feitas adaptações: Costa, Penso e Almeida (2005); Costa, Penso, Almeida, e Ribeiro (2008). Essas autoras adaptaram a abordagem grupal enquanto intervenção psicossocial, reunindo famílias numa modalidade de atendimento "sob obrigação", a partir de encaminhamento da Justiça. O Grupo Multifamiliar para adolescentes ofensores sexuais constitui-se em uma nova adaptação. Cada sessão do GM é planejada numa perspectiva voltada para a intervenção dirigida a grupos, com ênfase nas relações sociais. A organização da reunião segue orientação metodológica da sessão psicodramática (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988), que indica três etapas: aquecimento, dramatização e compartilhar. A adaptação dessa organização resulta em outras etapas: aquecimento, discussão e conclusão. O aquecimento tem por objetivo integrar o grupo e estimular a tarefa. A discussão visa aprofundar o tema, desenvolver a capacidade de reflexão sobre o assunto e acolher o sofrimento psicológico advindo das identificações com o tema. A conclusão sintetiza as opiniões sobre o tema discutido, avalia a aprendizagem sobre o tema e formula sugestões práticas às famílias.

O GM para adolescentes agressores sexuais ocorreu em cinco encontros onde foram desenvolvidos os seguintes temas: Proteção: "Eu devo proteger outras crianças, mas ainda preciso de proteção''; Sexualidade: "É tempo da sexualidade desabrochar"; Abuso sexual é um crime: "O abuso sexual é um crime e uma violência"; Transgeracio-nalidade: "Precisamos conhecer nossos antepassados" e Projeto de namoro: "Ainda quero namorar muito".

É importante assinalar que esses adolescentes encaminhados encontram-se dentro da perspectiva adotada por Chagnon (2008) que indica o abuso sexual decorrente de práticas educativas erradas e conflitos com autoridade, não apresentando diagnóstico de perversidade sexual. Esse autor diferencia a ofensa sexual praticada por adolescentes que têm dificuldades em relação à autoridade paterna em função de pertencerem a famílias com relações agressivas que resultam em práticas educativas que molestam e não orientam. Uma outra perspectiva é a agressão sexual praticada por adolescentes com perfil de perversidade. Esses adolescentes, que compõem o GM, não se enquadram em diagnósticos de pedofilia (Seto, 2009).

Método

Trata-se de pesquisa-ação (Barbier, 2002) que associa o oferecimento de proposta de intervenção (as cinco sessões do GM) a uma pesquisa que preserva a atenção e os rigores aos procedimentos. A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de saúde mental, Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico (COMPP), unidade de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais. O GM teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas seguintes etapas: agosto - treinamento da equipe e entrevistas com as famílias inscritas no GM; de agosto a dezembro - atendimento e supervisão dos GM com intervalos quinzenais e intercalados com atendimento/supervisão.

Sujeitos

Os sujeitos que construíram os textos foram 7 adolescentes que participaram do GM. Todos os nomes referidos no texto são fictícios. Segue abaixo a Tabela 1 que explicita maiores informações. As informações contidas nessa Tabela foram selecionadas no sentido de contextualizar esse adolescente, situando-o e à sua família numa perspectiva socioeconômica.

Instrumentos

As informações foram coletadas de dois textos escritos pelos adolescentes. O conteúdo segue abaixo.

Brasília, 7 de outubro de 2009 Senhores pais ou responsáveis pedimos que colaborem com as tarefas de casa (lavar banheiro, lavar louça, fazer comida, passar roupa e outras). É preciso conversar com a gente sobre o tema proteção. É preciso dar apoio e atenção, falar que cuida e que gosta da gente, dar um pouco de liberdade, mas com limite. É ter tempo para cada coisa. Ter mais confiança nos filhos, pois não seremos crianças pelo resto da vida. É preciso ter mais paciência. É preciso ser pai e amigo (ser companheiro). Hoje nos sentimos protegidos, mas é necessário que as situações presentes nos parágrafos acima precisam acontecer. Ministério da Obrigação adverte proteção é sério! (seguem-se 10 assinaturas)

Brasília, 09 de dezembro de 2009 Não foi fácil vir para o grupo, foi vergonhoso, achava que ia ter um psicólogo pra cada um, pensando que somos doidos. O primeiro encontro foi o mais importante, o que mais produziu efeitos em casa, já o geno-grama, foi muito marcante. Foi difícil falar do passado e observar as repetições. Chuva de palavras: Nova criatura; Podemos fazer diferente a partir dos erros que cometemos; Foi surpreendente; Podemos falar da situação sem tratar como bicho-de-sete-cabeças; Proporcionar aberturas para diálogo mesmo sendo tímido; Deu oportunidade às mães de nos observar; Melhoramos bastante mas ainda há coisas a serem melhoradas, e o grupo pode ajudar; Agradecemos a compreensão, a paciência, a atenção e o apoio de todos do COMPP. Nota do Grupo: 19,9; 10; sem nota; não tem nota; 25; 10; 10; não tem preço. Mandamos um Salve para Eveline da Xurupita, para Teresa da Xurupita, para Ana da Xurupita (tiazinha loura), para João Paulo II, para Armadineja da Xurupita e para todos do COMPP e um Salve especial, perante a lei, para a tiazinha Francisca. (Todos os nomes são fictícios).

Procedimentos

O primeiro documento foi escrito como resultado da discussão havida na primeira sessão do GM, na qual os adolescentes constituíram um subgrupo, conforme descrição anterior feita no item "O Grupo Multifamiliar com Adolescentes Ofensores Sexuais". Após escreverem a carta, um dos adolescentes dispôs-se a ler o conteúdo para os pais, no final dessa sessão, no momento em todos os participantes foram reunidos em um só ambiente. O segundo documento foi confeccionado ao final da última sessão do GM, quando se procedeu à avaliação realizada pelos participantes do grupo. Enquanto os pais respondiam a um instrumento de avaliação, os adolescentes elaboraram a sua avaliação escrita e entregaram para aos profissionais responsáveis pelo GM.

Cuidados éticos

A pesquisa foi inscrita no Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer N° 421/2009.

Análise das informações

Foi utilizada a análise de conteúdo temática proposta por Deslandes, Gomes & Minayo (2007). A análise é realizada seguindo os seguintes passos: decomposição do material a ser analisado em partes; distribuição das partes em categorias; descrição do resultado da categorização; realização de inferências dos resultados; e interpretação dos resultados obtidos a partir da fundamentação teórica adotada.

Discussão dos resultados

Três núcleos temáticos surgem da primeira carta: a) O adolescente como responsável pelo trabalho doméstico; b) O adolescente e sua necessidade de receber apoio e proteção; e c) O adolescente e o reconhecimento de sua fase de crescimento. Porém, inicialmente, percebemos que os conteúdos a serem analisados identificam temas que estão presentes na vida de adolescentes em geral, infratores ou não. Suas reivindicações aos pais estão mais ligadas à necessidade de experimentar sua fase de crescimento e individualização, ao mesmo tempo necessitam de continência e limite para suas experiências, evidenciando o conflito entre se separar e continuar pertencendo ao grupo familiar (Marcelli & Braconnier, 1989), entre se libertar e continuar recebendo proteção. Não há, nos dois documentos, menções sobre violências e a situação deles estarem em cumprimento de medida socioeducativa ou em atendimento por encaminhamento do Conselho Tutelar.

Autores da Terapia Familiar (Fishman, 1989; Madanés, Keim & Smelser, 1997) e da terapia com ofensores sexuais (Chagnon, 2008; Marshall. 2001; Oliver, 2007; Sanderson, 2005; Timmons-Mitchell, Bender, Kishna & Mitchell, 2006; Zankman & Bonomo, 2004) consideram que esse adolescente sem diagnóstico de patologia, levando-se em conta sua faixa etária e suas relações conflituosas com figuras de autoridade, em especial a figura do pai, mostrase como um sujeito favorável para uma intervenção que deve compreender a família e enfocar as dificuldades familiares de organização e hierarquia. O abuso sexual intrafamiliar, cometido por esse adolescente, está profundamente relacionado a essa configuração e a intervenção será bastante beneficiada em função disso. O capítulo IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) - Das medidas socieducativas, trata na verdade dos direitos assegurados a esse adolescente de ter sua condição de ser em desenvolvimento respeitada. A lei estabelece, através da aplicação das medidas socioeducativas os parâmetros de atenção e restabelecimento dos direitos fundamentais desse adolescente, reconhecendo seus atos lesivos a outrem. Entendemos, juntamente com Machado (2003), que essas medidas visam ainda proteger e oferecer oportunidades para que seja cuidado e possa retomar as condições esperadas de desenvolvimento físico, emocional e social, e resgatando o papel da medida que deve ser de momento para educação.

Tratemos agora dos conteúdos expressos nos documentos.

  1. O adolescente como responsável pelo trabalho doméstico - Esse ponto inicial dá o tom de denúncia e ao mesmo tempo informa sobre a organização familiar que esses adolescentes possuem. Dois aspectos se destacam: a aproximação física com as crianças da casa e a posição contraditória que eles ocupam em relação à autoridade e poder. Oliver (2007) enfatiza que os adolescentes ofensores sexuais são assaltados por fantasias sexuais e acabam por concretizá-las na medida que o meio ambiente proporciona as oportunidades. Todos os adolescentes abusaram de crianças que estavam no lar, além disso, eles eram os responsáveis pelos cuidados dessas crianças, como dar banho, alimentar, vestir, levar para a escola, e passando todo o dia sozinho com elas. A Tabela 1 aponta a renda familiar e ilustra sobremaneira porque a família se utiliza desses adolescentes como verdadeiros servidores domésticos. Pudemos perceber a dificuldade que as famílias demonstraram para se dar conta da vulnerabilidade da fase vivida de seus filhos. Em família todos tinham obrigações e tarefas das quais eram os responsáveis. Como Oliver (2007) aponta, as dificuldades dos adolescentes conterem seus impulsos sexuais, ou até mesmo de investi-los em outros alvos, teve uma situação familiar propícia que funcionou como um meio oportunizador potencializando as dificuldades deles.

    Por outro lado, Marshall (2001) aponta a qualidade dessas relações familiares como um parâmetro para a criação de sentimentos de segurança, aceitação e proximidade física, que funciona como impedimentos para assaltos sexuais fantasiosos. Esses adolescentes tiveram oportunidade de informar que eles comumente recebem castigos físicos, como método educativo. A culpa, manifestada pelo sentimento de vergonha e retraimento, deixa claro as características impulsivas da fase. O comportamento desses jovens reflete o sofrimento vivido e o desejo de mudança, enquanto as atitudes familiares eram de policiamento e punição reforçando a culpa e inviabilizando a capacidade de elaboração. As contradições que os cercam são muitas.

    Minuchin (1982), terapeuta de família, entende a hierarquia como um aspecto central na organização familiar funcional. A condição de passar o dia como o responsável pela casa e pelas crianças presentes, oferece a esses adolescentes uma posição de poder que é destituída à noite, quando os adultos retornam à casa do trabalho. Essa confusão de assumir um papel hierarquicamente superior durante o dia e subordinado à noite, juntamente com relações agressivas e dominantes pela violência dos pais, pode nos ajudar a compreender que o abuso, como diz Marshall (2001), contém uma confrontação à posição inferiorizada perante os pais e "superiorizada" em relação às crianças. Essa observação nos remete à construção do problema numa perspectiva de gênero (Saffioti, 1992). Entende-se gênero aqui como uma concepção socialmente construída de dominação do mais fraco, do menor, do mais vulnerável, e não proveniente do plano biológico. Essa autora discute o gênero como a expressão de uma disputa que abrange o lado dominador num jogo com o lado dominado. Esse sentido se coaduna com nossa interpretação das relações familiares que esses adolescentes possuem: são explorados pelos adultos como "criados domésticos" e exploram as crianças como objetos de satisfação sexual. Segato (2010) associa os crimes de natureza sexual à influência do patriarcado que constrói uma concepção social que é da ordem da dominação, da prevalência do masculino sobre o feminino. Essa autora aponta a masculinidade como um valor importante em sociedade e que determina ao lugar de cada um, principalmente do homem. A masculinidade é um título, e desde jovem esse homem aprende que precisa defender seu título e prová-lo frente a outros homens: "... quando ele perde, por alguma razão, potência... digamos... potência sociossexual", estamos diante de uma condição de emascu-lação, no dizer da autora (Segato, 2010, p. 53). A violência que aqui estamos enfocando, parece se exemplificar nessa compreensão de que o adolescente que se vê dominado durante o dia ao cumprir tantas tarefas domésticas, encontra como forma de inversão de posição, talvez em uma resposta para os pais, uma agressão de natureza sexual mas que pode ser considerada mais como uma agressão que qualquer outra interpretação específica.

  2. O adolescente e sua necessidade de receber apoio e proteção - Dos 7 adolescentes presentes no GM, 2 estavam com processo na VIJ e em cumprimento de medida socioeducativa, 4 estavam com denúncia feita no Conselho Tutelar ou na própria instituição (e isto gera denúncia à VIJ pois a instituição é obrigada a tal), e apenas um adolescente integrou o grupo sem notificação (tendo essa sido feita pela instituição). Todos esses procedimentos estão previstos pelo ECA. Machado (2003) defende que os adolescentes infratores sejam reconhecidos, acima de tudo, em sua fase de crescimento, para que tenham os seus direitos respeitados em relação ao seu desenvolvimento portanto, entendemos que a notificação deva ser um momento de resgate desse objetivo. O que os adolescentes também denunciam, e pedem, é que sejam apoiados, compreendidos, que tenham um ambiente de diálogo em casa e possam partilhar intimidade com seus pais. Em suma, a palavra é aproximação afetiva. Oliver (2007) enfatiza a necessidade do adolescente contar com confiança em poder conversar com adultos sobre suas ansiedades íntimas, e sobre seu conflito interior em relação às fantasias sexuais que envolvem outras pessoas, em especial as crianças, e ainda sobre suas condutas inadequadas de caráter sexual voltadas para os pequeninos. Enfim, o adolescente precisa ter acesso, e ser acessado, por adultos que possam exercer uma posição de orientação. Mais uma vez, seja no âmbito familiar, da escola ou da comunidade, há concordância entre os autores de que o adolescente necessita de uma figura de autoridade que seja afetiva e firme (Mandeville-Norden & Beech, 2006; Marshall, 2001; Marshall & cols., 2005; Oliver, 2007). A queixa desses adolescentes é de se sentirem violentados pelos pais e isolados pois não podem reclamar e têm que aceitar suas imposições.

    Penso, Ramos e Gusmão, em um texto de 2005, identificam uma figura alegórica do "Pai de Botas" que é uma junção do reconhecimento do pai associado à bota que caracteriza o uniforme do policial, com quem esses adolescentes, moradores de periferia, têm contato frequente nas ruas, ao serem abordados por eles. A figura do Pai de Botas identifica um pai biológico, ou um padrasto, tão violento como a violência que ele sofrem ao serem abordados por esses policiais. Ao mesmo tempo estão pedindo confiança para que seu processo de crescimento possa ter experimentações que uma maior liberdade proporcionaria. Esse dilema não é exclusivo do adolescente abusador sexual, mas nesse contexto adquire uma outra dimensão porque a família está envergonhada pelo abuso e tende a se fechar e ocultar os acontecimentos. Algumas famílias admitem que passam a não deixar mais o adolescente sair de casa, promovendo uma "prisão domiciliar" até que recuperem a confiança nele. Essa condição é particularmente preocupante pois a necessidade de experimentarem a separação de seus pais (Marcelli & Braconnier, 1989) é impedida e a possibilidade de ocorrência de um acting out cresce, em função de que se não há separação por bem, uma conduta transgressora irá promover essa separação, e talvez a integração do adolescente em um grupo de pares com uma identidade transgressora comum. O acting out, ou atuação, é definido por Marcelli e Braconnier (1989), como um agir que expressa o conflito ao invés de um agir, fruto de um processo de reflexão. O processo de individualização (desenvolvimento de identidade) é concomitante ao processo de individuação (desenvolvimento de identidade discriminada dos pais) (Marcelli & Braconnier, 1989). Por isso a carta termina com uma advertência aos pais: proteção é coisa séria e fundamental e eles ainda precisam de proteção como as crianças abusadas também.

  3. O adolescente e o reconhecimento de sua fase de crescimento - "É preciso dar apoio e atenção, falar que cuida e que gosta da gente, dar um pouco de liberdade, mas com limite. É ter tempo para cada coisa. Ter mais confiança nos filhos, pois não seremos crianças pelo resto da vida. É preciso ter mais paciência. É preciso ser pai e amigo (ser companheiro)". Esse trecho do primeiro documento ilustra o pedido de atenção, afeto e confiança. Autores que mantém programas de atendimento a esses adolescentes (Madanes & cols., 1997; Marshall & cols., 2005; Oliver, 2007) insistem na presença de um adulto com quem eles possam conversar, e construir uma aproximação afetiva para que esses vínculos positivos possam guiar suas ansiedades e dúvidas. Em particular, Marshall e cols. (2005) criticam os modelos de atendimento baseados em confrontação, interessando-se mais por modelos que incrementem a aquisição de habilidades e desenvolvimento de estratégias de condutas adequadas para bons objetivos sociais. Oliver (2007) e Madanes e cols. (1997) enfocam a questão da presença de autoridade, dentro e fora da família, como uma necessária condição para a reinserção do jovem. É fundamental uma relação com uma pessoa com autoridade saudável, hierarquia clara e possibilidade de troca afetiva. Autores que defendem o atendimento terapêutico a adolescentes ofensores sexuais em família (Henggeler, Melton & Smith, 1992; Madanes & cols., 1997; Timmons-Mitchell, Bender, Kishna & Mitchell, 2006; Zankman & Bonomo, 2004), apontam como justificativa a dependência dos pais, a importância do pertencimento ao grupo de pares, e o reconhecimento de que é necessário promover um contexto favorável para esse adolescente poder transitar em sociedade, porque somente a mudança nos recursos internos do adolescente não é suficiente, é preciso se enriquecer as possibilidades de aceitação do jovem na comunidade. Por outro lado, autores como Chagnon (2008) que desenvolvem um trabalho baseado em avaliação psicopatológica do adolescente ofensor sexual, com o intuito de diferenciar os níveis de comprometimento emocional e psíquico desse jovem, reconhecem as dificuldades de se apontar diagnósticos definitivos por conta da fase de desenvolvimento, e acabam por valorizar esquemas de reeducação que necessariamente envolvem a participação de adultos, seja da família ou lideranças comunitárias. Em síntese, o adolescente por estar em fase de transição necessita de enfoques de atenção que contemplem essa característica, e a consideração da participação da família, ou do grupo de pares ou da escola devem ser pensadas como estratégias para potencializar os efeitos terapêuticos da ação adotada.

    O segundo documento, a avaliação, apresenta três núcleos temáticos: d) Os sentimentos do adolescente frente ao abuso sexual; e) A relação com a instituição que realiza a intervenção; f) Os símbolos que identificam a ambivalência: Quem somos? Anjos ou demônios?

  4. Os sentimentos do adolescente frente ao abuso sexual - Os adolescentes relataram uma difícil trajetória de admissão de responsabilidade frente à instituição e seus técnicos, com medo da identificação como bandidos ou abusadores sexuais. A equipe técnica teve que realizar alguns ajustes com relação ao nome do grupo perante a direção e demais profissionais da instituição no sentido de que o GM não fosse nomeado por violência sexual. O pertencimento a um grupo de violadores sexuais causa muita vergonha às famílias e aos adolescentes. No entanto, eles mostraram expectativas e agradecimentos pela oportunidade de poderem conversar e serem ajudados.

    A abordagem a esses adolescentes é tratada com enfoque especial pelos terapeutas (Forensic Psychology Practice, 2006; Marshall, 2001; Marshall & cols., 2005) com o cuidado de enfatizar que essa experiência deva ser tratada de modo bem diferente da abordagem aos mesmos problemas envolvendo adultos. O sucesso de uma intervenção estará mais dependente de um estabelecimento de relações empáticas, da construção de um ambiente lúdico, de não confrontação com os sujeitos, de criação de objetivos terapêuticos que sejam voltados para âmbitos mais amplos do que somente a ausência de comportamentos agressivos. Penso, Gusmão e Ramos (2003) propõem, para o trabalho com adolescentes em conflito com a lei e uso de drogas, uma metodologia que tem como objetivo o enfoque na saúde e no desenvolvimento de aspectos biopsicossociais saudáveis, e utiliza objetos intermediários e intervenções lúdicas como estratégias de facilitação de vínculos e conversação sobre os temas delicados a serem falados. Essa metodologia é chamada de "Oficina de Idéias" e tem como centro a criação de um ambiente que possibilite a expressão dos adolescentes de acordo com suas capacidades e interesses da fase de crescimento.

    Oliver (2007) aponta que o adolescente sozinho não possui competências para duelar consigo mesmo em relação a seus medos e fantasias e precisa do apoio de adultos para enfrentá-los. O valor dessas conversas tem função de ampliar a compreensão sobre o trabalho preventivo de reincidência do abuso. Cunnen & Luke (2007) criticam as análises quantitativas de recidiva da conduta abusiva, porque não apontam os ganhos ocorridos nas interações desses adolescentes com profissionais, já que focam apenas a reincidência e o re-encarceramento. Os ganhos (ainda que pequenos) obtidos de contatos com pessoas, de reformulações de estilos de vida, de reflexões sobre sua impulsividade, precisam ser considerados, o adolescente não deve ser avaliado, em seu esforço para empreender mudanças apenas pela reincidência de um ato agressivo.

    A grande surpresa que o atendimento trouxe para os adolescentes foi a possibilidade de acolhimento, de serem vistos não como agressores mas com grandes possibilidades de poder caminhar de forma diferente e modificar a própria história. A questão do abuso foi trabalhada dentro do grupo como algo negativo que aconteceu, que deixou marcas, que mas que não era um fator determinante para o resto das suas vidas, e que eles não precisariam ficar presos a este acontecimento, além da importância que as relações familiares têm em sua re-inserção social. Marshall (2001) é taxativo quando aponta o adolescente dependente dessa mudança de qualidade na re-aproximação afetiva com sua família. A capacidade de oferecer um acolhimento caloroso é colocada como um aspecto fundamental para esse autor.

    Não podemos esquecer o valor da ação gru-pal no apoio e encorajamento para mudanças, bem como a elaboração sobre as dificuldades internas de cada um e que podem ser melhor realizadas em conjunto com seus pares. A possibilidade de acolhimento, de reconhecimento de existência de cada um, da escuta, de não serem rotulados, de poderem falar sobre eles mesmos, sobre a família, sobre os "segredos guardados" e tentar mudar o rumo da própria história, foram sem dúvida nenhuma os grandes marcos do grupo. Madanes e cols. (1997) preconizam que a intervenção com essa população deve conter um acolhimento simpático e empático, além de oferecer escuta e proposta de avançar na construção de um futuro. O grupo e a conversação promovem esses aspectos com maior amplitude. Jeolás e Ferrari (2003) argumentam a favor das intervenções grupais com adolescentes por reconhecerem maior efetividade nessa abordagem, pelo estímulo participativo que proporciona.

  5. A relação com a instituição que realiza o trabalho - Duas coisas chamam atenção: os agradecimentos e as notas conferidas ao trabalho. Eles agradeceram pela paciência, pela atenção e pela compreensão. Talvez esses agradecimentos estejam ligados à expectativa que tinham em serem hostilizados em função dos atos cometidos. Ao iniciarem o GM com entrevistas individuais com seus familiares, o constrangimento foi a marca registrada e eles puderam apontar o medo de serem identificados perante todos, como abusadores sexuais. Marshall (2001) aponta que a vergonha é um aspecto muito comum a esses adolescentes e suas famílias, e há necessidade de se fazer mudança quanto à nomeação de seu delito visando facilitar a aceitação do adolescente frente a ele mesmo, a família e a comunidade, pois não se ganha nada em insistir em tratá-lo como abusador sexual. Recorremos ainda à perspectiva dos Direitos Humanos (Machado, 2003) a qual está expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e que preconiza o direito fundamental do adolescente ser considerado como "ser em formação", ser em desenvolvimento, para que receba atenção psicológica e apoio social e sua fase de crescimento possa ter continuidade.

    Por outro lado, quando eles dão notas para o GM estão avaliando o trabalho e, desse modo, brincando e falando sério, estão invertendo as posições com seus avaliadores. Mesmo que seja de forma lúdica ou até mesmo como provocação, estão informando sobre a conquista de uma confiança mútua, aspecto fundamental na construção do contexto terapêutico com esses adolescentes (Marshall, 2001; Marshall & cols., 2005).

    Dois aspectos são importantes de serem adotados pelas instituições que oferecem atendimento: a qualificação profissional e a organização da instituição para acolhimento a eles. A equipe responsável pelo atendimento deve desenvolver qualidades para o estabelecimento de uma relação empática e de criação de um ambiente que favoreça a intimidade com esse adolescente, sem as quais corre-se o risco de não conseguir estabelecer os vínculos afetivos necessários para a reflexão sobre suas fantasias, além do cuidado para haver um contato livre de julgamentos sobre o ato cometido (Marshall, 2001). Alguns adolescentes, como vimos no item b da discussão dos resultados, estão em cumprimento de medida socioeducativa e vêm para atendimento como parte do cumprimento da medida. Esses cuidados também devem se constituir em preocupação da instituição. Marshall (2001) e Oliver (2007) indicam que os programas de atenção aos adolescentes devem ser interessantes e oferecer atividades voltadas para seus interesses e características, não podem ser meras adaptações de programas para adultos.

  6. Os símbolos que identificam a ambivalência: Quem somos? Anjos ou demônios? - O final do documento traz as saudações dos adolescentes para a equipe técnica do GM e são incluídas saudações a figuras públicas contrastantes: Papa João Paulo II e o presidente do Irã, Ahmadine-jad. Nesse ponto temos que nos deter e buscar compreender porque essas duas figuras foram incluídas como fazendo jus a estarem junto da equipe: o primeiro, uma figura canonizada e representando o bem, o segundo, uma figura questionadora e questionada, para quem o mundo reage com críticas, rejeita e pune o país que ele representa com sanções econômicas, e podemos dizer que, no momento, personifica o mal. Interpretamos essas escolhas como indicação do que eles podem ser, anjos ou demônios, das dúvidas que possuem sobre o que eles de fato são, ou sobre o que as pessoas pensam e sentem sobre eles. Autores que colaboram em programas e pesquisas do Reino Unido (Mandeville-Norden & Beech, 2006), Canadá (Marshall & cols., 2005), Estados Unidos (Oliver, 2007) e Austrália e Nova Zelândia (Marshall, 2001), países nos quais esse tema dos abusadores sexuais está mais desenvolvido, apontam como fatores importantes presentes na construção do vínculo terapêutico, o acolhimento caloroso, a expressão de empatia para com esses sujeitos, a construção de um contexto de intervenção que seja colaborativo. Esses são aspetos fundamentais para a potencialização da ação terapêutica. As saudações podem ser o reconhecimento de que ainda estejam numa zona intermediária de possibilidades de mudanças, entre anjos e demônios, em um ponto que marca a presença de dúvidas e possibilidades.

    E finalmente, o documento aponta com um acento especial a saudação deles para a profissional que discutiu mais detidamente o tema da "violência é um crime", situando o abuso sexual como um crime no qual se transgride uma regra de convivência social: os mais velhos protegem e cuidam dos mais novos. "... um Salve especial, perante a lei, para a tiazinha Francisca". A equipe buscou, ao longo do GM, desde seu planejamento e escolha dos temas até a ênfase metodológica na ludicidade, atender aos requisitos apontados pelos autores citados nesse texto, que preconizam a construção de um ambiente facilitador para o enfoque desse tema com adolescentes. No entanto, reconhecemos que seja fundamental que o adolescente perceba a dimensão criminal do ato cometido, bem como o dano ao desenvolvimento das vítimas, já que o GM trabalha no sentido de também reconhecer seu direito à atenção e proteção. Por isso, a expressão "perante a lei" adquire um significado de admissão das regras de convivência social e limites a serem respeitados nas relações familiares, e ainda da percepção mais clara do sentido do cumprimento da medida socieducativa.

Considerações finais

Ao final, para comentarmos sobre os abusos sexuais cometidos por esses adolescentes, visualizamos dois pontos principais: a adolescência vista como uma fase de desenvolvimento e o papel da família na condução dessa fase. A adolescência é uma fase de transição do desenvolvimento permeada de impulsos e dificuldade de contê-los. Esses adolescentes revelaram carência de intimidade nas relações parentais ocasionando a ausência de um espaço que favorecesse a eles, de uma maneira segura, a dificuldade de lidar com seus desejos. As famílias participantes do GM sentem-se pressionadas pelas agruras da sobrevivência socioeconômica e empreendem muito empenho na satisfação de suas necessidades materiais básicas, requerendo que todos os membros da família participem do esforço conjunto, cada qual com sua contribuição particular (vide Tabela 1- renda familiar em dólares e número de pessoas residentes na casa). Desse modo os adolescentes têm uma função fundamental que é dar suporte para os irmãos menores enquanto os pais trabalham. Esse esforço conjunto se mostra como um aspecto que traz vulnerabilidades para a proteção das mesmas crianças, visto que esses adolescentes acabam ficando sem orientação e assumindo papéis parentais que também os vulnerabilizam.

As famílias não relataram atitudes, antes do abuso sexual, que evidenciassem proteção e apoio aos seus filhos. Os relatos dos abusos foram vividos como uma situação de "espanto" e estranheza. Algumas providências foram tomadas, mas os dois documentos escritos indicam a situação de abandono em que eles ainda se encontravam. As reações de satisfação demonstradas por eles nas atividades propostas nos mostraram a importância da criação de um espaço no qual pudessem expressar sua carência e sua desproteção. Nesse ponto justificamos o título do texto. No Brasil há uma propaganda governamental, sobre prevenção do fumo que avisa: O Ministério da Saúde adverte: Fumar faz mal à saúde. Então, numa metáfora criada por eles mesmos, o "Ministério da Obrigação" adverte que os adolescentes precisam de proteção, precisam que uma autoridade advirta os pais de que eles ainda precisam de atenção e orientação.


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