Introdução
O BRICS (agrupamento formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi criado para fomentar a cooperação entre países que aspiravam uma ordem internacional baseada na multipolaridade, na equidade e na democracia, mediante a expansão da sua influência no mundo, sem desengajar ou substituir as instituições internacionais já existentes.1 Esse agrupamento se destaca devido a que configura uma cooperação equitativa entre Estados com ideias afins, "em oposição aos modelos antigos com características coloniais quase paternalistas".2
Desde 2006, quando o BRICS iniciou sua coordenação de modo informal, com a realização da primeira reunião oficial de chanceleres em 2008 (ainda sem a participação da África do Sul, que passou a integrar o grupo em 2011), e, a partir de 2009, quando os chefes de Estado e de governo do BRICS passaram a se encontrar anualmente,3 os países estreitaram relações no âmbito econômico-financeiro, cujas empreitadas foram bem-sucedidas e já apresentam resultados concretos em curto prazo, por exemplo, com a criação das primeiras instituições do grupo como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR).4
Entretanto, haja vista a consistente aliança do grupo, a cooperação não tem se resumido à área econômica, observado que o BRICS representa uma nova forma de coordenação internacional, efetuada entre países que têm algumas características de desenvolvimento semelhantes, por meio da cooperação em diversas outras áreas temáticas, sendo que, para o Brasil, as áreas de saúde, ciência, tecnologia, inovação e energia são consideradas prioritárias.
Nesse contexto, no presente ensaio, pretende-se apresentar as mais recentes iniciativas do grupo no âmbito da ciência, da tecnologia e da inovação (CTI), e os últimos instrumentos adotados para colocar em prática as propostas, além de iniciar a tarefa de investigar como vem se dando a sua implementação, principiando com a apresentação dos esforços do Brasil e da China nesse sentido.
A abordagem trará os resultados e as propostas apresentadas na 10a Cúpula Presidencial do BRICS, realizada em Joanesburgo, em julho de 2018, cujo tema foi: "O BRICS na África: colaboração para o crescimento inclusivo e para a prosperidade compartilhada na Quarta Revolução Industrial", mediante a análise da Declaração de Joanesburgo, como principal fonte de pesquisa,5 com a qual se iniciará o ensaio, com foco nas passagens atinentes à cooperação em CTI, objeto do trabalho.
Antes disso, cumpre tecer alguns comentários acerca desta nova era que estamos vivenciando, reconhecida como "4a Revolução Industrial".
Segundo Estevanim, todas as principais transformações da história da humanidade estão atreladas às tecnologias e à consciência de uso de suas épocas. Por conta desse potencial de mudanças que estão por vir, tem-se utilizado a expressão "4a Revolução Industrial". A terceira revolução remonta à década de 1960 e foi impulsionada pelo desenvolvimento dos semicondutores, mainframes e computadores pessoais, assim como pela internet, nos anos 1990.6
A quarta revolução industrial não envolve apenas máquinas inteligentes e conectadas, seu escopo é bem amplo. Diz respeito às funções que exigem inteligência diante do big data (volume, velocidade, variedade e armazenamento de conjuntos gigantescos de dados e informações). Há uma simultaneidade de avanços em diversas áreas, que vão do sequenciamento genético à nanotecnologia. É a fusão dessas tecnologias e a interação com as dimensões física, digital e biológica que tornam o fenômeno diferente de todos os anteriores.7
Desse modo, não por acaso, um dos objetivos estabelecidos e ratificados durante a Cúpula de Joanesburgo foi a parceria do BRICS sobre essa Revolução Industrial, por iniciativa da China, cuja proposta visa à promoção, pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, bem como à capacitação da força trabalho de forma a atender as necessidades da 4a Revolução Industrial, além da promoção da interação de redes de parques científicos e tecnológicos dos países do BRICS e do desenvolvimento de projetos de infraestrutura em áreas como comunicações e big data, área bastante promissora e que será analisada neste trabalho.
1. Resultados da 10a Cúpula de Joanesburgo nos objetivos prioritários em CTI e no atinente à 4a Revolução Industrial
Nas palavras de Kenneth da Nóbrega, o BRICS é, a um só tempo, reflexo e catalisador de transformações no cenário internacional do início de século XXI. Suas atividades são decididas pelos chefes de Estado e de governo nas Declarações de Líderes e nos Planos de Ação, adotados nas cúpulas anuais, cuja implementação é levada a cabo sem o apoio de um secretariado permanente.8
Nesse contexto, observa-se que fazem muito sentido a aproximação e o aprofundamento da interação dos países no campo tecnológico, em que as inovações são constantes e capazes de mudar paradigmas rapidamente, em um contexto de desenvolvimento colaborativo e participativo, com potencial de gerar benefícios sociais e incrementar a qualidade de vida nos países em desenvolvimento.
Imbuídos dessa convicção, os líderes do BRICS aprovaram, na 10a Cúpula Presidencial, a Declaração de Joanesburgo.9 No documento, os chefes de Estado e de governo do BRICS expressaram a posição do agrupamento sobre temas centrais da agenda internacional, como reforma da governança política e econômica internacional, paz e segurança, comércio, crises regionais, implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável10 e a necessidade de se manter a integridade e o pleno funcionamento do sistema multilateral de comércio.
Dos 102 parãgrafos que compõe o documento,11 destacam-se os puntos a seguir atientes ao tema da CTI e da 4a Revolução Industrial.
O primeiro item do preâmbulo destaca a temática da cúpula realizada: "BRICS na África: colaboração para o crescimento inclusivo e a prosperidade compartilhada na 4a Revolução Industrial". Isso denota a centralidade do tema no debate e a relevância da inovação em suas várias facetas na seara internacional e, principalmente, na cooperação no bloco.
No parágrafo 20, reafirma-se o compromisso de implementar integralmente a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), para proporcionar um desenvolvimento inclusivo, aberto, voltado para a inovação e sustentável em suas três dimensões - econômica, social e ambiental -, de uma forma equilibrada e integrada, em direção ao objetivo final de erradicar a pobreza até 2030.
Na quarta parte do documento, precisamente no parágrafo 56, recorda-se o enfoque da Cúpula de Joanesburgo sobre a 4a Revolução Industrial e os resultados dos Encontros BRICS de Ciência e Tecnologia e Ministros da Indústria, cujas conclusões serão apresentadas mais adiante; enfatiza-se o estabelecimento da parceria dos BRICS para a Nova Revolução Industrial (BRICS Partnership on New Industrial Revolution - PartNIR). Oportunidade em que ficou estabelecido que, para iniciar a plena operacionalização da PartNIR, será formado um Grupo Consultivo, composto pelos respectivos representantes dos Ministérios da Indústria do BRICS, em consulta com os ministérios apropriados, para desenvolver, como primeiro passo, os termos de referência e um plano de trabalho alinhados com as prioridades da 4a Revolução Industrial, a serem submetidos ao presidente do BRICS.
No mesmo parágrafo, esclarece-se que a PartNIR visa aprofundar a cooperação do BRICS na digitalização, na industrialização, na inovação, na inclusão e no investimento, para maximizar as oportunidades e enfrentar os desafios decorrentes da 4a Revolução Industrial, devendo aumentar as vantagens comparativas, impulsionar o crescimento econômico, promover a transformação econômica dos países do BRICS, fortalecer a capacidade de produção industrial sustentável, criar redes de parques tecnológicos e incubadoras de empresas de tecnologia e apoiar pequenas e médias empresas em áreas intensivas em tecnologia.12
Esse parágrafo é o que fundamenta as mais recentes iniciativas de construção e de cooperação entre parques tecnológicos nos países do BRICS, cuja proposta foi apresentada pelo Brasil.
Na sequência, o parágrafo 57 da Declaração menciona o reconhecimento acerca do papel crítico e positivo que a internet desempenha globalmente na promoção do desenvolvimento econômico, social e cultural, mediante o compromisso de trabalho conjunto na construção de um ambiente aberto, pacífico e de uso seguro e cooperativo das tecnologias da informação e comunicação (TIC).
Na mesma linha, o parágrafo 58 estabelece o reconhecimento acerca da importância da cooperação científica, técnica, de inovação e empreendedorismo do BRICS para o desenvolvimento sustentável e para o aumento do crescimento inclusivo. O desenvolvimento dinâmico da cooperação do BRICS em CTI confere especial importância ao avanço do trabalho conjunto nessa área para enfrentar os desafios da 4a Revolução Industrial.
No parágrafo 60, a declaração afirma o convencimento dos países do bloco acerca do potencial do comércio e da tecnologia como fontes de crescimento inclusivo, principalmente por meio da integração econômica e da consolidação de cadeias de valor globais de maneira sustentável e equitativa. Afirma, ainda, que o progresso tecnológico terá amplas implicações para a produção de bens e serviços, bem como para a renda das pessoas. Além disso, ratifica a necessidade de que políticas e medidas apropriadas sejam adotadas para assegurar que os países em desenvolvimento se beneficiem das vantagens do progresso tecnológico e não sofram por falta de sua adoção antecipada, afigurando-se essencial desenvolver políticas eficazes para minimizar as divisões digitais, que apoiem as pessoas a aprender, com a adoção de novas tecnologias e assegurem mecanismos eficazes para a transferência de tecnologias relevantes, por meio do desenvolvimento de projetos conjuntos.
Para tanto, o parágrafo seguinte reconhece que o desenvolvimento de habilidades é fundamental para lidar com o descompasso emergente entre as novas habilidades exigidas por uma economia global cada vez mais orientada por tecnologia e conhecimento e o conjunto de habilidades mais antigo de muitos trabalhadores. Nessa linha, reconhecem-se os impactos que a automação produzirá, bem como as novas habilidades e os novos conhecimentos exigidos nesse cenário.
A fim de traçar diretrizes concretas para a implementação de todos esses objetivos, no anexo I do documento, pode-se visualizar o Plano de Ação, decorrência de diversas reuniões oficiais ministeriais e setoriais ao longo de 2018, em que se destaca o 6° Encontro de Ministros de Ciência, Tecnologia e Inovação do BRICS,13 ocorrido nos dias 2 e 3 de julho de 2018, em Durban, na África do Sul, cujo tema foi: "Alavancando Ciência, Tecnologia e Inovação por meio do crescimento e desenvolvimento inclusivos", em que o ministro Kubayi-Ngubane, anfitrião do encontro, afirmou que "a ciência, a tecnologia e a informação precisam estar mais prontamente disponíveis e acessíveis para o cidadão comum, e que os cidadãos não devem temer a 4a Revolução Industrial". Ressaltou-se, na ocasião, que, embora a 4a Revolução Industrial possa resultar na redução de empregos menos qualificados, os cidadãos devem estar prontos para a próxima mudança e os novos tipos de empregos que serão criados e exigirão mais conhecimento e educação superior.14
Além disso, um dos objetivos da África do Sul para o BRICS inclui uma discussão sobre um centro de pesquisa virtual, a 4a Revolução Industrial e a promoção das mulheres na ciência.15
Nessa linha, o secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, Álvaro Prata, reafirmou, durante o evento, o compromisso brasileiro com o fomento à ciência e à tecnologia. Segundo Prata, a transformação da tecnologia no processo de manufatura avançada beneficiará as populações de todos os integrantes do BRICS e que é preciso capacitá-las a participar dessa revolução.16
Dentro das atividades realizadas antes e depois da Cúpula do BRICS, como tradicionalmente ocorre, também foi realizado o 3° Fórum dos Jovens Cientistas do BRICS, em que um projeto brasileiro recebeu o "Prêmio de Jovens Inovadores do BRICS".17 O Brasil sediará a 4a edição do Fórum de Jovens Cientistas do BRICS, em 2019, quando ocupará a presidência rotativa do mecanismo.
De igual modo, o Brasil também sediará a próxima reunião ministerial de CTI do BRICS. Nesse contexto, Álvaro Prata declarou o apoio ao Plano de Ação do BRICS 2018-2019 e informou acerca da elaboração do novo Plano de Trabalho 2019-2022 para que esteja pronto para ser adotado na 7a Reunião Ministerial no Brasil, em 2019.18
A seguir, serão analisadas as propostas de resultados concretos constantes na Declaração de Joanesburgo.
2. Propostas de resultados concretos (deliverables) estabelecidas em Joanesburgo
Como já mencionada, a cooperação do BRICS em CTI tem sido uma das mais profícuas no âmbito da cooperação setorial, com resultados concretos alcançados em curto prazo, tanto em termos de intercâmbio de conhecimento quanto de recursos disponibilizados para projetos de pesquisa.
Segundo informações disponibilizadas pelo Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil), a cooperação inicia-se com reuniões de Altos Funcionários em 2011. Em 2014, ocorre a primeira reunião dos Ministros de CTI, na Cidade do Cabo. Desde então, já foram realizadas seis reuniões de Ministros de CTI, nas quais se identificaram 19 frentes de atuação, as quais contam, em sua maioria, com grupos de trabalho.
Os trabalhos nesses 11 grupos fundamentam-se em três documentos: o Memorando de Entendimento sobre Cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação, assinado em 2015; o Plano de Trabalho em C,T&I 2015-2018; e o Plano de Ação 2017-2020.
O Plano de Ação 2017-2020 tem como foco a questão da inovação e a coloca como essencial para o desenvolvimento dos cinco países. Mais especificamente, o Plano prevê a criação de parques de Ciência e Tecnologia nos países do BRICS. Busca promover parcerias para fomentar a inovação e o empreendedorismo entre a juventude e enaltece a mobilidade de recursos humanos que trabalhem com CTI, em especial jovens e mulheres.
Em 2018, durante a presidência sul-africana, o Brasil propôs a criação de Redes de Parques Tecnológicos e Industriais e Incubadoras de Pequenas e Médias Empresas, cujo estabelecimento foi aprovado durante a Cúpula de Joanesburgo. A iniciativa visa à cooperação entre parques científicos dos cinco países e ao auxílio no desenvolvimento de pequenas e médias empresas com foco em tecnologia, como o fomento da capacitação de recursos humanos. As redes permitirão o desenvolvimento de pesquisas e projetos conjuntos com a participação de cientistas, estudantes, representantes governamentais e empresários.
Durante a Cúpula, também foi aprovada a implementação de uma parceria do BRICS sobre a Nova Revolução Industrial, a já mencionada PartNIR. De acordo com a China, a iniciativa fortaleceria a coordenação de parcerias macroeconômicas, identificaria complementariedades entre as estratégias para o desenvolvimento dos países do BRICS e renovaria esforços comuns para reativar a economia. Também sob o escopo dessa iniciativa, o país informou seu desejo de organizar dez programas de desenvolvimento em recursos humanos para os quais especialistas dos países do BRICS serão convidados a participar.
Quanto aos objetivos estabelecidos para a implementação em curto e médio prazo, foram assinados, durante a Cúpula de Joanesburgo, os seguintes instrumentos:
Memorando de Entendimento em Pesquisa Colaborativa em Tecnologia de Registro Distribuído e Blockchain no Contexto do Desenvolvimento da Economia Digital (iniciativa da África do Sul). O documento será assinado pelos bancos nacionais de desenvolvimento dos países do BRICS. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social assinará o documento pelo lado brasileiro. O memorando visa possibilitar a cooperação em tecnologia de registro distribuído (DLT, em inglês), em que computadores independentes são utilizados para armazenar, distribuir e sincronizar transações, sendo o blockchain uma das tecnologias de DLT;
Redes de Parques Tecnológicos, Incubadoras de Empreendimentos Tecnológicos e Pequenas e Médias Empresas (iniciativa do Brasil). As redes visam identificar soluções no campo de TIC, recursos hídricos, saúde, energia e desastres naturais. Ademais, encorajam a cooperação entre parques científicos, auxiliam o desenvolvimento de pequenas e médias empresas com foco em tecnologia e fomentam os esforços em capacitação de recursos humanos. As redes permitirão o desenvolvimento de pesquisas e projetos conjuntos com a participação de cientistas, estudantes, representantes governamentais e empresários;
Parceria do BRICS sobre a Nova Revolução Industrial (iniciativa da China). A proposta visa i) promover a pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, bem como a capacitação da força trabalho de forma a atender as necessidades da 4a Revolução Industrial; ii) promover a interação de redes de parques científicos e tecnológicos dos países do BRICS; iii) desenvolver projetos de infraestrutura em áreas como comunicações e big data; e iv) aprofundar a cooperação como o NBD, o Conselho Empresarial do BRICS e investidores para financiamento de projetos no âmbito da iniciativa. Um grupo consultivo composto por representantes dos Ministérios da Indústria do BRICS será estabelecido para trabalhar na operacionalização da iniciativa.
Com base nesse panorama, pretende-se apresentar breve histórico das iniciativas do BRICS para a implementação das propostas supramencionadas, com ênfase na proposta apresentada pelo Brasil para a construção de parques tecnológicos e para o intercâmbio de tecnologias e cooperação dentro do agrupamento. Para iniciar, apresentamos o contexto chinês que, ao que tudo indica, se encontra em posição destacada nesse âmbito não só dentro do agrupamento, como também no cenário mundial.
3. A China e o protagonismo na 4a Revolução Industrial
Antes de entrar no assunto proposto, é relevante fazer uma digressão histórica para se compreender o papel e as pretensões apresentadas pela China na seara tecnológica,19 o que torna bastante interessante a sua presença no BRICS e que, inclusive, pode reverter em conhecimento, boas práticas e até mesmo tecnologias disponíveis para os demais membros do grupo.
Assim, previamente à mais recente iniciativa chinesa, que consiste no estabelecimento da chamada "Rota da Seda Digital", é relevante lembrar que uma das rotas comerciais mais importantes e conhecidas do mundo, a milenar Rota da Seda, que interligava o Extremo Oriente à Europa, possibilitou não só a intensificação de trocas comerciais, como também serviu para o intercâmbio cultural e tecnológico entre os continentes, primordialmente, do Oriente para o Ocidente.20
Em 2013, o presidente chinês Xi Jinping lançou o projeto "Um cinturão, Uma rota" (Obor),21 com a pretensão de estabelecer uma Nova Rota da Seda para o século XXI.22 A iniciativa tem como objetivo estreitar relações comerciais, infraestrutura e relações entre povos da Ásia, da Europa e da África, além de reviver e expandir as antigas Rotas da Seda. A versão moderna compreende um Cinturão Econômico da Rota da Seda Terrestre e uma Rota da Seda Marítima do século XXI.23
Nesse sentido, o objetivo chinês de se tornar "um líder global em termos de poder e influência internacional" inclui também a pretensão da China de se tornar um "data superpower", o que inclui o estabelecimento de uma "rota da seda digital".24
Conforme o boletim do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi),25 publicado ainda em 2011, a China efetivamente já havia deixado para trás o rótulo da pirataria eletrônica para passar à inovação de alto nível. Conforme dados apresentados, a China registra um notável desempenho na solicitação de patentes no exterior, indicador da aplicação do conhecimento científico. O número de patentes de invenções obtidas junto ao escritório americano de patentes e marcas (USPTO, na sigla em inglês) atingiu 2.657, em 2010.
Em 2017, de modo inédito, a China constou entre os cinco países com o maior número de patentes aceitas nos Estados Unidos, atrás do Japão, da Coreia do Sul e da Alemanha. Foram 15.070 registros.26 De igual modo, em publicação de artigos científicos, desde 2008, a China é o segundo maior produtor mundial de conhecimento científico, com base em publicações em revistas científicas (1,4 milhões de artigos publicados entre 2011 e 2016), atrás apenas dos Estados Unidos (2,52 milhões de artigos publicados no mesmo período).27 e 28
Ainda, de acordo com o Boletim Iedi, o sucesso da convergência tecnológica chinesa ante os países avançados repousa na visão estratégica de longo prazo do governo, que vem, desde a década de 1980, elaborando sucessivos planos de desenvolvimento científico e tecnológico. Nesses planos, a prioridade conferida à ciência e à inovação tem sido coerentemente articulada com outros aspectos da política industrial, tais como formação de recursos humanos, estratégias setoriais, propriedade intelectual, uso seletivo do investimento estrangeiro direto.29
Nesse contexto, não se pode deixar de mencionar a adequação das propostas da China na política do BRICS com o seu 13° Plano Quinquenal para o desenvolvimento econômico e social 2016-2020,30 sem aprofundar na análise do documento, serão mencionados alguns tópicos, ainda que de modo superficial para ciência dessa conexão.
Na parte II do plano quinquenal em vigor, intitulado "Desenvolvimento Impulsionado pela Inovação", nos capítulos 6 a 9, consta que a inovação em ciência e tecnologia deve ter um papel de liderança, com o incentivo a startups e inovações públicas, mediante o estabelecimento de instituições e mecanismos de promoção da inovação e priorização do desenvolvimento de recursos humanos.
Do mesmo modo, na parte VI, chamada de "Economia Cibernética", do capítulo 25 ao 28, estabelece-se a construção de redes de informação ubíquas e eficientes, o desenvolvimento de indústrias modernas da internet, a implementação de uma estratégia nacional de big data e o fortalecimento da segurança da informação.
Como se pode visualizar acima como meta e ao longo de menções em todo o plano quinquenal, de acordo com o Boletim Iedi,31 além da rápida e sistemática absorção de conhecimento, a China investe em capital humano ao promover todos os níveis educacionais do país, bem como educação e treinamento no exterior, e na construção da infraestrutura de ciência e tecnologia. Desde meados de 1990, foram criados mais de 100 laboratórios nacionais em áreas selecionadas de pesquisa básica e inúmeros parques científicos e tecnológicos, o que foi estabelecido apenas recentemente no BRICS.
Nesse sentido, observa-se que o mais recente parque tecnológico da China está sendo construído em uma das suas províncias mais pobres, na periferia da cidade de Guiyang, a capital da província de Guizhou,32 iniciativa política que também se relaciona com outras metas do plano quinquenal, tal como a melhora da qualidade de vida da população, a implementação de estratégias para o amplo desenvolvimento regional e o aceleramento do desenvolvimento de áreas pobres,33 dentre outras.
Em 2015, o governo central declarou que Guizhou seria uma "zona-piloto em nível nacional" para o desenvolvimento de grandes volumes de dados, com o objetivo de estimular as regiões que menos se beneficiaram do rápido desenvolvimento da China nas últimas décadas, além de mostrar que as regiões menos industrializadas da China podem se modernizar sem as fábricas que deixaram as áreas urbanas em outras partes da China imersas em poluição.34
Tais iniciativas vêm sendo arquitetadas desde 2001, quando a China - para enfrentar novos desafios e exigências após a adesão à Organização Mundial de Comércio (OMC) e atender a reestruturação estratégica da econômica doméstica no contexto do 10° Plano Quinquenal - implementou dois novos programas de ciência e tecnologia.35
Recentemente, a China começou as tratativas para o estabelecimento do que vem sendo conhecido como a "Rota da Seda Digital",36 como já mencionado, que abrangeria computação quântica,37 nanotecnologia, inteligência artificial, big data e armazenamento em nuvem. Isso envolveria ajudar outros países a construírem infraestrutura digital e desenvolverem segurança na internet. O Silk Road digital ajudará a criar "uma comunidade de destino comum no ciberespaço", sugere Chen Zhaoxiong, vice-ministro de Tecnologia da Informação.38
A título de ilustração do potencial chinês, a Universidade de Tsinghua planeja a "fusão civil-m Militar" na pesquisa de inteligência artificial (IA). Pretende "integrar estreitamente a estratégia nacional de integração militar-civil e a estratégia de superpotência de IA". Um exemplo interessante é a criação de um programa de mestrado em Engenharia de Estudos Jurídicos Computacionais na Faculdade de Direito, que também é uma tentativa de integrar a IA da escola e as artes liberais, de modo a tentar uma direção de especialidade totalmente nova para o assunto.39
Nesse panorama, percebe-se que a atual posição chinesa decorre de uma política solidamente estabelecida há mais de 30 anos, sendo que a China já possui 18 parques de alta tecnologia que têm plataformas importantíssimas para a promoção da ciência nacional e a cooperação entre a indústria, a academia e o comércio, segundo a diretora da Divisão de Organizações Internacionais e Conferências do Ministério da Ciência e Tecnologia da China, Wang Rongfang, que enfatizou o tratamento que o país dedica ao setor, o qual emprega 3,8 bilhões de pessoas.40
No âmbito das iniciativas intraBRICS, conforme informações veiculadas pelo Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, o vice-ministro de Ciência e Tecnologia da China, Cao Jianlin, expressou interesse na cooperação com o Brasil nessa área, com a confirmação pelo Secretário Executivo Álvaro Prata que declarou o interesse do Brasil em "dividir e aprender com a China a experiência de gerenciamento de parques tecnológicos".41
A seguir, verificaremos as iniciativas do Brasil em CTI, de acordo com as estratégias e planos traçados pelo BRICS, estabelecidos na última cúpula do grupo.
4. Iniciativas do Brasil
A cooperação em ciência e tecnologia dentro do BRICS desenvolveu-se a partir de 2011, ano em que foi convocada a primeira reunião de altos funcionários.42
Em fevereiro de 2014, foi realizada a primeira Reunião de Ministros de Ciência, Tecnologia e Inovação do BRICS.43
A II Reunião de Ministros de Ciência, Tecnologia e Inovação do BRICS ocorreu em março de 2015. Na ocasião, foi assinado o Memorando de Entendimento sobre a Cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação, que estabeleceu uma moldura estratégica para a cooperação em áreas prioritárias entre os membros do BRICS.
De acordo com o diretor do Departamento de Mecanismos Inter-regionais do Itamaraty, Kenneth Felix Haczynski da Nóbrega,44 o progressivo aprofundamento da cooperação em ciência e tecnologia demonstra o potencial de atuação conjunta dos BRICS em um campo crucial para o desenvolvimento, sendo que o potencial pleno dessa cooperação ainda não foi totalmente explorado, como atesta o número elevado de iniciativas de prospecção deflagradas nos últimos dois anos. Como mencionado, tais iniciativas deverão influenciar positivamente a colaboração em curso em outras áreas, como saúde e educação, para a produção de resultados tangíveis na melhoria da qualidade de vida da população brasileira, bem como para a inovação do parque industrial e tecnológico nacional.
Nesse panorama, com a realização da 10a Cúpula do BRICS (cuja Declaração de Joanesburgo e Planos de Ação já foram explicitados em tópicos anteriores), destaca-se que uma parcela considerável dos resultados concretos que o governo brasileiro espera ter ao fim do encontro com os chefes de Estado de Rússia, Índia, China e África do Sul, na 10a Cúpula do BRICS, está relacionada à cooperação na área de ciência e tecnologia.45
A principal proposta do Brasil na 10a Cúpula na área de CTI foi o estabelecimento de uma rede de parques tecnológicos do BRICS, para que haja maior cooperação científica entre os países, considerando o avançado estado da arte na China, como verificado na seção anterior e iniciativas do Brasil, como o Porto Digital, em Recife.
Ainda que o estado da Ciência no Brasil não esteja em seu melhor momento, segundo afirma Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que alerta para as grandes perdas trazidas pelo corte dramático no orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e Comunicações, em 2018, retrocedendo a verba para ciência ao patamar de 12 anos atrás46 paradoxalmente, o Brasil se destacou em acordos de tecnologia na última cúpula do BRICS.
Nesse tópico, conforme informações obtidas do Itamaraty, há 11 grupos de trabalho no BRICS que se fundamentam em três documentos: o Memorando de Entendimento sobre a Cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação, assinado em 2015; o Plano de Trabalho em C,T&I 2015-2018; e o Plano de Ação 2017-2020.
O Memorando de Entendimento sobre Cooperação em Ciência, Tecnologia e inovação é o documento base de todos os projetos e declarações posteriores em C,T&I. Ele estabelece os objetivos principais da cooperação e os instrumentos de financiamento.
O Plano de Trabalho em C,T&I 2015-2018 estabelece a criação da BRICS RINP (Research and Innovation Networking Platform), responsável pela implementação das atividades nas 19 frentes de atuação. No âmbito do BRICS RINP, o Brasil lidera três frentes de atuação: (i) prevenção e mitigação de desastres naturais; (iii) biomedicina e biotecnologia, que inclui saúde humana e neurociência (em conjunto com Rússia); e (iii) ciência e tecnologia oceânica e polar (em conjunto com Rússia).
O Plano de Ação 2017-202047tem como foco a questão da inovação e a coloca como essencial para o desenvolvimento dos cinco países. Mais especificamente, o Plano prevê a criação de parques de Ciência e Tecnologia nos países do BRICS; busca promover parcerias para fomentar a inovação e o empreendedorismo entre a juventude; e enaltece a mobilidade de recursos humanos que trabalhem com C,T&I, em especial, jovens e mulheres.
Nesse tópico, importante referir em que consistem os chamados "parques tecnológicos". Conforme conceito difundido pela Anprotec (entidade que reúne incubadoras e parques tecnológicos no Brasil),48 parques tecnológicos são complexos produtivos industriais e de serviços de base científico-tecnológica, de caráter cooperativo, que reúnem empresas focadas em pesquisa e desenvolvimento. Eles atuam como promotores da cultura da inovação, da competitividade e da capacitação empresarial. Em 2013, o Brasil já contava com mais de 94 parques tecnológicos.49
É importante referir que os sete maiores parques tecnológicos do Brasil, conforme dados da Anprotec, são os seguintes: Parque Tecnológico do Porto Digital, em Recife; Parque Tecnológico de San Pedro Valley, em Belo Horizonte; Parque Tecnológico do Rio de Janeiro; Parque Tecnológico do Vale da Eletrônica, em Santana do Sapucaí; Parque Tecnológico de São José dos Campos; Parque Tecnológico Sapiens, em Florianópolis, e Parque Tecnológico TecnoPuc, em Porto Alegre.
Nesse contexto, conforme dados apresentados por Francisco Saboya, no II Painel do evento "Diálogos Brasileiros - Criatividade e Talento para a Superação do Subdesenvolvimento", ocorrido no dia 30 de agosto de 2018, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para se ter uma breve noção da influência e potencial dos parques tecnológicos, 14% de todos os trabalhadores empregados na Google do Brasil são egressos da Universidade Federal de Pernambuco, com porto digital em Recife, engrenagem que vincula diferentes ecossistemas, instituições públicas e empresas privadas.
Desse modo, compreende-se que o ineditismo da novel iniciativa do BRICS diz respeito à promoção desse intercâmbio entre os parques tecnológicos dos países do agrupamento, bem como o seu compartilhamento, em que, como visto acima, o Brasil tem muito a se beneficiar com o avançado desenvolvimento tecnológico que também impacta o desenvolvimento social de outros países e que pode servir de inspiração ao contexto nacional.
Conclusão
A perspectiva de cooperação do BRICS50 pode se desenvolver posteriormente em um projeto de cooperação totalmente incorporado entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que pode ser inovador em sua concepção, seus conteúdos, seus desenvolvimentos e sua prática.
O presente estudo, orientado pelos aspectos da inovação em ciência e tecnologia, enfocou os desenvolvimentos recentes e as parcerias estabelecidas entre o Brasil e a China.
A cooperação em CTI só fará sentido no agrupamento com características tão peculiares - verificada a presença de países em desenvolvimento com graves problemas de desigualdade social - se reverter em benefício para a sociedade, em minimização da desigualdade social e em melhoria geral das condições de vida nos países.
No contexto do mundo de hoje, o Direito Internacional tem um papel crucial a desempenhar: rever os modelos existentes e estabelecer os requisitos legais para novos modelos. Essa estrutura legal está alinhada com a convicção de que a diversidade cultural pode ajudar a encontrar soluções inovadoras para a condução pacífica do mundo. É importante evitar repetir erros.51
O estudo apresentou as mais recentes iniciativas do grupo no âmbito da CTI, mediante a apresentação dos últimos instrumentos adotados para a consecução das propostas, além de iniciar a tarefa de investigar como vem se dando a sua implementação, mediante a apresentação dos esforços do Brasil e da China nesse sentido.
A abordagem trouxe os resultados e as propostas apresentadas na 10a Cúpula Presidencial do BRICS, realizada em Joanesburgo, em julho de 2018, com o mote: "O BRICS na África: colaboração para o crescimento inclusivo e para a prosperidade compartilhada na 4a Revolução Industrial".
Destacou-se, ao longo do trabalho, o papel primordial da China nesse campo, o que torna bastante relevante a sua presença no BRICS e que, inclusive, pode reverter em conhecimento, boas práticas e até mesmo tecnologias disponíveis para os demais membros do grupo, em especial, para o Brasil, que já apresentou iniciativas de parcerias e projetos compartilhados, principalmente no que tange ao desenvolvimento e aprimoramento dos parques industriais, que levou em conta a experiência chinesa.