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Lingüística y Literatura

versión impresa ISSN 0120-5587

Linguist.lit.  no.66 Medellìn jul./dic. 2014

 

LITERATURA INFANTO-JUVENIL E HOMOAFETIVIDADE EM É PROIBIDO MIAR DE PEDRO BANDEIRA*

CHILDREN'S LITERATURE AND HOMOAFFECTIVITY IN É PROIBIDO MIAR BY PEDRO BANDEIRA

 

Vanessa Rita de Jesus Cruz, Flávio Pereira Camargo

Universidade Federal do Tocantins-UFT, Brasil, vanessalinguagens@hotmail.com, camargolitera@gmail.com.

Recibido: 03/02/2014 - Aceptado: 09/05/2014


 

Resumo

Esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Literários, em uma perspectiva interdisciplinar com os Estudos de Gênero e Diversidade Sexual. O objetivo geral é fazer uma análise das distintas representações da diversidade de gênero e sexual na literatura infanto-juvenil, de modo a evidenciar como essa diferença é representada na tessitura do texto literário. Além disso, procuramos explicitar como a leitura literária de obras que abordem essa temática pode contribuir para a formação de leitores na contemporaneidade. Trata-se, portanto, de uma pesquisa de cunho bibliográfico e teórico, por meio da qual empreendemos um exercício de hermenêutica em relação ao nosso corpus selecionado, constituído pela seguinte narrativa: É proibido miar de Pedro Bandeira.

Palavras-chave: literatura infanto-juvenil, currículo, diferença, homoafetividade.


 

Abstract

This research falls within the field of Literary Studies in an interdisciplinary perspective with Gender Studies and Sexual Diversity. The overall objective is to analyze the different representations of gender and sexual diversity in child and adolescent literature, so as to show how this difference is represented in the texture of the literary text. Moreover, we seek to explain how to read literary works that address this theme can contribute to the formation of the contemporary readers. It is, therefore, a survey of literature and theoretical nature, by which we undertook an exercise in hermeneutics regarding our selected corpus, consisting of the following narrative: É proibido miar by Pedro Bandeira.

Keywords: children's literature, curriculum, difference, homoaffectivity.


 

1. Introdução

A sociedade da qual fazemos parte vive, hoje -como sempre-, a diversidade. Esta se constitui como um tema da contemporaneidade. Fala-se e vive-se a diversidade. Porém, é notório que nem todas as suas variedades recebem a atenção e o respeito devidos. Por isso, alguns grupos, pessoas e conceitos são mais valorizados que outros.

Nesse «caldeirão» das diferenças, muitas são as identidades existentes; algumas são supervalorizadas, enquanto outras são estigmatizadas e às vezes obrigadas a se esconder, a se dissimular, a assumir outras performances, vivendo camufladamente ou ocultadas em novas identidades formadas no processo de devir da existência. Portanto, muitos dos valores e paradigmas que, durante décadas, foram suficientes para responder às necessidades humanas, já não satisfazem, uma vez que nos deparamos, todos os dias, com novas identidades, que vêm transgredindo e desestabilizando conceitos, normas, corpos e desejos.

A sociedade ocidental é eivada de preconceitos arraigados, de modo que as identidades não são compreendidas como um processo em construção, mas como algo já definido, estabelecido e acabado, produzindo e alimentando a discriminação e a exclusão. Assim, muitas vezes, nos distanciamos daqueles que não se assemelham a uma determinada identidade, considerada como modelo a ser seguido.

A identidade que foge ao padrão, que não está próxima da desejada, é reprovada, questionada e não é tratada com o devido respeito, uma vez que é apontada como anormal e, por isso, precisa ser moldada e disciplinada.

Há décadas, a sexualidade, inerente ao ser humano, vem sendo alvo de diferentes discursos, proferidos por aqueles que detêm a autoridade para dizê-los. Foi também por meio desses discursos que a heterossexualidade afirmou-se como norma e como a sexualidade correta enquanto a homoafetividade foi instituída como a antinorma e a sexualidade incorreta, considerada anormal.

Considerando-se esses aspectos, nossa pesquisa insere-se no campo dos Estudos Literários, em uma perspectiva interdisciplinar com os Estudos de Gênero e Diversidade Sexual. O objetivo geral é fazer uma análise das distintas representações da diversidade de gênero e sexual na literatura infanto-juvenil, de modo a evidenciar como essa diferença é representada na tessitura do texto literário. Além disso, procuramos explicitar como a leitura literária de obras que abordem essa temática pode contribuir para a formação de leitores na contemporaneidade. Trata-se, portanto, de uma pesquisa de cunho bibliográfico e teórico, por meio da qual empreendemos um exercício de hermenêutica em relação ao nosso corpus selecionado, constituído pela seguinte narrativa: É proibido miar de Pedro Bandeira.

Em uma sociedade na qual os indivíduos são praticamente obrigados a desempenhar diferentes performances, a literatura, por meio de suas temáticas e personagens, tem ajudado na melhor compreensão da subjetividade no mundo empírico, ou seja, o conhecimento que temos e produzimos do mundo tem sido mediado pela linguagem, de modo que a ficção pode permitir ao leitor um melhor entendimento da realidade empírica. Por isso, acreditamos na literatura como um meio possível para que os jovens leitores possam conhecer e respeitar as diferenças. Para nós, por meio da literatura, é possível a formação de um sujeito crítico, autônomo e humanizado, capaz de reconhecer-se e reconhecer o outro no mundo que o cerca, desde que a ele sejam oferecidos os meios de a ela achegar-se.

Neste trabalho, atribuímos à leitura literária uma função social. Acreditamos que a leitura do texto literário, como uma prática social, pode permitir ao leitor ir além da simples leitura (Cosson, 2011), ou seja, é capaz de possibilitar a emancipação, a autonomia, a reflexão e a humanização do leitor. Ela pode, ainda, provocar a fruição e a sensibilidade, auxiliar a formação efetiva de leitores críticos, assim como um leitor capaz de compreender os discursos dominantes e os discursos que a historiografia silencia (porque é feita para o Estado), mas que a literatura preenche e questiona.

O texto literário nos permite um diálogo com o outro, com o mundo que nos cerca. Ao ler, travamos e transformamos relações humanas, uma vez que o texto literário é repleto de conhecimentos «sobre o homem e o mundo» e «na leitura e escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos» (Cosson, 2011, p.17). A literatura permite ao sujeito conhecer a vida e vivenciar a experiência do outro. Ao fazer isso, ele pode se solidarizar com o sofrimento alheio, aprender a respeitar as diferenças e refletir sobre as ações e relações existentes na sociedade.

A literatura, como prática social, não está alheia aos conflitos existentes em nossa sociedade. A orientação estética e a posição ética do escritor podem possibilitar ao leitor questionar, duvidar, ressignificar e refletir sobre os conflitos sociais e, principalmente, despertar um novo olhar em relação à diferença e ao modo como o diferente é representado discursivamente em nossa cultura. Ao construir o seu texto, o autor faz uma representação do outro, porque este está, assumidamente, presente no discurso literário (Paulino, 2007).

É baseado nesta presença do outro, ou em sua ausência, que podemos falar de uma (falta de) ética no (do) texto literário. O processo de escrita do autor requer a habilidade de aliar a estética e a ética, dando lugar às diversas vozes que povoam o texto literário. A (est)ética desse texto diz respeito ao modo como o escritor, a editora, o professor e o leitor representam o outro. Uma questão ética que se constitui como um elemento essencial na imagem que o leitor construirá desse outro, que, neste caso, se refere à diversidade sexual e de gênero.

 

2. Corpo, disciplina e sexualidade: breves considerações

Na época clássica, como afirma Foucault (1987), descobre-se o corpo como objeto e objetivo de poder. Justamente por isso, a sexualidade tem sido objeto de discussão e alvo de determinadas vigilâncias, sobretudo no Ocidente. As instituições que lhe ditam as normas e as «verdades» a serem seguidas rigidamente proliferaram, assim como as suas formas de regulação social, cultural, e histórica, de modo que o olhar sobre os corpos e as subjetividades adquire novas técnicas de controle.

Em toda a sociedade o corpo está entre as relações de poder, que lhe impõe limitações, proibições e obrigações. O que há de novo no século xviii é a utilização de novas técnicas: o controle do corpo se dá não mais em massa, procura-se trabalhálo detalhadamente; observam-se os gestos, os movimentos; os objetos do controle não são mais «os elementos significativos do comportamento», mas a «eficácia dos movimentos, sua organização interna» (Foucault, 1987, p.118); a modalidade passa a ser uma coerção ininterrupta e constante, que se preocupa mais com os processos de atividades que com os resultados; examina-se minuciosamente o tempo, o espaço e os movimentos desse corpo. Todos esses métodos que controlam o corpo, sujeitando suas forças e impondo-lhe uma relação de docilidade-utilidade, são denominados por Foucault (1987) como «disciplinas» ou técnicas de disciplinamento.

Os processos disciplinares já existiam nos conventos, nos exércitos e nas oficinas, mas somente nos séculos xvii e xviii as disciplinas se tornarão regras gerais de dominação. Com esses processos pretende-se não apenas aumentar as habilidades do corpo ou sua sujeição, mas torná-lo mais obediente quanto mais útil e torná-lo mais útil quanto mais obediente. A disciplina precisa instalar os indivíduos no espaço, necessita «encarcerá-los» em prisões, colégios, quartéis, fábricas e hospitais. Mas isso não era suficiente, era necessário conhecer onde se poderiam encontrar esses indivíduos, estabelecer as comunicações que importavam e cortar as inúteis, vigiar a todo o momento o comportamento de cada sujeito, para apreciá-lo, observar suas qualidades, classificá-lo, posicioná-lo na fila -o lugar do indivíduo em uma classificação-, sancioná-lo, conhecê-lo, dominá-lo e utilizá-lo.

Os métodos disciplinares se instalaram em muitas instituições e em todas pretendiam controlar os corpos, executar uma técnica de poder e ao mesmo tempo exercer um processo de saber.

Assim como os discursos sobre a sexualidade e as técnicas de disciplinamento dos corpos aumentaram e se modificaram, a pluralidade sexual e de gênero se mul tiplicou e as fronteiras, diariamente, são atravessadas, sendo a própria fronteira o lugar social em que alguns sujeitos vivem, rompendo com a sexualidade legitimada e ousando ultrapassar os seus limites.

No final da década de 1970, gays e lésbicas afirmavam na prática e discursivamente uma identidade homoafetiva, demarcando suas fronteiras e suas formas de representação e o dilema entre o «assumir-se» ou ficar no armário torna-se um elemento essencial para a comunidade e para fazer parte dela era indispensável que o sujeito se «assumisse».

A política de identidade desses grupos buscava «a aceitação e a integração dos/ das homossexuais no sistema social» (Louro, 2008, p.34). Gays e lésbicas ganham maior visibilidade, sugerindo que o movimento não incomodava o status quo como antes. Porém, havia, internamente, tensões e críticas que começaram a surgir.

Percebia-se que a comunidade possuía muitas vozes discordantes e que seria difícil silenciá-las. O quadro se complica com o surgimento da AIDS, em 1980, que renova a homofobia das sociedades ocidentais. Voltam à cena a intolerância e a exclusão, pois a AIDS teve como efeito negativo o fato de ter sido considerada como um «câncer gay».

No Brasil, por exemplo, devido à epidemia, ampliou-se o debate sobre a crise da política de identidade homossexual, fruto de uma concepção estreita que compreendia a doença como punição àqueles sujeitos que ousaram romper com as regras de uma sociedade heterocêntrica. De um modo geral, os movimentos, os seus propósitos e os seus interesses se multiplicam, evidenciando que «a política de identidade homossexual estava em crise e revelava suas fraturas e insuficiências. Gradativamente, surgiriam, pois, proposições e formulações teóricas pós-identitárias» (Louro, 2008, pp.37-38). Dentro desse contexto é que precisamos compreender a afirmação de uma política e de uma teoria queer.

A teoria queer surge como uma política pós-identitária. O termo passa a ser visto como aquilo que questiona, que provoca, que contesta e vai contra a norma. Segundo Louro (2008, p.38) «queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais». O termo representa uma vertente dos movimentos homossexuais, caracterizando sua oposição e contestação, tendo como um de seus alvos de oposição à heteronormatividade compulsória da sociedade.

A emergência do movimento queer não se deve apenas a questões políticas ou de teorização gay e lésbica. As condições de seu surgimento precisam ser vistas em um campo mais amplo do pós-estruturalismo, uma vez que a teoria queer pode vincular-se «às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo» (Louro, 2008, p.40) que no século xx trataram de questões sobre o sujeito, a identidade e a identificação. As teorizações que questionaram a racionalidade e a construção discursiva das sexualidades, evidenciada por Foucault, tornam-se essenciais para a teoria queer. Por suas bases teóricas, os estudos queer apontam para o pós-estruturalismo, em uma perspectiva que almeja solapar os binarismos presentes na sociedade ocidental.

Dessa forma, um processo desconstrutivo demonstraria a mútua relação e constituição dos opostos, questionando os processos que instituiu a heterossexualidade como norma e a concebeu como «natural». Os teóricos queer propõem uma política pós-identitária que teria como alvo não as vidas e o futuro dos homoafetivos, mas a crítica à oposição heterossexual/homossexual, que para eles constitui-se como a categoria central que direciona as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre as pessoas.

Para tanto, devemos mudar as estratégias de análise e adotar uma perspectiva epistemológica que se volte «para a cultura, para as estruturas linguísticas e discursivas e para seus contextos institucionais» (Louro, 2008, p.60). Essa teoria não se preocupa tanto em tratar sobre a repressão da minoria homoafetiva, prende-se mais em analisar o par homossexualidade/heterossexualidade como um regime de poder e saber que controla os desejos e os comportamentos.

Pensar queer é questionar e contestar as formas de conhecimento e de identidades. Uma pedagogia e um currículo queer se preocupariam com o processo que produz as diferenças e focariam a instabilidade das identidades. Nesse processo, a diferença seria vista como constitutiva do sujeito e a atenção também se voltaria para os processos que geram as diferenças e o currículo não poderia isentar-se: não bastaria «contemplar» a pluralidade da sociedade, mas atentar-se para os conflitos que permeiam as posições ocupadas pelos sujeitos. Questionar-se-ia a polarização heterossexual/homossexual e analisando a sua dependência, desestabilizaria a noção da heterossexualidade como natural e superior. Os questionamentos da teoria queer não se restringem somente ao par hetero/homossexual, mas a todo e qualquer rótulo preestabelecido que restringe, segrega e oprime as diversas identidades culturais presentes em contextos adversos. O posicionamento queer é responsável por desestabilizar conceitos, normas e preceitos arraigados, enrijecidos, ao problematizar noções de identidade, raça, etnia, gênero e sexualidade, entre outras. É um modo diferente de pensar, de olhar o outro e a diferença que lhe é intrínseca.

Nesse contexto, não bastaria denunciar a homofobia e a negação dos homoafetivos, mas questionar e desconstruir o processo que normaliza alguns sujeitos e marginaliza outros, mostrando a heteronormatividade e a repetição de normas sociais que regulam e garantem a identidade sexual considerada legítima. A restrição das formas de ser e viver também deveriam ser problematizadas, assim como os modelos de classificação e de enquadramento. E mais: a transgressão, o atravessamento das fronteiras, a ambiguidade e a fluidez devem ter lugar. Desconstruir até mesmo o binarismo conhecimento/ignorância, demonstrando que a ignorância não é neutra, mas pode ser produzida por um tipo de conhecimento. A ignorância da homoafetividade pode representar uma forma particular de conhecer a sexualidade e ser ignorante a respeito da homoafetividade pode significar conhecer pouco sobre a heterossexualidade.

Uma das formas possíveis de provocar uma desestabilização em relação aos padrões preestabelecidos é justamente por meio do texto literário, capaz de possibilitar ao leitor, em seu processo de formação, novos modos de olhar, compreender, questionar e de se posicionar diante da diferença do outro, seja ela cultural, social, econômica, étnica, de gênero ou sexual, que é representada na tessitura do texto.

Nesse sentido, a literatura pode construir, difundir e transformar sensibilidades e representações e, justamente por isso, constitui-se como elemento importante na formação das crianças e dos adolescentes. Ela nos ajuda a questionar aquilo que somos e o mundo do qual fazemos parte, pois «toda representação do outro é, de certa forma, política, pois ela depende de quem fala, o que e de onde fala, de que perspectiva e com quais objetivos» (Camargo, 2012, p.05).

Nas obras ficcionais as personagens podem representar as diferenças entre os seres e a diversidade existente em uma sociedade em que, ao contrário do que se queira afirmar, as pessoas não têm as suas identidades já prontas e fixas. Logo, essas pessoas não são «naturalmente» heterossexuais. Trata-se de um constructo social, histórico e ideológico, que prescreve a heterossexualidade como normal e natural e a homoafetividade como anormal.

Percebemos que a personagem que simboliza a homoafetividade ainda é representada na tessitura do texto literário, algumas vezes, de forma estereotipada, sendo marcada pelo preconceito e por discursos sociais que a enquadra em uma posição inferior em relação a outros grupos em decorrência da diferença constitutiva de sua identidade.

Mas é bom ressaltarmos que o espaço dado a essa questão social no campo literário já representa um avanço, uma vez que oferece aos nossos jovens leitores o contato com o outro, o (re)conhecimento da diversidade sexual e de gênero e a abertura ao diálogo sobre a homoafetividade.

Dessa maneira, algumas personagens da narrativa infantil e juvenil podem simbolizar e abordar temas complexos da humanidade, dando «vida», voz e vez aos sujeitos que muitas vezes são negados, silenciados e feitos «prisioneiros» em nossa sociedade. Durante a leitura da obra literária, o professor pode auxiliar o aluno a perceber os temas e os seres humanos que emergem na trama ficcional. Para que isso ocorra é importante que os formadores de leitores, mediadores no processo de leitura, tenham uma compreensão do modo como a diferença é construída por meio dos discursos e seus efeitos de sentido; quem e por que é designado como o diferente; por que alguns sujeitos podem se representar enquanto outros só podem ser representados. Enfim, é necessário pensar em que medida essa representação discursiva do outro no texto literário corrobora, questiona ou problematiza as diferenças -sociais, culturais, étnicas, sexuais e de gênero- contribuindo para a formação de um leitor crítico.

 

3. A representação discursiva da diferença em É proibido miar de Pedro Bandeira

Na obra É proibido miar de Pedro Bandeira, por meio de um narrador onisciente, conhecemos Bingo, um cachorrinho simpático, alegre, carinhoso, brincalhão, curioso, sapeca, livre e «diferente», características que incomodam muitos à sua volta, explicitando o preconceito, a exclusão, a discriminação e as injúrias feitas por seus pares no decorrer da trama ficcional.

A nossa sociedade ainda rejeita e discrimina aqueles sujeitos que não vivem dentro do molde daquilo que é considerado «normal». Essa sociedade persiste na tentativa de «controlar, vigiar e disciplinar os corpos, os desejos e suas práticas sexuais dentro de um padrão preestabelecido que alija todos aqueles que não se encaixam nele» (Camargo, 2012, p. 08). Por isso, para ela existem os sujeitos que realmente importam -aqueles que materializam a norma- e os sujeitos considerados abjetos -aqueles corpos que não pesam, não têm valor por escaparem da norma.

No início da narrativa, o narrador estabelece um diálogo com o leitor, fazendo-o refletir sobre o nascimento e a alegria causada pela chegada da «filharada» ou da «cachorrada»:

Quando nasce filho, todo mundo fica alegre.

Quando você nasceu -faz um tempão, não é mesmo?- foi uma alegria de dar gosto.

Eu sei que você não lembra. Afinal, você era muito pequeno naquele tempo e estava mais preocupado com a hora da mamadeira. Mas pode acreditar: todo mundo ficou muito, muito satisfeito.

Com os bichos é a mesma coisa. (Bandeira, 2002, p.06)

Com a Dona Bingona, uma vira-lata de respeito, não foi diferente. Ela estava muito orgulhosa com sua enorme barriga e esperou até que nasceu um monte de cachorrinhos. Seu Bingão, «filho, neto, bisneto e "transaneto" de vira-latas de respeito» (Bandeira, 2002, p.07) também estava muito orgulhoso da cachorrada, que alegrava as crianças do bairro. Os cachorrinhos, Dona Bingona e Seu Bingão moravam em um galpão nos fundos de uma grande casa.

Chegado o dia em que os filhotes iriam para o primeiro passeio na rua com seus pais, foi uma festa, mas também se iniciaram os problemas. Mal saíram de casa, eles se sentiram livres, correndo atrás de automóveis. Os pais iam atrás, orgulhosos, pensando na inveja que sentiriam os outros cachorros. Um dos filhotes preocupava Seu Bingão, era Bingo.

Enquanto todos os machinhos da ninhada da Dona Bingona farejavam os postes e as raízes das árvores para fazer xixi logo em seguida, Bingo nem ligava. Ele estava mais interessado em sacudir o rabinho para todos os humanos que passavam, xeretar as sacolas que as madames carregavam e lamber todas as mãos que se abaixavam para fazer-lhe festinhas. (Bandeira, 2002, p.12)

Sem contar que, ao invés de perseguir os carros como os outros filhotes, Bingo entrou em um jardim e ao se espetar nos espinhos das roseiras, voltou ganindo para encontrar aconchego na mãe. E pior ainda: quando Seu Bingão, com seu latido ameaçador, Dona Bingona e todos os cachorrinhos, menos Bingo, enfrentaram um vira-lata vagabundo, magro e sujo, acuando-o contra a parede, Bingo, ao contrário, sacudindo o rabo, foi até o vira-lata importuno e lhe deu umas lambidinhas, convidando-o para brincar. Seu Bingão ficou decepcionado com o filho.

O pai deseja que Bingo faça aquilo que ele acredita ser o melhor. Seu Bingão idealiza um tipo de filho e quer que as suas vontades sejam realizadas, independentemente do desejo de Bingo, que não se envergonhava e sentia-se feliz com o passeio. Seu Bingão é uma representação típica do pai que ocupa o lugar social de patriarca machista em uma cultura falocêntrica, não aceitando que as vontades que contrariam a norma vigente sejam realizadas.

Nessa cultura os filhos têm que se parecer com os pais, imitar as suas atitudes e comportamentos e, frequentemente, os homens devem provar que são «machos», afirmarem a sua masculinidade, seja por meio de seus trejeitos, seu vestuário, suas ações, conquistando muitas mulheres, bebendo exageradamente ou até mesmo usando a força física. Quando Seu Bingão diz que sente vergonha do filho Bingo isso demonstra o quão o fato de ser «diferente» é carregado de negatividade e preconceito. Um preconceito que advém justamente da dificuldade encontrada pelo pai de Bingo em lidar com a diferença do filho, com aquilo que foge à regra estabelecida em uma sociedade normatizada, na qual os comportamentos devem ser padronizados e os corpos disciplinados.

Aconteceu que Bingo fez amizade com o vizinho de sua família, um velho gato -negro, sábio e calmo- que morava no telhado do galpão onde residia a família de Seu Bingão. O gato teve simpatia pela alegria e curiosidade de Bingo, que se sentiu fascinado pela experiência e a vida de aventura do gato. Bingo começou a imaginar o quanto a vida do gato deveria ser boa, mergulhando na noite, possuía um mundo maior que o seu quintal, o mundo das alturas, negro da noite, dominando os telhados, «como o imperador da noite» (Bandeira, 2002, p.16).

Ele, Bingo, tinha medo da noite, mas ficava fascinado com as histórias do gato e se imaginava passeando pelos telhados, pulando os muros, enfrentando os desafios das sombras. Ele queria a liberdade. Enquanto seus irmãos dormiam, Bingo ficava acordado, olhando para fora do galpão, imaginando o que podia acontecer além da escuridão. Ouvia o grito de liberdade do gato: «- Miaaauuu!». Esse som acabou dominando a cabeça e o corpo do cachorrinho, ocupando os espaços do latido de Seu Bingão.

Depois de algum tempo, quando os filhotes cresceram um pouco mais, era o momento de Dona Bingona mostrar que os cachorrinhos continuariam a tradição dos vira-latas de respeito e que sua voz imporia respeito. Seu Bingão, «com aquele jeitão de pai que se prepara para assistir ao filho declamar um versinho e finge que nem está ligando» (Bandeira, 2002, p.18), cruzou as patas e esperou. Com muito trabalho, Dona Bingona conseguiu organizar os filhotes e exibir as suas qualidades.

As relações intrafamiliares em nossa sociedade também foram disciplinadas, para isso recebiam (desde a era clássica) recomendações da escola, dos militares, dos médicos, dos psiquiatras e psicólogos, para que a família fosse o lugar primordial para o disciplinamento do normal e do anormal. Sendo assim, um a um, os cachorrinhos apresentavam ao pai o seu latido, que lhe respondia com um olhar de aprovação ou um rosnar orgulhoso.

Quando chegou a vez de Bingo, dando pulinhos até Seu Bingão, deu-lhe uma molhada lambida. O pai, imediatamente, empurrou o cachorrinho e ficou esperando, assim como toda a família. Então, Bingo se preparou e lançou o seu primeiro miado: «- MIAAAU!». «Horror! Alvoroço! Pandemônio! Coisa nunca vista!» (Bandeira, 2002, p.20). Os outros filhotes não sabiam o que estava acontecendo, Dona Bingona fingia um desmaio de cachorro e Seu Bingão tinha uma expressão de fogo nos olhos. Bingo ficou com medo e surpreso. Ele caprichou tanto e parece que não tinham gostado do seu miado. Seu Bingão ficou sem saber o que pensar.

O pai se preocupa com sua linhagem, com o que os outros cachorros vão dizer. Em nossa cultura espera-se que os sujeitos/animais do sexo masculino sejam machos, fortes, viris, que perpetuem o nome da espécie. «Mas há sujeitos de gênero "incoerentes", "descontínuos", indivíduos que deixam de se conformar às normas generificadas de inteligibilidade cultural pelas quais todos deveriam ser definidos» (Louro, 2008, p.67), contrariando assim as expectativas dos pais, da família e da sociedade.

Toda a família, com exceção de Bingo, pôs-se a ganir, «desconsoladamente». Ele ficou sozinho em um canto, com o «rabo entre as pernas» e as «orelhinhas murchas» (Bandeira, 2002, p.20). Com toda a confusão, os donos da casa foram ver o que estava acontecendo. Bingo, pensando que eles iriam compreendê-lo, pois sempre lhe faziam cafuné, correu até eles e deu um forte «- MIAAAU!». O homem e a mulher ficaram muito assustados e discutiam, chegaram a falar da carrocinha. Bingo não sabia do que se tratava, mas Seu Bingão e Dona Bingona sabiam a respeito. A mãe tremia de medo e em outras situações até iria no lugar do filho, mas nessa circunstância não deixaria que um filhote servisse de mal exemplo para os irmãos. O marido, que sabia que o pior que podia acontecer a um cão é a carrocinha, pensou que diante daquela tragédia, a carrocinha seria melhor que ter um filho miando como se fosse um gato.

Seu Bingão prefere perder o filho a ter a «dignidade enlameada por um filho seu, miando como... como um gato!» (Bandeira, 2002, p.24). Quando Seu Bingão compara Bingo a um gato o faz com um sentido pejorativo, a intenção é ridicularizar a imagem do filho. Chamá-lo de gato é uma forma de menosprezar a diferença de Bingo. Trata-se, pois, de uma representação discursiva compreendida por nós como negativa em relação à diferença, à identidade de Bingo, que mia ao invés de rosnar. O próprio ato de miar está mais associado ao feminino, enquanto o rosnar está para o masculino, o que fica evidente na expectativa dos pais ao esperar um rosnado forte, digno da raça dos vira-latas de respeito.

É válido observarmos também que na narrativa Dona Bingona teme que as atitudes de Bingo sirvam de mau exemplo para os outros filhotes. A diferença é vista com maus olhos e pretende-se «cortá-la pela raiz» para que não possa ser seguida por outros filhotes. Muitas famílias não conseguem vencer o preconceito e quando os pais descobrem que têm um filho homoafetivo sentem vergonha dele, se preocupam com o que os familiares, os amigos e os vizinhos vão dizer e temem que a «rebeldia» do filho que assume a homoafetividade possa «pegar» nos outros filhos.

Os pais viraram as costas para Bingo e os filhotes fizeram o mesmo, sem nada compreenderem. Bingo estava sozinho em um canto, somente o gato o olhava do alto do telhado. Ninguém se aproximava dele, «como se ele tivesse alguma doença contagiosa, tipo catapora ou sarampo, que ninguém quer pegar» (Bandeira, 2002, p.26). Mais uma consequência do «delito» de Bingo: a solidão. Esta se apresenta como uma punição àqueles que são diferentes da normalidade.

O sujeito homoafetivo é condenado a afastar-se da vida social, é forçado a se esconder nos guetos ou no armário. «Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle» (Louro, 2010, p.27). Aqueles que não se escondem, não ficam em silêncio, não dissimulam ou não vivem segregados -são poucas as alternativas que eles possuem-são rejeitados, excluídos e pagam o preço por sua ousadia e transgressão. Parece que a homoafetividade é «contagiosa», a aproximação ou a simpatia a sujeitos homoafetivos pode significar uma adesão ou uma identificação a essa identidade. Por isso, a sociedade cria técnicas diversas para que os indivíduos não cometam desvios e caso eles se desviem, há também as técnicas de punição e de disciplinamento do corpo e de suas subjetividades.

A inobservância, aquilo que é inadequado à regra e o que se afasta dela, os desvios, tudo isso está sujeito à penalidade disciplinar. Na escola, os alunos são colocados conforme as aptidões e o comportamento que possuem; sobre eles há uma pressão constante, para que tenham o mesmo modelo e assim serem submetidos à subordinação, ao cumprimento dos deveres, à docilidade e à disciplina. A penalidade, que perpassará todos os pontos e controlará os momentos das instituições disciplinares, servirá para comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar e excluir, ou seja, normalizar.

Justamente em decorrência dessas técnicas de disciplinamento e de vigilância é que no outro dia, chegou à casa dos pais de Bingo o pequeno caminhão cercado por grades e cheio de cachorros. O homem do caminhão, ao ouvir a história dos donos da casa, se recusou a levar Bingo. Ele nunca ouviu falar de cachorro que mia. Depois que o dono da casa lhe deu dinheiro, ele entrou no quintal com uma corda. Foi uma correria: Seu Bingão e Dona Bingona se esconderam, os cachorrinhos corriam pelo quintal. A dona da casa chamou o Bingo, que se aproximou do homem e fez um triste «- Miau...». O homem jogou o laço em Bingo. O gato assistia a tudo. Jogaram Bingo dentro da carrocinha. E assim ele recebe o castigo por ter cometido tão grave «delito». Foi condenado à prisão, assim como um criminoso.

Muitas vezes, os homoafetivos são vistos como criminosos, aqueles que ameaçam a moral, que ofendem as pessoas de «bons costumes». Trata-se de corpos que não são considerados pela sociedade como dóceis nem obedientes às regras vigentes. Por isso mesmo, o corpo desses sujeitos precisa ser disciplinado, precisa de correção, é necessário ensiná-lo e impor a ele certos gestos e comportamentos culturalmente aceitáveis. O controle disciplinar deve proporcionar a «boa» relação entre um gesto e toda a atitude do corpo.

O corpo que é bem disciplinado produz gestos eficientes. Os mecanismos de poder tornam o corpo o seu alvo e dessa forma esse corpo se constitui como novas maneiras de produzir o saber. Desse modo, a disciplina trabalha na «fabricação» de indivíduos, sendo uma técnica que resulta de uma relação poder-saber que transforma os indivíduos em objetos e instrumentos de sua prática.

Para Bingo, tudo aquilo era um pesadelo, logo acordaria no seu quintal. Dentro da carrocinha, Bingo perguntou aos outros cachorros se também estavam presos porque miavam: «-Miar?!- horrorizou-se um cachorro de maus bofes. -Nós somos cães vagabundos, mas somos cachorros de verdade» (Bandeira, 2002, p.30). Há no discurso do cachorro a afirmação de uma identidade tida como «normal» e «verdadeira», a partir de uma performance e um gesto desempenhado por sua «raça». A diferença é vista e compreendida como algo que não pode ser considerado parte de uma «verdadeira» identidade canina. É notório que a diferença causou rejeição. Até mesmo seus pares ridicularizam a diferença de Bingo. A injúria, quando proferida, fere e marca a consciência do indivíduo com a vergonha. A personalidade desse sujeito terá como um de seus elementos constitutivos uma consciência envergonhada de si mesma.

Os cães foram levados para o Canil Municipal. Foi uma confusão na hora de colocá-los dentro da jaula. Bingo se perguntava onde estaria o gato para socorrê-lo e como se o chamasse, deu um forte miau. Como são inimigos dos gatos, os cães de todas as jaulas começaram a latir, queriam devorar aquele que miava. Na jaula de Bingo, os cães não conseguiam compreender, pensaram que ele era um gato disfarçado e todos foram para cima dele, que corria desesperado dentro da jaula. Apareceu um humano que mandou que todos calassem a boca. Bingo foi salvo, mas estava todo esfolado e cheio de arranhões, o que mostrou aos outros cachorros que ele não estava usando disfarce. Ele era um cão que miava. Isso não foi aceito pelos seus companheiros, pois apesar de vagabundos, «eram cachorros de verdade» (Bandeira, 2002, p.35). Para eles, era uma vergonha um cachorro que miava. Bingo, em um canto, estava abandonado e triste.

Além da solidão, no canil Bingo teve que enfrentar as pulgas -que não existiam lá no seu quintal- e a pouca comida com gosto ruim -quanta saudade ele sentia da sua tigelinha de leite e das guloseimas do quintal. A escolha tem um preço e o faz perder algumas «vantagens». A homoafetividade também faz os sujeitos homoafetivos «perderem» os modos heterossexuais ou as relações com as pessoas das quais tiveram que se afastar ou se afastaram deles, entre outras. Isso gera uma melancolia, provocada, em alguns casos, pela perda das relações com os pais e os irmãos, pelo desejo de construírem uma família para eles mesmos e pela suposição de que eles não poderão ter filhos.

Os cachorros da jaula de Bingo estavam pensando em fugir e organizaram um plano para a fuga, mas disseram a Bingo que ele não servia para nada e cachorro que miava não poderia participar. Aconteceu, porém, que o plano não funcionou e quando o chefe dos carcereiros, na escuridão, ouviu Bingo miando pensou que fosse um gato e o chutou para fora da jaula.

Vendo-se livre, Bingo começou a correr e procurar o portão. Quando os homens perceberam que havia um cão fora da jaula, queriam laçar e pegar Bingo, que não tinha para onde escapar. Seus olhos, então, cruzaram com os do gato, que estava no alto do muro. Os olhos dele pareciam chamar Bingo, convidando-o a pular. O gato era uma espécie de amigo e queria ajudá-lo, mas como ele, um cão de quintal, poderia pular? O gato lhe deu forças e, cercado pelos homens, Bingo viu que não tinha outra opção. Correu e saltou, mas bateu-se contra o muro, tentou mais uma vez e novamente não conseguiu. Bingo teve que livrar-se das pauladas, correu e «lutando pela vida, saltou como um gato» (Bandeira, 2002, p.44). Diante da possibilidade de ser agredido, verbal ou fisicamente, Bingo percebe o perigo e tenta fugir das amarras de uma sociedade que pretende prendê-lo, discipliná-lo, torná-lo um corpo dócil.

Para os sujeitos homoafetivos, os amigos se tornam uma família. Eles acabam tendo a necessidade de romper com o meio familiar, o que faz com que eles invistam na constituição de amizades. Não é uma tarefa fácil substituir os laços «naturais» e familiares por outros que sejam escolhidos e construídos. Renuncia-se à vida familiar e essa renúncia forçada passa a fazer parte da subjetividade do sujeito. Conforme Didier Eribon (2008), a ruptura com a família, inicialmente, é compreendida e vivida como uma libertação, mas, com o passar do tempo, o distanciamento para muitos desses sujeitos vai se tornando difícil de enfrentar, devido, sobretudo, à solidão. Quando chega o momento de tentar reatar os laços familiares, inicia-se uma longa tentativa de reconciliação, que poderá durar até mesmo a vida inteira.

Com as patinhas agarradas no muro, Bingo não tinha força para subir. Os olhos amarelos do gato lhe passavam força e a proximidade da liberdade. Bingo juntou todas as suas forças e soltou um forte «- Miaaau!».

Lá embaixo, os homens viram, recortadas contra a lua cheia, as sombras de um gato e de um cachorro correndo sobre os telhados.

Ninguém mais pôde encontrar o Bingo. Nunca se soube para onde ele foi. Uns dizem que ele partiu para bem longe e foi aprender outras línguas. Dizem que, agora, Bingo sabe cocoricar, mugir, balir e até trinar. Outros acham que ele foi para uma terra onde todo mundo pode falar a língua que quiser. Uma terra onde é permitido miar. Uma terra onde é permitido ser diferente! (Bandeira, 2002, p.47)

Na narrativa em questão não fica explícito qual foi o destino de Bingo, mas é certo que no lugar onde nasceu ele não ficou. Partir «para bem longe» é uma forma de fugir da injúria, podendo viver a sua identidade sem precisar dissimulá-la ou sofrer discriminação por ter coragem de assumi-la. Não se trata apenas de romper, ultrapassar um espaço geográfico, é uma forma de «redefinir» a sua identidade, a partir de uma transitoriedade por espaços diversos. Daí a constante peregrinação daqueles que ousam romper tais barreiras.

Muitos homoafetivos deixam as suas cidades em busca das cidades grandes que parecem mais acolhedoras. Elas representam o refúgio desses sujeitos, um lugar onde eles possam tentar viver a sua sexualidade. A migração traz consigo um efeito de liberdade. No século xix, por exemplo, cidades como Nova Iorque, Paris e Berlim atraía «refugiados» de todo o país e até mesmo do exterior com a ideia de um «mundo gay». Hoje a ideia de encontrar um lugar onde esses sujeitos possam viver a sua sexualidade ainda existe, pois persiste a migração dos homoafetivos para as cidades grandes: «Houve -e, com certeza, ainda há- uma fantasmagoria do "outro lugar" nos homossexuais, um "outro lugar" que ofereceria a possibilidade de realizar aspirações que tantas razões pareciam tornar impossíveis, impensáveis, em seu próprio país» (Eribon, 2008, p.33). Segundo este autor, a cidade grande tornou possível o desenvolvimento dos modos de vida gay e ela também pode possibilitar a superação da solidão e permitir a proteção do anonimato.

Não é que não houvesse nos espaços de sociabilidade das grandes metrópoles -quase nunca exclusivamente gays- as batidas policiais, as averiguações e as prisões para pressionar essa «minoria». Esses espaços eram compartilhados por homoafetivos e heterossexuais e esse contato com o exterior proporcionava um embate entre o segredo e a visibilidade, entre o medo e o temor. Eribon (2008) pontua que o «mundo gay» não se originou repentinamente com as revoltas de Stonewall. Estas só se tornaram possíveis porque essa denominada «subcultura» já existia, o que ocorre é uma maior visibilidade a partir de Stonewall.

O espaço da cidade grande não representa apenas a liberdade. Junto com ela, ele traz também aspectos negativos: a violência, as agressões, a hostilidade, os embates com a polícia -que também possui um poder disciplinador- e a transmissão de doenças, dentre outros. O discurso conservador dirá que a cidade é o local da perdição. Na cidade está a «cultura gay» e a vigilância social, a solidariedade e a abjeção. A «identidade homossexual» é possível, desde que seja «deixada em silêncio e excluída -pelo menos de modo fictício- a sexualidade» (Eribon, 2008, p.69). O homoafetivo geralmente aceito é aquele que disfarça e/ou esconde a sua sexualidade, o seu desejo e as suas práticas. A manifestação em público, feita abertamente, de sujeitos e práticas que não sejam heterossexuais, ainda incomoda e gera preconceito e discriminação.

 

4. Considerações finais

As identidades são instáveis, fragmentadas e plurais, mesmo assim a sociedade ocidental insiste em reiterar e fixar certas identidades enquanto outras são negadas e recusadas. É comum a aceitação da transitoriedade de classe, por exemplo, mas o mesmo não acontece em se tratando das identidades de gênero e sexuais.

São muitos os discursos sobre a sexualidade e eles não param de se modificar, por isso mesmo, as respostas, as resistências e as intervenções -sociais, culturais e políticas- também se renovam, mas do «outro lado» surgem as contestações e os rompimentos com a emergência de identidades oprimidas e marginalizadas, que insistem em se afirmarem social, política e abertamente. Com essas disputas, vemos o debate, o diálogo e o enfrentamento em diferentes frentes, incluindo-se aí o literário.

Pelos motivos expostos no decorrer de nossas reflexões, podemos concluir que essa diferença construída na tessitura da narrativa literária é simbólica, justamente por se tratar de uma literatura destinada ao jovem leitor. A diferença, na literatura infantil e juvenil, conforme o corpus selecionado para esta pesquisa, demonstra que ela se refere, de um modo mais amplo, à diferença de gênero e sexual, ocorrendo de forma explícita ou implícita. Daí a necessidade de um olhar mais atento para essas narrativas, através de um exercício de hermenêutica, que pode permitir ao leitor, em processo de formação, solapar alguns dos preconceitos arraigados no âmago de nossa sociedade ocidental.

 

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Notes
* Este artigo é um dos resultados do projeto de pesquisa «Representações de gênero, de identidade e de sexualidade na literatura infanto-juvenil brasileira contemporânea: abordagens teórico-críticas e metodológicas» vinculado ao grupo de pesquisa «Estudos sobre a narrativa brasileira contemporânea» (CNPq/UFT), e também deriva da Dissertação de Mestrado intitulada «Ensino de literatura infantil e juvenil e diversidade sexual: perspectivas e desafios para a formação de leitores na contemporaneidade», submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura, da Universidade Federal do Tocantins - UFT.

 

Referências bibliográficas

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