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Lingüística y Literatura

versión impresa ISSN 0120-5587

Linguist.lit.  no.63 Medellìn ene./jun. 2013

 

ENTRE O OBRIGATÓRIO E O PROIBIDO: A LITERATURA E O LEITOR EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA O ENSINO MÉDIO*

BETWEEN MANDATORY AND PROHIBITED: LITERATURE AND READER IN PORTUGUESE TEXTBOOKS FOR HIGH SCHOOL

 

Robson Coelho Tinoco, Lígia Gonçalves Diniz

Universidade de Brasília-UnB, Brasil.

Recibido: 06/03/2013 - Aceptado: 30/05/2013


 

Resumo

O artigo avalia de que maneira a literatura e o texto literário são apresentados aos alunos de ensino médio, do Brasil, em 11 coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa. Assim, verifica-se em que medida a organização do conteúdo sobre literatura nesses livros favorece ou prejudica a aproximação entre os estudantes e o texto literário, no sentido de formar ou não o gosto pela leitura para além do ambiente escolar. Nesse sentido, foram abordados três aspectos principais da leitura literária, sempre com foco no leitor: o papel humanizador da literatura, a experiência estética e o lugar do conhecimento literário como capital cultural.

Palavras-chave: leitura, livros didáticos, literatura, formação de leitores.


 

Abstract

This paper analyzes how both literature and the literary text are presented in 11 to High School (ensino médio) students in Brazil in Portuguese textbooks. So, to observe whether the manner by which literary content was organized in these books either promoted or obstructed the relationship between the students and literary reading, and whether it contributed or not to form literature readers outside school and after graduation. In this context, three important elements concerning literary reading were approached, always focusing on the reader: the "humanizing" role of literature, the aesthetic experience and literary knowledge as cultural capital.

Keywords: reading, textbooks, literature, literary readers.


 

Os leitores contumazes costumam censurar os que, tendo todas as oportunidades, não desenvolveram o gosto pela literatura, ao mesmo tempo em que se frustram diante dos obstáculos que se colocam entre tantas crianças e jovens e o texto literário. Tal sentido foi o motivo principal deste artigo, impulsionado por uma pergunta essencial: estamos aptos para experimentar a literatura do mesmo modo, isto é, para efetivamente vivenciá-la? Aprendemos e temos o que é preciso para sermos sujeitos atuantes do diálogo ativo e do ato criador que é a leitura literária?

De alguma maneira, os índices de leitura respondem a essas perguntas, no que tange ao Brasil. Dados de 20071 apontam que a média de livros lidos, por ano, é de 4,7 -números que se reduz a 1,3 se descontados os livros indicados pela escola (inclusive os didáticos). A mesma pesquisa mostra que são leitores só 55% dos brasileiros: 80 milhões de pessoas não têm o hábito de ler. "Elite literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras" (Candido, 2008: 95). A afirmação ainda é pertinente -com a "capacidade de interessar-se" como expressão-chave-, entendida como os recursos para efetivamente fruir da leitura, recursos esses que deveriam ser, ao menos em parte, assegurados pela escola. No que toca a aproximação à cultura literária, então, é no ensino médio que parte importante desses recursos deveria ser transmitida com mais eficácia e mesmo mais decidida vontade governamental, senão política.

Muitas questões concernentes ao abismo entre literatura e leitores se colocam e, sem dúvida, notam-se algumas contradições que soam inconciliáveis. Na escola, "se tem a impressão de que é entre o 'proibido' e o 'obrigatório' que o gosto pela leitura deve se dar", pois muitas vezes é "com uma visão utilitarista que se deseja que os jovens leiam" (obter boas notas, passar no vestibular), ficando a dimensão prazerosa da leitura restrita ao universo do luxo (Petit, 2008: 122). Também se aponta essa dificuldade ao se questionar

que relação pode existir entre o prazer do texto e as instituições do texto? Só uma relação muito tênue. A teoria do texto postula a fruição [o gozo], mas tem pouco futuro institucional: o que ela instaura, a sua realização exata, a sua assunção, é uma prática (...) e não uma ciência (...), uma pedagogia. (Barthes, 1988: 108).

Deve-se, assim, destacar a dificuldade de viver essa fruição sem um instrumental que só se adquire pelo hábito e o estudo da leitura, e aqui a dificuldade maior de "ensinar" a ler. Nesse sentido, o que se apresenta muitas vezes na escola sob a alcunha de "literatura" não soa de fato muito atraente ao leitor iniciante; parece antes um exercício de autoritarismo, repleto de verdades impostas, que o jovem não pode compreender e, nessa rotina, o "objeto central das aulas de literatura, em vez de ser o texto literário, é constituído de um discurso didático sobre literatura" (Cereja, 2005: 12).

Considerando que a escola, mesmo na contemporaneidade, talvez seja a mais importante das instituições responsáveis pela transmissão da noção de arte, notem-se os riscos que tal conceito determina, já que é papel desse tipo de instituição transmitir, ou impor, um arbitrário cultural -isto é, quais obras seriam as legítimas, e quais, por exclusão, não seriam dignas de serem chamadas "literatura" ou "arte" (Bourdieu, 2004a: 119-120). O problema se agrava na medida em que, na maior parte das vezes, esse arbitrário não se define como tal, dando a impressão de que se trata de escolhas e julgamentos "naturais" e independentes de quem os fez e de quando foram feitos.

A partir dessas ideias inicias se podem estabelecer em duas, em resumo, as dificuldades de abordar a leitura na escola, que certamente se inter-relacionam. A primeira é o utilitarismo imediatista, oposto ao prazer e ao gozo -ler para passar na prova, estudar literatura para se sair bem no vestibular-, que no dia a dia da escola se apresenta pelo uso meramente utilitarista dos textos literários, seja no sentido de estarem sempre vinculados a uma lista de exercícios, seja porque são usados de forma simplista para o ensino de tópicos de Língua Portuguesa. A segunda, na medida em que a escola ainda estabelece uma aura quase sagrada em torno da literatura, é o distanciamento que essa espécie de sacra reverência acaba por provocar no aluno, que enxerga a "alta cultura" dos livros como algo que não é para "alguém como ele". Nesse mesmo sentido, os julgamentos e interpretações que já vêm atrelados aos textos literários colocam o aluno em posição secundária quando ele deveria ser sujeito primário -ao lado do texto- na recepção produtiva de uma leitura literária.

No primeiro caso, o maior dos problemas é a leitura de textos literários não ser abordada como um fim em si. Aliás, ao se pensar na inconveniência de um utilitarismo objetivista, note-se que

a obra, como a réplica do diálogo, está disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir diferentes formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores. (Bakhtin, 2003: 279).

No que concerne à segunda das dificuldades, convém dizer que partir da ideia de segregação por meio da arte e transformá-la em tipo de "inimiga" não levará ninguém a apreciá-la devidamente, restando o sentido do velho ditado que "se não pode vencê-los, junte-se a eles". Ora, buscando alternativas para essa necessária antissegregação, vive-se num mundo real e é preciso se valer de estratégias mais ou menos pragmáticas para romper obstáculos. E a escola tem papel essencial, e mesmo ético, de mostrar a literatura como o que ela é, dentro de um contexto artístico, político e social.

Por consequência, e nesse aspecto, "a leitura é também uma via privilegiada para se ter acesso a um uso mais desenvolto da língua; essa língua que pode representar uma terrível barreira social" (Petit, 2008: 66). Ainda, a língua dos livros é não a língua dos que detêm o poder, mas uma língua da qual eles se apropriaram. Assim, só dando a possibilidade que o aluno entenda que essa língua é, sim, acessível a todos -embora para alguns as portas estejam escancaradas e para outros, entreabertas-, é que ele romperá o obstáculo essencial de, apesar de várias dificuldades impostas e determinadas por sistemas de ensino ultrapassados, dispor-se a uma leitura original, que frui e enriquece.

Quanto a esses sistemas, no Brasil, atualmente os livros didáticos são, com efeito, os documentos onde se concentram os pontos mais criticados do ensino de literatura -e da noção de discurso literário e da literatura em si. Pode-se ver aqui o que, em referência à escola francesa, já se apontava nos anos de 1970, em que "o manual ou a antologia [escolares] apresentam-se (...) como um museu onde se encontram reunidas as obras que se julgou serem dignas de ser retidas" (Mouralis, 1982: 36). Vale lembrar ainda a importância em termos de volume de vendas que esses livros têm para as editoras: segundo o Censo do Livro 2010 (CBL; SNEL, 2011)2, os livros didáticos representam 43% da produção editorial brasileira.

Há ainda outra razão, consequência desta última, para o destaque aos livros didáticos como objeto de análise. O Governo Federal promove, desde 2004, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio3, cujo objetivo é, de acordo com a Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação, universalizar o uso de livros didáticos como instrumento de apoio na prática pedagógica em sala de aula nas escolas públicas. Para tal, o programa segue o processo aqui resumido: publicação de edital, inscrição dos livros candidatos pelas editoras; triagem para verificar a adequação às exigências do edital; avaliação pedagógica feita pela SEB; e, por fim, análise, por especialistas, das obras aprovadas, resultando em resenhas que comporão o Catálogo do PNLEM.

Depois disso, com o catálogo em mãos, professores e diretores fazem a escolha dos livros que irão utilizar e a posterior distribuição é feita diretamente das editoras às escolas. Vale lembrar ainda, que os alunos matriculados em escolas públicas representam 88% do total de estudantes em ensino médio (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas - INEP, 2011) e que, por razões já descritas, o universo de estudantes de escolas públicas, como oriundos das camadas menos favorecidas da população brasileira, é justamente aquele em que se deve focar como prioridade.

Uma certeza, ainda que já aleatoriamente destacada por outros autores e pesquisadores, é a de que não se pode falar em literatura sem ressaltar a figura essencial do palco do leitor, ou melhor, dos leitores -aqueles que já dominam a arte da leitura (e aqui se entende a leitura como produção criativa, não como atividade instrumental), os que ainda estão para serem abrigados/envolvidos/alimentados por ela e - por que não?- os que, mesmo tendo a oportunidade de entrar em contato com a literatura a recusam, por simples desinteresse ou por algo tão prosaico quanto é, afinal, o gosto pessoal, pois "a liberdade de leitura, qualquer que seja o preço a pagar, é também a liberdade de não ler" (Barthes, 2004a: 35).

Estando o leitor em potencial disposição no centro das atenções aqui descritas, o mínimo que se deve a ele oferecer é uma relação clara de informação (lida) transformada em conhecimento, expondo com clareza as benesses e os contratempos da leitura literária, assim como seus papéis extras-estéticos (sociais). Nesse âmbito de relacionamento, ainda, não se deve exigir dele o que ele não pode, ou não quer, oferecer. Assim, é importante também analisar os diferentes ângulos sob os quais se podem enxergar as funções e qualidades de experiência que a literatura pode prover (e quais não pode, por mais que se deseje), e como podem ser abordados ao se oferecerem livros e textos aos leitores em formação ou em pré-formação. Nesse caminho, deve-se começar por investigar as funções intrínsecas à leitura literária em suas especificidades, ou seja, a literatura como instância humanizadora e a leitura como experiência estética modificadora do sujeito, para depois se ater às funções extraliterárias do conhecimento de literatura e do hábito de ler.

 

Leitura como interação: um humanismo dialógico

Entre os argumentos sobre a importância da leitura literária, provavelmente o mais comum é herdado do pensamento humanista originário do Renascimento, mas que remonta, é claro, à filosofia clássica grega de Platão e Aristóteles, com a sua associação entre beleza e verdade. Por essa linha de pensamento, uma das principais funções da literatura seria representar o pensamento humano, e a da leitura, compreender melhor os homens e a si mesmo. Esse tipo de pensamento deriva, por vezes, numa visão quase religiosa, no sentido da criação e observação de preceitos morais e éticos. Isso se observou, por exemplo, na Inglaterra do século XIX, com Matthew Arnold e sua proposta de educação literária como a transmissão de uma ideologia humanizadora para a classe média (Eagleton, 2006: 35 e seguintes), com a instituição de uma Cultura, com letra maiúscula, responsável e consequência de um projeto civilizatório e social necessário - uma substituta da igreja, enfim.

Como processo, a leitura jamais é, ou jamais deveria ser generalizante; ao contrário, o momento essencialmente livre que é a fruição de um texto literário é (ou deveria ser) por definição individual, não importando quantas e de quais qualidades sejam as mediações por que passa tal momento. Nesse sentido se aponta para tal experiência formadora (e humanizadora) da literatura, ao tentar se explicar por que, enquanto leitor ama-se a literatura e é assim que

em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. [...] Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. (Todorov, 2010: 23-24).

A palavra-chave aqui, a que denota processo e experiência, é interação; sua importância vem, é claro, do fato de pôr o leitor em pé de igualdade com o autor, e a obra como veículo de comunicação, ou melhor, de diálogo, entre eles. São noções de extrema valia para quaisquer leitores de literatura o diálogo entre obra e leitor e sua implicação com a transmissão de conhecimentos e valores (ou melhor, de sistemas de conhecimentos e valores). Indo mais além, é essencial a provocação que vem embutida na interação entre leitor e obra, isto é, a necessidade de uma resposta e a reformulação -ainda que redunde em reiteração- de conceitos e preceitos, sejam eles morais, éticos, culturais ou sociais.

Todas essas noções são ainda mais relevantes quando se pensa em jovens leitores, tanto porque são leitores em formação quanto pelo fato de serem também seres humanos (especialmente) em formação. Portanto, por mais que se tenham reservas herdadas dos modernos e dos estruturalistas em relação às funções idealistas da literatura -ou simplesmente ao entendimento de que a literatura possa ter funções para além do próprio texto e de sua fruição estética-, parece ser imprescindível que elas venham à tona como objeto de estudo em pesquisas sobre o ensino de literatura no Ensino Médio brasileiro.

Quanto às pesquisas, aliás, em Dissertação apresentada em 1975, Maria Thereza Fraga Rocco entrevistou alguns teóricos e professores sobre o ensino de literatura em nível básico que então se realizava. Notadamente com influências estruturalistas, a autora questionava se tiver como objetivo, também, suprir a "necessidade de desenvolver ou adquirir estruturas sociais, afetivas, morais" seria deturpar o ensino de literatura (Rocco, 1992: 100-101). Entrevistado, o elogiado autor e pesquisador Alfredo Bosi sugere uma conciliação essencial:

Acho possível dar modelos tão grandes aos alunos que estes, ao mesmo tempo, extraiam elementos de significado e fiquem profundamente afetados pela qualidade de estilo dos autores. É o ideal. Se pudesse acontecer isso, a dicotomia [entre objetivos humanistas e a abordagem da literatura como linguagem] estaria resolvida.

Trata-se, é claro, de uma sugestão breve, que demandaria a elaboração de uma "estrutura" de ensino, desde a escolha dos autores -quais seriam, e quem as define como tais, as obras consideradas "grandes modelos"?- até a própria abordagem de tais obras. Ainda assim, encarada em sua imprecisão, essa resposta é um bom ponto de partida para aquela conciliação: não ignorar o conteúdo dos textos literários em seu diálogo com o leitor nem desprezar as especificidades da linguagem literária. Mais que isso, na verdade, a preocupação deve sempre partir do entendimento -e da adequada abordagem desse entendimento para o estudante- de que, em qualquer expressão artística, não há separação entre forma e conteúdo, ou entre a linguagem e a substância a que ela dá contorno. Isto é, o aluno deve sempre ter claro que o conteúdo (a história ou a fala do eu lírico, por exemplo) de tal obra só é o que é, e só pode comunicar como comunica porque tem uma forma específica, que dialoga com outras formas específicas e que, nesse sentido, forma também é discurso. Nesse sentido, Bakhtin, ele mesmo um precursor da noção de obra de arte como instância dialógica, é preciso ao entender essa relação ao considerar que

não pode ser destacado da obra de arte um elemento real qualquer como sendo um conteúdo puro, como, aliás, realiter não há forma pura: o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são indissolúveis para a análise estética, ou seja, são grandezas de ordem diferente: para que a forma tenha um significado puramente estético, o conteúdo que a envolve deve ter um sentido ético e cognitivo possível, a forma precisa do peso extra-estético do conteúdo sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma. (2010a: 37).

Essa inseparabilidade entre forma e conteúdo, ainda que pareça um dado evidente, constitui um problema no ensino de literatura, ao menos como se observa nos livros didáticos brasileiros, em geral. Não obstante tal fato, o que se pretende com este artigo é deixar claro que, quando se pensa em transmissão de estruturas de valores e outros conceitos de cunho humanista, não se está tratando apenas das narrativas ou relações representadas no texto literário e sim no texto literário como um todo, na medida em que não se chega ao mesmo resultado na leitura (qualquer que ela seja) sem que a forma dê também sua contribuição, justamente a de dar contornos específicos -e assim enriquecer, modificar: compor, enfim- o conteúdo. É, afinal, dever do estudo literário, "consertar a fratura da forma e do sentido, a inimizade factícia da poética e das humanidades." (Compagnon, 2009: 18).

Só pode ser considerado um leitor de literatura quem vivencia a obra literária por meio de uma experiência estética, já que toda leitura é mediada social e ideologicamente, e é importante encarar a leitura como experiência estética pura4, ou seja, individual e concreta, na medida em que, quando se vivencia algo esteticamente, "aquilo que constitui o objeto de nossa atenção é dotado de propriedades que lhe concedemos não através de uma crença ou de um julgamento, mas por meio de afetos." (Guimarães, 2006: 19).

Essa visão da leitura e, portanto, da obra literária como processo que se concretiza de modo particular em cada leitor é particularmente importante no exame de como se dão as atividades referentes à leitura literária na escola. Não é o caso de se ignorar a importância de exercícios centrados na compreensão do texto ou daqueles que se debruçam sobre a estrutura linguística dele, mas não existe leitura literária, tomada em seu sentido mais essencial, se não se der a "permissão" a cada leitor de apreender tal texto como se lhe é individualmente apreendido. Na escola deve-se trabalhar sempre no sentido de dar aos alunos as ferramentas para se que desenvolva um sistema de critérios de apreciação e interpretação. Contudo, ainda que sempre influenciados e mediados por aqueles que se impõem como os critérios legítimos, tanto a apreciação e interpretação como produtos finais cabem aos leitores, sejam eles leitores habituais ou em formação.

É a partir desse exercício de liberdade que se permite que a literatura faça seu trabalho de conquistar os leitores. É ela afinal quem o faz: os mediadores, como seu próprio nome diz, só fazem o trabalho de apresentação -uma apresentação delicada e difícil, mas tão somente uma apresentação; caso contrário, tornam-se donos do texto literário, e isso é tudo o que devemos evitar. Sobre esse caráter individual e, portanto, incontrolável da leitura literária, aliás,

a leitura é precisamente aquela energia, aquela ação que vai captar naquele texto, naquele livro, o "que não se deixa esgotar pelas categorias da Poética"5; a leitura seria, em suma, a hemorragia permanente por que a estrutura [...] desmoronaria, abrir-se-ia, perder-se-ia [...] -deixando intacto aquilo a que se deve chamar movimento do sujeito e da história: a leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola. [grifos do autor] (Barthes, 2004a: 42).

É importante ter em mente que tal abordagem é mediada e influenciada por diversos mecanismos e poderes que fogem completamente da esfera do ensino ou da teoria literária. Um exemplo são os diferentes níveis de dificuldade (incluindo o custo financeiro) impostos pelos próprios autores ou pelos detentores dos direitos autorais de suas obras, sobre a reprodução destas nos manuais didáticos, que viabilizam ou não o aparecimento delas -e consequentemente sua apresentação aos estudantes- nos livros. Outro fator é o importantíssimo peso dos livros didáticos no faturamento das editoras: livros de autores "conceituados", isto é, tradicionais, cujos nomes soam familiares e, portanto, "confiáveis" têm lugar privilegiado na escolha de professores que estão distantes das teorias e abordagens mais modernas do ensino-estudo de literatura.

Do mesmo modo, as próprias abordagens mais "tradicionais" -isto é, muitas vezes antigas e obsoletas nas academias- geram sensação de segurança em professores (e diretores) de escolas que utilizam os livros didáticos como principal instrumento de ensino em sala de aula. Como são esses professores que escolhem os livros didáticos a serem usados, parece que as editoras, com foco no faturamento, seguem a lei do mercado, isto é, produzem o que é demandado, e os modelos desgastados são reproduzidos com poucas e lentas modificações ao longo dos anos, no intuito de os livros se manterem na lista dos mais usados, e vendidos.

Para se ter uma ideia de valores, a coleção mais requerida pelas escolas públicas de ensino médio em 2011, C&M forneceu, nesse ano, pouco mais de um milhão de livros (somando-se os volumes das três séries), custando ao Governo Federal cerca de R$ 8,7 milhões. Somando-se o valor pago às editoras por todas as 11 coleções distribuídas às quase 19 mil escolas públicas brasileiras de Ensino Médio, chega-se a mais de R$ 19 milhões, apenas em 2011. A esses valores ainda se acrescem os obtidos no mercado privado.

Reconhecer tais problemas e interferências, no entanto, não muda o fato de que o discurso desses livros didáticos é aquele reproduzido por grande parte dos professores assim como absorvido por grande parte dos alunos -e vice-versa. Daí a importância de esmiuçar tal discurso. Apesar de o número de exemplares distribuídos variar bastante entre as diferentes coleções, todas elas -as obras distribuídas pelo Ministério da Educação entre 2009 e 2011- foram investigadas nesta pesquisa. São elas, da mais a menos utilizada nas escolas públicas, segundo os números do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) relativo à soma dos livros distribuídos às escolas nos anos de 2010 e 2011.

 

Intenções e limites de uma análise

A análise das 11 coleções utilizadas no ensino médio teve foco triplo. Em primeiro lugar, foram observadas as organizações dos capítulos e unidades de cada obra didática. O objetivo era entender a proporção das seções dedicadas especificamente ao estudo dos textos literários e de que forma tais seções se compunham, e qual seria o fio condutor entre elas. Em seguida, relacionaram-se todos os textos literários reproduzidos, em todos os capítulos ao longo dessas mais de 7 mil páginas, segundo diversos critérios em torno da autoria, do gênero e do uso do texto no livro. Por fim, objetivou-se uma análise das atividades propostas em torno dos textos literários reproduzidos, com o intuito de entender se tais exercícios trabalham no sentido de aproximar ou não o estudante do texto. Para as análises desenvolvidas, foram consideradas todas as 11 coleções com peso igual.

O primeiro passo foi classificar os capítulos dessas obras, segundo uma área de abrangência geral e, então, o tema específico em que se encaixam tais capítulos. Em princípio, a ideia era entender a importância que a literatura recebia nas coleções e, em seguida, observando apenas os capítulos dedicados a ela, estabelecer quais os temas mais recorrentes e que, assim, acabavam por determinar a própria organização do livro e, em consequência, do currículo da disciplina. Ainda que pareça que as obras mais interessantes são aquelas em que há a abordagem de todos os temas em todos os capítulos -a gramática, por exemplo, não existe independente do texto-, esta classificação serve como base fundamental para diversas análises. No que tange à área de abrangência, foram concebidas três categorias6:

  1. Língua: capítulos concebidos em torno de aspectos estruturais ou sociais da linguagem escrita e falada, notadamente conhecimentos de linguística e gramática;
  2. Literatura: capítulos dedicados especificamente aos textos literários, segundo critérios de gênero, história, teóricos ou práticos;
  3. Texto: capítulos destinados à produção e leitura de textos de diversos gêneros, não necessariamente literários, focando habilidades de compreensão das diversas linguagens quando construídas como texto escrito.

Como se vê, nos livros didáticos, a literatura ocupa lugar de destaque entre os componentes curriculares da disciplina de língua portuguesa, sendo mais de metade do total de capítulos especificamente dedicado ao estudo dos textos literários, que em muitos casos acaba por organizar a própria sequência didática da disciplina como um todo. Além disso, os textos literários não estão presentes apenas nesses capítulos, ainda que neles esteja a sua grande maioria - 70% -, como se observa a seguir:

A alta proporção de capítulos dedicados à literatura, ou mesmo ao texto em geral (somando-se as duas áreas, chegamos a 82% dos capítulos), no entanto, não significa que o texto literário e sua leitura estejam em primeiro plano nesses livros didáticos. Foi para avaliar o que se entende por "literatura" que partimos da área para o tema, uma forma de especificar, capítulo a capítulo, qual seria seu objeto de estudo principal. As áreas foram, assim, subdivididas conforme as categorias abaixo. Vale notar que alguns temas são comuns a diferentes áreas:

  1. Língua - 1.a. Linguística: capítulos centrados nos diversos aspectos da linguagem humana, escrita ou falada. Tratam tanto dos diferentes códigos audiovisuais quanto dos aspectos sociais relativos a elas, como as variantes linguísticas; 1.b. Gramática: seções focadas na transmissão da norma culta padrão da língua portuguesa escrita no Brasil, com conhecimentos como morfologia, sintaxe, pontuação e ortografia; 1.c. Vestibular: em algumas coleções, há capítulos inteiramente reservados à reprodução de exercícios constantes de edições passadas de provas de vestibular. Daí a existência deste entre os "temas" conforme nossa classificação.
  2. Literatura - 2.a. Historiografia: capítulos organizados de acordo com o conhecimento cronológico (diacrônico) das manifestações literárias, segundo escolas e movimentos literários; 2.b. Leitura e produção: aqueles que se debruçam sobre conhecimentos e atividades que têm como objetivo desenvolver as habilidades de compreensão, entendida aqui em seu sentido mais amplo, dos textos literários. Entre estes capítulos estão, por exemplo, aqueles que tratam dos gêneros literários em suas especificidades de leitura, ou ainda aqueles que se organizam segundo temas mais ou menos arbitrários (exemplo: "histórias de amor"); 2.c. Teoria literária: nestes capítulos, é priorizado o debate sobre tópicos teóricos, tratando de assuntos como a definição do que é a literatura, quais as suas funções, etc.; 2.d. Vestibular: ver acima.

A historiografia ainda é o fio condutor dos livros didáticos de língua portuguesa no Ensino Médio -sendo o tema de mais de 76% dos capítulos dedicados à literatura (e de 39% do total de capítulos). É, também, o tema sob o qual se concentram 80% dos textos literários nos capítulos da área "Literatura" e mais de 55% dos textos literários ao longo de todos os tipos de capítulos. Para efeito de comparação, os capítulos sob o segundo tema mais corrente, "Leitura e produção" -dedicados ao desenvolvimento da competência de leitura-, reúnem apenas 18% dos textos literários, somadas todas as áreas. A importância da abordagem historiográfica nos livros didáticos será observada também na análise dos exercícios propostos por eles. Por ora, basta assinalar que apenas 2 dos 11 livros didáticos do PNLEM 2009 organizam os capítulos dedicados à literatura por critérios não historiográficos.

Depois de classificados os capítulos das 11 coleções didáticas de língua portuguesa, partiu-se para uma classificação dos 3.113 textos literários distribuídos ao longo desses capítulos. Tal classificação seguiu critérios relativos ao próprio texto (gênero), ao autor (pertencimento ao cânone, sexo, século de sua morte etc.) e à utilização do texto no livro. Foram considerados apenas os textos reproduzidos integralmente ou trechos de obras que, ainda que destacados de seu contexto, fizessem sentido em si mesmos (por exemplo, cantos de Os Lusíadas, de Camões). Desconsideraram-se extratos que fossem utilizados para exemplificar características de linguagem ou abordar temas estranhos ao texto em si (por exemplo, temas de gramática) e que não possibilitassem, pela sua descontextualização, qualquer tipo de experiência estética/literária. O motivo dessa seleção foi a intenção de verificar apenas como são tratados os textos que possibilitassem fruição completa por parte dos jovens leitores em formação.

A prosa de ficção, gênero com mais atrativos para captar novos leitores, aparece com 18% dos textos, um total de 551 obras ou trechos de obras. Cabe notar que muitos dos livros didáticos sugerem leituras de romances ou contos extraclasse, mas, considerando que não temos como averiguar em que me medida essas sugestões são acatadas, elas não foram relacionadas nesta pesquisa, mesmo porque há razões para crer que leituras extraclasse são muito pouco demandada. Em pesquisa em escolas no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, encontrou-se em um programa de uma escola a seguinte determinação: "[D]ada à escassez de tempo para o programa extenso, leituras extraclasse não são recomendadas, especialmente romances" (Leahy-Dios, 2004: 46). Já a prosa de não ficção (memórias, sermões e outras se agrupam sob a categoria "crônica") reúne 6% dos textos, pouco mais que as letras de música (4,8%). As peças teatrais vêm em último lugar, com 45 textos. E 12 desses textos são de Gil Vicente, o que é mais um indício do forte caráter historiográfico dos livros didáticos.

Chama a atenção, ainda, a grande quantidade de cartuns. Sob esta classificação, encontram-se todas as formas de arte sequencial, mas a imensa maioria é composta de tiras de jornal. A utilização de histórias em quadrinhos no ensino de literatura não é um consenso -a grande quantidade de textos desse gênero no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por exemplo, já foi alvo de polêmica na grande imprensa. Acredita-se, porém, que se trata de uma linguagem bastante rica, partindo da equação imagem e texto, que se presta à abordagem de aspectos muito interessantes do desenvolvimento de competências de leitura. Todavia, o que se verifica nos livros didáticos é que essa riqueza de linguagem é amplamente ignorada, e que os cartuns são escolhidos em geral por apresentarem textos escritos curtos, usados em sua maioria no ensino de gramática.

Dos 3.113 textos literários, 2.020 vêm acompanhados por exercícios. Mais do que isso, grande parte deles é apresentada com enunciados do tipo "Leia o texto e em seguida responda às questões". Isso quer dizer que, embora se diga que o objetivo da leitura de textos literários, ou das aulas de literatura, seja formar leitores, o que se observa é que a meta é avaliar se os alunos sabem interpretar o texto "corretamente". Na próxima seção, isso será percebido com maior clareza, quando observarmos os tipos de questões que são propostas para esses textos. Por ora, é suficiente notar que os jovens alunos leem 65% dos textos literários nos livros didáticos sob o peso de saber que devem lê-lo da maneira "certa", isto é, da maneira que lhes é imposta pelas autoridades escolares. Dos textos literários restantes, 33% (1.015) aparecem para introduzir ou apresentar conteúdo, ou seja, para exemplificar aquilo que está sendo ensinado, o que também limita o aproveitamento da leitura, uma vez que "contemplar uma obra de arte, com o objetivo de ver como certas regras são cumpridas e os cânones são obedecidos, empobrece a percepção" (Dewey, 2010: 366). Apenas 3% (78 textos) vêm sob seções que agrupei na categoria "antologia", ou seja, em seções destinadas à simples leitura.

Quanto a poemas, representam mais de metade do corpus literário apresentado aos alunos de ensino médio nos manuais didáticos. Existem alguns motivos para tal, e parece que o principal deles é bastante prosaico: sendo textos mais curtos -ou permitindo, com maior facilidade, a extração de trechos- que o outro gênero literário moderno por excelência, ou seja, as modalidades de prosa ficcional (conto e romance), os poemas aparecem em mais quantidade, ocupando menos espaço físico. Isso é importante quando se pensa nos custos de impressão e distribuição, assim como na facilidade de manuseio e transporte por parte dos próprios estudantes. Um segundo motivo é que -seguindo os livros a abordagem cronológica e historiográfica, em sua maior parte partindo do Trovadorismo ibérico, a partir do século XII-, é natural que haja uma proporção maior de textos poéticos, uma vez que a prosa só passou a representar parte importante da produção literária a partir do Romantismo, no século XIX.

Compreendidos os motivos factuais, no entanto, cabe comentar que a leitura poética é uma leitura normalmente "mais complexa", já que sua linguagem é, em geral, aquela que mais se distancia da linguagem habitual, tanto mais quando se fala das obras dos séculos passados. Não se trata aqui de afirmar que a poesia deva ser relegada a segundo plano no ensino de literatura em nível básico, mas há que se admitir que tal gênero é o mais distante do universo do adolescente e a profusão de textos poéticos de séculos passados cria uma sensação de distanciamento entre o jovem e o que se propõe como literatura "legítima". Quanto a isso, lembre-se que os livros de poemas não costumam constar das listas de mais vendidos e entre os 20 livros mais vendidos de 2011, por exemplo, não há nenhuma coletânea de poemas7.

Note-se a tabela a seguir:

É interessante notar na Tabela acima que 59% dos quadrinhos reproduzidos aparecem em capítulos dedicados ao estudo de gramática. Mesmo que consideremos que em tais capítulos sejam abordados outros temas, estes aparecem de forma transversal. No próximo capítulo vamos observar mais atentamente a questão da utilização dos textos literários como plataformas inespecíficas para a identificação de questões que ignoram a complexidade de tal linguagem (seja nos quadrinhos -exemplo mais evidente-, seja em outros gêneros literários).

Nota-se, ainda, que os textos poéticos e de ficção são tratados em sua grande maioria nos capítulos dedicados à historiografia, o que é natural, dada a grande predominância desses capítulos. No entanto, quando vemos que apenas 13% dos poemas estão em capítulos dedicados à Leitura e produção e 3% em capítulos de estilística, vemos que as características específicas da linguagem poética só aparecem quase que apenas atreladas à caracterização de estilos de época, desprezando outros tipos de relação, mais interessantes para a fruição estética desses textos.

Com o quadro apresentado, ainda que de forma geral, nota-se que são muitos os desafios que se impõem ao exercício do ensino de literatura e à tarefa de formar leitores em salas de aula do ensino médio. De um lado, a homogeneização de expectativas sobre o estudante que está na própria natureza do livro didático. De outro, a necessidade de alguma espécie de nivelamento da qualidade das aulas, já que a formação de professores é bastante desigual. Apesar dos múltiplos programas de formação continuada oferecidos pelo Ministério da Educação, o que acontece em sala de aula, na interação entre diferentes sujeitos -professores e alunos-, com trajetórias diversas, em regiões geográficas distintas etc, será sempre, por sua própria essência, um ambiente e um evento pouco controláveis por diretrizes, parâmetros curriculares e projetos governamentais. É nesse sentido que pesquisas sobre livros didáticos se inserem como possibilidade de prever, de forma representativa, o que se vem realizando no ensino de literatura no Brasil.

Nesse contexto, se admite que o livro didático é uma maneira de garantir ao menos uma baliza minimamente segura para amparar nossos professores e se, ao mesmo tempo, intui-se ser improvável que um manual seja capaz de transmitir o gosto pela leitura. Depara-se com um impasse no que diz respeito à formação de leitores, que se apresenta aqui como questão central. Foi, no entanto, com a ideia de que os manuais podem e devem ser repensados, para que, ao menos, não se coloquem como obstáculos à leitura literária, que se reforçam os dados apresentados.

Quanto às questões mercadológicas que influenciam a concepção dos manuais é de importância capital lembrar que eles representavam, em 2010, 43% da produção editorial brasileira, gerando um faturamento naquele ano de mais de R$ 2 bilhões, considerados tanto os livros vendidos para o governo quanto aqueles vendidos para o mercado em geral. Esse valor representa 47% do faturamento da total das editoras brasileiras em 2010 (CBL; SNEL, 2011). É essencial mencionar esse aspecto porque ele pode explicar em parte o conservadorismo destacado anteriormente, na medida em que, para o consumidor médio, muitas vezes a confiabilidade se confunde com a tradicionalidade de um livro didático.

Embora as seções de interpretação (etc.) de textos literários carreguem em seus títulos palavras como "releitura" ou "interação" -que trazem implícita a participação do leitor como sujeito de um diálogo-, as questões são em sua maior parte resolvíveis dentro do próprio texto (questões de inferência, questões objetivas) ou demandantes de conhecimentos linguísticos ou pior, historiográficos. Ou seja, opta-se por questões que sejam, em maior ou menor grau, passíveis de correção, isto é, cujas respostas possam ser classificadas como certas ou erradas. Esse tipo de questão ainda parece ser necessário no formato de escola atual, para que os alunos sejam avaliados e aprovados (ou não). Isso principalmente quando se consideram os livros didáticos como ferramentas de nivelamento que são: instrumentos de apoio do professor em sala de aula, tanto mais "úteis" quando já oferecem mastigada, a organização didática, o que inclui as respostas que o professor deve aceitar dos alunos -e, por exclusão, aquelas que são "erradas".

A tensão entre nivelamento de qualidade e homogeneização de expectativas é preocupante em todas as disciplinas do currículo escolar, e a situação se torna mais premente nas aulas de língua portuguesa, quando a bagagem que o estudante traz é fundamental para o que ele irá perceber do conteúdo que lhe será apresentado, dentro do qual se encontra a literatura e, nela, a experiência de leitura. Nesse sentido, é preciso ao menos decidir, objetivamente, o que se quer obter na escola. Desejamse estudantes que dominem as características de escolas literárias, saibam listar as figuras de linguagem e decorem as interpretações canônicas de textos fundadores da nossa literatura? Ou se anseia por uma escola em que os jovens aprendam, pela leitura, como se articulam os elementos que compõem um texto; uma abordagem em que percebam de que maneira tanto sua forma quanto o contexto em que uma obra foi escrita ajudam a chegar a uma leitura mais rica? Optar por um currículo pautado pelo primeiro método e esperar alunos apaixonados por literatura não é viável.

Em outras palavras, o ideal seria um sistema de ensino em que, munido de recursos para tal, o aluno pudesse se sentir mais livre para se apropriar da literatura como melhor lhe conviesse, sem preconceitos ou carências. Isso significa que a escola tem o papel de oferecer o instrumental concreto para que o estudante saiba tanto decodificar quanto efetivamente compreender um texto literário. Também quer dizer, no entanto, que é necessária uma postura crítica sobre o que se define como "literatura", ou seja, que se deve deixar clara a noção de que não há obras essencialmente boas, que devem ser amadas por todos, nem essencialmente ruins, que devam ser jogadas imediatamente no lixo.

É preciso, enfim, conduzir os estudantes na difícil trajetória rumo tanto à cultura literária, como a vemos hoje, quanto ao prazer da leitura de obras mais complexas e, portanto, transformadoras. Mas é necessário também reconhecer os limites e aceitar a subjetividade que envolve a leitura como experiência, não como conhecimento. Isso inclui aceitar que nem todo mundo, mesmo de posse de todas as ferramentas necessárias, irá desenvolver o prazer pela leitura.

Não se trata de aproximar o aluno da leitura por meio da negação do cânone ou da afirmação de que todo livro produz o mesmo efeito e sim, de que é "permitido" acessar o universo "elevado". Isso não significa ignorar as leituras realizadas fora do ambiente escolar, e sim usá-las como degraus de aproximação entre esses mundos não necessariamente tão distantes assim. Ou seja, as escolhas de livros pelos jovens feitas fora da escola possibilitam, no mínimo, o desenvolvimento do gosto pela leitura como prazer/lazer, em oposição à leitura obrigatória imposta pela escola para a realização de provas ou exercícios. (Tinoco, 2010).

O processo de gostar de ler tem seu início na prática de leitura, no caso concreto, no prazer de ler, e não no aprender a ler -esse é um passo anterior (Zilberman, 2010). No caso do Ensino Médio brasileiro, nível em que se espera que o aluno já domine as ferramentas elementares de decodificação e compreensão textual, isso é algo a que se deve atentar na aproximação entre aluno/leitor potencial e literatura.

O professor é figura insubstituível quando se fala em formação de leitores na escola, mas, em última instância -isto é, no momento ideal da leitura em si- a mediação mais bem realizada será sempre a "saída final de cena", para que o texto literário ocupe a posição que se deve e se pretende conferir a ele: a de elementoproduto -vivo atuante, ativo, plural, em constante movimento- na essencial relação dialógica com o leitor.

 

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Notes
* Este artigo é um dos resultados do grupo de pesquisas "Literatura e ensino" e também deriva da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação Literatura e Práticas Sociais do Departamento de Teoria Literária e Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de Brasília - UnB (2012).
1 A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil foi executada pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) com 5.012 pessoas, em 311 municípios, representando 92% da população. A partir de 15 anos, a média cai para 3,7 livros por leitor/ano. Pesquisa semelhante feita no Chile, em 2006, apontou média de 5,2 livros, considerando leitores de 18 anos ou mais.
2 Disponível em: http://anl.org.br/web/pdf/pesquisa_setor_livreiro/relatorio_FIPE_2011.pdf.
3 A partir de 2012, o programa passou a ser uma parte do Programa Nacional do Livro Didático, que até então se resumia à distribuição de livros para o Ensino Fundamental.
4 Usa-se a palavra "pura" no sentido hipotético de "não contaminada" por nenhum tipo de mediação, ou por pré-julgamentos que afetassem o arbítrio do leitor concreto. Não se faz relação com a leitura pura "que as obras mais avançadas da vanguarda exigem imperativamente e que os críticos e outros leitores profissionais tendem a aplicar a toda obra legítima", que, aliás, nada tem de pura, na medida em que "é uma instituição social, que é o resultado de toda a história do campo de produção cultural, história da produção do escritor puro e do consumidor puro que esse campo contribui para produzir produzindo para ele." (Bourdieu, 1996: 336).
5 Referência a Oswald Ducrot e Tzevetan Todorov, Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Ed. du Seuil, Col. « Points Essais », 1972, p.107.
6 Isso não significa que os capítulos tratam unicamente de tópicos dessas áreas e, sim, que se constroem em torno dessa área, com títulos que se referem a ela, etc. O mesmo vale para a própria classificação dos capítulos, em temas.
7 In: http://www.publishnews.com.br/telas/mais-vendidos/ranking-anual.aspx, acessado em 20 de janeiro de 2012.

 

Bibliografia citada

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