Introdução
Hodiernamente, uma das temáticas mais controversas e que tem despertado o interesse de inúmeros estudiosos é aquela relativa à eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídicas entre particulares, em especial, quando o objetivo é definir a extensão da eficácia dos direitos fundamentais nessas relações jurídicas. A questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares assume especial relevo, haja vista que seu estudo demandará, necessariamente, a análise das relações existentes entre as normas jurídicas constitucionais e as normas jurídicas de direito privado, bem como o conflito entre direitos fundamentais no âmbito de relações jurídicas privadas.
O artigo tem o desiderato de proceder ao estudo da eficácia do princípio da igualdade no âmbito das relações jurídicas entre particulares, com o intuito de contribuir para o desenvolvimento dos debates existentes e aperfeiçoamento das construções teóricas que foram desenvolvidas ao longo das últimas décadas, na tentativa de formular proposições adequadas, capazes de conciliar a promoção do princípio da igualdade e sua correlata proibição de práticas discriminatórias, com a necessidade em se conferir segurança jurídica a estas relações jurídicas, mediante a proteção da autonomia privada e da liberdade contratual, corolários do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
O cerne do problema a ser investigado está em definir a extensão da eficácia do princípio da igualdade no âmbito das relações jurídicas privadas contratuais, analisando em que medida os particulares, no âmbito de suas relações jurídicas privadas contratuais estão vinculados ao direito fundamental à igualdade. Podem os particulares, no exercício de sua autonomia privada e liberdade contratual livremente elegerem o outro sujeito contratual e definir o conteúdo do contrato, inclusive para conferir tratamentos diferenciados ou estariam os particulares vinculados ao direito fundamental à igualdade, estando proibida toda e qualquer forma de discriminação no âmbito de suas relações jurídicas privadas? Existe uma margem de liberdade que assegura aos particulares, no exercício de sua autonomia privada, a possibilidade de promoverem tratamentos diferenciados? Podem os particulares se recusarem a celebrar negócios jurídicos com outros particulares em razão de critérios como raça, sexo, idade, orientação religiosa, orientação sexual, ou qualquer outro critério diferenciador?
A questão apresenta-se controversa e polêmica, uma vez que o reconhecimento da eficácia absoluta do princípio da igualdade no âmbito das relações jurídicas privadas, com o desiderato de coibir todo e qualquer tratamento diferenciado, poderia, para além de ocasionar demasiada restrição de sua autonomia privada, privá-los do direito de exercerem sua liberdade ou outros direitos fundamentais. Sustentar de forma acrítica a eficácia absoluta do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares poderia acarretar sérios prejuízos às relações jurídicas contratuais e ao direito de livre desenvolvimento da personalidade.
O trabalho tem como objetivo o estudo da relação existente entre liberdade e igualdade nas relações jurídicas entre particulares, identificando os limites que o princípio da igualdade impõe ao exercício da autonomia privada e da liberdade contratual, bem como a análise das situações em que o princípio de igualdade não possui eficácia ou possui uma eficácia muito restrita nas relações jurídicas entre particulares. Poderia o particular, se recusar a contratar ou estabelecer tratamento diferenciado motivado pelo sexo, raça, origem, religião, ou qualquer outro fator diferenciador do outro sujeito contratual? Poderia o locatário promover inadimplente? Poderia uma associação restringir a condição de associado à pessoa de determinada religião, sexo, raça, origem ou outro critério diferenciador?
Podem os pais conferirem tratamentos diferenciados aos seus filhos no âmbito das relações familiares ou sucessórias, privilegiando um filho em detrimento do outro, por exemplo, ao doar ou testar os bens? Podem os estabelecimentos empresariais que ofertam bens ou serviços ao público estabelecerem condições contratuais diferenciadas em razão da raça, sexo, idade, orientação religiosa, orientação sexual ou qualquer outro fator diferenciador? Podem os estabelecimentos abertos ao público estabelecerem condições diferenciadas de admissão ou recusá-la a determinadas pessoas em razão em razão da raça, sexo, idade, orientação religiosa, orientação sexual ou qualquer outro fator diferenciador? Essas são apenas algumas das conflituosas situações que se apresentam quando se trata de definir em que medida os particulares se encontram vinculados ao princípio da igualdade em suas relações jurídicas privadas.
I. Eficácia do princípio da igualdade nas relações privadas
Ao se analisar a eficácia do princípio da igualdade e da proibição de discriminação no âmbito das relações jurídicas entre particulares, indispensável distinguir duas distintas espécies de relações jurídicas, quais sejam, as relações jurídicas estritamente privadas, conformadas entre particulares em situação de relativa igualdade, nas quais a pessoa do contratante é relevante; e as relações jurídicas em que há a oferta e o fornecimento de bens e serviços ao público em geral, caracterizadas como relações de natureza consumerista, nas quais a pessoa do contratante é irrelevante ou pouco relevante, se aperfeiçoando com qualquer indivíduo que aceite as condições propostas pelo ofertante.1 Estes contratos caracterizam-se como contratos de adesão ou contratos em massa, os quais podem ter como objeto bens ou serviços privados ou públicos, sendo que, neste caso, os particulares prestam serviços ou ofertam bens sob a forma de concessão ou permissão pelo poder público.
A distinção entre relações estritamente privadas e relações jurídicas em que há um interesse público tem sua origem do "direito antidiscriminatório" norte-americano, no qual há uma nítida separação entre a atuação privada para a promoção do acesso a bens e serviços de interesse público ou socialmente relevantes e a atuação privada voltada para a promoção de atividades propriamente privadas, desprovidas de qualquer interesse público.2 A distinção se apresenta relevante uma vez que, a depender da natureza jurídica da relação jurídica entre particulares, o grau de eficácia do princípio da igualdade e a correlata proibição de discriminação será completamente distinto.3
II. Eicácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas estritamente privadas
Nas relações jurídicas estritamente privadas, celebradas entre particulares em situação de relativa igualdade, o princípio da igualdade terá reduzida ou nenhuma eficácia. É o que acontece, por exemplo, nas relações jurídicas de locação de bens imóveis, nas relações jurídicas em que a proteção da privacidade, intimidade ou vida privada do contratante é indispensável, nas relações jurídicas decorrentes do exercício da liberdade associativa, nas relações jurídicas em que a confiança ou proximidade constituem traços característicos, nas relações jurídicas familiares e sucessórias, nas relações em que o exercício da autonomia privada está diretamente relacionado às convicções religiosas do contratante, bem como nas relações em que a vontade de contratar se dirige a pessoas determinadas.
Nestas relações jurídicas há que se assegurar ao contratante alguma margem de discricionariedade para exercer ou não sua liberdade de contratação, eleger o outro sujeito contratual, definir a forma e o conteúdo do contrato, de modo a tutelar sua autonomia privada e garantir-lhe a possibilidade de livremente desenvolver sua personalidade de acordo com seus interesses e necessidades. O princípio da igualdade e sua correlata proibição de discriminação teriam o condão de limitar a autonomia privada e a liberdade de contratação ao ponto de impor o dever de contratar aos particulares, ao proibir que o contratante eleja o outro sujeito contratual baseando-se em suas características pessoais, tais como idade, sexo, orientação sexual, raça, ou qualquer outra similar? A proibição de discriminação tornaria ilícito qualquer tratamento diferenciado realizado no âmbito de uma relação jurídica contratual? Caso permitido o tratamento diferenciado, estará o particular obrigado a justificá-lo? Conforme destaca Bercovitz Rodríguez-Cano:
A eficácia do princípio da igualdade dentro do âmbito jurídico privado é muito menor que frente aos poderes públicos. É inerente ao próprio conceito de autonomia privada o predomínio da vontade individual sobre a igualdade: se contrata com quem se quer e como se quer, se dispõe em testamento a favor de quem se quer e como se quer, se doa a quem se quer e como se quer, se associa se com quem quer e para o que quiser, se constitui uma fundação para o que um quer com a dotação que se quiser, se exercem direitos face a quem se quiser, naturalmente todos eles dentro dos limites marcados pelas normas imperativas (Bercovitz Rodríguez-Cano, 1990, 424, tradução nossa).4
As relações jurídicas estritamente privadas constituem espaço de liberdade, intimidade e de certa discricionariedade para que as pessoas possam livremente desenvolver suas relações humanas, sejam afetivas, sexuais, familiares ou de fraternidade, espaços em que há uma maior liberdade para que os particulares possam adotar decisões de forma autônoma, de modo que, impor-lhes a obrigatoriedade de sempre observar o princípio da igualdade e uma rígida proibição de discriminação, afetaria severa e profundamente a liberdade de decisão e de desenvolvimento dessas relações humanas. Seria inadequado estender a eficácia do princípio da igualdade a essas relações humanas, de modo a proibir que alguém livremente escolha seu cônjuge, as pessoas com deseja se relacionar de forma intimista, devendo se assegurar, a mais absoluta liberdade para eleger com quem contratar, por mais curiosos, diferentes ou moralmente repudiantes que sejam os motivos adotados para a eleição, seja raça, aparência, estrato social, orientação sexual, dentre outros. Destaca Díaz de Valdés:
O respeito e proteção à vida privada assegura, entre outras coisas, um espaço de intimidade às pessoas para que possam desenvolver as relações humanas mais fundamentais (efetivas, românticas, sexuais, familiares e de amizade), assim como adotar com a maior liberdade possível suas decisões autônomas. Uma proibição de discriminação entre particulares, sem embargo, afetaria severamente essa liberdade de decisão, assim como o desenvolvimento das relações humanas mencionadas. E mais, uma proibição absoluta resulta impensável, já que destruiria por completo o direito em questão. Basta para imaginar que não se pudesse discriminar na eleição do cônjuge: toda pessoa requer a mais absoluta liberdade nesta matéria, por mais curiosos ou repudiáveis que nos pareçam seus motivos para eleger (raça, aparência, estrato social, riqueza, etc.) (Díaz De Valdés, 2014, 161, tradução nossa).5
Sob essa perspectiva é plenamente lícito que uma pessoa não queira se casar com pessoas de determinada religião, raça ou origem étnica, que não queria manter laços de proximidade ou amizade com pessoas de determinada orientação sexual, que manifeste seu desejo de apenas de se relacionar com pessoas de determinado estrato social, desde que não lhes confira tratamentos vexatórios, degradantes ou humilhantes. Os referidos comportamentos podem até ser moralmente ou socialmente questionados e refutados, todavia não configuram discriminações ilícitas ao ponto do destinatário do tratamento diferenciado poder exigir que lhes sejam conferidos tratamentos iguais aos dispensados a outros indivíduos.6 O que não se admite é que as escolhas pessoais e projetos de vida sejam exercidos em detrimento da dignidade dos demais indivíduos, afetando a humanidade que é inerente a todo indivíduo, tão somente em razão de suas características pessoais, diminuindo-o enquanto pessoa.
Exigir que particulares, no exercício da autonomia privada e liberdade de contratação, dispensem aos demais idêntico tratamento ou que justifiquem os tratamentos diferenciados realizados configuraria uma restrição demasiada e indevida, representaria, segundo a visão de Neuner, impor-lhes um dever positivo de sempre conferir tratamento igualitário aos demais sujeitos privados.7 Sob a perspectiva da tutela do direito de livremente desenvolver sua personalidade, deve ser assegurado aos indivíduos a possibilidade de construir seus projetos de vida de acordo com seus sentimentos, inclinações pessoais, concepções de mundo.8 Poderia o particular, se recusar a contratar ou estabelecer condições contratuais diversas em razão do sexo, raça, origem, religião, ou qualquer outro fator diferenciador do outro sujeito contratual, ou estaria, em nome do princípio da igualdade e proibição de discriminação obrigado a contratar em todas essas situações?9 Conforme destaca Steinmetz:
O espaço de liberdade do particular é maior do que o do legislador. Ao particular está permitido o tratamento com base em escolhas casuais, preferências de foro íntimo, sentimentos de simpatia e inclinações em geral; ao legislador, não. Este sempre deverá deferir tratamento igual ou tratamento diferenciado apoiado em razões objetiva e intersubjetivamente controláveis (Steinmetz, 2004, 258).
A análise da licitude da recusa em se contratar ou do tratamento diferenciado nas relações jurídicas entre particulares, em inúmeros casos, não se limitará à eficácia do princípio da igualdade face à autonomia privada e à liberdade de contratação. Em diversas situações jurídicas concretas, esse conflito entre direitos fundamentais será incrementado pela incidência de outros direitos fundamentais, muitos deles desdobramentos da autonomia privada, tal como ocorre quando a recusa em se contratar em razão do sexo esteja relacionada à necessidade de proteção da intimidade ou privacidade do contratante ou de terceiros, como por exemplo, a restrição de acesso a saunas, clubes, academias ou mesmo salões de beleza destinados a um público específico, bem como nos casos em que a recusa em se contratar decorra da necessidade de se tutelar a liberdade de crença e religião dos demais contratantes, como por exemplo, quando se estiver diante de uma associação de natureza religiosa.
A questão da eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares nem sempre se resumirá ao conflito entre autonomia privada, liberdade de contratação e igualdade.10 Destaca Díaz de Valdés que, "a proibição de discriminação entre particulares pode violar outros bens valorados e protegidos pelo ordenamento jurídico constitucional" uma vez que a admissão da eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares, "implicaria em aceitar uma dose importante de intervenção estatal na vida das pessoas ou grupos, questão que pode afetar a vida privada, a liberdade de associação, a liberdade religiosa, a liberdade de expressão."11 Não é por outro motivo que estudiosos da eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas privadas destacam a sua inaplicabilidade às relações estritamente privadas, especialmente quando o tratamento diferenciado também esteja assentado no exercício de outros direitos fundamentais assegurados pelo ordenamento jurídico. Conforme destaca Montoya Melgar:
... há que entender que no âmbito da contratação estritamente privadas as partes são absolutamente livres para decidir com quem contratar ou não, ou para estabelecer quantas medidas restritivas ou discriminatórias estime oportunas. A liberdade contratual se reduz dando espaço ao cumprimento do dever de igualdade nos contratos com projeção social (geralmente contratos com consumidores), quando existe um elemento público (utilização de espaço público ou recursos públicos) ou nos casos de monopólio (ou posição de domínio) (Montoya Melgar, 2007, 464, tradução nossa).12
Não seria exigível que um particular deixe de exercer sua liberdade de crença e religião, sua privacidade ou intimidade para privilegiar o princípio da igualdade em uma relação jurídica estritamente privada, comprometendo seu direito de livremente desenvolver sua personalidade. Ademais, a eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares possui restrições que lhes são impostas pela estrutura e principiologia inerentes ao direito privado, em especial, pela necessidade de se tutelar a autonomia privada e a liberdade de contratação. Montoya Melgar salienta a importância de não se sacrificar em demasia a autonomia privada e liberdade de contratação:
... não pode sacrificar a todo custo o princípio da liberdade contratual, que compreende a liberdade de contratar ou não, de eleger o contratante e de determinar o conteúdo do contrato. A aplicabilidade do princípio da igualdade deve ser matizada, atenuada pela lógica interna do direito privado. Há que entender-se portanto que em virtude do princípio da autonomia da vontade as partes implicadas são livres para gerir seus próprios interesses e regular suas relações, sem imposições externas, salvo nos seguintes casos: quando exista uma posição mo-nopolística ou dominante de uma entidade; nos casos de contratação em massa ou contratos de repercussão social e, nos casos em que se possa produzir uma afetação ao núcleo essencial da dignidade ou integridade moral da pessoa discriminada. Ademais, como resta obvio, o princípio da igualdade se impõe sempre que exista um componente público: prestação de serviços de interesse público. (Montoya Melgar, 2007, 474-475, tradução nossa).13
Díaz de Valdés também destaca que os particulares que forneçam bens e prestem serviços de natureza pública, na condição de concessionários ou permissionários, estão vinculados ao princípio da igualdade. Nestas hipóteses, a proibição de discriminação decorre do fato do particular fornecer bens ou prestar os serviços em substituição ao poder público, sendo notória a utilidade pública do bem ou serviço disponibilizado, razão pela qual são vedados os tratamentos diferenciados. De igual modo, aqueles que detenham o monopólio na oferta de bens ou prestação de serviços não poderão conferir tratamentos diferenciados nem recusarse a contratar, uma vez que sua recusa importará em obstáculo a que o indivíduo tenha acesso a determinado bem ou serviço, principalmente se se tratar de bem ou serviço essencial à pessoa.
Não se olvide também das intrínsecas e umbilicais relações existentes entre o princípio da igualdade, proibição de discriminação e dignidade da pessoa humana, de modo que a análise da licitude do tratamento diferenciado deverá identificar se ele proporciona tratamento vexatório, humilhante ou degradante, ao ponto de configurar lesão à dignidade daquele a quem foi dispensado. Nesse sentido é que a recusa em se admitir o ingresso de pessoas em locais abertos ao público tende a ser inadmitida, uma vez que, em regra, expõe aquele que não foi admitido a tratamento público vexatório. Alfaro Águila-Real destaca que quando há oferta realizada ao público, o ofertante acaba por renunciar ao direito de selecionar os contratantes sob bases individuais, de modo que a recusa, nessas circunstâncias, evidência uma discriminação ou desprezo pela pessoa inadmitida:
O caso mais patente é o de acesso a locais públicos, por quanto a abertura de um estabelecimento ao público implica em uma renúncia expressa a selecionar a clientela sob bases individuais, ainda quando caiba afirmar que haja a obrigação de contratar pelo mero fato da abertura. O que torna vexatória a negativa é que todo mundo sabe que em princípio se aceita contratar com qualquer um, razão pela qual a negativa não justificada só pode ser interpretada como um ato de desprezo e desvalorização, justamente a finalidade perseguida pelo discriminador (Alfaro Águila-Real, 1993, 119).
Díaz de Valdés, ao dissertar sobre a eficácia do princípio da igualdade e do postulado da proibição de discriminação nas relações jurídicas entre particulares, estabelece alguns tratamentos diferenciados que tendem a ser proibidos. De acordo com o autor, devem ser proibidos os tratamentos diferenciados que afetem de forma relevante a dignidade da pessoa ou que causem sua estigmatização ou da categoria a que ela pertença. Tendem também a ser ilícitos os tratamentos diferenciados que estejam baseados em características imodificáveis, historicamente utilizadas para reduzir a condição das pessoas, tais como a raça e a origem étnica. Nestes casos, somente em hipóteses excepcionais, desde que haja justificativa racional e legítima, o critério poderia ser adotado. O autor também sustenta a necessidade de se analisar os motivos ou causas que justificam o tratamento diferenciado. Nessa perspectiva, devem ser rechaçados os tratamentos diferenciados alicerçados em estereótipos ou convenções sociais, construídos irracionalmente em prejuízo de determinada categoria de pessoas, que dão azo a discriminações caprichosas ou não racionalmente justificáveis.14
Por outro lado, será considerado lícito o tratamento diferenciado quando este for indispensável para proteger o núcleo, a essência de outro direito ou bem constitucional, tais como a liberdade de associação, liberdade de crença e religião, intimidade, privacidade e a própria liberdade de contratação, enquanto importantes expressões da autonomia privada.15 Nestes casos a licitude do tratamento diferenciado decorre da essencialidade desses direitos fundamentais interrelacionados, o que torna mais intensa a necessidade de se proteger a autonomia privada face ao princípio da igualdade e da proibição de discriminação, até mesmo como forma de se assegurar ao particular que possa livremente fazer escolhas, tomar decisões e desenvolver aspectos existências de seu projeto de vida. Nos casos em que a autonomia privada estiver alicerçada apenas ou preponderantemente em aspectos de natureza patrimonial ou econômica, a proteção da autonomia privada se dará de forma menos intensa face ao princípio da igualdade e sua correspondente proibição de discriminação.
Sarmento destaca a necessidade de que seja considerado o caráter existencial ou patrimonial das escolhas individuais, sem se olvidar que o comportamento humano pode envolver simultaneamente aspectos patrimoniais e existenciais, ao assim prelecionar:
De fato, existem certas ações humanas que envolvem apenas escolhas de caráter existencial, e neste campo a liberdade de agir deve ser protegida mais intensamente pela ordem jurídica. Outros comportamentos referem-se exclusivamente a questões patrimoniais e econômicas, e nestes casos a tutela constitucional à autonomia privada não deve se fazer tão forte. Mas, entre extremos, há um continuum de situações em que o comportamento humano envolve, simultaneamente, aspectos patrimoniais e existenciais, em maior ou menor grau. Nestes casos, o nível de proteção constitucional conferido à ação do agente vai depender da posição dentro daquela escala: quanto mais o comportamento se aproximar da esfera das opções e valorações exclusivamente existenciais, maior será o nível de defesa constitucional da autonomia privada; quanto mais ele se afastar deste campo e se aproximar do universo exclusivamente econômico-patrimonial, menor será a tutela (Sarmento, 2006, 180).
Não se deve admitir tratamentos diferenciados caprichosos, desprovidos de qualquer justificativa, que tenham por objetivo tão somente discriminar a pessoa, de modo a reduzi-la, colocá-la em situação vexatória, degradante ou humilhante. Isso não significa que o particular tenha que justificar todas suas escolhas ou comportamentos, porque a liberdade do agir humano também é tutelada pelo ordenamento jurídico. Não devem ser toleradas escolhas ou comportamentos dissociados do exercício legítimo de direitos fundamentais. Tendem a ser igualmente considerados lícitos os tratamentos diferenciados, desde que não baseados na raça ou origem étnica, praticados de forma ocasional e esporádica desde que não possuam repercussão ou transcendência social.16
A eficácia do princípio da igualdade e da correlata proibição de discriminação face à autonomia privada dependerá, portanto, das especificidades da relação jurídica privada, dos direitos fundamentais em conflito, dos bens constitucionais cujo tratamento diferenciado se restringiu, se existenciais ou patrimoniais, das circunstâncias, do grau de simetria entre as partes, da autenticidade da vontade externada pelos contratantes, da transcendência ou repercussão social da diferenciação, e da análise da possível afetação da dignidade da pessoa discriminada.
Esses representam alguns dos principais critérios sugeridos para se definir o grau de eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares, os quais deverão ser considerados quando da análise do caso concreto para definir se haverá a necessidade de uma maior ou menor eficácia do princípio da igualdade face à autonomia privada e liberdade contratual. Os critérios tem o objetivo de balizar e estabelecer diretrizes interpretativas de modo a reduzir o subjetivismo das decisões jurisdicionais, evitando o esvaziamento do conteúdo da autonomia privada decorrente do intervencionismo jurisdicional nas relações jurídicas contratuais entre particulares.
Além dos critérios sugeridos, cumpre salientar que em determinadas relações jurídicas privadas, em razão de suas especificidades, a eficácia do princípio da igualdade será reduzida, como ocorre, por exemplo, nas relações de natureza associativa, familiares, sucessórias, bem com naquelas em que predominam aspectos relacionados à intimidade, a privacidade, confiança, crença religiosa. Nessas relações jurídicas, além da necessidade em se tutelar a autonomia privada e liberdade contratual, há a necessidade de se proteger o núcleo de outros direitos fundamentais que entram diretamente em conflito com o princípio da igualdade, tais como o direito a intimidade, privacidade, liberdade de crença e religião, razão pela qual serão objeto de estudo específico no próximo tópico.
A. Igualdade e liberdade associativa
Sob a perspectiva da liberdade associativa a análise da eficácia do princípio da igualdade e da proibição de discriminação assume outros contornos e explicitações. As associações privadas além de não configurarem estabelecimentos abertos ao público, não estão obrigadas, a princípio, a admitirem associados com base no princípio da igualdade, pois constituem espaços privados que permitem aos seus associados desenvolverem seus interesses pessoais. As associações privadas são livres para elegerem aqueles com quem pretendam contratar e se associar, inclusive adotando como critério de eleição o sexo, a raça, a etnia, as crenças, as concepções religiosas, a comunhão ou identidade de interesses, sem que tais exigências possam ser consideradas ilícitas, uma vez que não representam qualquer afronta à dignidade daqueles que não foram aceitos como associados.
Nestas situações, além de se discutir o conflito entre a autonomia privada e o princípio da igualdade, se está diante de situações jurídicas em que se faz necessário discutir a eficácia do direito de liberdade de associação, por sinal, direito fundamental relacionado à autonomia privada. Assim, por exemplo, com base na liberdade de associação, é possível a existência de associações em que só mulheres, homens, brancos ou negros, possam se associar, das quais somente cristãos ou judeus possam participar, nas quais se exija que a pessoa possua os mesmos interesses dos demais associados?17
O direto de liberdade de associação, cujo fundamento decorre da tutela da autonomia privada, assegura aos indivíduos o direito de criar associações, associar-se ou não, permanecer associado segundo sua vontade, bem como de livremente eleger as pessoas com que deseja se associar. A decisão de pertencer ou não a determinada associação pode ser motivada pelos mais diversos fundamentos de índole pessoal, tais como identidade de ideologia ou de objetivos, comunhão de pensamentos entre os associados, de modo que, sustentar a eficácia do princípio da igualdade no âmbito das relações jurídicas associativas, proibindo-se qualquer espécie de discriminação, representaria séria e profunda violação ao direito de liberdade de associação, inclusive ao exigir que pessoas que não possuam identidade de ideologia ou de objetivos sejam compelidas a permanecerem associadas contra sua vontade.
Partindo do pressuposto de que a liberdade de associação assegura aos indivíduos a liberdade de eleger as finalidades a serem perseguidas pela associação, também se afigura natural e permitido que se estabeleçam condições de associação compatíveis com elas, de modo que seria lícito a uma associação composta por mulheres impedir a associação de homens, uma associação que tenha a finalidade de honrar a memória do holocausto se recuse a admitir aqueles que neguem sua existência, uma associação de apreciadores de vinhos ou charutos se recuse a admitir pessoas que não apreciem ou façam uso de tais mercadorias.18 Díaz de Valdés, ao analisar a eficácia do princípio da igualdade e da proibição de discriminação no âmbito das relações jurídicas de natureza associativa, alerta:
Em relação ao direito de associação, cabe recordar que este permite não somente filiar-se ou desfiliar-se, mas também a livre eleição com quem filiar-se. Com efeito, a decisão de pertencer a um grupo está muitas vezes condicionada, nos fatos, nas pessoas concretas que o integram (seja porque se busque uma maior camaradagem, um ambiente desafiante, uma companhia estimulante, capacidade sobressalente, etc.). Em consequência, proibir discriminar no acesso às associações pode traduzir-se em uma grave vulneração ao direito em comento, obrigando a manterem-se juntas pessoas que não desejam. Outra perspectiva a considerar é que a liberdade de associação supõe a livre eleição de seus fins por parte de seus membros (ou como determine os estatutos), questão que pode implicar em imposição de condicionantes para o ingresso (Díaz de Valdés, 2014, 162, tradução nossa).19
O exercício do direito de admissão de pretensos associados estará vinculado à observância dos fins associativos e a vontade dos associados, de modo que se apresenta inadmissível impor-lhes um dever de admitir pessoas que possam comprometer a vontade dos membros associados ou a realização dos fins associativos por eles objetivados e perseguidos.20 Em outras situações, a tutela da liberdade de associação estará diretamente relacionada à garantia da liberdade de expressão.
No direito norte-americano, a Suprema Corte, tem se manifestado pela não incidência do princípio da igualdade e sua correlata proibição de discriminação nos casos em que se está diante do que denominam "expressive association", associações criadas com a finalidade de defender determinadas posições ideológicas, políticas ou sociais, ou nos casos das "intimate association", caracterizadas pelos profundos vínculos e compromissos de proximidade, privacidade, intimidade entre reduzido número de associados, que se associam com o intuito de compartilharem questões atinentes à sua vida privada. No direito norte-americano tem se considerado que o estabelecimento de critérios de admissão no âmbito das associações privadas pode constituir importante forma de assegurar o exercício da liberdade de expressão pela associação e pelos seus integrantes.21
De igual modo, devem ser mencionadas as associações de finalidades religiosas, cuja associação está relacionada a aspectos atinentes ao exercício da liberdade de crença e religião, a qual, também é objeto de proteção constitucional. Nessa hipótese, o estabelecimento de uma obrigatoriedade em se admitir pessoa que não professe a mesma crença religiosa ou professe crença religiosa incompatível com aquela que motiva a existência da associação, representaria a negação ao direito de liberdade de associação e de crença e religião dos demais associados, razão pela qual não se sustenta.22 Como impor a uma associação de adventistas que admitam evangélicos, umbandistas, ou pessoas de outras crenças religiosas, sem que haja a frustração da liberdade associativa ou religiosa?
No âmbito da liberdade associativa, a autonomia para estabelecer as condições e requisitos de associação somente deverá ser limitada quando a qualidade de associado for condição direta e inarredável para o acesso aos bens ou serviços essenciais.23 Esse seria o caso das associações profissionais cuja condição de associado seja indispensável para o exercício de outros direitos, inclusive para o próprio exercício da liberdade de profissão, o que não impede que estas associações possam estabelecer em seus estatutos sociais e normativas exigências e deveres a serem observados por aqueles que desejam manter a condição de associado, as quais, uma vez descumpridas, poderão justificar a exclusão daquele associado, desde que observado o procedimento estatutário, assegurada a ampla defesa e o contraditório.24
B. Igualdade nas relações familiares e sucessórias
As relações familiares são caracterizadas, notoriamente, por serem permeadas por aspectos relacionados à intimidade, confiança e afetividade entre os indivíduos, de modo que a exigência de tratamento igualitário comprometeria a própria naturalidade ou espontaneidade das condutas humanas. Muitas são as situações que podem aventar discussões acerca da eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas familiares, todavia, no presente trabalho, a questão-será analisada a partir de duas distintas e relevantes perspectivas: a igualdade entre cônjuges ou companheiros e a igualdade entre pais e filhos.
O texto constitucional é expresso ao estabelecer a igualdade de homens e mulheres em direitos e deveres, bem como a igualdade no tratamento dos filhos, pouco importando sua origem, se havidos ou não na constância do casamento, de relações extraconjugais ou mediante processo de adoção. A igualdade entre homens e mulheres está relacionada à distribuição equânime dos deveres oriundos da união familiar, distribuição que deverá observar as diferenças naturais existentes entre homens e mulheres, sob pena de, ao se conferir um tratamento rigidamente igualitário, desrespeitar a distinção exigida pelo princípio da igualdade e se desrespeitar as diferenças existentes entre os sexos.
Não se pode olvidar que os papeis e funções exercidas por homens e mulheres nas relações familiares passaram por profundas transformações nas últimas décadas, com a elevação do papel da mulher na família, bem como de sua progressiva inserção no mercado de trabalho, de modo que aquela imagem da família tradicional, formada por marido e mulher, na qual o homem é o responsável pelo sustento financeiro familiar, enquanto a mulher responsável pelos afazeres domésticos e cuidados dos filhos, não é mais a única. Torna-se fenômeno cada vez mais frequente a inversão dos tradicionais papéis familiares, a mulher inserindo-se no mercado de trabalho e o homem assumindo os afazeres domésticos. Além do mais, hodiernamente as famílias são muitas e plurais, fugindo à tradicional formação: famílias anaparentais, monoparentais, formadas em razão de lanços biológicos, afetivos ou sociais.
O princípio da igualdade não possui, em regra, eficácia nas relações familiares entre cônjuges ou companheiros. Desse modo, a eficácia do princípio da igualdade nas relações familiares somente ocorrerá em hipóteses excepcionais, a partir da análise das peculiaridades e especificidades do caso concreto. Inexistindo normas jurídicas de direito privado para adensar o conteúdo do princípio da igualdade para estas relações jurídicas, não poderão os órgãos jurisdicionais, em regra, se imiscuir nas relações íntimas, privadas, cotidianas e domésticas dos cônjuges ou companheiros, para lhe impor uma obrigação de tratamento igualitário, conformando-as. As relações familiares constituem esfera da existência humana em que o princípio da autonomia privada deve prevalecer sobre o princípio da igualdade.25 No que tange às relações em que predominam aspectos afetivos, sexuais, íntimos, não há sequer a possibilidade de se cogitar a eficácia do princípio da igualdade.26 Destaquese que existem espaços da existência humana que sequer são afetos ao direito. Conforme salienta Steinmetz:
Obrigar os particulares a ter ou a apresentar, sempre, uma justificação racional e objetiva para o tratamento igual ou desigual, seria, na prática, restringir e até mesmo eliminar o direito a fazer escolhas fortuitas, a pautar a sua conduta social por preferências de foro íntimo, a decidir movido por sentimentos de simpatia, empatia e antipatia; em suma, seria restringir ou eliminar o direito de ser livre para conduzir-se segundo motivações não racionalizáveis ou não controláveis intersubjetivamente (Steinmetz, 2004, 262).27
Nas relações entre pais e filhos a eficácia do princípio da igualdade é restrita e cautelosa. O texto constitucional estabelece de forma expressa no parágrafo sexto, de seu artigo 227, que os filhos, havidos ou não da relação matrimonial, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. O referido preceito constitucional materializa o princípio da igualdade e proíbe a prática de discriminações em razão da origem da filiação, não se admitindo qualquer designação que possa sugerir sua origem, o qual é repetido pelo artigo 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente.28
Ao estabelecer a proibição de discriminação, sobretudo no que diz respeito à qualificação ou designação, o texto constitucional tutela, além do princípio da igualdade, a dignidade dos filhos, evitando que sejam pejorativamente qualificados como adotivos ou espúrios. O tratamento igualitário estabelecido pelo texto constitucional, todavia, não se estenderá às relações afetivas, haja vista que o ordenamento jurídico não pode pretender que os pais manifestem afeto em relação aos filhos com a idêntica intensidade.29 Mas então, em que consiste a igualdade de direitos preceituada no parágrafo sexto, do artigo 227, do texto constitucional?
Seria legítimo aos pais, em razão de sua condição econômica ou objetivando educar seu filho que não demonstra compromisso com os estudos, matriculá-lo em escola pública, como forma de educá-lo, mantendo os demais filhos em escolas particulares?30 Seria possível ao pai custear curso de inglês, aulas de natação ou de piano a apenas um dos filhos, e não fazê-lo em relação a um deles? Estariam os pais obrigados a conferir idêntico tratamento aos filhos, lhes assegurando as mesmas condições de acesso a bens e direitos, ou obrigados a lhes conferir idêntico tratamento afetivo?
A própria legislação civil brasileira, assegurando a liberdade contratual e autonomia privada, tutela o tratamento diferenciado no âmbito de relações jurídicas familiares e sucessórias quando, por exemplo, possibilita que o doador ou testador, conforme preceitos legais contidos nos artigos 549 e 1789 ambos do Código Civil31, disponham livremente da metade de seus bens ou da herança. Assim, no que tange à parte disponível, poderá o doador ou testador optar por doá-la ou destiná-la de forma diferenciada entre seus filhos ou, inclusive, doá-la ou destiná-la a apenas um de seus filhos sem que os demais possam nulificá-la sob alegação de violação ao princípio da igualdade.32
Cumpre destacar a possibilidade do pai ou mãe livremente disporem da metade de seus bens ou da herança baseando-se sua decisão na procedência da filiação, por exemplo, ao doar ou testamentar a metade disponível de seus bens exclusivamente aos filhos havidos na constância do casamento ou adotivos, permanecendo a outra metade dos bens sujeitas à partilha legal, não se aplicando, a essas situações, os preceitos constitucionais contidos no parágrafo sexto, do artigo 227, da Constituição da República, que assegura genericamente a igualdade de direitos entre os filhos.33 Sobre a questão, Steinmetz se posiciona no sentido de ser permitido à pessoa dispor livremente da fração disponível de seus bens:
Nesse sentido, a título de exemplificação, o testador não está obrigado a dividir em parte iguais os bens que compõem a fração disponível, o comerciante a dar igual desconto no preço de uma mercadoria para amigos e não amigos, o esportista a conceder entrevista a todas as empresas de comunicação, o jornal a publicar na coluna de opinião todos os artigos que recebe, o professor a manifestar simpatia ou amizade por todos os alunos, o médico cirurgião a cobrar igual preço de todos quando igual for o procedimento, o locador a conceder iguais descontos ou carências para todos os seus locatários (Steinmetz, 2004, 262).
O tratamento desigual na distribuição da parte disponível da herança, autorizado pelo ordenamento jurídico, pode ser fruto da desigualdade afetiva, decorrente de uma predileção pura e simples, ou de uma maior preocupação dos pais com determinado filho, em razão de eventuais peculiaridades que lhe são inerentes. Não se pode olvidar serem as relações familiares esferas da existência humana em que predomina a autonomia privada, na qual o princípio da igualdade possuirá restrita e excepcional eficácia. Aduzir a eficácia absoluta do princípio da igualdade nas relações paterno-filiais, impondo rigidamente aos pais e filhos que tratem uns aos outros com elegante igualdade em suas relações, obrigando-os a justificar de forma objetiva qualquer desvio dessa regra, produziria consequências absurdas,34decorrentes da jurisdicização de obrigações afetivas.
Quando o texto constitucional preceitua a igualdade entre filhos, não está a impor rigidamente a cada indivíduo que trate os demais com elegante igualdade em suas relações, obrigando-o a justificar de forma objetiva qualquer desvio, mas a proibir que os filhos, em razão de sua origem, recebam tratamentos discriminatórios no que tange a sua qualificação e designação, bem como no sentido de ser proibido que recebam partes desiguais da herança legítima. Não se pode pretender tornar jurídicas obrigações que são essencialmente morais ou afetivas, correndo-se o risco de transformar as relações familiares em manifestações irreais e inautênticas, alicerçadas em falsos ou planejados sentimentos de carinho e amor decorrentes muito mais de uma imposição normativa, do que baseados em sentimentos reais e autênticos de amor, carinho e proteção decorrentes da própria natureza e convivência humanas.35
Seria plausível ao ordenamento jurídico exigir dos pais que tratem seus filhos de idêntico modo? Além de ser humanamente impossível exigir o tratamento igualitário, há que se destacar que nem sempre o tratamento igualitário será o desejável, uma vez que este poderia conduzir os filhos a uma situação de iniquidade, pois são, por natureza, diferentes. Um pode ser mais propenso à prática de esportes, outro às artes, outro às línguas estrangeiras, de modo que os pais deverão preocupar-se efetivamente em assegurar aos filhos um ambiente familiar adequado e os meios possíveis para que os filhos possam livremente desenvolver sua personalidade, promovendo sua dignidade. O que o princípio da igualdade e a proibição de discriminação vedam é o tratamento desigual em relação ao dever de amparo, de cuidado,36 bem como aqueles tratamentos diferenciados que conduzam o filho a uma situação degradante, vexatória ou humilhante, vulneradora de sua dignidade.
C. Igualdade nas relações em que predominam aspectos relacionados à intimidade e privacidade, a religiosidade ou confiança
Nas relações jurídicas entre particulares em que predominam aspectos relacionados à intimidade, privacidade ou confiança o princípio da igualdade terá reduzida ou nenhuma eficácia, especialmente em razão da ausência ou da reduzida repercussão social da conduta. Desse modo, quanto maior for a repercussão social do tratamento diferenciado, maior será a propensão em se admitir a eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares. Deve se verificar se o tratamento diferenciado constituiu uma conduta generalizada e reiterada ou uma conduta praticada no âmbito de um negócio jurídico isolado.37 Nas relações jurídicas que não possuem ou têm reduzida repercussão social, nas quais predominam aspectos relacionados à intimidade, privacidade e confiança o princípio da igualdade não possuirá qualquer eficácia, sob pena de aniquilamento da autonomia privada supressão do espaço privado de escolhas individuais.
Assim, alguém que deseja organizar sua festa de aniversário ou casamento poderia, por exemplo, demonstrar sua preferência em contratar uma cerimonia-lista do sexo feminino, por considerá-las mais detalhistas e organizadas, detentoras de características que melhor atendam aos seus interesses. Do mesmo modo, aquele que deseja contratar um motorista para realizar o transporte de uma localidade a outra pode manifestar sua preferência pela contratação de pessoa do sexo masculino ou mais velha, por considerar essas características indicadoras de maior destreza e experiência na condução do veículo automotor. Essa mesma lógica pode ser aplicada para a escolha do empregado doméstico, em razão das especificidades do trabalho a ser realizado, em especial, pelo fato de ser realizado no ambiente familiar.
No âmbito das relações locatícias, poderia o proprietário, ao locar seu imóvel, estabelecer restrição à locação para pessoas que tenham filhos, pessoas jovens, solteiras, proprietárias de cachorro, com o objetivo de assegurar o sossego da vizinhança? No âmbito do contrato de constituição de sociedade empresária, poderia ser estabelecida cláusula proibitiva da transferência das quotas sociais a pessoas do sexo feminino ou possuidora de pouca idade, alegando questões de confiança ou motivações de índole pessoal? Seria lícita a cláusula que, no âmbito de uma convenção de condomínio, estabeleça como exigência para a compra de imóvel que a pessoa comprove possuir determinada renda mínima ou que adote normas específicas para edificação, de modo a assegurar um padrão construtivo para a localidade? Conforme destaca Montoya Melgar:
Do nosso ponto de vista, a proteção da intimidade e da liberdade individual fazem com que cada sujeito, discricionariamente, possa decidir com quem contrata e em que condições e não tem que dar explicações a ninguém, nem justificar suas decisões. O que é preciso combater é a discriminação social, as condutas que tenham uma proteção social e discriminação social, as condutas que tenham uma projeção social e que, em consequência, resultam intoleráveis. É dizer, é preciso combater - se é que existe - a discriminação ao acesso de bens e serviços que se proporcione ao público: seja um simples comércio, a realização de um contrato com uma entidade bancária, etc. Dessa maneira, há que se diferenciar sempre dos níveis: a esfera estritamente privada e os contratos com projeção social ou com consumidores nos quais deve se erradicar qualquer traço de discriminação (Montoya Melgar, 2007, 463, tradução nossa).38-39
Deve-se reconhecer que em relações jurídicas em que há o predomínio de questões atinentes à vida privada ou à esfera familiar é indispensável se resguardar a possibilidade de que os particulares escolham livremente os contratantes que melhor atendam aos seus interesses, tal como ocorre, por exemplo, nas relações jurídicas de natureza associativa ou naquelas referentes à locação de bens imóveis.40-41 Cerdá Martínez-Pujalte aduz que, "junto com a liberdade de associação, é também relevante a proteção da esfera privada e da vida familiar assim como os negócios existentes neste contexto", e destaca a importância de que, "com referência à vida privada, que inclui a vida familiar, mas vai mais além, se está respeitando o âmbito em que cada pessoa fica livre da observação pública e pode comportar-se assim mesmo, livremente."42-43
Sob essa perspectiva é lícito que aquele que promova a locação de um quarto ou imóvel se recuse a contratar com pessoas do sexo masculino em razão da necessidade de se tutelar a intimidade ou privacidade dos outros locatários do sexo feminino, como ocorre, por exemplo, nas relações locatícias destinadas à constituição de repúblicas estudantis. Nas relações locatícias, os particulares são detentores de uma ampla margem de discricionariedade para estabelecerem as condições e requisitos para a conclusão do negócio jurídico, bem como para elegerem o outro sujeito contratual, desde que o particular não faça uma oferta pública de sua intenção de locar o imóvel, situação na qual estará vinculado às condições previamente estabelecidas.
No que diz respeito às relações privadas em que há influência de aspectos atinentes à religiosidade de um dos contratantes, interessante mencionar e analisar dois casos ocorridos, um na Irlanda do Norte ou outro nos Estados Unidos, que servirão de exemplo para demonstrar quão tormentosa é a questão da eficácia do princípio da igualdade nas relações jurídicas entre particulares. Em ambos os casos, os proprietários de confeitarias se recusaram a fazer, sob encomenda, bolos para casais homoafetivos, alegando que o atendimento ao pedido contrariaria suas convicções pessoais e religiosas.
No caso norte-americano, a Comissão Estadual de Direitos Civis, manifestou-se no sentido de que o confeiteiro estaria obrigado, em nome do princípio igualdade e da proibição da discriminação, a confeitar o bolo, independentemente de sua convicção religiosa. No caso irlandês, a Confeitaria Ashers, nome extraído de uma tribo bíblica de Israel, recusou a confeitar um bolo alegando questões religiosas para justificar a recusa. A justiça de primeira instância considerou a recusa ilícita por ser discriminatória, uma vez que não estaria assentada em qualquer justificativa legítima.44
Considerações finais
Uma das temáticas mais controversas e que tem despertado o interesse de inúmeros estudiosos é aquela relativa à eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídicas entre particulares, em especial, quando o objetivo é definir a extensão da eficácia dos direitos fundamentais nessas relações jurídicas, a qual demanda, necessariamente, a análise das relações existentes entre as normas jurídicas constitucionais e as normas jurídicas de direito privado, bem como o conflito entre direitos fundamentais concretizado no âmbito de relações jurídicas privadas.
O trabalho teve o objetivo de proceder ao estudo da eficácia do princípio da igualdade no âmbito das relações jurídicas entre particulares, com o intuito de contribuir para os debates existentes e aperfeiçoamento das construções teóricas, na tentativa de formular proposições adequadas, capazes de conciliar a tutela do princípio da igualdade e sua correlata proibição de práticas discriminatórias, com a necessidade em se conferir segurança jurídica a estas relações jurídicas, mediante a proteção da autonomia privada e da liberdade contratual, corolários do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
A questão da eficácia do princípio da igualdade se torna mais conflituosa nas relações jurídicas entre particulares caracterizadas pela simetria das partes, situações em que os particulares se relacionam exercendo livremente sua autonomia privada e liberdade contratual, sem que existam limites estabelecidos pelo legislador. Nestas situações, sustentar a vinculação dos particulares ao princípio da igualdade se apresenta discutível, ao transferir aos órgãos jurisdicionais o poder para intervir na autonomia privada dos sujeitos contratuais e desconsiderar as escolhas por ele realizadas no âmbito da relação jurídica contratual. Essa situação se torna ainda mais questionável quando o negócio jurídico se aperfeiçoou mediante a externalização da vontade de sujeitos plenamente capazes, em uma relação jurídica em que haja considerável simetria.
Inadequado sustentar a eficácia absoluta do princípio da igualdade nas relações jurídica entre particulares, pois esse entendimento comprometeria os espaços privados de decisão e livre atuação do indivíduo, imunes ao direito fundamental à igualdade, que lhes permitem autodeterminar-se conforme suas vontades ou necessidades, corolários para que os indivíduos desenvolvam de forma livre sua personalidade, bem como para a promoção e construção de uma sociedade livre e democrática. Garantir espaços privados de livre decisão e atuação aos indivíduos, nos quais ele poderá atuar sem a necessidade de justificar suas escolhas ou preferências, inclusive ao definir se contratará, com quem e de que forma, não significa transformá-los em espaços institucionalizados para a prática de atos de discriminação baseados em motivos de raça, origem, sexo, etnia ou religião.
Não se deve admitir tratamentos diferenciados desprovidos de qualquer justificativa, tratamentos caprichosos que tenham por objetivo tão somente discriminar a pessoa, de modo a reduzi-la, colocá-la em situação vexatória, degradante ou humilhante. Não devem ser toleradas escolhas ou comportamentos que estejam dissociados do exercício legítimo de direitos fundamentais, em especial, quando baseados na raça, origem étnica ou orientação sexual, os quais, em regra são presumidamente odiosos. O ordenamento jurídico deve rechaçar tratamentos diferenciados que afetem diretamente a dignidade daquele que é discriminado.
Ao se analisar a eficácia do princípio da igualdade âmbito das relações jurídicas entre particulares, indispensável distinguir duas distintas espécies de relações jurídicas: as relações jurídicas estritamente privadas, conformadas entre particulares em situação de relativa igualdade, nas quais a pessoa do contratante é relevante; e as relações jurídicas em que há a oferta e o fornecimento de bens e serviços ao público em geral, caracterizadas como relações de natureza consumerista, nas quais a pessoa do contratante é irrelevante ou pouco relevante, se aperfeiçoando com qualquer indivíduo que aceite as condições propostas pelo ofertante. A distinção se apresenta relevante uma vez que, a depender da natureza jurídica da relação jurídica entre particulares, o grau de eficácia do princípio da igualdade será completamente distinto.
Nas relações jurídicas estritamente privadas, celebradas entre particulares em situação de relativa igualdade, o princípio da igualdade terá reduzida ou nenhuma eficácia. É o que acontece, por exemplo, nas relações jurídicas de locação de bens imóveis, nas relações jurídicas em que a proteção da privacidade, intimidade ou vida privada do contratante é indispensável, naquelas decorrentes do exercício da liberdade associativa, em que o elemento confiança constitui traço característico, nas relações jurídicas familiares e sucessórias, naquelas em que o exercício da autonomia privada está diretamente relacionado às convicções religiosas do contratante, bem como nas relações jurídicas em que a vontade de contratar se dirige a pessoas determinadas.
Nas relações jurídicas estritamente privadas há que se assegurar ao contratante margem de discricionariedade para exercer sua liberdade de contratação, eleger o outro sujeito contratual, definir a forma e o conteúdo do contrato, de modo a tutelar a autonomia privada do contratante e garantir-lhe a possibilidade de livremente desenvolver sua personalidade de acordo com seus interesses e necessidades. Essas relações jurídicas constituem espaço de liberdade, intimidade e discricionariedade para que os indivíduos possam livremente desenvolver suas relações humanas, sejam afetivas, sexuais, familiares, associativas ou de fraternidade, espaços em que há maior liberdade para que possam adotar decisões de forma autônoma, de modo que, impor-lhes a obrigatoriedade de sempre observar o princípio da igualdade e uma rígida proibição de discriminação, afetaria severa e profundamente a liberdade de decisão e de desenvolvimento dessas relações humanas.
Exigir que particulares, no exercício da autonomia privada e liberdade de contratação, dispensem aos demais particulares idêntico tratamento ou que justifiquem os tratamentos diferenciados realizados configuraria uma restrição demasiada e indevida, representaria impor-lhes um dever positivo de sempre conferir tratamento igualitário aos demais sujeitos privados. Sob a perspectiva da tutela do direito de livremente desenvolver sua personalidade, deve ser assegurado aos indivíduos a possibilidade de construir seus projetos de vida de acordo com seus sentimentos, inclinações pessoais, concepções de mundo. O exercício da autonomia privada não pode servir de justificativa para legitimar violações à dignidade das pessoas. O contrato, além de ser corporificador dos interesses individuais dos contratantes, deve ser instrumento para a promoção do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade dos envolvidos.
Será considerado lícito o tratamento diferenciado quando este for indispensável para proteger o núcleo, a essência de outro direito ou bem constitucional, tais como a liberdade de associação, liberdade de crença e religião, intimidade, privacidade e a própria liberdade de contratação, enquanto importantes expressões da autonomia privada. Nestes casos a licitude do tratamento diferenciado decorre da essencialidade desses direitos fundamentais interrelacionados, o que torna mais intensa a necessidade em se proteger a autonomia privada face ao princípio da igualdade e da proibição de discriminação, até mesmo como forma de se assegurar ao particular que possa livremente fazer escolhas, tomar decisões e desenvolver aspectos existências de seu projeto de vida. Nos casos em que a autonomia privada estiver alicerçada apenas ou preponderantemente em aspectos de natureza patrimonial ou econômica, a proteção da autonomia privada se dará de forma menos intensa face ao princípio da igualdade e à correspondente proibição de discriminação.
A eficácia do princípio da igualdade e da correlata proibição de discriminação face à autonomia privada dependerá, portanto, das especificidades da relação jurídica privada, dos direitos fundamentais em conflito, dos bens constitucionais cujo tratamento diferenciado se restringiu, se existenciais ou patrimoniais, das circunstâncias fáticas e jurídicas, do grau de simetria entre as partes, da autenticidade da vontade externada pelos contratantes, da transcendência ou repercussão social da diferenciação, e da análise da possível afetação da dignidade da pessoa discriminada, critérios a serem utilizados com o objetivo balizar e estabelecer diretrizes interpretativas de modo a reduzir o subjetivismo das decisões jurisdicionais, evitando o esvaziamento do conteúdo da autonomia privada em razão de um intervencionismo jurisdicional nas relações jurídicas contratuais entre particulares.