Nach der materialistischen Auffassung ist das in letzter Instanz bestimmende Moment in der Geschichte: die Produktion und Reproduktion des unmittelbaren Lebens. Diese ist aber selbst wieder doppelter Art. Einerseits die Erzeugung von Lebensmitteln, von Gegenständen der Nahrung, Kleidung, Wohnung und den dazu erforderlichen Werkzeugen; andrerseits die Erzeugung von Menschen selbst, die Fortpflanzung der Gattung. Engels (1962ª)
Notas introdutórias
A (re)produção material do viver humano assinala, em última instância, quanto ao nosso entendimento, o que na conceção materialista da história de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) se pode entender por base económica (ökonomische Grundlage).
Com vista a ilustrar o afirmado, atente-se às seguintes formulações que consideram a amplidão das relações económicas:
“produção da própria vida material” (Produktion des materiellen Lebens selbst, Marx e Engels, 1978a, p. 28) -, e,
“produção da vida” (Produktion des Lebens, Marx e Engels, 1978a, p. 29). Ou, ainda,
“modo de produção da vida material” (Produktionsweise des materiellen Lebens, Marx, 1961c, p. 8); mas também,
“produção e reprodução da vida imediata” (Produktion und Reproduktion des unmittelbaren Lebens, Engels, 1962a, p. 27).1
A produção implica sempre a reprodução, implica as condições que garantam a sua continuidade.2 O que se entende como condição basilar - veremos que não é num sentido restrito - da sociedade.
É esta perspetiva, não sistematizada pelos dois autores alemães, mas amplamente presente na generalidade dos seus escritos, que se pretende recuperar para debate, com vista à restituição de uma base histórica.
Deste modo, conta-se expor o essencial da sua perspetiva e ainda fazer face ao entendimento oposto que desconsidera, do âmbito da base económica, a (re)produção da vida;3 bem como fazer face ao entendimento que exclui da base económica dimensões como a dasforças produtivas (Produktivkräfte).4
E, por tabela, fazer face à acusação que aponta à conceção de Marx e Engels um “fatorialismo” - absolutização de um fator social, por exemplo, o económico, ao qual todos os outros fatores se reduzam (cfr. Netto, 1985, pp. 32-33).5
Estes confrontos encontram-se reservados para a conclusão.
Conexão material
Desde já deve-se expor o que se entende por “conexão material” (ou conexão materialista, materialistischer Zusammenhang, cfr. Marx e Engels, 1978a, p. 30). Esta conexão apresenta-se fundamental para que se compreenda do que Marx e Engels estão a falar quando remetem a discussão para o âmbito da reprodução da vida.
A produção da vida desenvolve-se duplamente, como uma relação natural, mas também social. O ser humano encontra determinadas condições materiais de vida, tanto as que estão dadas como, principalmente, as que propicia e/ou transforma pela sua própria ação. Existe entre ambas uma reciprocidade (cfr. Marx e Engels, 1978a, pp. 29-30).
Vejamos, de acordo com os dois autores alemães, a “primeira premissa” (erste Voraussetzung) da história humana é a existência de seres humanos vivos (cfr. 1978a, pp. 20-21), constatando-se primeiramente a organização física destes e a sua relação com o resto da natureza.6
Quanto ao meio geográfico: a maneira como os seres humanos produzem os meios de vida necessários à sua reprodução depende, entre outras coisas, do tipo de meios de vida encontrados e das condições locais para os reproduzir (apesar deste meio não constituir a principal determinação, cfr., por exemplo, Marx, 1962, pp. 535-538; e, Engels, 1968, p. 205).
O seu “ponto de partida” (Ausgangspunkt), da história humana, é a produção em sociedade, isto é, a produção de indivíduos socialmente determinada (cfr. Marx, 1961b, p. 615), uma vez que o ser humano não vive humanamente de forma isolada e é preciso organizar-se.7
Quanto a esta determinação social: o processo de produção tem de ser contínuo, tem de percorrer periodicamente os mesmos estádios (isto é, suprir as necessidades). Uma sociedade não pode deixar de consumir nem de produzir, produz e consome o produzido e, assim, reproduz. Cada processo social de produção assim que considerado num nexo permanente e em fluxo constante de renovação é, consequentemente, um processo de reprodução (cfr. Marx, 1962, p. 591).
O “primeiro ato histórico” (erste geschichtliche Tat), dizem Marx e Engels, é, com efeito, a produção dos meios de satisfação, de subsistência, das necessidades que garantam as condições humanas de sobrevivência, com vista a poderem “fazer (o resto da) história”, sobretudo, a partir da satisfação de necessidades (básicas) - tais como comer, beber, habitar, vestir, etc. -, pois sem estas não há reprodução humana, não há história. Vejamos como os dois o ilustraram em Die deutsche Ideologie:
Com os alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, temos de começar por constatar a primeira premissa de toda a existência humana, por conseguinte, também, de toda a história, isto é, a premissa de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem “fazer história” [Geschichte machen]. Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um ato histórico, uma condição fundamental [Grundbedingung] de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. […]. Assim, a primeira coisa a fazer em qualquer conceção da história é observar este facto fundamental [Grundtatsache] em todo o seu significado e em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida (1978a, p. 28; sublinhados nossos).8
Deste modo, entendemos, se pode resumir a “conexão material” da humanidade - condicionante histórica (mas também condicionada por) das necessidades e dos modos de produção (cfr., por exemplo, Marx, 1964a, pp. 329-330).9
Esta “conexão” comporta o natural - e, em rigor, igualmente o natural já humanamente transformado, isto é, socialmente transformado-,10 com efeito, a partir da (re)produção com vista à satisfação das necessidades.11 O que também significa que os indivíduos estão interligados por relações objetivas, relações que são independentes da vontade de cada indivíduo.12
Neste sentido, para Marx, quanto mais se recua na história, melhor deve aparecer o indivíduo humano, e, assim, igualmente o indivíduo produtor, como dependente e fazendo parte de um todo mais amplo do qual não pode escapar (cfr. 1961b, p. 616; e, por exemplo, Engels, 1962a).
Atualmente, com a imensidão de novas necessidades e meios de satisfação, perde-se - mesmo que não se possa cessar ou escapar -a relação mais imediata quanto à satisfação básica para a produção da vida, o essencial daquela “conexão” (que comporta a relação naturalsocial).13
Posto isto, a reprodução do viver humano não representa qualquer redução a uma mera instância como a vida, isto é, a uma hiperbolização do que a vida e a sua reprodução poderiam significar. Ao invés, a condição que se explicita através da reprodução do viver humano é a de uma inexorabilidade da reprodução das condições que permitam a continuidade da espécie dadas determinadas relações sociais e circunstâncias, que a estas envolvem, e com elas se interligam reciprocamente.14
Falta compreender a dimensão histórica, aqui tão necessária.
Abstração e definição histórica
Dado o exposto, importa recuperar uma forma histórica definida (bestimmter historischer Form) de reprodução, ainda que sumariamente, visto que a produção como “categoria geral” (allgemeine Kategorie) não passa de uma abstração - apesar de algumas generalizações comuns, não serve para explicar os seus graus históricos reais (cfr. Marx, 1961b, pp. 617, 620; 1965, pp. 256-257).
Quer dizer, a circunscrição da produção como fundamental e quais os seus traços gerais - desde os objetos e instrumentos de trabalho, à força de trabalho (Arbeitskraft, capacidade de trabalho físico e/ou intelectual), às relações de produção (desde as relações de propriedade, Eigentumsverhältnisse), etc. -, não serve para dar conta de cada período histórico em particular. Serve apenas para que se consiga identificar uma parte do processo em que se encontra o ser humano.
Para o efeito, veja-se como Marx ilustra a necessidade de uma compreensão que a considere historicamente: a fome é fome, porém a fome que se satisfaz com carne cozinhada, e que se come com faca e garfo, é uma fome distinta da que devora carne crua com as mãos, unhas e dentes. A produção também produz o modo de consumo, isto é, produz objetiva e subjetivamente (cfr. 1961b, pp. 623-624). É, pois, preciso ver como se dá esse consumo em dado período.
Veja-se outro exemplo de Marx: para que se possa saquear é necessário que exista o que saquear, que exista produção. O próprio tipo de pilhagem é determinado pelo tipo de produção, visto que não se pode saquear uma nação de especuladores de Bolsa (stock jobbing nation) da mesma maneira que uma nação de vaqueiros (cfr. 1961b, p. 629). Se durante séculos se viveu de pilhagem, então teve de haver alguma coisa para pilhar permanentemente ou o objeto da pilhagem teve de se reproduzir continuamente (cfr. Marx, 1962, pp. 97-98 n). Ou seja, desde a fome à pilhagem é preciso compreender de que maneira o ser humano supriu uma e permitiu a outra, entre outras questões aqui não exemplificadas.15 Dado que o ser humano não o faz sempre do mesmo modo e a “conexão material” sofre transformações históricas.
Sirvamo-nos, com um pouco mais de detalhe, do modo de produção capitalista (embora as suas relações que são dominantes no dito “mercado mundial”, não se deem isoladamente).16 Em Das Kapital Marx avança:
Como vimos, a produção capitalista de facto só começa quando o mesmo capital individual [individuelle Kapital] emprega simultaneamente uma superior quantidade de operários, portanto, quando o processo de trabalho [Arbeitsprozeß] amplia o seu volume e fornece o produto numa superior escala quantitativa. A interação de uma superior quantidade de operários, ao mesmo tempo, no mesmo espaço (ou, se se quiser, no mesmo campo de trabalho), para a produção do mesmo tipo de mercadorias, sob o comando do mesmo capitalista, forma histórica e conceptualmente o ponto de partida da produção capitalista (1962, p. 341).17
A produção intelectual e material da forma histórica capitalista é diversa da medieval, antiga ou primitiva, entre outras comparações, mesmo que no início ainda o fosse em sentido mais quantitativo. Jáo é, mesmo na diversidade das nações capitalistas. O que não quer dizer que em alguns casos não conserve resquícios de outras formas (por exemplo, feudal, esclavagista, etc.).
Existem certas questões que são próprias do modo de produçãocapitalista, como, por exemplo, o que aqui Marx descreve como a “interação de uma superior quantidade de operários, ao mesmo tempo, no mesmo espaço, para a produção do mesmo tipo de mercadorias”, como não podia deixar de ser, “sob o comando do mesmo capitalista”, uma vez que o tipo de trabalho anterior assentava fundamentalmente em trabalho individual. Mas também são certas as questões do trabalho assalariado (Lohnarbeit),18 da mais-valia (Mehrwert),19 etc.
Atente-se a mais um exemplo do autor: uma máquina de fiar é uma máquina de fiar e apenas em determinadas relações (históricas) ela se torna parte favorável ao capital (cfr. 1961a, p. 407). O que é possível na medida em que fiando sob o regime de trabalho assalariado, o operário produz mais-valia para o capitalista, enquanto no modo imediatamente anterior, o operário, eventualmente proprietário da sua máquina de fiar, produzia diretamente para a sua subsistência.
Da mesma maneira que a produção e a reprodução são históricas, são-no, em igual medida, as condições de troca, consumo e distribuição inerentes.20
A distribuição não é independente do modo de produção, pelo contrário, reflete as suas condições; a distribuição dos meios de consumo é, em cada época, somente a consequência da distribuição das próprias condições (forças e relações) de produção (cfr. Marx, 1987, pp. 21, 22; e, Engels, 1962b, p. 312). Dadas as relações capitalistas a distribuição tem em conta a forma de trabalho assalariado e a propriedade dos meios de produção.21
Pudessem os seres humanos viver do ar e não precisavam de se submeter por via das suas necessidades (cfr. Marx, 1962, p. 626). Daí que Marx questione, retoricamente, por que vendem os trabalhadores a sua força de trabalho dadas as condições capitalistas? A resposta é simples e o autor dá-a: “para viver” (cfr. 1961a, p. 400).
É por aqui que se encontra a premência de uma crítica à forma histórica capitalista (desde a demorada expropriação dos produtores, ao assalariamento, etc.).22 Não obstante, é preciso não se ficar pelo momento da abstração no que diz respeito à concreção (e concretização) das relações vigentes (cfr. Marx, 1983, p. 35).
A “última instância determinante” e a “ação recíproca”
Até aqui a discussão levou do entendimento geral de produção e reprodução, ligado à questão da vida e do seu caráter social, à sua definição histórica - mais precisamente à questão dos modos de produção (que não deixam de se referir genericamente a uma determinada maneira de produzir o viver humano, porquanto é sempre preciso recorrer a uma perspetiva mais ampla).
Como visto, a produção pode assumir diversos modos historicamente, que compõem a riqueza da base económica. Falta ainda expor de que maneira esta base reflete e se relaciona com outros momentos, entre estes, a superestrutura (Überbau) - entre os fatores desta encontram-se os jurídicos, políticos, filosóficos, religiosos, literários, etc. Ao falar de uma base económica a partir da qual se ergue uma superestrutura Marx e Engels, em nosso entendimento, procuraram enfatizar a maneira como os seres humanos se organizam socialmente com vista à satisfação das necessidades da vida e, a partir daqui, alguns dos reflexos sociais.
Os dois autores não entenderam tratar-se, no que diz respeito à relação da base com a superestrutura, de uma mera relação de “causa-efeito” ou de uma enquistada “metáfora espacial”, isto é, a base de um edifício e acima desta as suas estruturas (cfr. Marx, 1961c, pp. 8-9; e, Engels, 1968, p. 205). Para ambos, tratava-se realmente de uma relação condicional (Bedingende).23
Segundo Engels, este condicionamento - da superestrutura pela base - aparece “em última instância determinante” (in letzter Instanz bestimmende, este será o sentido exato de “determinação” no pensamento dos dois alemães), e não como fator “único determinante” (einzig bestimmende, cfr. 1967b, p. 463; 1968, p. 206):
De acordo com a conceção materialista da história, o fator [Moment] em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real [Produktion und Reproduktion des wirklichen Lebens]. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos mais do que isso. Se agora alguém o distorce, afirmando que o fator económico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação económica [ökonomische Lage] é a base [Basis], mas os diversos momentos da superstrutura - formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu posterior desenvolvimento em sistemas de dogmas - exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos predominantemente a sua forma. Há uma ação recíproca [Wechselwirkung] de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna [innerer Zusammenhang] é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento económico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples equação do primeiro grau (Engels, 1967b, p. 463; sublinhados do autor).24
Com isto, Engels chama a atenção para o facto de que a “última instância determinante” - e que entendemos ser a base económica - é a produção e reprodução da vida real, e não, como os seus detratores afirmavam - a economia vista de maneira “simplista”, “redutora”, “única” ou dada pelas manifestações particulares de cada modo de produção.
A reprodução da vida aparece como a base económica num sentido mais profundo (e nela se encontra a ação recíproca entre as forças produtivas e as relações de produção - o que define os modos de produção -, e destas com a superestrutura).
Com isto, Engels ainda chama a atenção, ligado ao acima referido, contra todos aqueles autores que pretendem fazer da conceção materialista da história uma teoria formal, isto é, que sirva para aplicar a-historicamente aos diversos períodos da história e por via dessa simples aplicação desvendar, deduzir, a totalidade do processo ou dos diferentes processos.
É, pois, preciso compreender a amplidão da produção e, em igual medida, as suas definições históricas, bem como a reciprocidade dos diversos momentos e fatores em causa.
Por exemplo, aos restantes fatores sociais, entenda-se superestruturais, é aceite a sua autonomia, contanto que se entenda como “relativa” e nunca como “absoluta” ou “co-determinante”,25 e se considere o seu papel na ação recíproca.26
A conceção de Marx e Engels procura, em rigor, colocar o ser humano nas suas circunstâncias, nos seus limites históricos, por este não escolhidas, em vez de explicar o comportamento individual (tendência própria, por exemplo, de uma conceção que se guie pelo “individualismo metodológico”). Tais circunstâncias são imediatamente encontradas, dadas e transmitidas.27
Apesar de tudo, como já exposto, tais circunstâncias são transformadas pelo ser humano: este vai inovando a sua maneira de se relacionar com a natureza e entre si, inovando os instrumentos de produção, inter alia (cfr. Marx, 1961a, p. 408; e, por exemplo, Axelos, 1961), e por meio de tal práxis, ele próprio se transforma (cfr. Marx, 1978a).
Trata-se de um processo histórico, não existindo qualquer coisa como uma “natureza humana” que não tivesse de ser considerada historicamente (em reciprocidade com diversos fatores), o que pode ser à luz das conquistas humanas em determinadas condições (cfr. Marx, 1964a, p. 459; 1960, p. 115; e, Engels, 1967b, p. 463), isto é, uma “natureza” não “substancialista” ou “essencialista”.28 Porquanto, como visto, para ambos a primeira coisa a observar é a base terrena (irdische Basis) da história (a partir da qual se desenvolve a “conexão material” exposta), em oposição aos idealismos que a procuram explicar a partir de uma “história das ideias” ou de uma especulação que “unilateralize” algum momento ou fator social como mais ou menos determinante (cfr. Renault, 2001, p. 49; e, Srour, 1978, pp. 131-133).29
Desta maneira, compreender e partir das condições materiais de vida e de existência dos indivíduos é, para Marx e Engels, partir de “premissas reais”, escusando quaisquer dogmas ou pontos de partida arbitrários. O mesmo é dizer: partir do processo real em condições determinadas, escusando igualmente a fixidez, o isolamento e o fantástico conceituais (cfr. Marx e Engels, 1978a, p. 27).30
Não obstante, é importante não se ficar apenas pela última instância - reprodução da vida -, uma vez que todos os momentos e fatores reais desempenham um papel na ação recíproca. Outrossim, não se deve ficar pela última instância porque todos os momentos e fatores devem ser julgados pela transitoriedade e historicidade real (cfr. Marx, 1977, passim; 1964a, p. 415), isto é, o processo real permite poucas situações (o que não é o mesmo que dizer nenhumas) para uma compreensão “definitiva” do que quer que seja.
Em jeito de conclusão
Considerado o arranjo formal para o presente artigo, decidiuse fazer face aos entendimentos opostos e acusação anunciados em “notas introdutórias” somente após estar exposto o essencial da perspetiva de Marx e Engels colocada em causa. Resta-nos, por isso, recuperar finalmente tais questões.
Tendo em conta o que foi visto, o principal problema de se desconsiderar, do âmbito da base económica, a (re)produção da vida consiste no seguinte: a base económica cedo ou tarde acabará por cair no âmbito das particularidades de cada modo de produção, dado que se perde o nexo do que é a produção humana - historicamente determinada -, para se privilegiar as diferentes relações económicas.31
Perde-se, por conseguinte, a última instância da relação materialhumana.
Por seu turno, o principal problema de se separar as forças produtivas (entenda-se os meios de produção e a força de trabalho, isto é, as condições para produzir e os trabalhadores) da base económica (por se considerar do âmbito económico apenas as relações de produção e as forças produtivas como a base material desta) corresponde a uma descaraterização da reprodução da vida humana e, como tal, da sua “conexão material”. Ou seja, corresponde a uma “desmaterialização” das relações sociais.
As condições em que o ser humano se apresenta como produtor, força de trabalho, e aquelas que encontra para o exercer, não são independentes do tipo de relações que se estabelecem com vista à produção. Bem como a base económica não se reduz a uma dimensão relacional, por um lado, ou a uma dimensão “economicista”, por outro.
Posto isto, Marx e Engels não exortam a um fatorialismo, visto que não (con)firmam uma redução da generalidade dos fatores reais da vida humana a uma relação económica - por exemplo, de tipo “absoluto”, “a-histórico”, “abstrato”, “simplista”, “única” ou ainda como economia significando apenas a “troca”, a “bolsa”, o “mercado”, o “dinheiro”, etc. -, pois a situação económica apresenta-se somente como base que se encontra em ação recíproca com os outros fatores (não obstante, a sua qualidade “última”, cfr. Engels, 1968, p. 206).
O que parece estar sempre em causa é a restituição de uma base histórica (para o efeito, material).
Vejamos ainda: a vida em si não é o fundamental porque a vida é uma “indeterminação” abstrata que por si não comporta qualquer dimensão histórica, daí a referência à (re)produção da vida, uma vez que a produção (apesar de abstrata até certo ponto), convoca a dimensão histórica, isto é, apela a que se reflita na maneira como o ser humano produz as condições do seu viver e a partir de que condições (cfr., por exemplo, Engels e Marx, 1962, pp. 46-47).32
Tudo isto não quer dizer que os dois autores não tenham escrito passagens mais polémicas, a partir das quais - umas vezes mais descontextualizadas, outras, porventura menos - se pudesse desconsiderar a reprodução do viver humano ou separar as forças produtivas da base económica, como quem separa a base económica da “conexão material”, ou ainda até atribuir algum fatorialismo (cfr., por exemplo, Marx, 1961c, pp. 8-9; para uma das suas passagens mais polémicas).
Em desabafos epistolares, Engels afirmava que ele e Marx podem ter sido em parte culpados de que se pensasse o contrário, pois tiveram de enfatizar o “princípio fundamental” (Hauptprinzip) - o lado económico - em lugar de outros fatores da ação recíproca, dado que os seus adversários o negavam (cfr. 1967b, p. 465). Por isso, não se pode perder de vista o esforço dialético de compreensão da realidade por parte de ambos, o que exige um esforço de leitura além de um ou outro texto.33
Enfim, o que aqui se pode reter como fundamental é que o sentido de economia não é “simples”, isto é, não é o que a economia significa em primeira instância, é, portanto, um sentido mais rico e historicamente determinado.
Deve-se, pois, atender ao facto fundamental e que é a primeira coisa a observar em qualquer conceção da história - a produção dos meios para a satisfação das necessidades como primeiro ato histórico, a produção da própria vida material que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizada dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os seres humanos vivos -, ao qual, segundo os autores, se deve atribuir a importância devida, sob pena de se partir da superfície e não compreender nada das suas conexões.34
Assim, julgamos poder encontrar na conceção de Marx e Engels o espaço necessário para a restituição de uma base histórica, em oposição à generalidade das conceções que descuram a sua relevância, idealizam acerca do seu processo e (con)firmam teses abstratas e arbitrárias para a compreensão do desenvolvimento social.