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Memorias: Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe

versión On-line ISSN 1794-8886

memorias  no.17 Barranquilla dic. 2012

 

Entre as FARC o MST, entre a violência no campo o Estado policial na América Latina: Aspectos distintos de conflitos agrários históricos no Brasil e Colômbia

Entre las FARC y MST, entre la violencia en el campo y la policía del Estado en América Latina: diferentes aspectos de la historia del conflicto agrario en Brasil y Colombia

Between FARC and MST, between the violence in the field and the state police in Latin America: different aspects of historical agrarian conflict in Brazil and Colombia

Fernando Antonio Alves


Resumo

Este estudo pretende traçar um panorama das principais lutas sociais desenvolvidas na América Latina nos últimos anos, em especial em relação aos conflitos agrários, resultando no surgimento de dois movimentos rurais históricos e distintos: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST no Brasil e as FARC - Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Pretende-se estabelecer até que ponto tais movimentos surgiram dentro do contexto de segmentos sociais excluídos, que buscaram no campo, por meio da luta campesina, diversas formas de reivindicação de direitos que, em realidades sociais diversas, resultaram em formas distintas e graus diferenciados de emprego da força e violência no campo. Assim, discute-se até que ponto os conflitos sociais agrários resultaram numa reação por parte dos poderes constituídos, dentro de uma realidade de classe, a ponto de se estatuir em pleno período de redemocratização das nações latino-americanas, na perspectiva de regimes constitucionais, assentados num Estado Democrático de Direito, um anômalo Estado Policial, em detrimento do exercício de direitos fundamentais, como a liberdade de reunião e associação. Além disso, um processo de criminalização crescente do MST no Brasil, a exemplo do que ocorre nos embates entre o Estado e as FARC na Colômbia, contribui para um processo de militarização do aparato repressivo do Estado, que nada contribui para a manutenção da paz e promoção da inclusão social no continente latino-americano.

Palavras-chave: Conflitos agrários, movimentos sociais no campo, violência, estado policial, democratização.


Resumen

Este estudio tiene como objetivo dar una visión general de las principales luchas sociales en América Latina desarrolladas en los últimos anos, particularmente en relación con disputas por la tierra, dando como resultado la aparición de dos movimientos históricos en las zonas rurales: el Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra - MST en Brasil y las FARC -Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia. El objetivo del trabajo es establecer en qué medida estos movimientos surgieron en el contexto de los grupos sociales excluidos, que buscaban en el campo, a través de la lucha campesina, diversas formas de reivindicación de los derechos en diversas situaciones sociales, dando lugar a diferentes formas y diferentes grados de uso de la fuerza y la violência en el campo. Por lo tanto, se discute hasta qué punto el conflicto social agrario dio lugar a una reacción de los poderes dentro de una realidad de clase durante un período de democratización de las naciones latinoamericanas, desde la perspectiva de los regímenes constitucionales, sentado en un Estado democrático, un policía del Estado anómalo, más que el ejercicio de los derechos fundamentales como la libertad de reunión y de asociación. Por otra parte, un proceso de creciente criminalización del MST en Brasil, como ocurre en los enfrentamientos entre el gobierno y las FARC en Colombia, contribuyendo a un proceso de militarización del aparato represivo del Estado, que no contribuye en nada al mantenimiento de la paz y la promover la inclusión social en América Latina.

Palabras clave: Los conflictos agrarios, movimientos sociales en el campo, violencia, policía estatal, democratización.


Abstract

This study aims to give an overview of major social struggles in Latin America developed in recent years, particularly in relation to land disputes, resulting in the emergence of two distinct historical and rural movements: the Movement of Landless Rural Workers - MST in Brazil and FARC - Revolutionary Armed Forces of Colombia. It's intended to establish to what extent these movements emerged within the context of excluded social groups, who sought in the field and through the peasant struggle, various forms of claims of rights in various social situations, resulting in diverse ways and different degrees of the use of force and violence in the countryside. Thus, we discuss to what extent the agrarian social conflict resulted in a reaction by the powers that, within a class reality, during the period of democratization of Latin American nations, from the perspective of constitutional regimes seated in a democratic state, an anomalous state police, rather than the exercise of fundamental rights such as freedom of assembly and association. Furthermore, a process of increasing criminalization of the MST in Brazil, as occurs in clashes between the government and the FARC in Colombia, contributed to a process of militarization of the repressive apparatus of the state, which doesn't contribute to the maintenance of peace and the promotion of social inclusion in Latin America.

Keywords: Agrarian conflicts, social movements in the field, violence, state police, democratization.


Introdução

Após sua independência do jugo colonial nos últimos séculos, as nações latino-americanas presenciaram o predomínio de um processo de concentração progressiva da riqueza que levou a níveis acentuados de exclusão social. Nessa realidade, é tocante o quanto dessa crescente exclusão levou não apenas à desagregação social e ausência de integração formal de cidadãos ao mercado de trabalho, como também gerou sucessivos conflitos em áreas campesinas, resultando em inúmeros casos de violência, onde a repressão estatal encontrava-se presente.

Tidos mais como um caso de polícia, de ocorrências criminais que necessitavam da intervenção do sistema penal, diversos governos de viés autoritário se valeram do discurso da criminalização para lançar na clandestinidade uma série de movimentos sociais e seus militantes, ou de organizações que acabaram por se valer da luta armada como forma de confronto social contra o poder político e econômico dominante. Isto gerou sensíveis sequelas na preservação da democracia e fundação do Estado Democrático de Direito no continente latino-americano, cujas cicatrizes podem ser facilmente encontradas na repercussão de casos, noticiados pelos meios de comunicação, que noticiam a ação de grupos armados paramilitares ou confrontos bélicos do exército com guerrilheiros, na floresta colombiana, como também nas zonas rurais de diversas regiões de países com dimensões continentais, como o Brasil.

Este estudo propõe-se a realizar uma pequena observação comparativa entre dois grandes movimentos, com características e facetas distintas que surgiram historicamente entre os povos latino-americanos, durante o século XXI, e que, igualmente originados no campo, tiveram trajetórias distintas, caminhando à beira da legalidade ou revestidos de completa ilegalidade, mas com um cotidiano próprio de violência e repressão: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Brasil. A análise crítica da história e desenvolvimento desses movimentos, como parte da história das lutas do povo latino-americano, é fundamental para que se entenda até que ponto existem hoje tratamentos legais diferenciados para duas significativas siglas que englobam movimentos maciços de trabalhadores alijados do mercado, onde a participação popular desses setores excluídos da sociedade, transformam-se em lutas sociais revestidas de polêmica, violência e criticas ideologicamente extremadas. Um pouco das lições que podem ser obtidas através do histórico de repressão as FARC e, em alguma medida contra o MST (principalmente em períodos autoritários), podem levar a uma constatação dos fracassos do modelo de Estado liberal implantado no continente latino-americano, revelando até que ponto as consequências das opções tomadas pelo modelo liberal de gestão da reforma agrária levaram ao nascimento desses dois movimentos que serão analisados a partir de agora. A luta dos excluídos pode ser inglória, mas a perseverança para permanecer lutando parece constante.

Um cotidiano de violência e repressão estatal nos conflitos agrários latino-americanos

Em primeiro lugar, ao se efetuar uma análise do advento e crescimento dos conflitos agrários associados ao aumento da violência, inclusive por obra da reação estatal à eclosão de movimentos associados com terra, trabalho e reforma agrária, percebe-se que o fechamento de terras em torno de latifúndios, dificultou sobremaneira a inclusão social do trabalhador do campo, permanecendo o camponês como um ser desenraizado, migrante, numa trajetória de vida itinerante à procura de trabalho, num processo de proletarização em que as opções legais ou à margem da legalidade passam a competir em grau de igualdade nas alternativas a serem fornecidas para esses indivíduos, carecedores de trabalho, sujeitos à superexploração ou até mesmo ao trabalho escravo, principalmente em algumas regiões do Brasil, como Pernambuco, Bahia, Pará e Mato Grosso1.

Ver Tabla 1

Soma-se a isso o fato de que a própria legalidade contribuiu para a marginalização crescente do camponês, pelos difíceis requisitos legais para a ocupação legal de terras e pela visão predominantemente liberal-burguesa do exercício do direito de propriedade. A ortodoxia jurídica dos tribunais e de muitos legisladores, acentuadamente vinculada a um paradigma liberal e positivista do Direito2, tendia a ver a legislação civil como baluarte dos direitos de propriedade, entendendo que a principal forma de sua aquisição, nos moldes de uma sociedade de mercado, ainda seria pela acumulação de riquezas. Se a lei civil entendia que somente os grandes proprietários rurais, detentores de capital face à acumulação de riquezas, teriam direito à terra, para os trabalhadores excluídos do direito de propriedade só caberiam as leis penais, caso desafiassem o direito dos proprietários, por meio das ocupações ilegais, tendo em vista que suas condutas passariam a se constituir em crimes.

Em toda a América Latina, do México, passando pela Argentina e Colômbia, e chegando ao Brasil, uma legislação oriunda do período colonial levou a uma maior concentração de terras, levando ao surgimento de baldios, estâncias e mayoragos, como modelos exitosos de exploração agropecuária nos moldes de um Estado liberal-burguês, paulatinamente consolidado dentro de um sistema econômico ainda longe da industrialização, mas que já se baseava na forte produção fundiária como forma de acumulação de capital3. Na Colômbia, a formação de seu segmento camponês em sua história agrária revela bem o modelo herdado de uma estrutura colonial de distribuição da terra que passou a ser gerida por uma nascente, mas disfuncional economia capitalista: a concentração de terras sob a forma de latifúndios, dentro do esquema legal de legitimação do direito de propriedade burguês e por consequência uma rebeldia campesina contra essa forma de monopólio da terra e a exploração dela decorrente, mobilizando-se através da luta armada ou de ligas camponesas instituídas para resistir a esta forma de exploração.

Não demorou para que o Estado, por meio de seu aparato repressivo, apressa-se em intervir sobre esses movimentos, carregando-lhes a pecha de organizações criminosas. Tal atuação repressiva estatal tornou-se acentuada após ser feita a associação entre movimentos rurais e narcotráfico, conforme a manutenção de padrões históricos de pobreza e distribuição desigual da riqueza entre países do hemisfério norte e hemisfério sul, formando-se uma categoria de produtores e consumidores de drogas4. A campanha de "Guerra às Drogas", desenvolvida no último quarto do século passado, e que envolveu relações internacionais entre os Estados Unidos e países latino-americanos como Colômbia e México apenas traduzem um componente de criminalização que veio acirrar os conflitos existentes no campo, figurando agora milhares de produtores rurais de plantas de maconha ou folhas de coca como supostos criminosos, integrantes do crime organizado. Por detrás de uma comoção nacional sobre os gravíssimos problemas de saúde relacionados com o uso indiscriminado de drogas, o governo dos Estados Unidos desde a década de setenta do século passado, vem empreendendo uma solução bélica para os problemas relacionados às drogas, que mobilizam o aparato repressivo de uma série de nações. No Brasil, as intervenções constantes do exército em apoio às ações da polícia, no combate ao narcotráfico e na perseguição de traficantes, centradas na ocupação de morros e favelas da periferia de grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro, são um exemplo emblemático disso. As atuais políticas de pacificação, apoiadas na instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora-UPPs, na realidade carioca, não escapam da lógica belicista inaugurada no discurso punitivo dos governantes norte-americanos, ganhando respaldo na doutrina jurídica a partir de conceitos como "Direito Penal do Inimigo"5, desenvolvidos por teóricos como Günther Jakobs, que merecerão maior destaque no decorrer deste estudo.

Entretanto, no que tange à produção da folha da coca, aos camponeses de origem indígena, situados principalmente na Bolívia, Peru e Colômbia, fazem uso regular da folha, tendo em vista a agricultura tradicional que já surgiu em torno deste produto, e diante de uma crise global estimulada pelo colapso cíclico da economia capitalista, como o vivenciado nos últimos dois anos no hemisfério norte, não resta outra alternativa a esses trabalhadores do que se valer da produção da coca para aliviar suas condições de miséria6. Assim, o movimento dos cocaleros na Bolívia e a eleição para a presidência da Bolívia, do ex-líder de movimentos de trabalhadores rurais, Evo Morales, levou a se estabelecer um projeto latino-americano de protesto legítimo contra as políticas repressivas que atinjam os direitos dos trabalhadores envolvidos no plantio da coca e toda a cultura estabelecida há séculos em relação a planta. No Brasil, a repressão estatal aos trabalhadores rurais, com a associação a grupos criminosos voltados para o tráfico de drogas é percebida na repressão às plantações de maconha no Nordeste brasileiro, não obstante haver grandes movimentos e protestos realizados no ambiente urbano por estudantes universitários, contando com o apoio de intelectuais, defendendo a legalização da maconha, tendo como expoentes, inclusive, o ex-presidente da república brasileiro, Fernando Henrique Cardoso7.

Observa-se um contexto ainda muito difícil para os movimentos sociais centrados nas lutas agrárias na América Latina, seja pela manutenção das desigualdades, seja pelo contínuo emprego da violência por parte dos latifundiários ou de agentes estatais na repressão a esses movimentos, não obstante a América Latina vivenciar um atual e permanentemente desejado momento inédito de predomínio de experiências políticas democráticas, com a eleição de representantes eleitos pelo povo, ao invés de modelo autoritário de regimes ditatórias tão presentes no continente, durante décadas do século passado. Apesar de ser fonte de inspiração para muitas outras organizações de trabalhadores rurais no Brasil e na América Latina, o MST enfrenta até hoje dificuldades por conta de tentativas de criminalização do movimento por parte de setores da imprensa brasileira, bem como por autoridades policiais, do Judiciário ou do Ministério Público.

As reações violentas contra movimentos como MST partem, até mesmo, de setores da intelectualidade brasileira, como o filósofo Denis Rosenfield, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que trata o MST, em seus escritos publicados na mídia nacional, como uma organização criminosa e revolucionária, que sob o pretexto da defesa da reforma agrária, promove invasões de propriedade, sequestros, posse ilegal de armas, desrespeito à lei e depredações 8. A reação de tais intelectuais, identificados com a ideologia liberal-burguesa, além de reforçar os preconceitos de classe, apenas contribuem para a manutenção dos discursos punitivos e criminalizantes em relação a movimentos sociais como o MST, comparando-o forçadamente as FARC, com a alegação da prática de atos terroristas, a fim de obter junto ao governo a definitiva ilegalidade, e consequente clandestinidade desse movimento.

Enquanto isso, no restante da América Latina, em especial na Colômbia e em países como Bolívia, Equador e Peru, relatórios, elaborados pelo Departamento de Estado da Repressão às drogas nos Estados Unidos, acerca do uso exacerbado de maconha e cocaína por cidadãos norte-americanos, são respaldados pelas Nações Unidas, indicando que novas áreas de cultivo ilícito estão surgindo em países como Equador e o Brasil.9Isto apenas estimula que o problema social da reforma agrária não seja resolvido, e, ao contrário, os movimentos identificados com trabalhadores rurais, localizados em áreas de suposto plantio de substâncias proibidas, acabam por serem estigmatizados penalmente, sob a alegação de estarem se associando ao narcotráfico. Nesse ponto, a repressão estatal estabelece-se em duas linhas, ambas francamente prejudiciais aos trabalhadores do campo: a repressão pura e simples pela ação policial ou pela via bélica, com a prisão de militantes de movimentos de trabalhadores rurais, e a destruição pelo exército e pela polícia federal de plantações através de queimadas; a distribuição de substâncias herbicidas ou desfolhantes mediante o emprego de aviões, com a aniquilação não somente de extensas áreas de cultivo de maconha e folha de coca, mas também toda a fauna e flora local, comprometendo a preservação no meio ambiente da floresta, e o principal sustento de vida de milhares de trabalhadores na zona rural.

A partir do próximo capítulo deste estudo, pretende-se apresentar um breve relato histórico das lutas de movimentos como o MST, no Brasil, para após ser elaborada uma concisa, porém necessária comparação do movimento brasileiro com o surgimento e vicissitudes das FARC na Colômbia, apontando as principais reações estatais e as intervenções repressivas nesses movimentos, a fim de se ter um panorama do quadro político de repressão aos movimentos sociais latino-americanos, mediante uma observação crítica dos exemplos analisados.

O desenvolvimento das lutas agrárias no Brasil: Um breve relato histórico

Entende-se inicialmente que, movimentos sociais organizados no Brasil, tais como o MST, podem receber uma abordagem tanto das teorias histórico-estruturais como das teorias culturalistas ou organizacionais-comportamentalistas. Num primeiro momento, o movimento de trabalhadores no campo organiza-se sob a forma de conflito de classe, como a que invocar a aplicação de teorias de inspiração marxista, tendo em vista a relação entre despossuídos X proprietários de terras. Entretanto é possível verificar nos acampamentos de integrantes do movimento outros componentes que podem levar em conta a afirmação identitária específica de um determinado segmento social, com padrões culturais simbolizados em crenças, práticas e normas de conduta próprias. Além disso, para autores como Tarow10, movimentos sociais ocorrem quando oportunidades políticas são ampliadas, surgindo e multiplicando aliados, ao mesmo tempo em que as vulnerabilidades dos oponentes se apresentam. Nesse sentido, devido às relações fundiárias desenvolvidas no Brasil nos últimos cinquenta anos, propiciou-se o nascimento de um horizonte fértil para a proliferação das lutas sociais no campo, consoante o desenvolvimento econômico que se deu no país e os reflexos históricos da trajetória da economia global. Quando se vê, por exemplo, a formação das oligarquias agrárias brasileiras e a forma de distribuição de várias áreas de terra desde o processo de colonização portuguesa no século XVI, até o modelo de desenvolvimento agrário surgido no século XX, vê-se que se estabeleceu todo um quadro de precedentes para que movimentos como o dos Trabalhadores Sem-Terra pudesse existir e questionar as relações sociais historicamente estabelecidas no campo.

Na década de sessenta do século passado, as Ligas Camponesas e os sindicatos de trabalhadores rurais tornarem-se os principais atores dos conflitos e lutas sociais travadas no meio rural, recebendo grande apoio popular na região Nordeste do Brasil11. Entretanto, no que tange ao respaldo dessas lutas perante o poder político, a relação foi inicialmente ambígua, tendo em vista que o governo liberal do início da década apresentava uma plataforma política favorável à reforma agrária, mas a dinâmica do aparato repressivo do Estado era o de prender os líderes dos movimentos rurais, sob o argumento ideológico de reprimir agentes do comunismo internacional, infiltrados nos sindicatos rurais, que pretendiam estabelecer uma revolução aos moldes da que se estabeleceu em Cuba, nos anos anteriores.

Com a apresentação do programa de Reforma Agrária pelo presidente João Goulart em março de 1964, defendendo a expropriação compulsória de terras, e sua conseqüente deposição por um golpe militar, instalou-se no país um forte regime de exceção, num longo período ditatorial em que os movimentos rurais no campo foram praticamente eliminados, mediante uma forte e violenta repressão. Na segunda metade da década de setenta, setores progressistas da Igreja Católica passaram a defender abertamente a reforma agrária, criando a Comissão Pastoral da Terra - CPT, culminando, em julho de 1979, com a ocupação de duas fazendas de propriedade do poder público federal, contando com a presença de 23 famílias, construindo um acampamento12. Destacam-se a participação de Padre Arnildo Fritzen e de um jovem ex-seminarista gaúcho, João Pedro Stédile, que se tornaria, no futuro, um dos maiores líderes do MST.

Os acampamentos formados por sem-terra no final da década de setenta recebiam apoio de grupos religiosos e comunidades locais, mas eram sucessivamente vítimas da ação de pistoleiros contratados por grandes proprietários de terras ou mesmo pela ação truculenta da polícia ou dos militares. Ocorre que, nesse período, o país vivenciou a decorrada do modelo econômico implantado pelo governo militar no início da década, apelidado de "milagre brasileiro". Com o aumento do desemprego, o surto inflacionário e a intensa concentração de renda, as ocupações de terra aumentaram progressivamente, resultando na mobilização da opinião pública em prol da reforma agrária, driblando a censura estabelecida pelos meios de comunicação desde o golpe de 1964.

O processo de finalização do período militar e restauração da democracia no país, na década de oitenta, coincidiram com a criação do MST, fundado em 1984, na cidade de Cascavel, no Paraná, num encontro promovido por representantes da CPT, membros da Igreja Católica, bem como de outras igrejas cristãs, evangélicas ou pentecostais, quando foi criada a expressão "sem terra", para definir trabalhadores rurais mobilizados e determinados, voltados para um projeto de reforma agrária para o Brasil. Era uma organização cujas lideranças foram egressas do meio religioso, majoritariamente ex-seminaristas, como Stédile, mas com uma base social essencialmente laica, formada tanto por trabalhadores rurais, como por trabalhadores desempregados oriundos das grandes cidades. Foi nessa época que adotou-se o slogan oficial do movimento: "ocupar, resistir e produzir" e foi dado grande respaldo ao movimento por uma opinião pública ansiosa pelo fim do regime militar e surgimento de um governo civil, responsável por uma nova aurora de mudanças, tão desejadas pela sociedade civil e pela grande população, comovida pela malfada campanha nacional das "Diretas Já", em torno da chamada "Emenda Dante de Oliveira", projeto do parlamentar de mesmo nome, que previa eleições diretas para presidente da república, ao final do ciclo ditatorial.

Com o restabelecimento da democracia em 1985, o novo governo determinou a organização de uma Assembleia Nacional Constituinte para redigir uma nova Constituição, que seria promulgada em 1988. O texto constitucional dispunha no caput de seu artigo 184, sobre a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, de imóveis rurais que não estivessem "cumprindo sua função social". Com isso, a luta pela reforma agrária no país ganhou um fortíssimo respaldo jurídico, ensejando um número maior de ocupações de terra e a legitimidade dos movimentos sociais voltados para os direitos do homem do campo.

Viveu-se então, no Brasil, o período das grandes ocupações, de intensas mobilizações e de grande visibilidade do MST enquanto movimento social carregado de forte apoio popular. Em 1997, no Rio de Janeiro, após a exposição de fotos do fotógrafo Sebastião Salgado, no Palácio da Cultura, em 3 de abril, denunciando o massacre de trabalhadores rurais em confronto com a polícia do Pará, em Eldorado dos Carajás, no ano anterior, o MST passou a organizar a ocupação da Usina São João (que viria a se transformar no assentamento Zumbi dos Palmares), realizado em 12 de abril, quando duzentas famílias acamparam no local. Na ocasião, a ocupação das terras da Usina São João revelava os seguintes atores sociais, atuantes naquele período enquanto aliados: a) integrantes da CPT: em sua maioria clérigos e representantes do meio religioso; b) trabalhadores na monocultura da cana, desempregados com a crise e péssimas condições de trabalho no setor sucroalcooleiro; c) a Prefeitura do município de Campos dos Goytacazes, representada pelo então prefeito, Antony Garotinho, futuro candidato a governador, interessado no apoio aos sem-terra por motivos eleitorais; d) o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária): agência federal responsável pela criação de assentamentos, interessada em resolver com rapidez a questão das ocupações de terras; e) sindicatos urbanos e universidades, visando a articulação do MST com outros movimentos sociais, que atuavam integradamente, formando uma rede de apoio a esses movimentos. Além disso, na época o MST possuía os seguintes oponentes: a) a TFP (Tradição, Família e Propriedade): grupo religioso conservador, que defendia a sacralidade do direito de propriedade da terra, denunciando em suas publicações locais os integrantes do MST como comunistas; b) os usineiros: proprietários de extensas áreas de propriedades situadas no meio rural, em flagrante crise financeira, interessados na manutenção de privilégios da oligarquia agrária; c) os bispos que representavam a ala conservadora da Igreja Católica, contrários à reforma agrária, críticos da Teologia da Libertação (movimento religioso-doutrinário que influenciava o meio católico esquerdista), em disputa com seus colegas religiosos, no meio progressista; d) partidos e grupos políticos de direita que se opunham ao MST e aos seus métodos, com especial destaque à União Democrática Ruralista -UDR, criada pelos latifundários, na época da Assembleia Nacional Constituinte, para defender os interesses dos grandes proprietários rurais13.

Entre aliados e oponentes, a ocupação da Usina São João avançou, passando a se chamar as Terras Ocupadas de Zumbi dos Palmares, em homenagem ao célebre líder quilombola. Com o apoio da Prefeitura que distribuiu lonas e cestas básicas para os acampados, além do fornecimento de professores para proferir aulas aos filhos dos acampados, os sindicatos urbanos e os militantes estudantis oriundos das universidades também se somaram aos sem-terra, enquanto o Judiciário apreciava o pedido de desapropriação. As lideranças do MST conseguiram obter uma audiência com o presidente da república na época, Fernando Henrique Cardoso, que elogiou o caráter pacífico da ocupação. Enquanto isso, os adversários do movimento, entre eles a UDR, defendiam a intervenção da Polícia Militar, para desmontar o acampamento, enquanto algumas lideranças conservadoras argumentavam que o movimento contribuía para a manutenção do desemprego, uma vez que continha no seu interior uma grande quantidade de trabalhadores urbanos desempregados. Tendo um forte apoio popular revelado pelos meios de comunicação no período, alguns opositores do MST alegavam nos jornais locais que a opinião pública tinha sido manipulada pelo movimento. A UDR e a TFP chegaram a organizar um movimento intitulado "SOS Fazendeiro", alertando os proprietários rurais fluminenses da ameaça do MST na região. Isso não foi suficiente para impedir o presidente Fernando Henrique de assinar o decreto de desapropriação de 12 de outubro de 1997, numa das ocupações mais bem sucedidas realizadas pelo MST.

No ano de 2002, o antigo Assentamento Nova Ramada, no município de Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul, planejado e organizado pelo MST14, também relevou o sucesso do emprego da ocupação como meio de exercício do protesto e do direito de resistência, como forma de atingir suas reivindicações por reforma agrária. Para se ter uma ideia, até 1989, antes da ocupação, a fazenda Nova Ramada era considerada improdutiva, utilizada somente como pasto para criação de gado. Com a ocupação e posterior desapropriação, hoje o assentamento produz os mais variados produtos agrícolas, principalmente soja, milho, feijão e frutas, além da criação bovina, suína, aves e laticínios. Cerca de cem famílias cuidam da produção, cada uma possuindo renda própria, além das escolas instaladas acolherem 125 crianças que têm aulas em salas bem equipadas e em boas condições de uso. As famílias de agricultores residem em moradias com água, luz, antenas parabólicas e carros em suas garagens e são organizadas politicamente em torno de assembleias, com coordenações eleitas periodicamente em sistema de rodízio.

O que interessa nesse mosaico de lutas que representa as ações do MST é que, de um lado, esse movimento social atua conforme táticas e mecanismos próprios, privilegiando as ocupações de terra como forma de alertar o poder público para problemas sociais emergenciais e recorrentes, requerendo a intervenção célere do INCRA, valendo-se das invasões como sinal de alerta para o início de uma interlocução com o poder político para o problema da reforma agrária. Por outro lado, os proprietários de terras valem-se de três meios para recuperar suas terras ocupadas pelos sem-terra: uso da força, negociação ou ações judiciais15. A legislação, através do artigo 184 da Constituição, a Lei n° 8.629/1993, que dispõe sobre a função social da propriedade e a Lei Complementar n° 76/1993, que trata do procedimento especial de desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária, é utilizada pelos principais atores sociais envolvidos nos conflitos fundiários no Brasil: o poder Executivo, o Judiciário, proprietários de terras e os sem-terra.

O Judiciário é o espaço privilegiado, no âmbito do sistema jurídico, onde se debruçam nos tribunais os principais conflitos e tensões oriundos das relações agrárias, quando se buscam soluções normativas, no âmbito do ordenamento, para situações como as ocupações de terra. Em alguns casos, são concedidas liminares para reintegração de posse aos seus proprietários, como também reconhecem os tribunais as ocupações de terra como justas e legítimas, como na decisão do Superior Tribunal de Justiça em habeas corpus favorável aos líderes dos sem-terra no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, conforme se vê em parte do voto proferido pelo ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:

A Constituição da República dedica o Capítulo III do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização.

Na ampla arca do direito de cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais.

A Carta Política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o poder político da sociedade, de outro, gera direitos.

É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legitima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente.

Reivindicar por reivindicar, insista-se, é direito. O Estado não pode impedi-lo. O modus faciendi, sem dúvida, também é relevante. Urge, contudo, não olvidar o princípio da proporcionalidade, tão ao gosto dos doutrinadores alemães.

A postulação da reforma agrária, manifestei em Habeas Corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com esbulho possessório, ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao direito. Sabido, dispensa prova, por notório, o Estado vem retendo a implantação da reforma agrária.

Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão.Insista-se. Não se está diante de crimes contra o patrimônio. Indispensável a sensibilidade do magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas16.

Ora, como pode se observar em determinados julgados, a questão da reforma agrária é o grande vetor das ocupações de terra no país, promovidas pelo MST, constituído num legítimo movimento social por excelência, dotado de legalidade na sua criação, organização e funcionamento, e se tornando um movimento que se vale da liberdade de expressão, constitucionalmente assegurada, para defender as ocupações de terra, tidas por seus adversários como meras invasões, como forma de exercer uma bandeira de resistência e de luta, na busca de reconhecimento de direitos. Os oponentes do movimento insistem em classificar as condutas dos integrantes do MST como meras ações delituosas, plenamente tipificáveis entre as situações penais, como se reivindicações sociais se transformasse em caso de polícia. Em certas situações de ocupações de terras, mormente em ações penais movidas pelo Ministério Público contra representantes desse movimento social, as atividades dos sem-terra são descritas como práticas delituosas, inseridas no rol de riscos não permitidos pelo subsistema penal. Muitas dessas atividades constituem-se em legítimos atos de resistência, que incluem paralisações, protestos e bloqueio de ruas e estradas, muitas vezes brutalmente reprimidos pela polícia, ou considerações ilegais pelos órgãos estatais.

Ver Tabla 2

No decorrer deste estudo, o que parece ficar demonstrado é que nunca antes a racionalidade do direito penal ficou tão comprometida diante de um avanço punitivo, no que tange às soluções jurídicas empregadas para problemas sociais pendentes na realidade brasileira, como a questão da reforma agrária e a desigualdade social no meio rural. Não obstante a previsão constitu cional acerca da função social da propriedade, desde a promulgação da Constituição de 1988 até hoje, a utilização de táticas que levam em conta a ocupação de terras como meio de protesto e exercício da reivindicação social como direito de resistência, tem sido mal entendida por juristas e aplicadores do direito, uma vez que as pressões exercidas pelo sistema econômico e pelo sistema político, ainda comprometem por demais as decisões havidas no interior do sistema do direito. Importante notar como as rebeliões populares, capitaneadas por movimentos organizados, mesmo numa sociedade democrática, no atual estágio de desenvolvimento das relações sociais no Brasil, ainda são vistas como fator de alarma e, para alguns, como momento fomentador de perigos, que necessitam da intervenção repressiva do Estado para serem resolvidos; o que torna bastante problemática a questão da manutenção do princípio da democracia, num Estado Constitucional de Direito, como se vive hoje na realidade brasileira.

O modelo de segurança colombiano diante das FARC e a repressão aos movimentos sociais no Brasil

O modelo de segurança adotado pela Colômbia a partir de 2002 revelou uma aliança implícita entre os setores paramilitares da sociedade colombiana e seu corpo político, numa plena materialização do conceito de inimigo trazido por Jakobs, agora traduzido na forma da figura do terrorista, e o reconhecimento como tal de integrantes da organização guerrilheira intitulada FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Independente do quão vago e aberto seja o tipo penal que defina o que é terrorismo, Jakobs defende que a pena, num Estado de Direito, não se aplica ao terrorista, ao comentar o Código Penal Alemão:

"embora a perturbação da segurança pública somente possa ser distinguida de forma relativamente difusa, fazem-se necessárias cominações penais mais severas, para evitar ações mais agressivas, pois somente o Direito Penal - mas não o Direito Policial, competente para repulsa de perigos propriamente ditos - pode estilizar os responsáveis pela associação perigosa em agentes, mais precisamente agentes nos termos do art. 129a do Código Penal, congelando-os por longo tempo com a prisão preventiva e a prisão permanente"17.

Jakobs entende que a contaminação do direito penal por um direito policial está sujeita a críticas, mas nem por isso ele descarta essa contaminação. Pelo contrário, por entender que a finalidade do Estado de Direito não é ode possibilitar a maior segurança possível de bens (a norma penal tutela pessoas e não bens), mas sim o de providenciar a eficácia efetiva de um direito, onde a figura do terrorista é vista como aquele que não oferece um alicerce cognitivo para sustentar uma expectativa normativa, e, por isso, deve ser punido de forma diferenciada. Como Jakobs opera seu conceito de direito e sociedade dentro de um quadro geral de expectativas sociais acerca da fidelidade à norma, ele defende a tese de que o terrorista, por sua recusa em adotar um comportamento fiel ao direito, viola todas as expectativas acerca de qual deveria ser a conduta correta, e desta feita, prejudica uma eficácia jurídica que tem que ser necessariamente efetiva, a fim de não atingir a segurança do sistema do direito. Em outras palavras: para o terrorista, a exclusão definitiva.

Se for procurado um conceito de terrorismo ou terrorista, Hobsbawn define o terror como uma faceta típica da sociedade e do Estado modernos, surgido no processo histórico de construção da democracia no Estado liberal, em contraposição ao autoritarismo vigente em Estados ditatoriais, a partir da transformação de uma generalizada violência social em violência política.18Assim, movimentos sociais cujas atividades são postas na clandestinidade, que se valem da violência na prática de seus atos, podem ser classificados como terroristas e ensejar medidas punitivas de natureza bélica, da mesma forma como são tratados os inimigos de Estado. Para o Estado o terrorista é, sobretudo, um inimigo, um estranho não convidado ou não integrado ao pacto social, a quem, conforme desejam autores como Jakobs, deve ser destinada uma medida de segurança para que seja excluído do convívio social e assim não afete a estabilidade do sistema.

É sob a lógica de se punir o terrorista, colocado como alvo de uma ação bélica, que no ano 2000 adotou-se o Plano Colômbia, graças a uma aliança financeira e militar entre a Colômbia e os Estados Unidos.19 A partir desse acordo entre nações, em cinco anos, a Colômbia recebeu uma ajuda financeira de cinco bilhões de dólares, tornando-se o país colombiano o terceiro beneficiário do mundo dos EUA no fornecimento de recursos para o armamentismo de um Estado policial, após Israel e o Egito. Sob o pretexto de se sofisticar uma política criminal de "guerra às drogas", iniciou-se um périplo de caçada a terroristas com objetivos militares de se eliminar a guerrilha, sob o custo de milhares de vidas, atingidas no fogo cruzado entre militares, paramilitares e guerrilheiros.

Atenta-se para o fato de que o Plano Colômbia foi criado sob o pretexto de se estabelecer uma política criminal para combate ao narcotráfico que envolvesse a participação de efetivo bélico não só do próprio país, mas também com a colaboração militar dos Estados Unidos, tendo em vista as enormes toneladas de droga que após seu refino, eram enviadas para a América do Norte, um dos principais consumidores globais de cocaína. Sob o revestimento desse modelo de intervenção penal, sobretudo com a "doutrina Bush" e a ascensão ao poder do presidente Álvaro Uribe, dobra-se o orçamento militar do Estado policial colombiano, além de se propiciar uma proliferação dos grupos paramilitares, responsáveis por uma política de extermínio e violação de inúmeros direitos fundamentais, com a prática de torturas e execuções sumárias.

O paramilitarismo com a formação de milícias armadas, como produto típico de uma sociedade de risco e de uma cultura penal de emergência, tendo em vista que o emprego da força e violência contra inimigos são vistos como uma necessidade, vê seus correlatos não apenas na experiência colombiana, mas muito na formação de milícias formadas por policiais ou ex-policias no Brasil, no exemplo do Rio de Janeiro, como também na formação de exércitos particulares, mercenários pagos por empresas privadas, como é o caso da norte-americana Blackwater, em plena atividade num Iraque ocupado militarmente. Não obstante a existência de efetivos policiais uniformizados, responsáveis pelo patrulhamento e policiamento ostensivo, em todas essas regiões o que se percebe é o advento de um novo modelo de segurança, alicerçado em diretrizes políticas de um Estado comprometido com soluções imediatistas acerca da nova criminalidade global, como o narcotráfico, o crime organizado e o terrorismo, mesmo que à revelia dos dispositivos constitucionais garantidores de direitos.

O paramilitarismo colombiano é um fenômeno social que surgiu na Colômbia desde a década de oitenta do século passado, e tem suas raízes na formação de organizações de autodefesa, autorizadas pelo governo colombiano, a fim de combater o domínio das FARC, em parte do território sujeito a sua intervenção. Atualmente essas organizações se constituem de formas diversas, desde milícias rurais ou empresas de segurança, até a formação de pequenos grupos de mercenários, contratados a soldo da iniciativa privada20. Assim como na Colômbia, nas regiões ocupadas pela FARC, houve um incentivo do governo à formação desses grupos na resistência contra a guerrilha, que acabaram por se constituir em organizações criminosas, no Brasil, em capitais como o Rio de Janeiro houve certa tolerância do governo local fluminense quanto ao surgimento e desenvolvimento das milícias privadas, formadas em sua maioria por integrantes das polícias, residentes nas comunidades, no combate a traficantes, que acabaram por se transformar em quadrilhas e bandos de criminosos que vivem graças à prática de venda de proteção, controle de sinais de televisão a cabo e no fornecimento de abastecimento de água e gás. Tanto os paramilitares colombianos como os brasileiros possuem braços nos poderes institucionalizados, com representantes clandestinos no Poder Legislativo, e sob a lógica da autotutela violenta, contribuem ainda mais para as irritações do sistema jurídico-penal, a partir de uma intervenção bélica em problemas criminais (sobretudo o narcotráfico).

O modelo colombiano, exortado nas políticas nacionais punitivas pelos estados da federação, a partir de suas secretarias de segurança, tomando como referência a bem sucedida experiência da cidade de Bogotá no controle da criminalidade e da violência, não revela em suas linhas iniciais o verdadeiro propósito do sistema penal na repressão daqueles indivíduos tidos como indesejáveis, mas sim se apresenta como estratégias cientificistas inovadoras de controle do fenômeno criminal, a exemplo do surgimento das Unidades de Polícia Pacificadora-UPPs, modelo penal experimentado pelo governo do estado do Rio de Janeiro, a fim de restabelecer o controle da polícia sobre os morros cariocas, outrora ocupados por traficantes21.

Salienta-se que a forma de criminalidade exposta hoje com o novo período de globalização, tal como o crime organizado, tem seu pressuposto histórico no desenvolvimento do fordismo como forma de regulação de indivíduos por seu aproveitamento produtivo na atividade econômica, transformando-se num instrumento de controle social com repercussões na seara penal. Se o fenômeno da expansão punitiva e separação entre cidadãos e inimigos pode ser recorrente na América Latina tanto no ambiente urbano onde prosperam grupos paramilitares ou milícias como no Rio de Janeiro e paramilitares nas cidades colombianas, também o mesmo ocorre quanto ao emprego de uma severa intervenção bélica a grupos guerrilheiros como as FARC na Colômbia e contra movimentos sociais como o MST, na área rural. Em ambos os casos, graças ao discurso midiático, tanto integrantes do grupo guerrilheiro colombiano como militantes sem-terra foram estigmatizados como "terroristas", por diversos veículos de comunicação, ensejando a aplicação de dispositivos penais de natureza bélica, que propunham intervenções severas quanto a supostos inimigos do Estado de Direito vigente e fatores de risco para a segurança nacional.

Entretanto, urge salientar as semelhanças quanto à origem e as diferenças quanto as táticas de organizações como as FARC e movimentos sociais como o MST. Ambos tem sua origem no campo, entre trabalhadores da zona rural, inconformados com sua condição social de excluídos do processo de produção pela ausência de reforma agrária e seu alijamento da produção agrícola, orientados por um programa doutrinário de inspiração marxista-leninista. Em termos de desenvolvimento histórico, as FARC tiveram seu início nos movimentos agrários de ocupação desordenada de terras, devido ao atraso do Estado em estabelecer uma regulamentação do setor fundiário.22A formação de latifúndios com a dominação expressa de setores mais bem aquinhoados da sociedade com a centralização de terras, produziu conseqüentes conflitos e litígios quanto à posse da terra e a necessidade de uma reforma agrária, o que muito se assemelha, inicialmente, ao processo político de se discutir alternativas para o campesino, como ocorreu na realidade brasileira desde a formação das Ligas Camponesas até o surgimento do MST.

Um diferencial da ação política desenvolvida pelas FARC, e que aí denota sua diferença abismal com a estruturação do MST, é que na Colômbia o processo político foi mais dramático pelo trauma com a morte do carismático líder político de esquerda, Eliecer Gaitán, em 9 de abril de 1948, e a reação popular com a formação com o recrudescimento da violência estatal no governo colombiano, face o fim prematuro de um período populista de lideranças históricas como Gaitán na Colômbia, que viriam a surgir e prosperar no cenário político de seus países, como Perón na Argentina e Vargas no Brasil. Foi um conjunto de fenômenos ocorridos na Colômbia chamado de La Violencia que proporcionou o surgimento de uma organização guerrilheira como as FARC. Tanto conservadores como liberais passam a resolver suas contendas políticas por meio de atos violentos, formando grupos armados que disputam a aquisição do poder, proporcionando o surgimento de movimentos rebeldes em áreas tradicionamente convulsionadas por conflitos agrários e propensas à difusão da ideologia comunista23. Durante as décadas de cinqüenta e sessenta do século passado esse conturbado período político serviu como embrião para a construção das FARC. Em 1966 o grupo é oficialmente formado, e sob a liderança de Manuel Marulanda Vélez e Jacobo Arenas inicia suas ações armadas, que culminariam com o status que hoje possui o movimento, diante do desenvolvimento de uma criminalidade voltada para o narcotráfico, e que corresponde ao período de flexibilização econômica do capitalismo e surgimento do estado posterior da modernidade, já comentados nos capítulos anteriores desta tese.

No Brasil, movimentos sociais surgidos no campo com a defesa da reforma agrária aparecem na região nordeste, nos anos cinqüenta24. Na década seguinte esses movimentos foram crescendo, culminando no primeiro decreto nacional sobre reforma agrária, no governo do presidente João Goulart, que terminou por ser deposto do poder pelo golpe militar de 1964, tornada sem efeito a iniciativa estatal para uma transformação das relações sociais no campo e uma superação da estrutura agrária existente. No período da ditadura os movimentos sociais foram fortemente reprimidos, contando com o expressivo apoio das elites latifundiárias. Apesar disso, no governo militar foi aprovada uma lei de reforma agrária destinada à colonização da região da Amazônia, que, se não modificava as relações existentes no campo, ao menos permitia uma tímida, porém possível, organização dos defensores da reforma agrária, como integrantes da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, controlada pelo governo), integrantes da Igreja e membros do partido de oposição ao regime militar. Com a formação de uma rede de sindicatos de trabalhadores rurais, abrigados pela CONTAG na década de setenta, no início da década seguinte presenciou-se um novo ciclo de mobilizações de trabalhadores, agora organizados sob o leque de sindicatos rurais e com apoio de sacerdotes progressistas encontrados no meio religioso, que debatiam temas agrários. Portanto, já se assinala aqui uma brusca diferença de surgimento, formas de organização e estrutura dos movimentos rurais no Brasil, em comparação com as lutas campesinas no território colombiano. No sul do Brasil, onde esses movimentos emergiram com força, a degradação do regime militar e o advento da ruptura democrática coincidiram com o fortalecimento das lutas pela reforma agrária, até que o MST foi instituído nacionalmente em 1984. Atualmente, o movimento possui cerca de 1,14 milhão de membros, 2000 assentamentos agrícolas, uma rede de 1.800 escolas primárias e secundárias, uma escola de nível superior, 161 cooperativas rurais e 140 agroindustriais, além de vários meios de comunicação25.

No espectro ideológico, as diferenças entre as FARC e o MST também são acentuadas, tendo em vista que o primeiro grupo se estruturou enquanto uma organização guerrilheira, de caráter clandestino, à revelia da legalidade, dedicada ao combate, tendo como adversário principal o Estado; enquanto que o segundo surgiu como movimento social de reivindicação de direitos no marco da legalidade, que se armou paulatinamente devido aos embates e conflitos surgidos com a ocupação de terras, tendo como adversários principais os latifundiários e tendo o Estado como principal destinatário de suas reivindicações, na qualidade de tutor institucional do movimento. Envolvidos por uma forte orientação maoísta, com bases numa doutrina marxista-leninista adaptada à realidade do campo, os fundadores das FARC tinham como objetivo à ruptura institucional, com a destruição do Estado burguês e sua superação pelo Estado socialista, enquanto que os líderes do MST (apesar de muitos apresentarem uma formação marxista) atêm-se tão somente ao atendimento de reivindicações que não visam modificar o modelo de sociedade dominante, mas sim adequar seus integrantes a um novo quadro social de consumo e inclusão, com a transformação de sem-terras em autênticos proprietários rurais, por meio da redistribuição da renda fundiária. Desta forma, desfaz-se o argumento midiático acerca da periculosidade da existência desse movimento e elimina-se a distinção entre cidadãos e inimigos, tendo em vista que a aplicação de um suposto Direito Penal do Inimigo na realidade do MST seria completamente fora de sentido.

O próprio conceito de terrorista e terrorismo, como já foi visto, torna-se emblemático do quanto à aplicação de tal denominação aos integrantes de um movimento social como o MST é inoportuna, tendo em vista que a violência política no século XX não se destaca da violência em geral26. Segundo Hobsbawn, a relação dicotômica entre violência e não-violência ganhou maior respaldo em Estados fortes e estáveis onde se desenvolveram as democracias liberais. De lá, onde o monopólio legítimo da força é concentrado no Estado, é que se pôde ver na desproporcionalidade na intervenção do Estado em desarmar a população e até que ponto nos últimos anos a violência vem aumentando como o desenvolvimento da criminalidade. O que Hobsbawn detecta com perfeição é que o pensamento liberal foi incapaz de reconhecer que, em qualquer sociedade, a política emprega algum tipo de violência, e como foi já dito conforme a análise formulada por Clam, é essa violência que inaugura o direito. A violência pode se manifestar desde simples piquetes, greves ou manifestações de rua, quanto na ação do Estado em controlar distúrbios. Portanto, o emprego da violência enquanto um critério para se qualificar uma organização como terrorista é totalmente inócuo e inapropriado para se discutir um fenômeno que, em termos de discurso, merece essa denominação.

FARC e MST são muito além de duas siglas estatuídas conforme uma espiral da violência convulsionada pela desigualdade e conflitos sociais. Ambas nascem como produto de revoltas camponesas, e essas revoltas não são tão ou mais violentas do que muitas manifestações sociais onde o exercício do protesto e da resistência leva à prática de atos considerados violentos, mas que nem por isso atentam para a desestabilização de um Estado de Direito ou para a modificação de um regime vigente, como se o próprio sistema do direito fosse tão frágil como uma peça de porcelana ou uma bola de cristal.

Ver Tabla 3

Para Hobsbawn, é a degeneração da violência política no surgimento do Estado moderno até o período atual globalizado que gera uma cultura do medo contra o terror, que acaba por sufragar a expansão punitiva27, no momento em que tanto grupos que se insurgem contra o Estado, quanto o próprio Estado assumem que sua luta é tão justa que até a violência é legitimada para se obter a vitória sobre o adversário. Na concepção das tropas de elite dos efetivos estatais o que vale é a tônica de combate e vitória sobre inimigos armados, que por sua vez se insurgem contra a polícia, também munidos de suas armas como forma de questionamento do estado social vigente. É a barbárie que convive de mãos dadas com o totalitarismo, deixando rastros desde o período de ascensão dos nazifascimos e que continua até hoje, em sociedades pretensamente democráticas. A violência como necessidade é urdida para dentro do âmbito do sistema jurídico, responsável pela legitimação de expectativas que se valem do meio violento como forma de reataurar a integridade do sistema. Emprega-se a violência como resultante de um princípio da necessidade, pois sem ela a sociedade caminharia para o terror da barbárie dos movimentos insurgentes de rebelião e protesto. Só que o Estado se reveste do mesmo terror que pretendia combater.

No Brasil, não obstante a previsão constitucional da função social da propriedade, as normas que asseguram direitos fundamentais como a liberdade de associação e reunião, e o exercício livre do protesto, por meio da liberdade de expressão; percebe-se hoje o quanto numa sociedade pretensamente democrática e com governos nacionais comprometidos com o Estado de direito, é possível ver discursos criminalizantes, guiados pela emergencialismo e o alarma de um sentimento de insegurança coletiva, e defensores de um rigor punitivo quanto a movimentos sociais como o MST. A flagrante contestação do movimento, e a pregação da saída por uma via punitiva quanto a sua organização chegou a ser defendida pelo candidato de oposição à presidência da república nas eleições de 2010, e pela coligação que sustentou sua campanha política, afirmando que a vitória da candidata adversária serviria para fomentar mais e mais invasões criminosas no campo, patrocinadas pelos militantes do MST.Além disso, existe no país uma claque intelectual que procura desqualificar o movimento, desabonando a conduta de seus integrantes, na tentativa de esvaziar suas pretensões legítimas, como se fossem precárias ou sujeitas a expedientes manipuladores. Alguns desses autores como os sociólogos José de Souza Martins e Zander Navarro, no âmbito da sociologia,28pregam, respectivamente, que os integrantes do MST são manipulados por interesses ideológicos e partidários de ativistas localizados na classe média, e que suas reivindicações estão muito distantes das verdadeiras demandas do homem pobre do campo; enquanto que por outro argumento, sustenta-se o argumento histórico de que a luta pela reforma agrária no país já passou, e que o processo de urbanização e o desenvolvimento do agronegócio no meio rural destituíram a razão de ser da reforma agrária, uma vez que é o agronegócio e não a atividade agrária tradicional, que estimula a economia no meio rural. Outros teóricos, como o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, cujas opiniões já foram citadas aqui neste estudo, acirram os ânimos estremados do debate, pois entendem que organizações como o MST e as Comissões Pastorais da Terra não passam de organizações criminosas ou revolucionárias, pois as acusa de "promover invasões de propriedade, seqüestros, posse ilegal de armas, desrespeito à lei e depredação de propriedades", além do "uso generalizado da violência'.

São esses discursos encontrados em setores da intelectualidade nacionais que servem como fomento para o sistema dos meios de comunicação, e a forma agressiva e ruidosa com que a mídia vem tratando as reivindicações de movimentos sociais, tendendo a apoiar medidas repressivas e a via da criminalização, num franco suporte à expansão punitiva. A introdução da notícia, subsidiada por reportagens, entrevistas, ensaios e publicações de artigos em jornais e revistas, estimulando um olhar mais do que crítico, mas acintoso em relação aos movimentos sociais, acaba por produzir irritações no âmbito do sistema jurídico e na via pela qual o Estado canaliza sua violência por meio de seu aparato repressivo. Do dia para a noite geram-se inimigos, terroristas e indesejáveis a serem combatidos pelo Estado, em prol de uma sociedade "livre", conforme o jargão liberal dos argutos defensores de um componente ideológico neoliberalista. Está preparado o cenário para a propagação da violência.

Estado policial ao invés de Estado social, tratamento de reivindicações sociais legítimas por terra e trabalho considerados como caso de polícia e ação de criminosos que promovem invasões de terra e destruição de propriedades. Nesse discurso punitivo de criminalização do MST é possível sinalizar como as mudanças econômicas trazidas pela pós-modernidade e a manutenção de uma estrutura social anacrônica, mantida por um conservadorismo presente no discurso dominante sobre a criminalização, culminou com a expansão punitiva e a repressão ativa e consciente dos movimentos sociais. Garland, por sua vez, analisa que a reação ao chamado "prevendiciarismo penal" passou a possuir traços reaçonários e totalizantes,29no sentido de que, historicamente, foram se formando novas relações entre os grupos sociais, movidas por demonstrações emotivas de medo, indignação e hostilidade em relação ao problema do crime.

Garland constata que as classes sociais que outrora apoiavam políticas de bem-estar social, seja por estarem movidas por interesses próprios ou por uma simples solidariedade de classe, passaram a rever seu apoio a tais políticas, à medida que setores da classe média passaram a se sentir atingidos pelas mudanças sociais ocorridas com as políticas previdenciárias destinadas aos pobres. Medidas assistencialistas e a intensa preocupação com a ressocialização e manutenção das garantias de indivíduos das classes mais baixas envolvidos em práticas delituosas, passaram a ser vistas como um luxo oneroso destinado a quem trabalhou menos, ou se esforçou pouco para obter, no âmbito da livre concorrência a tão sonhada aquisição de riquezas, defendida pela ideologia liberal. As críticas dos componentes desse segmento social vão desde o medo de que os antigos excluídos venham a se juntar a eles na mesa de jantar, até de que os tributos pagos pela classe média sirvam apenas para sustentar criminosos nas cadeias. O argumento é que o custo dos pobres não inseridos no mercado torna-se tão caro no Estado de bem-estar, que não é mais compensador que os contribuintes que trabalham paguem por esse custo.

Percebe-se, portanto, que a expansão punitiva e a criminalização de movimentos sociais como o MST segue uma tendência que acompanha a pós-modernidade de firmar uma política criminal baseada no neoliberalismo, no aspecto econômico, e no neoconservadorismo, no aspecto político.30A atual antipatia com que setores da sociedade e do poder político tem em relação ao movimento, relacionam-se com a tentativa neoliberal existente desde os anos oitenta do século passado, a partir dos governos norte-americanos e britânico, de difundir globalmente uma política de reversão das soluções empregadas pelo Estado de bem-estar social, no sentido de se estabelecer um fundamentalismo no mercado, na fé intransigente na livre concorrência, sem as amarras do Estado, assim como na manutenção da desigualdade social como parte das regras do jogo do livre mercado. Concomitantemente com esse aspecto econômico, no plano político o neoconservadorismo introduziu uma visão antimoderna sobre questões relacionadas a valores apegados à tradição, ordem, hierarquia e autoridade. Reinaugura-se um conservadorismo moral graças à influência religiosa e ao pensamento de intelectuais neoconservadores. São esses pensadores, como Rosenfield, apegados a temas como a responsabilidade individual e a disciplina, que estabelecem discursos punitivos baseados na ordem e no rígido controle na manutenção da disciplina, como forma de se estabelecer a harmonia e a coesão social. Ocorre que esse controle disciplinar que deve ser exercido pelo Estado acaba se dirigindo contra os mais pobres, tolhendo-se qualquer movimento de rebeldia ou manifestação social como um ato criminoso. Com o neoliberalismo e o neoconservadorismo, alia-se, assim, liberdade econômica com controle social.

A disciplina moral requerida pelos neoconservadores, e o apego aos valores tradicionais, tais como a ordem (o trabalhador ordeiro é aquele que não reclama e que trabalha, esforçando-se para sobreviver) a hierarquia e o respeito à autoridade (a rebelião e o protesto como exercício da desobediência e não de um direito), são direcionados aos excluídos socialmente ou do mercado de trabalho, às comunidades marginalizadas e não a setores inteiros da sociedade. A disciplina está voltada para os inimigos e não para os cidadãos, ou, como se aproveitou Jakobs da distinção formulada por Luhmann entre indivíduo e cidadão, o rígido controle disciplinar está voltado para os inimigos, e não para os cidadãos já disciplinados. O inimigo é o terrorista, aquele que não está comprometido com o pactum societatis e que não desfruta dos mesmos valores tradicionais e apego à ordem e a hierarquia como pressupostos de sua formação moral de cidadão, segundo a lógica repressiva encontrada na teoria de Jakobs. O desmanche do "Estado babá"31pregado pelos neoliberais deu mais espaço para acumulação de riquezas, num mercado desregulamentado para alguns setores da sociedade (os ditos "cidadãos de bem"), mas, em contrapartida, fragilizou ainda mais demais setores mais frágeis da comunidade, sujeitos a um desemprego crônico, e propensos a estabelecer novas formas de relação social, seja aderindo propriamente ao crime, seja sendo taxados de criminosos, ao integrar movimentos de questionamento e rebelião, como ocorre no caso dos sem-terra, tidos como principais destinatários da violência institucional através da intervenção repressiva do Estado.

Pergunta-se se existe uma alternativa constitucional ao fenômeno da expansão punitiva, propagadora da violência institucional do aparelho repressivo do Estado, mormente no que tange aos conflitos no campo. A criminalização dos movimentos sociais como reação a um suposto sentimento de insegurança coletiva transmutado em terror, sob o fundamento da necessidade, pode vir a colidir com princípios constitucionais como os da liberdade e da dignidade, transversalizados entre o sistema jurídico e os demais sistemas sociais, a partir de aberturas cognitivas e acoplamentos entre o político e o jurídico, a partir do texto constitucional.

Ora, se for entendido que o sistema jurídico-penal opera com seletividade no processo de tipificação de condutas, também é possível compreender que essa seletividade mantém relação com a abertura cognitiva do sistema jurídico e de seus acoplamentos com seu entorno social, a ponto de se discutir, se no estágio atual da modernidade, dentro do processo recente de globalização, ao mesmo tempo em que o subsistema penal se fecha autopoieticamente em sua punibilidade, como ele pode se abrir diante dos pluralismos no ambiente social e no reconhecimento e assimilação da contingência32. O resultado disso pode levar tanto a uma expansão punitiva com o recrudescimento dos discursos de lei e ordem e a necessidade de se combater inimigos, como também pode relevar um novo âmbito de eliminação ou redução de tipos penais, e a conclusão de que determinadas situações e casos não devem mais receber a pesada intervenção punitiva de normas penais, mas sim de um reconhecimento normativo de direitos e garantias fundamentais, tais como o direito ao trabalho, moradia e o exercício do protesto e da rebelião, como supedâneo de princípios constitucionais que asseguram a liberdade de reunião e associação.

Talvez dessa forma seja possível resgatar o direito penal de um perigo estado de irracionalidade no momento em que a aplicação racional da coerção imediata diante da iminência da violação da norma e aplicação da sanção, cede lugar a uma política criminal de busca de inimigos a serem atingidos por um regime de punibilidade que muito atenta para direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados.

Conclusão

Por tudo o que foi exposto, pode-se chegar a algumas conclusões acerca de realidades aparentemente distintas de dois países latino-americanos com suas especificidades históricas e culturais, como Brasil e Colômbia. Observa-se que, não obstante as diferenças, ambos são marcados por experiências econômicas e sociais que se traduziram numa organização irregular da distribuição de terras agrícolas no país, resultando num aprofundamento da divisão de classes no meio rural, entre latifundiários de um lado e trabalhadores rurais do outro, tendo por consequência a emergência de conflitos agrários, com luta armada e intervenção policial.

Talvez muito em função de um passado autoritário comum, e pela semelhante distribuição desigual de riquezas no âmbito das sociedades brasileira e colombiana, agudizadas por um processo crescente de exclusão social e manutenção das diferenças entre ambiente urbano e rural, observa-se que tanto na realidade do camponês brasileiro, quanto de seus similares latino-americanos, nas tentativas de organização e enfrentamento do quadro de desigualdade local, percebe-se que estas acabam por implicar em confrontos violentos, que trazem à tona toda a intervenção punitiva do Estado. Essa intervenção é caracterizada pelo meio de conceitos empregados na teoria penal, que levam a reforçar seletivamente estigmatizações já existentes nos primórdios da formação do Estado liberal-burguês: o camponês insurreto não passa de um inimigo, um terrorista a serviço da destruição ou enfraquecimento do Estado de direito, no momento em que se vale de organizações armadas para defender seu direito a terra e trabalho, como ocorreu na formação histórica das FARC na Colômbia, e se dá continuamente nos conflitos agrários entre militantes do MST, latifundiários e integrantes das polícias, na realidade brasileira.

Na observação das elites locais, emanam opções conservadoras em duelo com outras, mais progressistas, pois também fazem parte da experiência política das lutas sociais desenvolvidas em torno da terra, e no consequente confronto político entre movimentos sociais associados às lutas dos trabalhadores rurais com os sucessivos governos que surgiram no

Brasil e Colômbia no último século. Em relação ao governo colombiano, a opção conservadora esteve mais presente, reafirmando práticas de relação do governo local com os projetos de nações outrora tidas como imperialistas, como os Estados Unidos da América, estabelecendo uma repressão aos movimentos sociais organizados e a grupos clandestinos como as FARC, sob o slogan da política norte-americana de Guerra às Drogas. No Brasil, com a vinda do governo Lula, a relação do MST com o poder político apresentou traços de distensão e afrouxamento de conflitos, ao mesmo tempo em que o novo governo brasileiro, de orientação progressista pouco inovou em termos de redefinir as relações de poder de classe estabelecidas no campo, ou de estimular mais agilmente profundas mudanças radicais nessas relações a partir de uma efetiva política de reforma agrária33.

Na Colômbia, por sua vez, permanece a exclusão social nas grandes áreas rurais, servindo trabalhadores rurais despossuídos como eficiente exército de reserva a ser recrutado pelas FARC, apesar das incessantes ações bélicas do

Estado, com resultados trágicos para ambos os lados, especialmente para os guerrilheiros, com a perda de suas principais lideranças. Apesar de anualmente ser anunciada a proximidade do fim da organização, com seu completo aniquilamento pelo governo, através de uma pacificação forçada do campo pelo emprego das armas (tema recorrente de tantas campanhas eleitorais na Colômbia), não se vislumbra uma dissipação imediata dos conflitos agrários no solo colombiano, e nem a espiral da violência voltada para o ciclo do narcotráfico e guerrilha, em confronto com organizações paramilitares e latifúndio.

Enquanto isso, no Brasil, as tentativas de criminalização do MST esbarram na maior legitimidade conferida a esses movimentos por parte do governo federal. Enquanto que na Colômbia é difícil uma conciliação entre sublevados e governo, no Brasil, a ascensão ao poder de representantes do Partido dos Trabalhadores-PT (legenda historicamente simpática ao MST), nos governos de esquerda dos presidentes Lula e sua sucessora, Dilma Roussef, apresentam um tom de abrandamento dos conflitos com essa agremiação, em especial; apesar de manter uma dubiedade conciliatória no que tange a estabelecer uma real ruptura com as condições anacrônicas ainda mantidas no campo, que servem como obstáculo para uma reforma agrária real na realidade agrária brasileira, ou preservar os interesses de uma elite rural, fortemente organizada por meio de seus representantes no Congresso Nacional, por meio de concessões à bancada parlamentar ruralista, em temas relevantes, como modificação dos índices de produtividade no campo e exploração agrícola com preservação de meio ambiente, na difícil votação do novo Código Florestal.

De qualquer forma, tais movimentos originados e desenvolvidos por meio das lutas sociais agrárias permanecem vivos, e com eles toda uma variedade de militantes, que por meio das armas ou de argumentos buscam soluções viáveis para a redução e até mesmo eliminação das desigualdades que já geraram tanto desconforto e violência no campo, na realidade de milhares, senão milhões de camponeses. O Estado não pode mais permanecer inerte diante disso, e, diante da percepção de uma saída racional, fundamentada na viabilidade de direitos sociais consagrados constitucionalmente por meio do comprometimento governamental, no lugar de precipitadas e repressivas soluções criminalizantes, talvez seja possível apontar novas e menos pessimistas perspectivas para o desenvolvimento dos povos na América Latina, com avanços significativos no combate à desigualdade social, dentro de um ambiente e um espírito efetivamente democráticos, algo jamais vislumbrado por esses povos, no seu passado recente de opressão e colonização.


1Nesse sentido, em seu estudo sobre a sociologia do narcotráfico na América Latina, a socióloga Ana Maria Ribeiro, do departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF, publicou relevante estudo sobre narcotráfico e questão camponesa, fazendo referência aos estudos anteriores de José de Souza Martins, indicando até que ponto a degradação das condições sociais do camponês brasileiro o força a buscar opções de trabalho no campo fora dos meandros da legalidade. RIBEIRO, Ana Maria. Sociologia do narcotráfico na América Latina e a questão camponesa. IN: RIBEIRO, ANA MARIA MOTTA; IULIANELLI, Jorge Atílio. Narcotráfico e violência no campo. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 25.

2Vide o estudo efetuado por Meszáros, em texto originalmente apresentado na Law, Social Justiceand Development Journal, onde o autor critica o pensamento jurídico tradicional, predominante no Brasil antes do governo Lula (2003-2010), revelando até que ponto a visão privatista do direito levou a se entender o direito de propriedade como quase absoluto, sem observar a necessidade de sua função social. MESZAROS, George. O MST e o estado de direito no Brasil. IN: CARTER, Miguel. Combatendo a desigualdade:o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.441.

3 RIBEIRO, Op. cit.,p.29.

4 Sobre isso, relata-se a Geopolítica do Narco desenvolvida durante o século XX, onde países como a Colômbia tornaram-se grandes produtores de maconha e cocaína, assim como a Bolívia e o Brasil passaram a figurar como produtores potenciais. Nesse sentido, os Estados Unidos ainda é o maior consumidor de cocaína no globo terrestre, seguido de outros países do hemisfério norte. RIBEIRO, Ibid., p.34.

5 JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo.Rio de Janeiro: 2009, p.52.

6 RIBEIRO, Op. cit.,p.51.

7 No documentário Quebrando o tabu, do cineasta e documentarista Fernando Andrade, o ex-presidente da república do Brasil aparece com destaque, na discussão da legalização de drogas como a maconha, juntamente com outras personalidades de destaque da política mundial, como o ex-presidente norte-americano Bill Clinton. ANDRADE, Fernando Grostein. Quebrando o tabu. Brasil: Spray Filmes, 2011. Disponível em www.quebrandootabu.com.br

8 CARTER, Op. cit,. p.499.

9 RIBEIRO, Op. cit., p. 54.

10 GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos movimentos sociais, São Paulo: Edições Loyola, 2008. p.33.

11DEW, Edward. Samba revolucionário: a revolta agrária que quase todo mundo apoia. In: PEDLOWSKI, Marcos A. OLIVEIRA, Julio Cezar, KURY, Karla Aguiar. Descontruindo o latifúndio: a saga da reforma agrária no norte fluminense. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011, p. 58.

12 Idem, p. 59.

13 Ibid, p. 65-68.

14 BUZANELLO, José Carlos. Direito deresistência constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 315.

15 BUZANELLO, Op. cit., p. 316.

16 Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 5.574/SP. Relator: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro.

17 JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.54.

18HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.124.

19 PÉCAULT, Daniel. As FARC: uma guerrilha sem fins? São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 95.

20 PÉCAULT, Daniel. Op.cit.p.97.

21 TARDÁGUILA, Cristina. Polícia,câmera e ação:como as Unidades de Polícia Pacificadora ocuparam dez favelas e todo o noticiário do Rio. Revista Piauí.Rio de Janeiro: Editora Alvinegra, n° 47, agosto 2010, p.56.

22 PÉCAULT, Daniel. Op, cit.,p.20.

2310:27 p.m. 15/11/2012 Ibid.,p.24.

24 CARTER, Miguel (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.36-37.

25 CARTER, Ibid.p.38.

26 HOBBSBAWN, Eric. Globalização,democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 125.

27Para Hobsbawn: "essa degeneração da violência política aplica-se tanto as forças insurgentes quanto às do Estado. Ela resulta tanto da anomia crescente da vida nos centros urbanos, especialmente entre os jovens, quanto da disseminação da cultura da droga e da posse privada de armas" . Id,p.126-127.

28 CARTER, Op. Cit., p. 497.

29GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 182.

30 GARLAND, Ibid.,p. 216.

31 GARLAND, Ibid.,p.218.

32 Sobre isso, pronuncia-se Teubner, resgatando em parte a grande contribuição teórica da sociologia do direito de Luhmann, focado nos sistemas sociais autopoiéticos, em relação com os demais sistema de seus entorno a partir de mecanismos de abertura e fechamento operacionais. Para Teubner, tais fechamentos e aberturas se dão por meio das chamadas "instituições de ligação", onde o sistema observa a partir de sua próprias comunicações como fatos e expectativas ocorridos no seu entorno, entendidos sob a forma de contingências, podem se transformar em operações do próprio sistema, tais como: reconhecer como jurídicas as ocupações de terra e não como ilícitos penais contra o direito de propriedade, por entender sua regularidade constitucional enquanto exercício de um direito de protesto, a ser reconhecido mediante o vislumbre de um pluralismo jurídico a conviver com o direito oficiaLTEUBNER, Günther. TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 85,

33 MÉSZÁROS, Op. cit.,p.457.


Referências

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