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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

versão impressa ISSN 0121-215Xversão On-line ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr.  n.19 Bogotá jan./dez. 2010

 

Configurações territoriais múltiplas: reflexões a partir de O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia de Gilles Deleuze e Félix Guattari

Configuraciones territoriales múltiples: reflexiones a partir de El Anti-Edipo: capitalismo y esquizofrenia de Gilles Deleuze y Félix Guattari

Multiple regional configurations: reflections from The Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia by Gilles Deleuze y Félix Guattari

Claudio Luiz Zanotelli*
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil


*Graduado en Planeación Territorial y Urbanismo de La Université de Paris X, Nanterre en 1988; con maestría en Geografía y Práctica de Desarrollo en el Tercer Mundo - Université de Paris X, Nanterre en 1993. Posee Doctorado en Geografía Humana, económica y regional de la Université de Paris X, Nanterre en 1998 y postdoctorado en el LATTS/ENPC (Francia) en 2005. Actualmente es profesor asociado de la Maestría del Departamento de Geografía de la Universidade Federal do Espírito Santo. Editor de la revista Geografiares. Posee experiencia en el área de Planeación Urbana, con énfasis en Aspectos Económicos de la Planeación Urbana y Regional, así como en los temas de segregación y fragmentación urbana.
Dirección postal: Av. Fernando Ferrari, 514 - Campus Goiabeiras, Departamento de Geografia, 29060-900 - Vitoria - ES - Brasil. Correo electrónico: clzanotelli@yahoo.com.br

Recibido: 22 de septiembre del 2009. Aceptado: 15 de febrero del 2010.
Artigo de reflexão sobre as configurações territoriais múltiplas do sistema capitalista contemporâneo.


Resumo

Este texto lança algumas reflexões sobre os axiomas do capitalismo que permitem descodificar todas as convenções das sociedades chamadas "selvagens", e realizar as promessas de poder das sociedades déspotas, "bárbaras". Simultaneamente, o capitalismo, provoca uma multiplicação das fraturas territoriais e de globalizações de toda ordem. Nessa descodificação de todos os valores, os fluxos (sociais, econômicos, políticos) liberados pelo capitalismo hesitam entre, de um lado, uma descodificação que levaria a uma desterritorialização radical dos processos e, de outro lado, um reaparecimento e re-atualização conservadora desses fluxos liberados pelo próprio processo de "criação destrutiva".

Palavras chave: capitalismo, desterritorialização, globalização, reterritorialização, territorialização.


Resumen

El presente texto proporciona algunos elementos de reflexión sobre los axiomas del capitalismo que permiten decodificar todos los códigos de las sociedades llamadas "salvajes" y realiza las promesas de poder de las sociedades despóticas, o "bárbaras", actualizando parcialmente los delirios autárquicos de grandeza de los Estados modernos. Simultáneamente, el capitalismo genera una multiplicación de las fracturas territoriales y de globalizaciones de toda índole. En esta decodificación total de valores, los flujos (sociales, económicos y políticos) liberados por el capitalismo titubean entre una decodificación que conduciría, por un lado, a una "desterritorialización" radical de los procesos y, por otro, a una reaparición y reactualización conservadora de esos flujos producidos por el proceso mismo de "creación destructiva".

Palabras clave: capitalismo, desterritorialización, globalización, reterritorialización, territorialización.


Abstract

The purpose of this paper is to show some thoughts on capitalism's axiomatic, which decodes all conventions of "uncivilized" societies, and fulfills the promises of despotic and "barbarous" societies, partially updating the despotic delusions of grandeur of the modern States. Simultaneously, capitalism creates a proliferation of regional and territorial fractures as well as globalization of all kinds. In this total decoding and transmutation of values, the flows (social, economic, and political) released by capitalism falter in front of a decoding that would lead, on the one hand, to a radical "de-territorialization" of the processes and, on the other, to a conservative resurgence and updating of these flows produced by the process of "destructive creation".

Key words: capitalism, de-territorialization, globalization, re-territorialization, territorialization.


Introdução

0 objetivo desse texto é o de lançar algumas pistas de reflexão sobre a axiomática do capitalismo que descodi-fca todos os códigos das sociedades ditas "selvagens" e realiza as promessas das sociedades déspotas, "bárbaras", atualizando, parcialmente, os delírios de grandeza despóticos dos Estados modernos. Simultaneamente a esse movimento ocorre uma multiplicação das fraturas territoriais e de globalizações de toda ordem. Nessa des-codificação e trans-mutação de todos os valores, os fluxos (sociais, econômicos, políticos, artísticos, etc.) liberados pelo capitalismo hesitam entre, de um lado, uma des-codificação que levaria a uma des-territoria-lização radical dos processos e, de outro lado, um rebatimento e re-atualização conservadora desses fluxos liberados pelo próprio processo de "criação destrutiva". Entre práticas sociais revolucionárias e autônomas e as práticas sociais restauradores de uma ordem opressora garantidoras da reprodução ampliada, se perfla o capital. Entre esses dois pólos diferentes combinações da maquinaria capitalista são possíveis1.

Dito de outra forma, procura-se evidenciar os rebatimentos territoriais dos processos de desconstrução - re-construção sócio-territoriais vivenciados a partir de uma compreensão da história e da geografia como forças imanentes (processo intrínseco a um ser a um objeto que é resultado de sua "natureza" em oposição a uma qualquer transcendência ou metafísica) -. A imanência se contrapõe, assim, às dualidades e dialéticas insuficientes e reificantes que desconectam os processos para descrevê-los criando uma compreensão amputada das partes e do todo.

Esse debate será realizado, principalmente, a partir do já clássico livro O Anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia de Gilles Deleuze e Felix Guattari (publicado pela primeira vez na França em 1972, traduzido e publicado no Brasil em 1976). Ele será, igualmente, cotejado com outros autores. Procuraremos analisar os principais eixos dessa obra, já clássica, mas pouco abordada no Brasil, na perspectiva de uma contribuição à reflexão geográfica. Há de se chamar a atenção para uma notória exceção, as análises sobre território e desterritorialização a partir de Deleuze e Guattari efetuadas de maneira instigante por Haesbaert (2004), o autor passa em revista as diferentes interpretações existentes no campo da Geografia sobre Deleuze e Guattari e faz uma síntese dos principais conceitos relativos ao território dos mesmos.

A problemática que pretendemos abordar é aquela do território, não como uma parcela de um processo onde se dariam, se projetariam, os processos sociais inconscientes, conscientes, econômicos, políticos, ambientais, urbanos, rurais, etc... como se fossem diferentes camadas que se sobreporiam sem um axioma forte que as ligassem. Não, o território aqui será visto e entendido como processo, mas também como "corpo da terra" onde se inscrevem desde a pré-história e a história as instituições humanas, a natureza. O entendimento é de que as sociedades laboram o território, mas também são laboradas por eles: percepção e prática, entendimento e explicação, sentimento e interesse são fos de teias sociais e naturais inseparáveis.

O interesse, de tal intento, está em lançar pistas para questionar os saberes e ciências fragmentares que tentam explicar um mundo fragmentado por meio de saberes fragmentados. Os signos explicativos e as práticas que opõem o homem à natureza encobrem uma verdade singela: a Terra se inscreve desde sempre nos grupos humanos como práxis. Florestas, bosques, desertos, montanhas, rios, mares, são espaços de re-criação do mundo, o homem se inscrevendo e recebendo inscrições num continuum que vai de todas as formas da natureza às sociedades e vice-versa. Humboldt, homem do século das luzes, constatou que os "selvagens" "desenvolviam o germe de uma filosofia da natureza" (2000, vol. 1, 49) por meio da percepção intuitiva que tinham das forças "invisíveis" da natureza.

Antes de prosseguir nas nossas considerações, uma rápida lembrança sobre o contexto onde surge o livro o Anti-édipo. Ele foi elaborado e publicado imediatamen-te após as revoltas, rebeliões e revoluções de Maio de 1968. É um livro-programa que se insere no movimento de contestação da ordem social da época, lança mão de contribuições, e se insere num debate crítico, de diversos campos do pensamento: psicanálise, psiquiatria, sociologia, antropologia, economia, filosofia, história,geografa , etc. O resultado foi um texto incandescente, verdadeiro vendaval criativo não somente sobre as idéias, mas sobre as práticas sociais. Deleuze e Guattari influenciaram ou interrogaram toda uma geração de militantes e pensadores de diversos matizes. Seus pensamentos e práticas continuam de atualidade e muitas de suas análises podem nos servir de ferramenta, como eles mesmos o desejavam, para entender e agir sobre e com as máquinas sócio-territoriais. No entanto, não aderimos totalmente às concepções dos autores, mesmo porque a distância sócio-geográfica nos impõe releituras e re-construção da perspectivas teóricas.

O "selvagem" de cada um

O termo "selvagem" não é utilizado aqui no sentido pejorativo, mas naquele utilizado pelos antropólogos e etnólogos quando estudam as sociedades ditas "tradicionais". Evidentemente que seu emprego pode soar hoje, no reino do politicamente correto, como impregnado de pré-conceito. Mas, mesmo assim, o manteremos, pois os autores sobre os quais nos apoiamos - Guattari e Deleuze - constroem uma tipologia histórico-geográfica bem particular, efetuando uma reabilitação axiológica dessas sociedades, sem, no entanto, cair em nenhuma perspectiva naïf sobre o "bom selvagem" ou a "cordialidade" desses povos, chamados, juntamente com outras populações, na Amazônia brasileira, "povos da floresta ". Dar esse caráter "bom selvagem" seria uma forma invertida, aparentemente simpática, de colocar fora do mundo, como em um museu antropológico, sociedades complexas e ricas que se transformam. No que segue, por razões práticas da redação do texto, retiraremos as aspas do termo selvagem, mas elas devem sempre vir ao espírito do leitor, quando lerá o termo, para não se esquecer das considerações anteriores.

Uma pequena precisão sobre o que os autores consideram conceito. Para eles uma das tarefas centrais dos pensadores é criar conceitos, pois, "O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir" (Deleuze e Guattari em Haesbaert, 2004, 109). Portanto, o conceito não é metáfora, jogo de linguagem puramente, ele engaja o sujeito na sua produção e, em certa medida, em sua prática. O conceito é operante, é também o operador, não é um idealismo, ele é "um acontecimento" (Ibid., 2004, 109). Portanto, em diferentes momentos desse texto constataremos insights que não devem ser compreendidos como metáforas, mas como experiência do sujeito engajado na construção de si, do pensamento, do social e do mundo onde está.

Deleuze e Guattari, afirmam que "A unidade primitiva, selvagem, do desejo e da produção, é a Terra". "A Terra não é somente um objeto múltiplo e dividido do trabalho, ela é também uma entidade única e indivisível. Um corpo pleno que se rebate sobre as forças produtivas e se apropria delas como pressuposto natural ou divino" (1972, 164)2.

Estipula-se nessa frase uma concepção da Terra como corpo, criando um paralelismo conceitual entre o corpo humano e o corpo da Terra. Há uma energia, uma libido, no sentido dado pela psicanálise, sob a forma de desejo que circula do corpo humano à Terra e ao Cosmos, alimentando a vida, a criação, mas também a destruição, provocando a morte. Assim, o Desejo, com D maiúsculo, é entendido como pulsão energética libidinal que compõe as relações sociais, ele não pode e não deve reduzir-se à figura do indivíduo. Esse Desejo não é um "vitalismo" redutível ao biológico, ao natural, ele é construção biológica-social, se quisermos usar um dualismo explicativo, mas aqui estaremos traindo o espírito dos autores.

Antes de prosseguirmos, uma precisão, que não se perceba ou viva o "Desejo" como o teatro de re-produção da culpa da família, da sociedade, reduzindo-o ao "sexo" sujo. Não, o Desejo aqui, para além da energia sexual que é também fundamental, é a matéria da elaboração da autonomia do sujeito no sentido do discernimento daquilo que é transformador e impulsionador das revoluções, os fluxos não contidos e que transfiguram a ordem e a desordem. Não tenhamos medo de falar de Desejo com D maiúsculo em Geografia. Encarar outros conceitos e práticas que dizem respeito as nossas temáticas deve ser feito com certo aprofundamento, para não ficarmos em considerações puramente superficiais estilo a "psicologia do fazendeiro paulista". Trata-se menos de uma percepção ou do espaço vivido que de um materialismo - não o materialismo vulgar - das percepções e das práticas. Deleuze e Guattari no Anti-édipo, à exemplo de outros clássicos, constroem uma explicação do mundo que interroga e permite se compreender a sócio-natureza em que vivemos.

Voltemos agora à Terra no seu princípio primitivo como a vêem Deleuze e Guattari (1972). A Terra é, segundo eles, o não engendrado, o elemento superior da produção que condiciona a apropriação e a utilização comum do solo. Ela é a superfície sobre a qual se inscreve todo o processo de produção, onde se registram os objetos, os meios e as forças de trabalho, se distribuem os agentes e os produtos.

Até aqui nada de muito novo, pois Marx, de outra maneira não dizia coisas muito diferentes. Porém, eles avançam uma proposta original: a "máquina territorial é, então, a primeira forma do sócius, a máquina de inscrição primitiva, 'mégamáquina', que cobre um campo social." (1972, 165). Pois, a "máquina social tem como peças os homens que entram em sinergia com as máquinas técnicas, mas não se confundem com ela" (1972, 165). As máquinas técnicas não continham, nas sociedades selvagens e "bárbaras" (até a revolução industrial) segundo os autores3, inicialmente, as condições de reprodução de seu processo, elas se inscreviam no processo social que as condicionavam e organizavam, e também inibiam ou limitavam o seu desenvolvimento. Assim, "Teve-se que esperar o capitalismo para se encontrar um regime de produção técnica semi-autônomo, que tende a se apropriar da memória e de reprodução, e modifica, dessa maneira, a forma de exploração do homem" (1972, 175).

Essa discussão sobre a técnica nos remete aos automatismos e prolongamentos, hoje, no próprio homem de mecanismos técnicos sem que o homem tenha necessariamente o controle sobre eles. A própria manipulação genética tem engendrado híbridos e homens com próteses.

O capitalismo desmantela gradualmente ou de maneira abrupta os regimes das outras grandes máquinas sociais dos períodos que o precederam e potencializa certos traços, concretizando os delírios paranóicos dos Estados, como veremos mais adiante.

Sobre a técnica há uma referência incontornável em Geografia no Brasil, Santos, em A natureza do Espaço (2008). Nesse livro o autor se refiere ao meio-técnico-científico-informacional contemporâneo que se substituiria ao meio maquínico das sociedades anteriores. Desenvolve uma teoria da relação entre técnica e espaço, este último visto como um híbrido, um composto de formas-conteúdo (2008). Porém, a abordagem miltoniana é de outra ordem que aquela deleuzo-guatariniana. Vejamos rapidamente a acepção em Santos do território mediado pela técnica:

No começo da história do homem, a configuração territorial é simplesmente o conjunto dos complexos na-turais. A medida que a história vai fazendo-se, a configuração territorial é dada pelas obras dos homens: estradas, plantações, casas, depósitos, portos, fábricas, cidades, etc; verdadeiras próteses. Cria-se uma configuração territorial que é cada vez mais o resultado de uma produção histórica e tende a uma negação da natureza natural, substituindo-a por uma natureza inteiramente humanizada

Parece-nos que a relação homem-natureza é tratada como uma exterioridade ao homem, não se analisa, pelo menos de forma explicita, a natureza dentro do homem ou o homem que delira e fantasma a natureza. No livro em exame há uma referência rápida à "Tecnosfera e a psicosfera" (2008, 255) onde se expede em poucos parágrafos a complexa produção do sentido e do imaginário. Como invocam Deleuze e Guattari há um processo constitutivo do homem associado à natureza que os coloca imanentes, co-extensivos, co-presentes um ao outro, numa dinâmica de conexão, des-conexão, re-conexão, que utiliza outra lógica dos sentidos que não é aquela de causa-efeito.

Voltemos à imanência e ao desejo territorializados. Segundo Deleuze e Guattari, há uma descrição, não metafórica, da Terra como um "corpo", nesse corpo se enlaçam o desejo e sua repressão. Mais ainda, a Terra, nessa articulação com o desejo, constitui nas sociedades primitivas um sócius, forma da "máquina territorial". O territorial é concebido como máquina, no sentido que tudo se articula, funciona ou não funciona, é produzido ou se faz produzir. O desejo é produzido, assim como os objetos, os corpos.

O social como máquina organiza, na medida do pos-sível, os fluxos , mas que são fluxos não somente de objetos, de pessoas, mas de desejo, produção de produção, produção de registro, produção de consumo. Assim, Deleuze e Guattari, (1972, 166) argumentam que "Fluxos de mulheres e de crianças, fluxos de rebanho e de grãos, fluxo de esperma, de merda e de menstruadas, nada deve escapar. A máquina territorial primitiva, com o seu motor imóvel, a terra, é já máquina social ou mega-máquina, que codifica os fluxos de produção, de meio de produção, de produtores e consumidores: o corpo pleno da deusa Terra reúne sobre si as espécies cultiváveis, os instrumentos de arado e os órgãos humanos".

A partir dessas explicitações pode-se avançar uma primeira compreensão que rebate todos os códigos sociais no corpo da terra atravessada pelos desejos e funcionando de forma maquínica. Essa compreensão nos fará entender os processos de trocas e do que os autores chamam de mais-valia de códigos, como processos de registro e consumo dos objetos e corpos por grupos e tribos que ampliam suas alianças territoriais e acumulam uma mais-valia de código: como é o caso dos chefes de tribos que devem tudo dar em caso da fome acometer o grupo, por exemplo, aos outros membros da tribo, ou ainda nas cerimônias onde determinados membros das tribos entram em uma rivalidade da dádiva com outros membros da mesma etnia que pode levá-los a tudo "perder". Isso é uma forma de conquistar um acúmulo de bens simbólicos e de prestígio junto à comunidade (Lévis-Strauss 1955 e 1962). O que permitirá ter uma maior respeitabilidade ou uma espécie de poder simbólico (Bourdieu 1994).

As dádivas aprisionam aquele que recebe e que deve também dar, no jogo das trocas sociais, como por exemplo, a oferta de presentes e a reciprocidade que se encadeia quando se recebe algo de alguém criando-se uma obrigação (que a língua portuguesa traduz muito bem com o "obrigado") que será devolvida em favores, ou de outra maneira qualquer, àquele que nos deu algo. Isso pode ser constatado na sociedade brasileira que em larga medida é ainda clientelista e onde políticos são redistribuidores de "favores" por meio dos quais contam "cobrar" a conta aos eleitores no período eleitoral. Porém, nesse último caso estamos falando de um clientelismo em pleno regime capitalista, o que traduz uma combinação de um mecanismo "tradicional" com um mecanismo capitalista, onde se mantém o Outro sob dependência, mas essa dependência simbólica e material não é mais da mesma ordem que aquela das sociedades selvagens, pois ela implica mecanismos capitalistas de dominação e o entendimento do trabalho como quantidade abstrata e individual, portanto a noção de dívida -e aquilo que contemporaneamente a acompanha, a servidão, que pode-se encontrar em vários lugares do Brasil-, é uma prática desencastrada do seu lugar de origem (as comunidades indígenas) e totalmente transformada e re-significada numa sociedade capitalista onde trabalhadores arregimentados de maneira ilegal são explorados no interior de plantações e trabalham somente para pagar sua própria alimentação, se fabrica dívidas infinitas que nunca serão pagas, tornando o trabalhador um eterno endividado, produzindo-se, assim, a servidão, bem diferente daquilo que ocorre nas sociedades selvagens.

A dádiva, os dons e contra-dons sociais funcionam e funcionavam nas sociedades selvagens com outros propósitos e com um controle estrito da comunidade dos bens que circulam, claro há, como falamos, o poder simbólico adquirido por meio do prestígio daquele que mais dá e se dá para a comunidade, mas o chefe, justamente por isso, é permanentemente colocado em questão e está permanentemente submetido a controles cruzados que o impedem de se autonomizar e adquirir um poder despótico. O espaço territorial dessas práticas é fechado ou semi-aberto e é delimitado por alianças territoriais. As dívidas materiais e simbólicas não são infinitas, pois o circulo de prestações e contra-prestações tende a ser restrito.

Sobre essa circulação -de objetos de prestígio, de mulheres e homens que concretizam alianças- são rebatidos os fluxos de desejo (as relações sexuais, a criação da cultura, etc.). O desejo funciona como energia re-vitalisante dos processos por meio daquilo que é permitido e/ou interditado. Há aqui uma conjunção da energia social com a energia do produzir e do consumir: o comer identificado não só como um ato de alimentarse que necessita de alimentos produzidos e trocados, mas também como processo de conjunção dos corpos de "gostar de comer o outro", como tão bem indica nossa prática lingüística nos atos amorosos. Práticas que talvez, do ponto de vista do imaginário social, que é também uma prática, nos revele o ato antropofágico primitivo presente em diversos povos do Brasil no passado: o comer o Outro como forma de adquirir seu poder, sua sabedoria, sua força. A re-produção familiar é estendida e se faz de maneira simultânea à reprodução econômica: as trocas econômicas estão encastradas nas trocas corporais (faz-se aliança entre etnias por meio de casamentos para se manter um equilíbrio econômico entre o produzido e o consumido).

Mas não há ainda, nessas sociedades, a figura do desejo como complexo de Édipo, a vontade, inconsciente, segundo Freud, de se matar o pai, e dormir com a mãe. Os interditos relativos ao desejo sexual, por exemplo, passam pelos tios, tias, sobrinhos, sobrinhas, a família é entendida em um sentido amplo, não há a figura da unidade familiar restrita, o familialismo, que como veremos virá com a invenção do individuo no capitalismo triunfante. Portanto, as relações entre a ordem familiar, o econômico, o político, a natureza, o sócius, são imanentes e interativas e o desejo circula de maneira não familial no sentido contemporâneo.

Nessas sociedades a natureza é vivida como parte intrínseca, produtora, no largo sentido. Tudo é produção, fluxo em andamento, corte dos fluxos , re-encadeamento dos processos, e assim, indefinidamente. Os homens convivem com os astros cotidianamente, apreendem a viver com os animais, as plantas, rios, eles têm a experiência prática do clima, essas referências se encontram nos inúmeros mitos das diferentes etnias dos índios do Brasil (Silva 1999), verdadeira aula de proximidade da natureza e de imanência homem-natureza. Essas relações têm sido estudadas por geógrafos e outros pesquisadores no estabelecimento, por exemplo, de calendários etno-ecológicos que tornam os povos ditos "tradicionais" uma fonte de conhecimento e vivência sobre e com a natureza extraordinários (Moura e Marques 2006).

Assim, de fato, o que muitos geógrafos chamam degeografa cultural, de uma maneira ou de outra dialoga com essas asserções de Deleuze e Guattari. Dessa forma o imaginário e os valores geográficos, os mundos interiores dos homens, são analisados como partes integrantes das paisagens da qual eles são artífices e participantes (Bonnemaison 1986; 1987 em Lussault e Lévy 2003). Na realidade ageografa cultural é bastante antiga e as abordagens geográficas se aproximaram da etnologia como testemunha a Revue de Géographie Humaine et d'Ethnologie sob a direção de Pierre Deffontaines et André Leroi-Gourhan e publicada a partir de 1948 na França, que têm uma abordagem mais próxima da abordagem de gênero de vida.

As comunidades ditas primitivas têm suas territorialidades, mas não no sentido do poder de Estado que divide e delimita as ocupações do solo. Ao contrário, a máquina primitiva, nos dizeres de Deleuze e Guattari, subdivide o povo (tribos, etnias, línguas diferentes), mas o faz sobre uma terra indivisível onde "se instalam as relações conectivas, disjuntivas e conjuntivas de cada segmento com o outro" (Deleuze e Guattari 1972, 170). Cada povo ou etnia se relaciona sobre a terra a partir de alianças, constroem territorialidades de parentesco, de caça, de pesca, de festa, guerras, rivalidades e alianças sem fim, mas sem definir uma propriedade, uma delimitação territorial burocrática, que será construída pelos Estados. Essa oposição entre populações "tradicionais" e uma construção sócio-territorial de outro tipo pode ser exemplificada em um artigo já bastante antigo (Lefévre 1948, 52-61) que tratava das transformações introduzidas na floresta da Costa do Marfim na África depois da introdução do Cacau e do Café, as formas comunitárias de utilização e as práticas da/na floresta se transformaram, se introduzindo paulatinamente a propriedade individual do solo, transformando as relações sociais e econômicas na região sob a égide de um Estado colonial.

Os interesses de dominação simbólica nas sociedades tradicionais, patriarcais ou não, existiam, mas eram submergidos por contra-poderes, divisões e alianças que impediram (e impedem?) durante certo tempo em certos territórios a subida dos Estados e dos impérios, assim como estimulavam o "culto da democracia". Como diz Pierre Clastres (1974, 26), "De fato, a considerá-las segundo sua organização política, é essencialmente pelo sentido de democracia e o gosto da igualdade que se distinguem a maior parte das sociedades indígenas da América. Os primeiros viajantes ao Brasil e os etnógrafos que vieram em seguida sublinharam em diversas ocasiões: a propriedade a mais notável do chefe indígena consiste na falta mais ou menos completa de autoridade; a função política nessas populações aparece fracamente diferenciada".

Na realidade, no momento em que se instaura as instituições do Estado, um novo mecanismo se insere sobre a terra, a desterritorialização das comunidades primitivas e sua re-territorialização sob novas bases, como veremos em seguida. Mas as sociedades primitivas sentem emergir de dentro o Déspota que acolhera o Estado, tentam impedi-lo por meio de instituições onde o poder do chefe é puramente simbólico, onde as subdivisões são infinitas entre tribo, partes de tribos, clãs, famílias no sentido largo, etc. Sociedades comunistas para utilizar uma expressão européia que alimentou a reflexão social no século XIX e que foi incorporada por geógrafos como Elisée Reclus e Kropotikin em suas lutas contra o Estado centralizador e opressor. Kropotikin (Hall 2002) analisou, bem como Reclus (1990), as antigas comunas européias que muitas vezes continuaram existindo às margens do poder feudal/imperial e resistindo a ele até serem absorvidas pelos burgos e pela burguesia, ver também a esse propósito Moreira (2008).

Talvez uma das fontes de maior conflito no território brasileiro, e latino-americano, seja, justamente, esses conflitos de territorialidades, contemporâneos de nossa sociedade plural. Práticas ancestrais do território sem posse absoluta do solo por parte dos indígenas que são inteiramente opostas às práticas de registro e de posse do solo na perspectiva do Estado e da proprieda-de privada. Sobre o surgimento do Estado e suas novas práticas territoriais passaremos a falar agora.

O Estado, o bárbaro na ante-sala

Com o surgimento gradual do Estado, a unidade ima-nente primitiva da Terra como "motor imóvel do sócius", cede lugar a uma unidade transcendente de outra natureza, a unidade de Estado. O corpo pleno (aquele que era o da Terra nas sociedades primitivas) é agora o do déspota (Rei, Imperador, Messias), que se encarrega simbolicamente da fertilidade dos solos, como da chuva, do céu e da apropriação geral das forças produtivas.

O déspota recusa as antigas alianças laterais e filiações extensas da sociedade selvagem, das antigas comunidades. Ele "impõe uma nova aliança e se coloca em filiação direta com deus" (Deleuze e Guattari 1972, 228). Passa-se de ordem do mito primitivo, da natureza engendradora, ao Deus-Déspota. O "déspota é o paranóico, no sentido de paranóia social, aquele que projeta no social seus sonhos de grandeza, ajudado por grupos de perversos (os crentes, os apóstolos, os escudeiros) que propagam a invenção (ou mesmo a fabricaram para eles) do Déspota, eles difundem sua glória e impõem seu poder nas cidades que fundam ou que conquistam" (Deleuze e Guattari 1972, 227-228).

Deleuze e Guattari nos dizem que em todos os lugares onde passam o déspota e sua armada, os doutores, os padres, os escribas e funcionários fazem parte do cortejo.

A formação bárbara imperial que leva ao Estado é descrita pelos autores citando Marx e o já conhecido "modo asiático de produção" (Marx citado por Deleuze e Guattari 1972, 230), "Uma unidade superior do Estado se instaura sobre a base de comunidades rurais primitivas, que conservam a propriedade do solo, enquanto o Estado é o verdadeiro proprietário, conforme o movi-mento objetivo aparente que lhe atribui o sobreproduto, bem como lhe atribui as forças produtivas por meio de grandes obras, e o faz aparecer como a causa das condições coletivas de apropriação".

A máquina social mudou profundamente, ao invés da máquina territorial primitiva, a megamáquina do Estado, pirâmide funcional que tem o déspota no topo, o aparelho burocrático como órgão de transmissão e as comunidades na base como as "peças trabalhadoras". Os estoques se acumulam e as dívidas das comunidades se transformam em dívidas infinitas sob forma de tributos, impostos (como seu nome tão bem indica em português, aquilo que é imposto) pelo Estado com seu séquito burocrático, sua policia e exército. Assim, Deleuze e Guattari nos dizem que "Longe de ver no Estado o princípio de uma territorialização que inscreve as pessoas em função de seu local de residência, nós devemos ver no princípio de residência o efeito de um movimento de desterritorialização que divide a Terra como um objeto e submete os homens a uma nova inscrição imperial, a um novo corpo pleno, a um novo sócius (1972, 230).

A desterritorialidade não é aquela, predominante em muitos outros autores contemporâneos, que a pensam como "fim dos territórios" ou um processo fluido que desconsidera os territórios (ver a esse propósito a descrição que faz Haesbaert 2004). Ao contrário, os Estados desconstroem os territórios e territorialidades primitivos (des-territorializando-os) para rebatê-los, esquadrinhá-los, sob um processo de re-territorialização controladora e de definição dos territórios como espaços dos poderes imperiais, despóticos, estatais, se sobrepon-do às antigas territorialidades que podem mesmo continuar onde estavam, mas sob um novo regime (ver a esse propósito a discussão de Haesbaert 2004, 137).

Na realidade a territorialidade aparente do Estado é enganadora, posto que fixando burocraticamente as residências e os territórios das comunidades, ele opera ao mesmo tempo uma captura dos signos primitivos ligados à terra e à natureza por meio de novos signos abstratos-concretos de poder (Deus único, Imperador único, Unidade territorial, etc.) que descodificam os signos primitivos e os re-significa (recodifica) referindo-os aos "novos signos estatais de poder": propriedade comunal submetida à regulação estatal e aos impostos. Essa relação passa também pela generalização da utilização da moeda nas trocas e meio de controle da riqueza por parte do Estado que terá a função de fabricar o dinheiro, poder incomensurável que virá substituir os fetiches primitivos pelo fetiche do dinheiro, de maneira acentuada, no capitalismo posteriormente. Esse poder se estabelece de maneira simultânea à invenção da escrita. Norma e contabilidade são significantes dos signos de poder (Deleuze e Guattari 1972). As epopéias e conquistas (Ilíada e Odisséia) demonstram bem esse processo, o "olho não mais vê, ele lê". A língua como poder e mais tarde pátria, identidade.

As paisagens são enquadradas, e a natureza se transforma em extensão do poder: grandes perspectivas reais e imperiais na Roma antiga, perspectivas que criam o vazio e a reafirmação do poder absoluto na Versalhes de Luis XIV, campos toscanos, na Itália, ordenados com seus palacetes pelos todos poderosos Médicis durante o Renascimento. A produção se organiza e a constituição de estoques importantes favorecerá de certa maneira, uma dominação política dos campos pelas cidades, dominação relativa, pois os vilarejos e pequenas cidades e a própria cidade ainda estão, de uma maneira ou de outra, sob influência rural. O déspota, o rei, o imperador, são assim os captadores dos fluxos de produção coletivos, os registradores em seu corpo e em seu regime, da riqueza, os referentes sociais últimos, o irmão, o filho e o pai de todos, ver a esse propósito as belas páginas de Deleuze e Guattari sobre os incestos reais na Roma antiga, época paradigmática do despotismo e das lutas fratricidas pelo poder (1972, 249-251).

Portanto, ainda não estamos no regime do Édipo-rei como interdito moral, mas do Édipo como possibilidade, do incesto possível, do casamento com irmãs, mães, tornado "real" e simbólico. Associa-se, desse jeito, uma nova forma de filiação não mais extensiva, mas diretiva, voltada para um pai "todo poderoso" e de uma mãe associada à Terra, origem das religiões monoteístas e do poder concentrador dos Estados. Se contrapondo, desse modo às crenças e religiões tradicionais que têm seus modos próprios de cuidar dos vivos e dos mortos.

O capitalismo aponta seu nariz, ele se organiza aos poucos sob o manto dos despotismos, surge aqui e ali, convive com o antigo regime, tem seus interesses. No entanto, ainda sob o regime despótico-bárbaro subsiste a figura do Imperator, do organizador dos fluxos, dos interesses econômicos. O processo de reprodução como na sociedade primitiva, não é diretamente econômico, puramente econômico, ele passa por fatores não econômicos de parentela, de acúmulo de poder simbólico, de grandes espetáculos (pão e circo) dados ao populo como forma de re-distribuição significante de potência e de anti-produção e das oferendas quando acontecem os grandes funerais dos homens de Estado.

No sistema capitalista as coisas mudarão de figura , as representações sociais e territoriais não se referem mais a um objeto distinto, mas à atividade produtora ela mesma, o sócius emerge diretamente como capital-dinheiro e não tolera, do ponto de vista da representação social, nenhum outro pressuposto. É desse mecanismo e sua associação com uma nova fase territorial que passaremos a falar em seguida.

A família, o Estado e o Dinheiro modernos

Como dizem Deleuze e Guattari (1972), O capital trouxe para si as relações de aliança e de filiação. Em seguida há a privatização da família, que dá sua forma social à reprodução econômica. A família no seu sentido primitivo ou despótico é des-investida de fato. Ela é tão somente a forma do material humano que se encontra subordinada à forma social autônoma da reprodução econômica e ocupa o lugar que lhe é assinalado pelo regime social.

Nesse processo os homens são reduzidos à função trabalhadora, função derivada da força de trabalho, e à função capitalista, função derivada do capital. Signos abstratos que poderiam ser em princípio equivalentes. No entanto, devido à mais-valia capitalista se instaura uma dissimetria e uma dominação que se joga entre aqueles que são aspirados pela maquina capitalista (capitalistas e trabalhadores) e aqueles que se encontram num processo de desafo e de contestação da dominação e das classes (os fora-da-classe), os que se inscreveriam no regime da máquina desejantes em oposição à máquina social (Deleuze e Guattari 1972, 303).

A família é, como dizíamos, recortada pelas classes sociais, que se encontram em um processo de virtualidade e serão atualizadas pelas lutas no campo social, classe em si que se constituiria em classes para si. Mas, como observamos, os processos de construção das classes sociais é ambivalente, pois os interesses de uns e outros são laborados nos campos das representações sociais que são fugidias e são recuperados e re-inscritos na maquinaria do capital. Como nos diz Bourdieu (1994, 27), essas noções devem ser relativizadas, "A gente somente passa de uma classe-no-papel a uma classe "real" ao preço de um trabalho político de mobilização: a classe "real", se é que ela existiu "realmente", é sempre a classe realizada, quer dizer mobilizada, resultado da luta de classificações como luta propriamente simbólica (e política), para impor uma visão do mundo social, ou, melhor, uma maneira de se construir, na percepção e na realidade, as classes segundo as quais o mundo social pode ser recortado".

As classes são virtuais, como, de certa forma, a unidade familiar. No entanto, a família se constitui estranhamente no horizonte último da sociedade contemporânea. Isso, provavelmente, pelo fato dela estar "fora do campo social" como espaço de articulação dos poderes econômicos e políticos no sentido amplo e abstrato do movimento do capital. A família seria nessa visão uma caixa de ressonância que, somente aparentemente, se encontrará no centro do social (como o poder aparente do déspota ou do capitalista que fazem parecer sair deles aquilo que é produção coletiva). No entanto, no sentido mais particular das políticas das famílias, o capital social e cultural acumulado no seu seio é re-produzido por meio de estratégias familiares e transmitido de geração em geração, isso pode ser notado nas famílias dos dominantes que estão no/com o poder e com a riqueza a já há algumas gerações no Brasil.

As pessoas individuais são, primeiramente, pessoas sociais, funções derivadas de quantidades abstratas, que por sua vez se transformam em concretas na relação da axiomática capitalista da abstração dos sujeitos em força de trabalho. Assim nasce o individuo, como unidade de produção e de consumo, sob o jugo do social e re-nasce a família como conjunção de abstrações, das individualidades, mas sob um novo regime moral e como unidade micro de um processo macro: espaço de re-produção social e de encucação dos "valores" do capital e do estimulo ao consumo.

Dessa forma, "as pessoas privadas são imagens de segunda ordem, imagens de imagens, quer dizer, simulacros que acolhem a aptidão a representar a imagem de primeira ordem das pessoas sociais. Essas pessoas privadas são formalmente determinadas no lugar da família restrita, como pai, mãe, criança. Mas ao invés que essa família seja uma estratégia que, à golpes de alianças e filiações, se abra sobre todo o campo social, seja coextensiva a ele e recorte suas coordenadas, ela não é mais, dir-se-ia, que uma simples tática sobre a qual se fecha o campo social, sobre a qual ele aplica suas exigências autônomas de reprodução e recorta todas as suas dimensões" (Deleuze e Guattari 1972, 315).

As alianças e filiações não passam mais pelos homens, mas pelo dinheiro, a família é microcosmo, apta a exprimir o que ela não domina mais. Pai, mãe e criança são os simulacros do capital. Como o complexo de Édipo, figura teatral que reproduz essa situação, mas de maneira inversa, pois coloca em primeiro plano a família nos traumas e neuroses, psicoses e esquizofrenias, quando todos esses sintomas deveriam se reportar ao social donde deriva a família. Os neuróticos, paranóicos e os esquizofrênicos, derivam do social, são produções sociais, as figuras dos selvagens associados à natureza, dos déspotas no lugar de deus nos mostraram essa relação. O rebatimento da família sob o social somente nos mostra essa situação a partir de uma inversão onde a unidade familiar não é mais primeira em relação ao sócius, mas segunda e derivada. Essa família é narcísica e está em primeira linha na produção das imagens dos indivíduos, de si mesma, se vendo como unidade e como imagem de imagem, como processo de re-produção de toda sorte e particularmente do consumo.

Os fluxos codificados e depois decodificados da sociedade primitiva rebatidos sobre o Estado, re-territorializados, continuarão a ser decodificados e fugirão do controle despótico e criarão mais-valia, dessa feita mais-valia fundada na relação mercantil e no capital-dinheiro, abstração concreta que se reproduz cada vez mais de maneira ampliada, exportando para todos os lugares do globo aquilo que é seu pesadelo, a baixa tendencial do lucro, provocando "destruições criadoras" mediada pelo Estado - lugar de reiteração do poder material e simbólico e da distribuição das classificações sociais - como grande gestor e organizador dos gastos e das destruições via exército, policia e grandes obras de infra-estrutura. Essa é globalização do capital que não deixa de estar atuante hoje, malgrado as invocações de uma transferência dos poderes nacionais para os poderes "globais", pois as formas dos Estados regionais/locais continuam e são expandidas nas formas de organização dos "Estados mundiais" que coordenam suas ações em prol do capital e dos privilegiados.

Há, assim, uma geografia da acumulação capitalista (Harvey 2005, 72) que cita Marx: "Pela primeira vez, a natureza se tornou objeto para a humanidade, simplesmente uma matéria de utilidade. [...] De acordo com essa tendência, o capital se impulsiona além das barreiras nacionais, e prejudica a adoração da natureza, assim como todas as satisfações tradicionais, limitadas, incrustadas das necessidades ao alcance, e as reproduções dos antigos estilos de vida" (Marx em Harvey, 2005, 72). Essa geografia que estende consumo e produção em todas direções jogando da diversidade do local para se instalar e tentando superar todas as barreiras nacionais e sociais encontra resistências e encontra limitações nos lugares, somente podendo se efetivar em muitos casos pela imposição forçada que faz às populações vivendo nos lugares. Exemplos desses conflitos são inúmeros no Brasil e na América Latina, onde um "nova geografia" voltada para os movimentos sociais, para as populações "tradicionais", para as populações indígenas surgiu nos últimos anos.

Conclusão

A axiomática do capital descodifica os códigos anteriores, des-territorializa os territórios primitivos, descodifica e desconstrói o antigo regime, mas tende a colocar um limite nos movimentos de des-territorialização, re-territorializando os códigos, numa tentativa desenfreada de capturar os fluxos e os códigos que se libera-ram. Construindo arbitrariamente controles e gestões diretas e indiretas que capturem os fluxos desenfreados da criação e da liberdade. Assim fazendo, promove guerras e restaurações, fascismos e guerra de religiões como forma de trazer de volta a água dos rios que saíram de seu leito. Sem parar opera no limite da própria Terra, e, agora, do espaço, ampliando seu aparelho de captura de mais-valia, mas os ganhos de produtividade, as lutas sociais, tendem a reduzir as taxas de lucro. O capital-dinheiro se reproduz a uma velocidade alucinante gerando mais dinheiro e reintroduzindo a ficção da quantidade abstrata que em determinados momentos sofre solavancos e queima dinheiro para reiniciar o processo de acumulação. Tudo isso com a cumplicidade dos "consumidores", indivíduos felizes na rotatividade dos produtos e dos simulacros da sociedade especula(r) e espetacular.

O outro limite desses processos fluidos e descodificantes seria a produção desejante e esquizofrênica (não a esquizofrenia produzida pelos hospitais e pela família, mas a esquizofrenia como fluxo libertário, sensível, artístico e sem verdade absoluta), onde as burocracias, as organizações estatais, os controles, seriam subvertidos e a natureza seria, como a sociedade, um dos pólos da liberdade e da criação, onde os comunas voltariam a produzir para seu sustento, a criar sem entraves e a viver seus desejos na autonomia e na relação solidária dos inúmero grupos sociais que se constituem a partir de diferentes reivindicações e diferentes re-fundações sócio-territoriais. O devir minoritário, o devir dos povos ditos "primitivos", "selvagens" "tradicionais", a micro-politica contra os aparelhos, as comunidades contra as centralizações, a liberdade e o desejo colocados na perspectiva da autonomia como os postulados primeiros dessa nova onda que se contrapõe ponto à ponto aos fluxos perversos do capital e da ditadura do dinheiro com seu séquito de destruições da natureza que vemos na atual crise financeira global.

Não estamos muito longe nessas considerações do que falava Reclus (2002, 144). A propósito da experiência que ele teve da Comuna de Paris, "[...] Ela [a comuna] deixou para o por vir um ideal bem superior aquele de todas as revoluções que a tinham precedido, ela engaja de maneira avançada aqueles que querem continuá-la, na França e no mundo inteiro, a lutar por uma sociedade nova na qual não haverá nem mestres pelo nascimento, titulo ou dinheiro, nem escravizados pela origem, casta ou salário".

O capitalismo introduz os simulacros e as dissimulações (imagem da imagem) como explicação do homem e da terra. Pelo equivalente geral de todas as trocas (o dinheiro) reitera o fetiche inaugural primitivo de maneira deformada e introduz no lugar dos fetiches da natureza o fetiche da natureza cercada, apropriada e da "salvação" privatizada pela cerca, pelos muros e pela religião. Novas re-territorializações do fluxo dinheiro comandando a organização espacial, até que um dia novas-velhas forças contestem esse movimento e fissurem o sistema, fazendo-o pegar água de todos os lados. Assim, desanuviando os olhos poderemos olhar para o horizonte e ver que o "Outro mundo" ali está ao alcance das mãos, dos pés e de todo o corpo e que a natureza e as sociedades desafiarão o modo destruidor e avassala-dor de reduzir a Terra a uma empresa de lucro.


Nota de rodapé

1Alguns dos temas aqui tratados foram abordados de maneira resumida e preliminar, mas em outra perspectiva, no artigo "Desterritorialização da violência no capitalismo globalitário: o caso do Brasil e do Espírito Santo". Revista Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 21, pp. 225-240, 2003.
2Todos os textos citados foram por nós traduzidos da edição original em francês de 1972 e reimpressa em 1995.
3Da mesma forma que "selvagem", "bárbaro" aqui não deve ser confundido com uma concepção restrita e preconceituosa estilo "A invasão dos bárbaros do sul sobre o norte do planeta", onde se procura difundir uma imagem dos povos dominados da Terra como os "bárbaros", os "maus", não, trata-se de uma referência aos Estados em formação, de uma configuração sócio-territorial concorrente à sociedade selvagem que surge aos poucos e se impõe. Como por selvagem retiraremos as aspas por razões práticas ao longo do texto, mas o leitor deve fcar atento ao que o termo envia. Também desejamos fazer um alerta sobre essas configurações ou tipologias de Guattari e Deleuze, elas não são estanques e nem fixas, a interpenetração, influência recíproca e perdurações de um período histórico em outro período são comuns.


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