SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número49O direito à indenização do consumidor pelo tempo perdido, em razão do defeito no produto ou no serviço índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Em processo de indexaçãoCitado por Google
  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO
  • Em processo de indexaçãoSimilares em Google

Compartilhar


Prolegómenos

versão impressa ISSN 0121-182Xversão On-line ISSN 1909-7727

Prolegómenos vol.25 no.49 Bogotá jan./jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.18359/prole.5791 

Artigo de pesquisa

Direito administrativo como instrumento de perpetuação da democracia*

El derecho administrativo como instrumento para la perpetuación de la democracia

Administrative Law as an Instrument for the Perpetuation of Democracy

Alexander Marques Silvaa 

a Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Candido Mendes; pós-graduado em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; graduado em Direito; professor de Direito Processual Penal, Constitucional e Direito Administrativo. Analista jurídico no estado de Minas Gerais. Afiliado à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Correio eletrônico: profesor.alex83@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7757-385X


Resumo:

a democracia sofre diversas deturpações conceituais e práticas de forma cada vez maior devido à evolução tecnológica. Esse fato interfere tanto nas relações humanas como nas relações entre pessoas privadas, físicas ou jurídicas entre si e destas com o Estado. Diante desse problema e das relações entre administrador e administrado, percebe-se que o Direito Administrativo assume uma instrumentalidade para a perpetuação da democracia. O presente artigo tem como objetivo geral demonstrar a utilização do Direito Administrativo no Estado democrático e, como objetivos específicos, demonstrar a origem e a evolução da democracia e do Direito Administrativo. Nesse contexto, analisa-se a possibilidade de uso dos diversos instrumentos existentes no Direito Administrativo como meios de perpetuar a democracia. A metodologia usada foi a analítica e, como referencial teórico, utilizam-se diversos autores clássicos na conceituação de democracia e do Direito Administrativo, além de jurisprudências de tribunais superiores para demonstrar a aplicação prática.

Palavras-chave: democracia; direito administrativo; direito público; fontes do direito; evolução

Resumen:

la democracia sufre varias distorsiones conceptuales y prácticas cada vez más debido a la evolución tecnológica. Este hecho interfiere tanto en las relaciones humanas como en las relaciones entre las personas físicas o jurídicas privadas entre sí y entre ellas y el Estado. Ante este problema y la relación entre administrador y administrado, es claro que el Derecho Administrativo asume un papel instrumental para la perpetuación de la democracia. Este artículo tiene como objetivo demostrar el uso del Derecho Administrativo en el Estado democrático y, con los objetivos específicos, demostar el origen y evolución de la democracia y el derecho administrativo. En este contexto, se analiza la posibilidad de utilizar los diversos instrumentos existentes en el Derecho Administrativo como medio de perpetuación de la democracia. La metodología utilizada fue analítica y, como marco teórico, se utilizan varios autores clásicos en la conceptualización de la democracia y el Derecho Administrativo, además de jurisprudencia de tribunales superiores para demostrar la aplicación práctica.

Palabras clave: democracia; derecho administrativo; derecho público; fuentes del derecho; evolución

Summary:

democracy suffers several conceptual and practical distortions increasingly due to technological evolution. This fact interferes both in human relations and in the relations between private, physical or legal persons among themselves and between them and the State. Faced with this problem and the relationship between administrator and administered, it is clear that Administrative Law assumes an instrumental role for the perpetuation of democracy. This article aims to demonstrate the use of Administrative Law in the democratic State and, with the specific objectives, demonstrate the origin and evolution of democracy and administrative law. In this context, the possibility of using the various existing instruments in Administrative Law as a means of perpetuating democracy is analyzed. The methodology used was analytical and, as a theoretical reference, several classic authors are used in the conceptualization of democracy and Administrative Law, in addition to jurisprudence of higher courts to demonstrate the practical application.

Key words: democracy; administrative law; public right; sources of law; evolution

Introdução

A democracia tem sofrido diversas modificações conceituais e práticas nos últimos tempos e em uma velocidade cada vez maior devido, muitas vezes, à evolução tecnológica. Tais modificações, evolutivas ou não, interferem nas relações humanas e sociais e nas mais variadas formas, como nas interações sociais entre pessoas privadas, físicas ou jurídicas entre si e destas com o Estado.

Diante desse problema e com foco nas relações entre administrador e administrado, percebe-se que o Direito Administrativo pode assumir, como escopo, uma instrumentalidade para a garantia e a perpetuação da democracia plena.

Nesse contexto, o presente artigo tem o objetivo geral de demonstrar a utilização do Direito Administrativo no Estado democrático brasileiro, sobretudo. Como objetivos específicos, demonstrar a origem e a evolução tanto da democracia quanto do Direito Administrativo, além de demonstrar de forma prática a aplicação instrumental do Direito Administrativo como meio de garantir esse regime governamental sob perspectiva plena e longeva.

A hipótese gira em torno da possibilidade de uso dos diversos instrumentos existentes no Direito Administrativo, incluindo os princípios constitucionais e os poderes emanados do Estado, por vezes, como efetivadores da instrumentalidade prática, outras tantas vezes como catalizadores ou, ainda, como direcionadores dos objetivos democráticos.

A metodologia da pesquisa adotada é a analítica, utilizando-se, quanto à abordagem do problema, a pesquisa qualitativa, e, no que se refere aos objetivos, foram utilizadas as pesquisas exploratória e descritiva, fato que determinou o método hipotético-dedutivo, além das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, como necessárias ao alcance de ratificação ou de refutação da hipótese apresentada. Ainda, quanto ao instrumento de coleta de dados, sobretudo o capítulo derradeiro, utiliza-se a análise de conteúdo.

Como referencial teórico, foram comungados ou confrontados diversos autores clássicos na conceituação de democracia e do Direito Administrativo. Igualmente, como forma de demonstrar o pragmatismo das propostas, observaram-se os informativos e as jurisprudências dos tribunais superiores.

No primeiro capítulo, faz-se exposição, ainda que brevemente, diante da extensão e da complexidade do tema, como uma espécie de nivelamento inicial, da democracia, desenvolvendo o estudo por meio da conceituação, trespassando um breve histórico e a evolução no Ocidente, e encerrando-se o capítulo com a democracia ocidental no século XXI.

No segundo capítulo, explora-se o Direito Administrativo, suas origens e evolução, o posicionamento da disciplina no âmbito do Direito, assim denominada “posição enciclopédica”. Em seguida, faz-se abordagem dos precípuos princípios constitucionais do Direito Administrativo e dos poderes estatais, especificamente do poder de polícia, dos poderes discricionário e vinculado, do poder hierárquico e do poder regulamentar, como meios de promover a democracia.

Por fim, busca-se demonstrar a aplicabilidade do Direito Administrativo na garantia e no exercício pleno da democracia, a partir da busca pela tutela jurisdicional e da corroboração da jurisprudência e dos informativos correlatos emanados dos tribunais superiores, em que o Direito Administrativo é meio de instrumentalidade da democracia proposto no capítulo derradeiro.

Assim, o presente artigo visa fazer uma correlação necessária entre o Direito Administrativo e a democracia, esta última como garantidora da eficácia e da efetividade por meio de uma instrumentalidade daquele. O problema atacado e resultante da hipótese apresentada não é um fim em si mesmo nem pretende sê-lo, mas busca propiciar uma reflexão sobre a correlação, tornando-se base primária para novos estudos e aprofundamentos, como adiante explana-se.

Democracia

Desde a provável criação do instituto da democracia, por volta do século v (a.C.), não houve qualquer período sem pelo menos um país ou ente assemelhado sem a utilização desse regime de governo1.

Interessante ressaltar que, mesmo ante altos e baixos, há uma pretensa expansão da democracia no mundo contemporâneo.

Entretanto, como bem demonstra Xavier (2019), a expansão democrática não é linear nem uniforme, ou seja, de forma antagônica, tal expansão não sobrevém de forma democrática. Isso irrompe, pois existem forças e movimentos opostos à democracia e relevantes diferenças históricas e culturais entre os países, insurgindo que esse regime de governo não se translucida em um caráter binário ou maniqueísta de, simplesmente, existir ou não, mas consubstancia-se em diferentes gradações de democracia, como é demonstrado ao decorrer deste capítulo artigo e corroborado pela teoria de John Rawls.

Conceituação

A conceituação mais clássica e comum traz que a democracia se traduz em um governo feito pelo povo, em regra, cujas decisões positivas ou negativas assim decididas pela maioria se tornarão efetivas e concretas. Conforme preleciona Norberto Bobbio (2003), a própria etimologia da palavra “democracia” esposa a mais pura definição.

O termo “democracia” advém do poder do povo, distinguindo-a de outras formas de governo:

Etimologicamente, democracia significa “poder” (Krátos) do povo (dêmos). Os gregos, de cuja língua surgiu a palavra, a distinguiam de outras formas de governo: aquela na qual o poder pertence a um só, “monarquia” em sentido positivo, “tirania” em sentido negativo; e aquela que o poder pertence a poucos, “aristocracia” em sentido positivo, “oligarquia” em sentido negativo. (Bobbio, 2003, p. 235)

A terminologia “democrática” não significa “unânime”. A legitimidade dos atos e das ações governamentais advém da consulta e da vontade organizada da maioria, objetivando não apenas a legitimidade por meio da vontade da maioria, mas também a eficiência, como questão principiológica fundamental da existência do ente estatal, como será visto nos capítulos pospostos.

Assim como a democracia não é absoluta, também não o são as exposições relativas à etimologia formadora da terminologia. Há o entendimento bem esposado por Grondona (2000), no qual há um pequeno equívoco na interpretação ao traduzir a palavra original para o idioma pátrio, ao que se faz modificar também todo um desenvolvimento conceitual a respeito.

Dos excursiones etimológicas permiten sostener esta afirmación. La primera de ellas nos invita a recordar que el verbo griego arkhein tiene dos significaciones ligadas entre sí: “empezar” y “mandar”. Con él se conectan dos sustantivos: arkhé, “origen”, y arkhos, “jefe”. Con arkhé se vinculan palabras como “arcaico” y “arqueología”. Con arkhos, “monarca”. “Mon-arquía” quiere decir “mando unipersonal”, ya que mono significa “uno”. ¿Qué nos sugiere nuestra primera excursión etimológica?

Que en el principio (arkhé) no fue el pueblo (demos) sino el jefe (arkhos). Esta visión se refuerza a través de una segunda excursión etimológica: el recorrido que siguió la palabra “poder”. Su fuente es la voz indoeuropea poti, que significa “jefe”. De ella deriva el griego despotes, “jefe” o “amo”. (Grondona, 2000, p. 4)2

Nesse sentido interpretativo, “democracia”, inicialmente, poderia não ser um governo do povo em sentido literal, mas o governo de um chefe, entendido mais como um líder escolhido pela maioria, ou seja, uma forma representativa de governo, não muito distante do que se tem atualmente, incluídas as evoluções históricas decorrentes.

Assim, a palavra “democracia” adotaria uma concepção um pouco distinta, vez que, embora exista a ágora e as discussões populares em praça pública, ela se correlaciona de forma mais íntima com a espécie democracia deliberativa, e não como gênero democracia em sentido literal.

Essa substancial distinção etimológica e hermenêutica é fundamental e precípua no entendimento de certos instrumentos jurídico-políticos. Um desses instrumentos é justamente o poder vinculativo do Estado aos seus administrados que, sob a justificativa de atender ao interesse público, determina aos demais, cujas vontades foram vencidas, em virtude de lei, normas ou comandamentos, puros e simples, emanados do poder-rei estatal, obrigando-os a fazer ou deixar de fazer algo, do qual não anuíram ou sequer tiveram oportunizada a manifestação de vontade desses administrados.

Conforme visto, a democracia é gradativa, possuindo inclusive diversos formatos. Em regra, ela pode possuir como instrumentalização o voto, porém apenas o voto não realiza a democracia em si, necessitando de conjuntos de fatores ou instrumentos para determinar que tal Estado ou governo é democrático. Com isso, surge uma das suas várias vertentes: a democracia deliberativa, que, para Habermas, passaria por um contexto linguístico e argumentativo para pragmatizar e consubstanciar a democracia plena.

Como bem expõe Faria (2000) ao analisar as proposições habermasianas:

Habermas, ao elaborar o conceito de democracia discursiva/deliberativa, está preocupado com omodo que os cidadãos fundamentam racionalmente as regras do jogo democrático. Para a teoria democrática “convencional” a fundamentação do governo democrático se dá por meio do voto. Dado que esse instrumento não é suficiente para legitimar a democracia, a teoria do discurso propõe um “procedimento ideal para a deliberação e tomada de decisão” que avançaria, segundo esse autor, em termos da fundamentação e legitimação das regras democráticas. (Faria, 2000, p. 48)

Diante da proposta de Habermas, chega-se à conclusão de que a política deliberativa existe por meio da interrelação entre a coexistência da via de formação da vontade democraticamente constituída em espaços institucionais e da construção da opinião informal em espaços extrainstitucionais, legitimando, assim, o poder constituído democraticamente (Faria, 2000).

Jurgen Habermas propõe um modelo discursivo que não está centrado apenas no sistema político-administrativo. De modo que a democracia deve ser analisada a partir da relação entre as decisões tomadas no nível do sistema político e a fundamentação e a justificação no âmbito da sociedade (ágora), por meio de uma esfera pública vitalizada.

Porém, o regime em comento não nasce pleno e justo. Para compreender o segundo posicionamento etimológico existente, posto anteriormente, é necessário remontar alguns trechos históricos, iniciando-se pela guerra do Peloponeso, bem descrita, narrada e vivida por Tucídides (c. 460-c. 400 a.C;) (Kury, 2001), como adiante se vê.

Breve histórico e evolução da democracia no mundo

Há indícios de relatos de uma espécie de democracia teórica desde o ano 1000 a.C., porém a vertente mais firme sugere que ela tenha surgido e se consolidado por volta do século v a.C., na Grécia, mais especificamente no reinado de Péricles, em Atenas. Entretanto, a democracia foi lançada à sorte durante a guerra do Peloponeso, como bem narra Tucídides.

Atenas fortaleceu-se após a expulsão dos persas pela liga de Delos. Com o crescimento ateniense e o fortalecimento da pólis, fortaleceu-se também a nova forma de governo3: a democracia. Tal fato gerou insatisfação em outros recantos gregos, sobretudo em Esparta, local onde foi formada a liga do Peloponeso, que reunia forças bélicas de diversas cidades gregas contrárias à Atenas (Gastaud, 2001).

Esparta saiu vitoriosa da guerra com a liga do Peloponeso (Gastaud, 2001), fato que não abalou a estrutura da pólis ateniense, mas propiciou uma revolução interna contrária aos democráticos. Platão, em diversos momentos, narra a quão injusta foi inicialmente a democracia, tanto que Sócrates se recusou a aliar-se aos trinta tiranos que assumiram o poder após a morte de Péricles e perseguir os democráticos, e acabou por ser condenado a tomar cicuta posteriormente pelos próprios democratas como Trasíbulo, que retornaram ao poder, sob a alegação de fazer uso da livre palavra.

A democracia só voltou a ter uma evolução substancial após o período iluminista, muito devido à queda de reinados duradouros e ao fim da Idade Média, como início das Revoluções Inglesa e Francesa, período, inclusive, coincidente com o período de soerguimento do Direito Administrativo, como veremos mais adiante.

A evolução da democracia propiciou que se chegasse ao século XXI com as variações e as gradações democráticas pelo mundo, como mencionado por Rawls, como grandes grupos variantes do Estado democrático de direitos e deveres.

A democracia deixou de ser aquela patrocinada na ágora ateniense com voto segregado e direto dos assuntos atinentes à pólis e passou a ser de uma democracia representativa, por meio de Estados bicamerais, por exemplo, e com um representante maior no poder executivo, e estabelecendo forças impeditivas de sobreposição de poderes entre os componentes do sistema de tripartição traçado por Montesquieu.

Democracia no século XXI

O desenvolvimento tecnológico atual propicia uma mutação inevitável do Estado democrático de direitos e deveres. Brevemente, poderá ser necessário volver os olhos ao período democrático inicial, a fim de não se perder a essência da justiça, a qual é a base da democracia. Araújo (2002) brilhantemente observa que:

Os teóricos da justiça, hoje como na Antigüidade Clássica, dividem-se entre os que acham que é possível integrar esses vários níveis num conjunto sintético de princípios gerais e outros, que acham que esta perspectiva está fadada ao fracasso. Ambos, porém, sabem que a justiça se fala em vários modos. E isso quer dizer, entre outras coisas, que ela não se restringe à dimensão estritamente política. Contudo, há de fato uma questão específica de justiça no que se refere ao exercício do poder político. E é aqui que a parte normativa da teoria democrática dialoga com a teoria da justiça. Este é, por exemplo, o problema de quem pode participar e como deve participar das decisões coletivas. (p. 76)

Fundamentado em grande parte pela Teoria da Justiça (2002), conforme posto, em O direito dos povos, John Rawls propõe, de acordo com a similitude de suas características e por características diversas, a separação quase que didática dos Estados existentes em grupos, no mundo sociopolítico.

São cinco as espécies de sociedades nacionais agrupadas por Rawls (2001) no mundo político e social: os povos liberais; os povos (não liberais) decentes; os Estados fora da lei; as sociedades oneradas por condições desfavoráveis e os absolutismos benevolentes.

A dois grandes grupos são cediças as devidas ênfases iniciais em O direito dos povos (2001), especificamente, na parte II, “os povos liberais e os povos não liberais decentes”, também denominado de “povos hierárquicos decentes”.

Rawls (2001) trata como “povos não liberais decentes” aqueles que possuem um mínimo cerceamento com relação a determinadas questões pontuais, mas que são razoáveis, permitindo a participação da totalidade de seus membros nas questões necessárias, ainda que indiretamente, que respeitam os direitos humanos e não afrontam outras soberanias de forma beligerante, tentando agregar territórios ou invadi-los, guerreando apenas para a defesa dos territórios e dos interesses próprios razoáveis.

Assim, se o poder de legislar é feito pelo povo e para o povo, vê-se a necessidade de direcionar as leis com o intuito comum de justiça plena, pois se almeja qualidade de vida. Seria a ação do governo do povo, ou do chamado bom governo do povo, pois estaria no alcance ou, pelo menos, no deslinde da vontade. (Silva e Rosa, 2017, p. 182)

Segundo Silva (2018), para Rawls, os povos liberais devem tolerar os povos não liberais decentes, à medida que, não os tolerando, não serão razoáveis e sequer, redundantemente, tolerantes, liberais ou igualmente decentes. O tolerar proposto por Rawls (2001) ultrapassa a simples permissividade de existência, a abstenção de sanções políticas, diplomáticas e militares, mas alcança pontos como o reconhecimento como membros de participação isonômica, de boa reputação e que possuem a soberania de autodeterminar-se conforme as culturas e os costumes convenientes locais, observando o dever de civilidade.

O fundamento da velha classificação das constituições em monarquia, aristocracia e democracia é a unidade substancial ainda indivisa, que ainda não chegou à diferenciação interior (a de uma organização desenvolvida em si) e não atingiu, portanto, a profundidade da razão concreta. Do ponto de vista do mundo antigo, esta divisão é verdadeira e correta. (Hegel, 1997, p. 247)

Nesse contexto e diversamente, Hegel entende que a democracia ainda é evolutiva e necessita realizar-se uma espécie de autoconhecimento para determinar suas definições, feições e pragmatismo. Sob esse viés, alguns instrumentos podem propiciar, não apenas o autoconhecimento da democracia em si, mas também a própria perpetuação do Estado democrático de direitos e deveres, contribuindo inclusive para a redução e a parame- trização das gradações democráticas existentes no mundo contemporâneo. Um desses instrumentos é o Direito Administrativo, como será visto e aplicado adiante.

Direito Administrativo

O Direito Administrativo é um ramo do Direito Público, que busca, entre outras coisas, estabelecer um conjunto de regras e princípios que regem a Administração Pública. A Administração Pública in casu é determinada como administrador, administrado e suas relações jurídicas. Para melhor expor a forma de instrumentalização para garantir a democracia, é necessário antes demonstrar as bases da ciência jurídico-administrativista.

Origens, evolução e posição enciclopédica

A posição enciclopédica é aquela em que se situa uma determinada disciplina jurídica dentro da ciência4 do Direito. Embora se saiba da unicidade do Direito, para fins didáticos e de organização, tradicionalmente, ele é dividido em pelo menos quatro grandes grupos, que são o Direito Público, o Direito Privado, os Direitos Especiais e a Teoria do Direito.

A divisão clássica, de origem romana, tem sido alvo de questionamentos e tema de desconstrução, já que muitas relações jurídicas ultrapassam os limites de tal classificação, não sendo claramente definidas em qual local se situam; portanto, a tradicional classificação se torna insuficiente para diferenciá-los; no entanto, por se tratar de assunto controverso, é relevante dedicar esse espaço para tal demonstração.

O Direito Administrativo encontra-se classicamente como ramo do Direito Público, o qual tem como escopo disciplinas de matérias que transcendem a esfera individual e abrigam assuntos de interesse da sociedade como um todo. Em curtas palavras, aquele Direito que se relaciona de algum modo com o Estado.

Assim, é o ramo do Direito que tem por objetivo abarcar os interesses da comunidade, ou seja, o Direito Público busca disciplinar as relações jurídicas dos entes estatais entre si, tratados aqui como Administração Pública direta, indireta, fundacional, autárquica, entre tantos outros tipos, e as relações jurídicas entre a sociedade e o Estado.

No Direito Público, existem prerrogativas que desequilibram as relações entre Estado e particulares, estabelecendo uma posição de desigualdade, que pende para o interesse público, muitas vezes justificado por questão principiológica, como outrora mencionado neste artigo.

É importante ressaltar que o fato do Direito Administrativo ser alocado em um dos ramos clássicos do Direito, especificamente o Direito Público, não o afasta completamente dos demais existentes. Como exemplo, cita-se que, em muitas ocasiões, o Direito Privado é aplicado subsidiariamente ou são utilizadas terminologias conceituais ou definidoras advindas da Teoria do Direito, ou mesmo, os mecanismos de Direito Especial, como o mandado de segurança, ações coletivas ou a ação civil pública, os quais estão diretamente ligados ao Direito Administrativo.

É possível também que o Estado se relacione com um particular e que tal relação seja regida pelo Direito privado, como exceção, mas permanecendo estanque que as normas de Direito Público prevalecerão sobre as normas de Direito Privado, sempre que houver conflitos de interesse nesse tipo de acordo.

Superada essa fase introdutória da dicotomia das classificações do Direito, é importante demonstrar as origens e a evolução do Direito Administrativo, sendo este intimamente relacionado com as bases democráticas, pois, em um Estado déspota ou absolutista, no qual o poder do soberano ou do ditador é indiscutível, não há razão ou sentido para a existência do Direito Administrativo, uma vez que esse ramo trata basicamente das relações do Estado internamente ou do Estado com o administrado.

Dessa forma, o surgimento, a evolução e a existência do Direito Administrativo estão diretamente correlacionados ao surgimento e perpetuação do Estado democrático de Direito e deveres obrigacio- nais, entendendo-se este como um Estado no qual não há súditos, mas cidadãos em relações sociais diretas, isonômicas e equânimes, em que há o primado da lei e a soberania constitucional decorrente da vontade do povo e não da vontade exclusiva do soberano ou de um grupo específico, como ocorre na oligarquia ou na aristocracia. De toda forma, um Estado delimitado e delimitador legitimado pelo Direito e pela vontade dos administrados.

Em que pese a existência da democracia datar da Grécia antiga, como visto anteriormente, as revoluções liberais, tanto inglesa quanto francesa, dos séculos XVII e XVIII, período correspondente à ascensão do Estado democrático de direito, influenciaram decisivamente para o surgimento e o aumento da importância do Direito Administrativo, como ramo autônomo da ciência jurídica.

A data considerada como marco para o reconhecimento da autonomia do Direito Administrativo é o ano de 1873, quando ocorreu o julgamento do famoso “caso Blanco” (Di Pietro, 2010). Trata-se de uma lide em que se buscava reparação civil pelo fato de uma criança francesa, Agnès Blanco, de 5 anos de idade, ter sido atropelada por um vagão da Companhia Estatal de Manufatura de Fumo (Faria, 2011).

No julgamento do caso para fins de responsabilização civil do Estado fFrancês, houve a tentativa de utilização de princípios e regras próprios para tratar da matéria, já que, diante da presença do Estado na relação jurídica, as regras de Direito Privado já não se revelavam adequadas, sendo resolvido mediante conflito negativo de competência.

Esse caso foi importante para a autonomia do Direito Administrativo, o qual passou a ter princípios, regime, institutos, método e objeto próprios, sendo a partir de então considerada uma ciência autônoma.

Enfim, o Direito tem por objeto as relações sociais e as normas - leis, regras ou princípios -, as quais regulam as relações jurídicas, inclusive dentro da própria Administração Pública, como acontece entre a pessoa jurídica e os órgãos e os agentes a que pertencem; e as relações estabelecidas entre os administrados e a Administração Pública interna corporis.

Conceito

Existem diversos entendimentos conceituais para o Direito Administrativo. Inicialmente, a escola denominada “legalista, empírica, exegética ou caótica” o concebeu como sinônimo do Direito Positivo para estipular a definição do objeto do Direito Administrativo. Para essa teoria, o Direito Administrativo era um arcabouço legislativo, ou seja, entendia que o Direito Administrativo deveria emanar apenas das leis; assim, ao se falar sobre “Direito Administrativo”, para essa escola, está se falando em lei.

Em seguida, o estudo do Direito Administrativo foi se ampliando, atrelando-o à ciência da administração. Período no qual houve um grande alargamento do objeto do Direito Administrativo, englobando, inclusive, matérias não jurídicas, tais como aquelas afetas à política da administração, devido à correlação com a Administração Pública.

Por fim, o critério científico, conceito para o qual o Direito Administrativo cuidaria apenas de matérias estritamente jurídicas. Tal construção doutrinária, adotando o critério científico do Direito Administrativo, fortaleceu o estudo dos princípios jurídicos da disciplina, os quais culminaram nos princípios constitucionais do Direito Administrativo e em todo o arcabouço normativo administrativo.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010) dispõe acerca das escolas e dos diversos critérios utilizados para a conceituação do Direito Administrativo. Adiante passamos a expor de forma simplificada as principais escolas da ciência objeto deste artigo.

A escola puissance publique ou escola da potestade pública foi desenvolvida no século XIX; diferenciava os atos de autoridade daqueles atos de gestão, priorizando ou aumentando a importância do chefe do executivo ou do monarca. Nesse sentido, apenas nos atos de gestão, o Estado estava em posição equivalente à dos cidadãos, sendo a relação regida pelo Direito Privado.

Embora tenha sido utilizada essa teoria e, atualmente, ainda haja alguns resquícios de sua aplicação, como a distinção entre atos de império e atos de gestão, não encontra acolhimento e está sujeita a críticas, pois, mesmo quando o Estado está praticando atos privados, esse regime nunca será aplicado integralmente. O Direito Público, em certas ocasiões, derrogará o Direito Privado. São exemplos as autorizações dadas para o particular exercer uma atividade privada, que, embora se trate de atos negociais, são regidas pelo Direito Público.

Já a escola do serviço público surgiu como necessidade após o julgamento do caso Agnès Blanco e foi reconhecida a autonomia do Direito Administrativo, sendo fixada a competência dos tribunais administrativos quando o caso envolvesse o serviço público. A expressão “serviço público” adquiriu um conceito mais lato e menos restritivo, abrangendo todas as atividades do Estado. De forma superveniente, foi atribuído um sentido mais restritivo ao serviço público, abrangendo apenas a atividade material, excluindo outras atividades como a legislativas. Nesse mesmo diapasão, esse sentido estrito pode ser didaticamente útil em específico, mas não conseguindo lograr êxito para a definição do Direito Administrativo sui generis.

O critério do Poder Executivo foi criado como uma forma evolutiva e posposta à escola do Serviço Público, o Direito Administrativo passou a ser um conjunto de normas (regras e princípios) que disciplinam a organização e as atividades do Poder Executivo estatal retratando, porém, uma falácia, pois o Direito Constitucional organiza os Poderes e estrutura o próprio Estado.

Ao Direito Administrativo coube disciplinar a atividade administrativa. Embora, apesar da afirmação a ser experimentada de a atividade administrativa poder, em tese, ser uma atividade exclusiva do Poder Executivo, acaba por ser uma inverdade, pois, ainda que a função seja tipicamente de exercício do Poder Executivo, não é exclusiva, ocorrendo de outros poderes utilizarem de forma atípica.

Além da ausência no ordenamento pátrio da exclusividade, há a preponderância, com a instrumentalização do check and balances ou também chamada de “teoria dos freios e contrapesos”, na qual os poderes independentes e harmônicos se autolimitam a fim de impedir excesso, como golpes, ditaduras ou oligarquias.

Cabe mencionar que os Estados modernos evoluíram a aplicação da teoria da tripartição de poderes clássica, como concebida por Montesquieu, ao seu contexto social e histórico ao dar dinamismo e flexibilidade entre os poderes, de modo que cada um deles exerça, além de funções típicas, as funções atípicas como mencionado anteriormente, ou seja, as funções de naturezas típicas dos outros poderes.

Assim, a atividade preponderante exercida pelo Poder Executivo é a atividade administrativa, mas os demais poderes também a exercem, assim como o Poder Executivo também exerce de forma atípica a judicância e a legisferância, esta por meio de decisões de lides administrativas, por exemplo, e aquela por meio de edição de normas infralegais ou decretos do poder executivo.

Da mesma forma, outros poderes exercem as funções típicas atribuídas constitucionalmente a eles e as funções atípicas, características dos demais poderes. O Poder Judiciário, por exemplo, quando promove um concurso público para a admissão de pessoal, exerce atividade administrativa que, inclusive, é regida pelo Direito Administrativo ou, quando o presidente do tribunal edita as normas regulamentares do tribunal, exerce a função legislativa.

O mesmo ocorre com o Poder Legislativo, em concursos, gestão de atos de manutenção entre outros, tipicamente relativos ao Poder Executivo ou ao formar comissões parlamentares de inquérito ou ao julgar um presidente da república, por exemplo, em funções tipicamente do judiciário. Assim, ambos exercem de maneira atípica a atividade administrativa e cruzadas entre si. Portanto, essa tese não prosperou, dando lugar a outras escolas.

O critério das relações jurídicas aduz que o Direito Administrativo é um conjunto de normas regentes das relações entre a Administração e os administrados. Entretanto, é um critério que também não pode ser aceito, uma vez que não considera outros ramos do Direito que também disciplinam as relações entre administrador e administrado, como é o caso do Direito Tributário, do Direito Penal, do Direito Constitucional, do Direito Processual, do Direito Ambiental, entre outros.

Já o critério teleológico determina que o Direito Administrativo é um conjunto de princípios que disciplinam a atividade do Estado para a consecução dos fins estatais. Trata-se de critério bastante amplo, como no caso de algumas escolas anteriores, pois a expressão “fins estatais” é de difícil delimitação.

Opostamente, o critério negativo ou residual trata-se de uma evolução, ou seja, um critério opo- nível ao anterior, pois o critério teleológico sustenta que o Direito Administrativo é um conjunto de princípios que disciplinam a atividade do Estado voltada para seus fins.

O critério negativo ou residual, por sua vez, vem delimitar a amplitude do critério teleológico, estabelecendo como diferença fundamental que devem ser excluídas as funções legislativa e judicial. Dessa forma, em sentido positivo, o Direito Administrativo traria em seu bojo princípios e regras que disciplinam a atividade do Estado em busca de seus fins e, em sentido negativo, o Direito Administrativo, quando não houver as atividades legislativa e jurisdicional.

O critério da distinção entre as atividades jurídica e social tem por base que o Direito Administrativo regula a atividade exercida de maneira não contenciosa pelo Estado e a constituição dos órgãos e de seus meios de ação, porém a função do Direito Administrativo é mais ampla do que apenas regular as atividades que não envolverem lides. Conflitos que também podem ser abarcados pelo Direito Administrativo.

Para o critério da Administração Pública, por fim, o Direito Administrativo é um conjunto de regras e princípios que regem a Administração Pública. Para a corrente majoritária da doutrina administrativista brasileira, o conceito parte das noções de Administração Pública em sentido subjetivo, como conjunto de órgãos e pessoas jurídicas, e, em sentido objetivo, como sendo aquele que compreende as atividades do Estado. É o conceito mais aceito e de forma predominante no Brasil. É adotado, por exemplo, por Hely Lopes Meirelles (2010), que o qual sustentava que o Direito Administrativo é o “conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado” (p. 40).

Importante destacar, como suso mencionado, que as atividades de natureza executiva ou inerentes à Administração Pública não são exclusivas do Poder Executivo na acepção moderna da separação de poderes, de modo que também os Poderes Legislativo e Judiciário praticam atos administrativos.

Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2017) diz que o Direito Administrativo é:

o ramo do Direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública. (p. 78)

Diante dessa evolução histórica e conceitual e das inferências necessárias ao Direito Administrativo, é possível explicitar a instrumentalidade dessa ciência jurídica como meio para a fixação e a perpetuação da democracia.

Direito Administrativo como instrumentalidade da democracia

As relações estatais e do Estado com o particular demonstram o afastamento da unicidade de uma utópica vida privada, individualista, autossuficiente, única e simplesmente. O ser humano é um ser naturalmente sociável. Nos dizeres de Aristóteles (2004): “o homem é um animal político” (p. 14).

A formação e a atuação estatal são necessárias; a máquina pública não é uma vilã nem um fim em si mesmo; é, na verdade, um organismo vivo e autótrofo, altruísta, que dedica essa vida ao administrado. É como a mãe que se dedica aos filhos e trabalha para propiciar a melhor qualidade de vida aos descendentes, no caso, os administrados, para garantir a perpetuação do bonno vivere e da importância de cada um. Hegel (1997) preleciona que:

É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus Direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse universal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para ele agem como seu último fim. Daí provém que nem o universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes em sua atividade individual. O princípio dos Estados modernos tem esta imensa força e profundidade: permitirem que o espírito da subjetividade chegue até a extrema autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade substancial, assim mantendo esta unidade no seu próprio princípio. (p. 225, grifo nosso)

O Estado político, diga-se de passagem, o Estado democrático, pleno e participativo, só é possível graças a instrumentos que propiciam sua aplicabilidade. A individualidade dos administrados deve ser respeitada e ouvida, ao mesmo tempo que garante a inclusão em um corpo social único e indivisível.

O Direito Administrativo, por meio dos princípios, expressos ou tácitos, e dos poderes relacionados à ciência jurídicoa-administrativa, tais quais o poder discricionário, o poder vinculado e o poder de polícia, garante que as inclinações pessoais possam ser exercidas na mais plena liberdade, sem, contudo, se tratar de uma exacerbação sem limites dos direitos pessoais.

O caráter fundamental do Estado político é a unidade substancial como idealidade dos seus momentos. Nela:

a) Se dissolvem e ao mesmo tempo se conservam os diferentes poderes e as diferentes funções, mas só se conservam quando a sua legitimidade é, não independente, mas determinada unicamente pela ideia do todo; devem eles abandonar o seu poder para formar a dinâmica articulação como os membros em relação à unidade simples do seu pessoal.

b) As diferentes funções e atividades do Estado pertencem-lhe como momentos essenciais e são inerentes às universais e objetivas e, embora se liguem, à personalidade particular como tal de um modo exterior e contingente. As funções e os poderes do Estado não podem, pois, constituir uma propriedade privada. Nem para si nem na vontade particular dos indivíduos têm os diferentes poderes e funções do Estado existência independente e fixa: a sua raiz profunda está na unidade do Estado como “eu” simples deles. São estas as duas condições que constituem a soberania do Estado. (Hegel, 1997, p. 252)

As garantias vitais da convivência em sociedade dos administrados somente serão exequíveis se o Estado se tornar o garantidor de que o próprio Estado seja democrático. Em outras palavras, a luta interna estatal para evitar o soerguimento de estados absolutistas propicia a garantia de que esses estados absolutistas, cerceadores da liberdade e das garantias de um Estado democrático, sobressaiam-se.

A utilização das ferramentas apresentadas pelo Direito Administrativo, desde a mais simples e não menos importante, como o voto, até os processos licitatórios complexos ou atos administrativos como homologações, posses, exercício do poder de polícia sob o administrado são institutos necessários à garantia da ordem pública e, consequentemente, do exercício das liberdades individuais, garantidas pela democracia.

Prática demonstrada por casos ou jurisprudência

O legislador cria determinadas normas para suprir uma carência normativa social, um clamor público, sendo que, muitas vezes, por se tratar de democracia representativa, acaba por não atender a todos os anseios ou muitas vezes até por contrariá-los. O poder de veto do Executivo seria uma espécie de controle dos ímpetos legislativos descabidos ou não justos ou ainda não democráticos.

Sabe-se, porém, que a aplicação da norma escapa à vontade que o legislador quis expressar no momento em que a norma instituída é aplicada efetivamente, tomando contornos e formas adequadas à necessidade da fonte geradora e aplicadora da lei, sofrendo interferências externas, como as diversas formas interpretativas, a somatória com os costumes e culturas da localidade e do povo a qual está inserida e é aplicada, ou mesmo por influência e interferência das funções de Estado, pela burocratização dos Direitos fundamentais em prol de interesses economicistas. (Silva e Bastianetto, 2018, p. 148)

Da mesma forma, o controle judicial pode ser exercido sobre o ato legislativo ou mesmo, como preleciona Edimur Ferreira de Faria (2011), sobre o mérito do ato administrativo. Como forma de exemplificar esta última proposição, demonstra-se o julgado no REsp 1784354/MS-STJ.

DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E LEI DA TRANSPARÊNCIA.VIOLAÇÃO AO ART. 8°, § 2°, DA LEI COMPLEMENTAR 75/1993; ART. 21 DA LEI 12.527/2011 E LEI COMPLEMENTAR 131/2009. POSSIBILIDADE.LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.

  1. Trata-se na origem de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra o Município de Campo Grande/MS em razão de reiterados descumprimentos às disposições da Lei 12.527/2001 (Lei de Acesso à Informação) e da Lei Complementar 131/2009 (Lei da Transparência).

  2. O Tribunal de origem confirmou a sentença que extinguiu o feito sem resolução de mérito por concluir pela ilegitimidade do Parquet Federal, tendo em vista que a pretensão final postulada pelo MPF se refere unicamente a adequação do Município aos termos das leis mencionadas, logo inexistiria interesse federal a ser defendido.

  3. O art. 127 da Constituição Federal define o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, cabendo-lhe promover Ação Civil Pública (art. 129, III).

  4. Cabe ao Parquet resguardar os princípios constitucionais da Administração Pública, previstos no art. 37 da Constituição Federal, entre os quais temos os princípios da publicidade, da legalidade, da eficiência e ainda o da probidade administrativa.

  5. No caso dos autos, o Município recorrido recebe verbas oriundas da União, devendo o recebimento e a aplicação constar no portal da transparência do Município. Frise-se que a inadimplência do Município com sua obrigação para com a transparência pode gerar inclusive a suspensão de repasses federais.

  6. Diante das supostas irregularidades narradas envolvendo a publicidade do uso de recursos financeiros federais, a atuação do Ministério Público Federal configura-se legitima, tendo em vista sua tarefa de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos Direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, nas quais se incluem a promoção do inquérito civil público e da ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social (CRF/88, art. 129, II e III).

  7. Ressalta-se, ainda, que, nos termos do art. 1°, VIII, da Lei 7.347/1985, o Ministério Público Federal possui legitimidade ativa para ajuizar Ação Civil Pública que vise a resguardar o interesse da União no tocante à correta aplicação de recursos federais transferidos aos Estados e Municípios.

  8. Recurso Especial provido. (REsp 1784354/MS Recurso Especial 2018/0287320-3. Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. DJe 18/10/2019).

O presente julgado congloba as várias proposições apresentadas no presente artigo, corroborando com a tese defendida na hipótese inicial. Demonstra-se inicialmente que o ente municipal descumpriu a determinação da chamada “Lei de Acesso à Informação”, Lei Federal 12.527, de 18 de novembro de 2011, ao não tornar público, por meio do portal da transparência, gastos públicos cuja verba inicial adveio da União.

Como forma de resguardar a democracia e garantir a aplicação de vários princípios constitucionais, com destaque para o princípio da publicidade, o órgão ministerial, pertencente ao Poder Executivo, provocou o judiciário utilizando-se da ferramenta constitutiva da ação civil pública, a fim de obrigar o ente munícipe a cumprir o que a lei determina.

Ainda, como forma de aplicação dos sistemas constitucionais do check and balances, o Poder Judiciário primário, entendendo não ser o Ministério Público Federal competente para a propositura de tal ação e com vistas a limitar poderes, que a princípio demonstravam estar extrapolando os limites legais e constitucionais, impediu o prosseguimento do feito.

Como a democracia é plena e permite espécies de justificativas, como recursos e contrarrazões, o parquet recorreu da decisão inicial e teve provido seu intento, podendo então prosseguir no exercício garante de fiscalização e aplicação dos preceitos constitucionais.

A obra Como as democracias morrem (Levitsky e Ziblatt, 2018) apresenta um outro aspecto de controle do executivo pela atividade atípica do

Legislativo, in casu, estadunidense. Fato que demonstra a instrumentalidade do Direito Administrativo como garantidor da democracia, mesmo em países reconhecidamente com a democracia estável.

Em síntese, segundo Levitsky e Ziblatt (2018), no sábado 13 de fevereiro de 2016, o juiz da Suprema Corte, Antonin Scalia, falece inesperadamente em uma viagem de caça ao Texas.

Diversas personagens públicas declaram que Barack Obama, o então presidente estadunidense, não deveria nomear um novo juiz, mas aguardar para que o próximo presidente o faça, ou, alternativamente, que o Senado não aprovasse a indicação ocasionalmente feita.

Em 16 de março de 2016, Barack Obama indicou o juiz de apelação federal Merrick Garland. Porém, pela primeira vez na história, o Senado recusou a indicação de um juiz indicado por um presidente.

Conclusões

O presente artigo objetivou demonstrar a utilização do Direito Administrativo como instrumento de garantia do exercício e perpetuação da democracia. Para tanto, foi necessário apresentar os conceitos básicos da democracia, assim como suas origens, evolução e forma no mundo contemporâneo, trespassando por conceituações da Grécia antiga, em tese nascedouro da democracia, como explanado, até chegar às classificações de povos esposadas por John Rawls.

No mesmo sentido, foi necessário apresentar também os conceitos básicos atinentes ao Direito Administrativo, tais como a origem, o conceito e a evolução, o que inclui as diversas escolas e características e sua correlação com a democracia.

Por fim, foi apresentado um julgado que demonstra plenamente o exercício da democracia por meio da atividade administrativa, corroborando com a hipótese apresentada. Outrossim, foi igualmente colacionado aspectos da obra Como as democracias morrem (2018), a fim de demonstrar a aplicabilidade no ordenamento administrativo e judicial norte-americano, com o fito de justificar a aplicabilidade da teoria desenvolvida mesmo em democracias consideradas consolidadas.

Referências

Araújo, C. (2002). Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. Revista Lua Nova. Revista da Universidade de São Paulo, 57, 73-86. http://www.scielo.br/pdf/%0D/ln/n57/a04n57.pdf DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452002000200004Links ]

Aristóteles. (2004). Política (T. Guimarães, trad.). Martin Claret. [ Links ]

Bobbio, N. (2003). O filósofo e a política: antologia (J. F. Satillán, trad.). Contraponto. [ Links ]

Faria, C. F. (2000). Democracia deliberativa: Habermas, Cohen e Bohman. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 50, 47-68. http://www.scielo.br/scielo.php?pi-d=S0102-64452000000200004&script=sci_arttextLinks ]

Faria, E. F. de (2011). Controle do Mérito do ato administrativo pelo judiciário. Fórum. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452000000200004Links ]

Gastaud, C. (2001). Historiografia grega: Tucídides e a guerra do peloponeso. História em revista, 7(7). https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/HistRev/article/view/11891Links ]

Grondona, M. (2000). Historia de la democracia. Universidad del CEMA. https://ucema.edu.ar/publicaciones/download/documentos/175.pdfLinks ]

Hegel, G. W. F (1997). Princípios da filosofia do Direito. (O. Vitorino, trad.). Martins Fontes. [ Links ]

Kury, M. da G. (2001). Tucídides: História da guerra do Peloponeso. http://funag.gov.br/biblioteca/download/0041historia_da_guerra_do_peloponeso.pdfLinks ]

Levitsky, S. e Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. (R. Aguiar, trad.). Zahar. [ Links ]

Meirelles, H. L. (2010). Direito administrativo brasileiro. (36a ed.). Malheiros. [ Links ]

Di Pietro, M. S. Z. (2010). Direito administrativo. Atlas. [ Links ]

Di Pietro, M. S. Z. (2017). Direito administrativo. Atlas. [ Links ]

Rawls, J. (2001). O direito dos povos. (L. C. Borges, trad.). Martins Fontes. [ Links ]

Rawls, J. (2002). Uma teoria da justiça. (L. C. Borges, trad.). Martins Fontes. [ Links ]

Silva, A. M. (2018). Direito dos povos em tempos de globalização: uma análise fracionada pragmática da teoria ideal e não-ideal de John Rawls. Revista Serviam Juris, 4(4), 91-110. [ Links ]

Silva, A. M. e Bastianetto, L. M. R. (2018). Instrumentos preservacionistas e mercado: análise sobre a sustenta-bilidade da atuação econômica na amazônia. Em: B. S. Costa (org.), Anais do V Congresso Internacional de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável: PanAmazônia - Integrar e Proteger. http://revista.domhelder.edu.br/index.php/congressodireitoam-biental/article/view/1363Links ]

Silva, A. M. e Rosa, B. P. (2017). A reciprocidade cíclica das liberdades sociais, políticas e individuais como pressuposto básico do tripé do desenvolvimento sob o aspecto econômico minerário. Revista Direito Ambiental e Sociedade, 7(3), 171-199. DOI: https://doi.org/10.18226/22370021.v7.n3.08Links ]

Superior Tribunal de Justiça (2019). Recurso Especial em Mandado de Segurança - REsp 1784354/MS 2018/0287320-3. Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. DJe 18/10/2019. https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=DEMOCRA- CIA&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=trueLinks ]

Xavier, V. C. S. (2019). Transparência: a hierarquização dos países decorrente da opção democrática no índice da Freedom House. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, 21(2). DOI: https://doi.org/10.12957/irei.2019.44213Links ]

*Artigo de pesquisa, a qual foi desenvolvida com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, Brasil.

1Há profícuas discussões se se trata a democracia de uma forma de governo ou de um regime de governo. Tratamos como a segunda hipótese, pelo simples fato de que está contida na primeira, como a lógica espécie-gênero. Uma vez que, como forma de governo, poder-se-ia entender o anarquismo, a monarquia, a república, entre outros, para os quais teriam a forma de governar dada pelo regime governamental, que pode ser democrático, autoritário, totalitário, entre outros. Não hei de aprofundar em tal temática por escapar ao objetivo do presente estudo.

2“Duas excursões etimológicas apoiam esta afirmação. A primeira delas nos convida a lembrar que o verbo grego arkhein tem dois significados interligados: ‘começar’ e ‘mandar’. Dois substantivos se conectam a ele: arkhé, ‘origem’ e arkhos, ‘chefe’. Com o arkhé, as palavras são vinculadas como ‘arcaico’ e ‘arqueologia’. Com arkhos, ‘monarca’. ‘Mon-arquia’ significa ‘comando de uma pessoa’, pois mono significa ‘um’. O que sugere nossa primeira excursão etimológica? Que no começo (arkhé) não eram as pessoas (demos), mas o chefe (arkhos). Essa visão é reforçada através de uma segunda excursão etimológica: a rota que a palavra ‘poder’ seguia. Sua fonte é a voz indo-europeia poti, que significa ‘chefe’. Dela derivam os déspotas gregos, ‘chefe’ ou ‘mestre’” (tradução nossa).

3Como já explicado em nota anterior

4Em que pese saber da grande e duradoura discussão sobre o Direito ser ou não uma ciência, preferimos utilizar essa expressão, sem adentrar na questão dicotômica, por não ser o objeto do presente estudo, para facilitar a compreensão do que realmente é imprescindível para a demonstração da hipótese e a resolução do problema aqui posto.

Cómo citar: Marques Silva, A. (2022). Direito Administrativo como instrumento de perpetuação da Democracia. Prolegómenos, 25(49), 101-114. https://doi.org/10.18359/prole.5791

Recebido: 15 de Maio de 2021; Aceito: 27 de Outubro de 2021; Publicado: 30 de Junho de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons