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Revista Guillermo de Ockham

versão impressa ISSN 1794-192Xversão On-line ISSN 2256-3202

Rev. Guillermo Ockham vol.17 no.1 Cali ene./jun. 2019  Epub 06-Fev-2021

https://doi.org/10.21500/22563202.4039 

Artículos originales

História política e pensamento epidemiológico: Breilh e a economia política da saúde

Political history and epidemiological thinking: Breilh and the political economy of health

Historia política y pensamiento epidemiológico: Breilh y la economía política de la salud

Isabel Figueiredo Pereira de Souza1 

Áquilas Mendes1 

Leonardo Carnut1 

1 Universidade Federal de São Paulo; Brasil.


Resumo

O objetivo deste estudo é realizar uma aproximação entre o pensamento epidemiológico de Jaime Breilhea economia política marxista, identificando os pontos de convergência entre suas análises sobre asaúde como um fenômeno socialmultideterminado. Para isso, foi realizado um ensaio teórico-conceitual, através de uma análise de conteúdo dos excertos dos dois primeiros capítulos do livro de Breilh intitulado Epidemiologia Crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Nestes, expôs-sea construção de seu pensamento epidemiológico cotejando com a conjuntura histórica e política da sua produção intelectual que justificam os tangenciamentos entre construto epidemiológico e economiapolítica.

Descritores: Saúde Coletiva; Epidemiologia; Economia da Saúde; Reforma Sanitária

Abstract

The objective of this study is to make an approximation between Jaime Breilh’s epidemiological thought and the Marxist political economy, identifying the points of convergence between his analyzes on health as a multidetermined social phenomenon. For this, a theoretical-conceptual essay was carried out, through a content analysis of excerpts from the first two chapters of Breilh’s book entitled Critical Epidemiology: emancipatory science and interculturality. In these, the construction of his epidemiological thought was exposed, comparing withthe historical and political conjuncture of his intellectual production that justify the tangenciamentos between epidemiological construct and politicaleconomy.

Keywords: Collective Health; Epidemiology; Health Economics; Health National System Reform

Resumen

El objetivo de este estudio es realizar una aproximación entre el pensamiento epidemiológico de Jaime Breilh y la eco nomía política marxista, identificando los puntos de convergencia entre sus análisis sobre la salud como un fenómeno social multideterminado. Para ello, se realizó un ensayo teórico-conceptual, a través de un análisis de contenido de los extractos de los dos primeros capítulos del libro de Breilh titulado Epidemiología Crítica: ciencia emancipadora e interculturalidad. En estos, se expuso la construcción de su pensamiento epidemiológico cotejando con la coyuntura histórica y política de su producción intelectual que justifican los tangenciamientos entre constructo epidemiológico y economíapolítica.

Palabras claves: Salud Colectiva; Epidemiología; Economía de la Salud; Reforma Sanitaria

Introdução

Jaime Breilh é médico epidemiologista equatoriano mestre da área de Medicina Social, responsável por reivindicar pela primeira vez o conceito de determinação social em saúde, em sua tese de mestrado em1976. O autor conta com estudos depós-graduação n amedicina social na Universidad Autónoma Metropolitana de México, com especialidade em epidemiologia pela Escola de Higiene da LondonUniversity e com doutorado em epidemiologia pela Universidade Federal da Bahia (Breilh,2015).

Breilh é filho da discussão intelectual dos anos 70, no qual se criaram as condições para que certos núcleos de medicina social na América Latina se dedicassem a compreender a relação entre a ordem capitalista e a saúde, cenário que lhe tornou possível propor uma crítica à epidemiologia hegemônica e construir formas desuperação.

Tradicionalmente assentada no paradigma empírico- funcionalista, a epidemiologia convencional destina a sua natureza o lugar de uma ‘ferramenta de trabalho’ para traçar a relação entre a saúde e fatores (de risco e proteção) que muitas vezes não se reconectam como todosocial.Assim, a perspectiva breilhiana se preocupará, basicamente em retomar a categoria da reprodução social, dos modos de viver, adoecer e morrer como ancoragem para superar os modelos lineares e causalistas que a epidemiologia convencional insiste em reafirmar (Breilh, 2013).

É nesta esteira, portanto, que, em Breilh, a “determinação social em saúde” junto com as categorias de “reprodução social” e “metabolismo sociedade-natureza” compõem os três eixos a partir dos quais se estruturam o pensamento da epidemiologia crítica que emerge na segunda metade do século XX.

Compreendendo esse pensamento epidemiológico como cerne de uma perspectiva crítica radical à sociedade capitalista e asuas formas de dominação é que este trabalho tempor objetivo esboçar uma aproximação entre o pensamento epidemiológico de Jaime Breilh e a economia política marxista, identificando os pontos de convergência entre suas análises sobre o social. O intuito é aproximar a saúde, via pensamento epidemiológico, ao debate da economia política visando resgatar a visão de totalidade tão abandonada pela saúde nos diasatuais.

Para isso este breve ensaio se divide em duas seções. A primeira vai tratar da contextualizaçãohistórico-política- doambientenoqualseencontravaoautorparaaconstrução do seu pensamento epidemiológico. A segunda descreve a construção da epistemologia de Jaime Breilh, com seus fundamentos e filiação paradigmática. Ao final algumasrápidas conclusões abrem os caminhos para se pensar como o construto epidemiológico do autor pode serumafontefecundaparaseconstruirumaeconomiapolíticadasaúdeaoconsiderarsuaforma de pensar como um método de captura do ‘concreto’ em saúde reconectando com atotalidade.

Contextualização histórico-política da medicina social e o desenvolvimento da epidemiologia crítica

No final da década de 60 e durante os anos 70, a América Latina viveu o desenvolvimento de um campo do saber chamado de Medicina Social. Impulsionada por acadêmicos, profissionais, estudantes e movimentos sociais, essa corrente surge em resposta a um modelo desenvolvimentista que, implementado de forma expressiva nas políticas macroeconômicas latinoamericanas, produziu efeitos marcantes no campo da saúde pública (Nunes, 1994).

Na época, sustentava-se a crença de que o crescimento econômico levaria a uma melhora automática das condições de vida e saúde, no entanto, o que se verificou foi justamente o contrário. Enquanto os indicadores macroeconômicos apresentavam melhora, os sociais declinaram expressivamente e instaurava-se um quadro de intensa contradição: ao mesmo tempo em que os gastos com saúde aumentavam e novas tecnologias eram desenvolvidas. O acesso mantinha-se restrito e as condições gerais de saúde pioravam (Iriart,2002).

Nesse contexto, a correlação entre condições de saúde e classe social ficavam explícitas, e ainda, as efemeridade e a pobreza não podiam mais ser dissociadas na medida em que as desigualdades sociais se configuravam em des- igualdades de acesso aos serviços. Assim, diversos autores, com abordagens teórico-metodológicas diversas, passaram a produzir um conhecimento que se encarregasse de exercer essa crítica1 ao social, que findou por ser reconhecida como ‘MedicinaSocial’.

Por tanto, a medicina social define os problemas e desenvolve sua pesquisa através de unidades de análise social e individual, mas com um quadro teórico-metodológico coletivo. Ou seja, as especificidades individuais e grupais são analisadas no contexto social que as determina. Nesse sentido, as principais categorias analíticas são a reprodução social, classe social, produção econômica, cultura, etnia e gênero, entre outros (Breilh et al. 2002, p.30).

Breilh se insere, então, neste movimento latinoamericano de crítica à construção positivista da saúde que tinha como enfoque a epidemiologia e que, em um primeiro momento, visava constituir uma nova objetividade para este campo (Breilh,1988).

Ou seja, de algum modo, desde uma primeira etapa, examinamos o que seria a construção dessa nova objetividade - na qual nosso trabalho teve de enforcar uma crítica da construção positivista da saúde -, trabalhamos no objeto epidemiológico e iniciamos o que seria a crítica integral ao paradigma do risco; em suma a nossa luta foi por transformar as ideias do causalismo, calcado em noções positivistas, em prol da ideia de determinação (Breilh, 2006, p. 30).

A busca por essa nova objetividade tem como base o que o autor chama de “construção intercultural de outro paradigma da ciência”. Dialeticamente, transformar a orientação disciplinar pragmática e funcionalista do campo da saúde pública atuaria de forma a converter a atividade prática, que urge porreformulação.

O movimento latinoamericano da epidemiologia crítica expõe as contradições de um campo que mesmo quando reconhece no âmbito teórico o caráter social da efemeridade, segue negando-o em sua prática. A perpetuação de modelos de entendimento e “cuidado”2 biologicistas, centrados em corpos individuais suscetíveis à antígenos, faz sentido, segundo Jaime Breilh, na medida em que insere-se em uma sociedade capitalista que não pode assumir a determinação social da saúde, ao passo que isso equivaleria a desqualificar sua burguesia como agente que organiza a sociedade em prol do “bem comum”3.

A crítica que se constrói em torno da chamada epidemiologia clássica tem como foco a perspectiva cartesiana, o empirismo cognitivo e a metodologia positivista que fundamentam suas análises e os efeitos provocados por elas. Esta epidemiologia convencional reduz a realida deaoplanodosfenômenosindividuaiseadotaumanoçãodetotalidadequecorresponde a uma somatória de frações, tendo como objeto central cada indivíduo afetado por fatores de risco.

Breilh questiona a capacidade explicativa desta epidemiologia acerca da realidade, que, apesar de possuir um arsenal estatístico robusto, não consegue dizer sobre a relação entre os sistemas sociais, modos de vida e saúde, e tampouco sobre a distribuição por classes das formas e intensidades de “exposição” 4 a situações de risco, ou os diferentes níveis de vulnerabilidade inerentes a cada realidade social distinta. Em suma, a epidemiologia calcada em moldes conservadores e empíricos, cuja análise fundamenta-se nas limitadas categorias de pessoa, tempo e lugar somadas aos conceitos de história natural da doença e sistemas de equilíbrio (antígeno-suscetível-ambiente) falha na tarefa de conhecer a realidade para alterá-la (Breilh, 2013).

Nesse sentido, o autor elenca cinco elementos que sintetizam os problemas metodológicos que impossibilitam que análises críticas e aprofundadas sejam feitas seguindo moldes de uma epidemiologia convencional:

a) uma explicação fenomenológica reducionista e fragmentária da realidade e da saúde, b) primazia absoluta de causa e efeito como grande organizador e lógica do universo epidemiológico, c) reprodução da relação causa-efeito como um artefato formal aplicado para identificar fatores de risco, d) a redução da noção de exposição/vulnerabilidade a um problema probabilístico essencialmente individual, e e) redução da organização da prática epidemiológica em ações funcionais sobre fatores de risco (Breilh, 2013, p. 15).

Dentre os paradigmas e modelos que os abarcam que vem estruturando o campo da epidemiologia, destacam-se, segundo análise do autor, três centrais: o modelo objetivista- empírico e funcionalista, o subjetivo culturalista de ação localizada, e o praxiológico- participativo.

O primeiro modelo fundamenta-se em paradigmas hegemônicos do pensamento ocidental. Os processos são todos explicados exclusivamente no plano dos fenômenos empiricamente observáveis, a realidade assume o papel de objeto que existe “em si”. A realidade, e consequentemente a saúde ou doença empírica é a única que pode ser cientificamente comprovada, e, portanto, a única que existe. As avaliações quantitativas são a chave do conhecimento que deduzem as relações simples e lineares que se estabelecem entre cada fenômeno.

O modelo subjetivo culturalista de ação localizada surge, por sua vez, em oposição ao paradigma positivista do modelo anterior, na medida em que defende que a realidade é construída subjetivamente, de forma que o referencial teórico e subjetivo existe a priori. Este paradigma rompe com a noção de totalidade e de ideias globalizantes, estrutura uma subjetividade focada em expressões culturais locais e individualizantes.

Ele equivale a um tipo de pluriculturalismo conservador, que faz parte de uma política de assimilação que abstrai a iniquidade constatada entre as culturas e seu poder diferencial de exercer significados e condicionar a subjetividade (Breilh, 2006, p. 141).

Já o modelo praxiológico representa uma ruptura expressiva com os velhos modelos epistemológicos do campo da saúde coletiva. É dialético na medida em que coloca a práxis como síntese da dinâmica sujeito-objeto e que não separa sociedade e natureza.

A atividade da sociedade humana molda sua própria geoecologia, e esta, por sua vez, reverte seu efeito sobre as condições do ser humano. Assim, a geografia e suas condições ecológicas não são, em relação à saúde, um simples reservatório estático de climas, fatores de contaminação, parasitas, vetores de transmissão infecciosa, etc., mas um espaço historicamente estruturado, no qual também se expressam as consequências benéficas e destrutivas da organização social (Breilh, 2006, p. 143- 144).

A chamada epidemiologia crítica estrutura-se então, sobre o conjunto de paradigmas que compõem o modelo praxiológico (realismo dialético) que ao mesmo tempo em que rompe com um modelo indutivo empirista baseado na correlação pontual de fatores observados experimentalmente, também distancia-se de uma metodologia limitada ao subjetivismo, que não diz sobre as relações, contradições e conflitos entre grupos antagônicos em esferas de poder e equidade, que fica reduzida a concepções culturais fragmentadas e interesses ouperspectivas individuais.

Os paradigmas deste campo, como bem coloca Breilh, não se reduzem ao fetichismo dos números e do mau uso das estatísticas presentes no enfoque empiricista, e tampouco ao fetichismo dos discursos do paradigma culturalista. Os fenômenos, no campo da saúde, dentro dessa perspectiva, não são apenas causados, mas determinados de forma ampla pela estrutura social e pelas relações de poder da sociedade de classes.

A epidemiologia crítica surge, sobretudo, como resposta a uma epidemiologia ortodoxa moderna e hegemônica, que, construída sobre fundamentos extremamente técnicos e modelos abstratos, tendo como foco análises quantitativas estatísticas acerca de fatores de risco individuais.

De acordo com uma análise do professor do departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina, Universidade Nacional da Colômbia, Juan Carlos Eslava o desenvolvimento do trabalho de Jaime Breilh no campo da epidemiologia crítica pode ser dividido em três grandes momentos.

No primeiro deles, o autor desenvolve um trabalho de reconstrução histórica do conhecimento epidemiológico e formula uma crítica direta ao campo, tendo como base a perspectiva marxista. Posteriormente, Breilh centra-se na análise da desigualdade na saúde, busca de novas ferramentas metodológicas para análise da determinação social da saúde e desenvolve a abordagem da “tripla iniquidade” através da qual o enfoque das disparidades entres classe é complementado com a perspectiva de desigualdade de gênero e racial.

Em um terceiro momento de seus quase 40 anos de produção intelectual, Jaime Breilh aborda de forma mais direta e resoluta a análise do objeto da saúde e, além disso, aprofunda reflexões acerca da interculturalidade. É notável seu esforço para vincular as produções no campo da epidemiologia às necessidades e realidades de diferentes grupos sociais e para desenvolver propostas de gestão da saúde que são verdadeiramente participativas e comprometidas com a transformação social.

Ainda mais recentemente, o autor tem direcionado seus esforços no sentido de compreender a produção da saúde em uma era de barbárie. Partindo do princípio de que o modelo de desenvolvimento econômico5 aparece como conceito chave da determinação social em saúde. As produções mais recentes do autor dizem respeito a produção da vida em meio a um capitalismo acelerado.

A perspectiva crítica como epistemologia: a epidemiologia de Jaime Breilh

Diante de um contexto em que a humanidade e o planeta enfrentam o desafio de uma guerra declarada entre duas irracionalidades - a da ‘voracidade do mercado neoliberal’ e a de ‘povosencurraladosqueserefugiamnofunda mentalismo’-aepidemiologiacríticasurgecomo uma práxis de defesa davida.

O projeto epistemológico da epidemiologia crítica propõe-se a suprir a necessidade de uma nova utopia direcionada à emancipação humana, que possa orientar as ações a partir de uma visão renovada.

Vivemos em um período de aprofundamento da lógica político-econômica neoliberal e a aceleração da catástrofe socioambiental. Este cenário torna urgente e extremamente atualum debate que se iniciou nos anos 70, travado por aqueles que entendem saúde, doença e morte como fenômenos condicionados pela forma de dominaçãosocial.

Breilh inicia a obra intitulada Epidemiologia Crítica, ciência emancipadora e interculturalidade reconhecendo as falhas do movimento da Saúde Coletiva que pouco avançou, na medida em que direcionou seu foco apenas para os objetos da transformação, sem pensar sobre os sujeitos.

Assim, é apresentado pelo autor um projeto de nova postura política para a epidemiologia, construída a partir de uma ótica dialética. O desafio posto é o de aperfeiçoar a consciência objetiva acerca de uma realidade marcada pela iniquidade, em conjunto com a construção de uma consciência subjetiva que possa alimentar a ação prática a partir de um paradigma contra-hegemônico.

As novas formulações teóricas e práticas da epidemiologia tem como função emancipar uma sociedade refém de uma epidemiologia usada como ferramenta de um reformismo neoliberal, que explora os níveis mínimos de miséria toleráveis no âmbito da governabilidade, sendo submissa ao cálculo da utilidade e aos lucros do mercado. É nesse espaço no qual consideramos a contribuição de Breilh extremamente fecunda à orientação da discussão sobre uma Economia Política da Saúdemarxista.

A urgência de reformular uma atividade prática que responda de fato às necessidades das pessoas direciona a busca de um novo paradigma. O itinerário dessa nova proposta de paradigma passou por três fases sequenciais de organização teórico-metodológica, destacadas pelo autor, que tiveram início na década de 70.

A primeira delas reflete a busca de uma nova objetivida- de em saúde, constituindo uma crítica ao modelo positivista que sustentava os fatores de risco como sua ferramenta de análise. A ideia de “causalismo” foi substituída por “determinação” e algumas categorias centrais como: reprodução social, modo de vida, perfil epidemiológico e classe social passaram a ser empregadas.

A sequência de nosso trabalho permitiu, portanto, trabalhar a complexidade do objeto de estudo mediante a categoria do ‘perfil epidemiológico’ como uma construção que permite estudar as contradições determinantes do devir da saúde nas dimensões da sociedade em geral, dos modos de vida particulares dos grupos situados em posições distintas da estrutura de poder, os estilos de vida pessoais e os processos contraditórios que se expressam nas pessoas […] (Breilh, 2006, p.32).

A segunda fase constitui-se da crítica à noção empírica de “desigualdade” e sua substituição pelo termo “iniquidade”, que serviu para que se analisassem as repercussões para a saúde da concentração de poder em certas classes, grupos étnicos e gêneros.

Por fim, na terceira fase, buscou-se construir uma nova subjetividade, bem como uma crítica à teoria do risco e à acepção reducionista do conceito de exposição. Uma visão fragmentada e estática que dava origem ao conceito de “fator” foi substituída pela ideia de “processo”. Além disso, essa fase teve como significativo a re-situação do sujeito produtor de conhecimento, a partir do paradigma da interculturalidade, descolonizando o saber e incorporando conhecimentos não hegemônicos em sua construção.

Ainda é um desafio da ordem do dia superar o pensamento positivista na construção dos conceitos em saúde, rompendo com visões que separam o tempo do espaço e desvinculam múltiplas dimensões da complexidade. Vigoram, ainda hoje, os enfoques empíricos que reduzem saúde a um único plano, recaindo em concepções assistencialistas que estabelecem saúde enquanto processo individual e priorizam intervenções estritamente curativas na esfera do indivíduo.O livre arbítrio absoluto é uma ilusão gerada na ordem imediata da vida empírica e cotidiana. A ênfase persistente em uma esfera estritamente individual atua como ferramenta de hegemonia e controle social, que impede a organizaçãocoletiva.

A construção de uma perspectiva emancipadora e práxis de transformação em saúde requer que esta não seja entendida como “individual-subjetiva-contingente” nem, tampouco, como “coletiva-objetiva-determinada”. A saúde, enquanto tríplice objeto/conceito/campo, constitui-se de um movimento de gênese e reprodução possibilitado pela relação entre processo individuais e coletivos, que se articulam e se determinam mutuamente. A práxis em saúde é um movimento incessante do micro para omacro.

A equidade/iniquidade de que um grupo desfruta/padece em um determinado momento histórico resulta das relações de classe, de sua situação histórico- etnocultural e das características de suas condições de gênero. Todas essas relações constituem o contexto dentro do qual pode mover-se o livre arbítrio de uma familía e de seu cotidiano, e constituem também as barreiras que essa família e as pessoas em geral podem desafiar com sua prática e contradizer com seu discurso (Breilh, 2006, p. 46) [grifo nosso].

A construção de uma epidemiologia verdadeiramente crítica, sob um modelo praxiológico e dialético, requer a articulação entre elementos interpretativos/modelos/ paradigmas/epistemes e elementos do campo prático, e isso só possível de ser obtido através de uma ‘teoria geral da saúde’.

Esta teoria totalizante atuaria como uma teoria crítica que se coloque como uma ponte entre as várias visões contra-hegemônicas (Breilh, 2006), e que não deve ser confundida com uma visão totalizadora e determinística.

Breilh enfatiza a necessidade de -em uma época pósmoderna de substituição da tirania da totalização pela ditadura do fragmento - abandonarmos não a ideia de totalidade em si, mas suas acepções reducionistas e impositivas. Devemos trabalhar com uma teoria crítica que atue como denominador comum a serviço da contrahegemonia e de uma construção intercultural emsaúde.

O pensamento hegemônico neoliberal exige que alimentemos essa fobia à totalidade, e nesse sentido, os pósestruturalistas cumprem um papel central em produção intelectual que alimenta um neoconservadorismo. A rejeição dessa noção de totalidade está calcada na crença de que instituições e discursos da modernidade reprimem o desejo, colonizam as vontades, produzem subjetividades fascistas e normalizadoras (Breilh, 2006).

Teses com intenções emancipadoras de libertação dos sujeitos, acabam caindo como uma luva para propostas conservadoras, na medida em que institui uma opressão fragmentária, uma micropolítica que reflete o individualismo e dissolve a capacidade de mobilizar para emancipar, na medida em que cria milhares de sujeitos difusos, sem identidade, múltiplos e egocentrados.

Assim, podemos concluir que as posturas deste tipo estão cometendo o mesmo pecado que censuraram as visões totalizantes da ciência, ao absolutizarem a incerteza, o relativismo, e a ordem individual, menosprezando qualquer construção geral. É inconcebível uma construção plural e democrática em um mundo dissipado em milhares de subjetividades desconexas, cada uma girando em torno de sua própria e incomensurável experiência; é a isso que pode levar o relativismo fundamentalista, encerrado no mundo micro e pessoal (Breilh, 2006, p.53)

Tão grave quanto o problema da resistência, a dimensão coletiva e noções totalizantes é a questão da impossibilidade de definirmos saúde por ela mesma, e persistimos a propagar sua negatividade: saúde se estabelecendo como ausência dedoença.

Esse modelo medicalizante, intervencionista, que objetiva a cura do corpo individual alinha-se perfeitamente com um projeto de mercantilização da saúde. Vivemos em uma era de fundamentalismo de mercado em que privatizações em massa transformam “direito à saúde” em “pacotes básicos das apólices dos seguros privatizados”. Esferas ligadas à saúde em sua faceta positiva são absolutamente descartadas. A privatização em saúde vai desmontando tudo que se direciona à prevenção e promoção e volta-se ao consumo de consultas, exames e medicamentos (Breilh, 2002).

Como forma de superar essa concepção negativa de saúde, o autor defende um olhar dialético que considere suas dimensões e movimentos múltiplos.A partir dessa visão, funda-se a categoria aqui já citada de perfil epidemiológico, que seria uma síntese de características, um sistema multidimensional de contradições, que vai muito além de um perfilestatístico.

No centro da ideia de perfil epidemiológico, encontra- se a categoria “reprodução social” que se refere a um movimento de produção e consumo na base produtiva, que permite a reprodução da vida, das formas de consciência, das relações com a natureza, que por sua vez, transformamessamesmabasedeformapraxiológica.Essacategoriaatuademodoaevidenciar a relação de interdependência que se estabelece entre a vida econômica, cultural, política, ecológica etc. dos grupos humanos (Breilh,2006).

A categoria de classe social é central ao estabelecimento do perfil epidemiológico, mas, em determinado momento percebeu-se que ela não bastava para explicar a injustiça e a iniquidade, de forma que, mais tarde, foram incorporados os conceitos de gênero e etnicidade. A fim de superar a orientação causal da epidemiologia positivista, que reduz o conhecimento epidemiológico à identificação de variáveis, reduzindo a vida ao plano dos fenômenos empiricamente observáveis, foi incorporada também, a noção de“determinação”.

Determinação em saúde surge como um conceito, no campo da epidemiologia crítica, que procura não explicar o surgimento da doença como efeito de causas desconexas, mas articular os processos do viver, que atuam de forma destrutiva ou protetora sobre a qualidade de vida, com uma dimensão sociobiológica da saúde (Breilh, 2017).

Nesse processo ético e político que é pensar um novo paradigma e reconstruir as bases da ação prática em epidemiologia surge, mas uma vez uma polêmica ligada ao debate macro versus micro e a relação entre a prática especializada da ação epidemiológica e a práxis social.

Será que são essencialmente determinantes os atos dos indivíduos que os realizam e a lógica interna que rege cada cenário particular, ou será que os determinantes são as condições sociais de um contexto histórico e a lógica dos processos do todo social? Posta em termos epidemiológicos, a pergunta poderia ser assim expressa: o conhecimento epidemiológico, em seu conteúdo, em seus moldes interpretativos e suas projeções, depende essencialmente das condições particulares que caracterizam os especialistas e seus cenários de trabalho, ou depende, antes, das condições históricas da totalidade social? (Breilh, 2006, p.70).

A solução encontrada pelo autor para estedilema do pensamento epidemiológico é a de que, na verdade, não se deve anular nem as partes e nem o todo na explicação. Não importa, e na verdade, não é possível definir se a prática cotidiana ou o contexto sócio-histórico são mais significativos, o importante é entender como e em que medida cada parte constrói e é construída pelo todo.

No campo da epidemiologia crítica a saúde é entendida como um processo dialético. Propõe-se usar uma ‘teoria da totalidade’ como ferramenta de disputa contra- hegemônica e como narrativa emancipatória trabalhando em sincronia com as dimensões da ação individual e do movimento do geral. Por isso, essa forma de conceber a saúde paira mais próxima à construção de uma Economia Política da Saúde em termos marxianos.

Por isso, pretende-se com esse pensamento epidemioló- gico, fundar um modo de interpretação, prática interdisciplinar e relacional, criando um referencial epistemológico capaz de integrar o saber acadêmico, popular, ancestral e o sensocomum.

Conclusões inconclusas: caminhos para seguir pensando

As pessoas estão condicionadas a viver dessa forma que não é boa para a sua saúde, com sistemas de trabalho cada vez mais perigosos, sistema de consumo baseado no desperdício, uma forma que não é protetora de um ‘buen vivir’, mas de um consumo comercial, despojada de recursos de defesa, de suportes de organizações protetoras coletivas e comunitárias.

É com essa insígnia que Jaime Breilh continua a ser um dos grandes nomes da epidemiologia crítica, usando, mais recentemente, de seu rico aporte teórico para questionaras formas de vida, de alimentação, de trabalho e tantas outras que determinam a saúde, não a partir de fatores causadores, mas de processos históricos que geram os problemas de saúdecoletiva.

Por isso consideramos que o desenvolvimento de seu pensamento epidemiológico pode ser o ‘engate’ de articulação perfeito para se compreender a Economia Política Marxista a luz da saúde. Esse repertório crítico, próprio do autor, é um passo paradigmático importante para que a saúde caminhe na trilha do pensamento crítico e siga pensando sobre seus próprios (des)acertos.

Referências

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1Apoia-se aqui no sentido de ‘crítica’ cunhada pela tradição marxista que significa, conforme Löwy, Duménil, Renault (2015) a “necessária revisão de posições teóricas e políticas em função das transformações históricas, ou seja, uma crítica à ideologia dominante” (löwy, Duménil, Renault, 2015, p. 38). Na área da saúde, por considerar o ‘encontro assistencial’ entre ‘profissional de saúde’ e ‘paciente’, (usuário, cliente ou quaisquer outras denominações que sejam utilizadas) o que se convencionou atualmente foi uma preocupação em estabelecer a construção do ‘pensamento’ crítico, mas não a definição do que é o crítico. Assim, em saúde, o pensamento, quando ‘crítico’, na maior parte das vezes é interpretado como uma crítica ao processo diagnose-tratamento-condução. Em revisão sobre o que significa ‘pensamento crítico’ na saúde, Cerullo & Cruz (2010, p. 4) demonstraram a pluralidade de significações em que se assenta o termo podendo ser entendido como: a) refletir sobre a própria vida e valores pessoais, b) desenvolver relacionamentos com os pacientes e com a profissão, c) reconhecer e promover um ambiente de trabalho que valorize os profissionais como trabalhadores do conhecimentoeconvide-osaodebateequestionamento,d)pensarsobreoprópriopensamento,e)conectar-secom o pensamento de outros, f ) identificar e desafiar pressupostos, inferências e outras interpretações, g) considerar possibilidades alternativas e fazer uso do ceticismo reflexivo, h) balancear ceticismo reflexivo - com a própria verdade e a dos outros, i) desenvolver sensibilidade a fatores contextuais, j) avaliar a credibilidade das evidências, reconhecer e aceitar o conhecimento intuitivo e l) tolerar a ambiguidade dos julgamentos clínicos. Ora, se consideramos essa lista do que é ser ‘crítico’, o social aparece como um ‘fator contextual’ e ainda assim sem aliar-se ao modo de produção em que o trabalho em saúde está inserido. Em nossa análise isso não é se conectar ao todo social, daí, portanto, a importância brelhiana e seu suporte na episteme marxiana.

2A noção de “cuidado” é uma das grandes celeumas que hoje vigoram do âmbito da saúde coletiva no Brasil e na medicina social na América latina.

3A ideia de “bem comum” é uma construção conceitual ideológica burguesa, frequentemente evocada pela socialdemocracia, contudo serve de véu para mascarar a forma-política ‘Estado’ de sua natureza essencialmente capitalista. Para maiores detalhes ver Correia (2015).

4A ideia de “exposição” também é alvo de críticas por Breilh. Para maiores esclarecimentos ver em Breilh (2006).

5Nos parece complicado pensar em desenvolvimento econômico como um dos elementos que garantam a emancipação da saúde, por conseguinte da vida na sociedade capitalista. Logo, desenvolver o modo deprodução existente (ocapitalismo) é, em ultima instância, agudizar suas formas sociais. Isso se percebe com muita frequência nos discursos políticos relacionados ao ambiente e as pautas ecológicas, através da ideia neodesenvolvimentista de ‘desenvolvimento sustentável’. Ora, se o desenvolvimento não apresenta nenhuma ruptura com o modo de produzir vigente, então ele é um desenvolvimento (in) sustentável.

Referencia norma APA: Pereira de Souza, I. F., Mendes, A., & Carnut, L. (2019). História política e pensamento epidemiológico: Breilh e a economia política da saúde. Rev. Guillermo de Ockham, 17 (1), 77-84. doi: https://doi.org/10.21500/22563202.4039

Recebido: 25 de Março de 2019; Revisado: 23 de Maio de 2019; Aceito: 05 de Junho de 2019

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