Introdução
A produção de cana-de-açúcar e seus derivados tem suas raízes históricas diretamente relacionadas ao processo de colonização do Brasil e influenciou centralmente como se configuraram a formação social, espacial, econômica, as relações do trabalho e os traços culturais do país. Autores como Holanda (1995), Freyre (2004a, 2004b), Furtado (2000) e Prado Jr. (2011) buscaram, ao longo dos anos, evidenciar o peso de essa influência.
No decorrer da sua história, o setor canavieiro foi marcado por inúmeros movimentos de reestruturação da produção que se materializaram em aumento da produtividade e expansão do capital. No ano de 2018, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), a lavoura canavieira ocupou perto de dez milhões de hectares em todo o território brasileiro. Essa ocupação chegou a representar 12,82 % de toda a área agricultável do Brasil. Neste mesmo ano, a produção de açúcar foi de 38,5 milhões de toneladas e 27,8 milhões de litros de etanol segundo dados da União da Indústria da Cana-de-açúcar (2019). Tais quantitativos colocou o Brasil entre os principais produtores mundiais de cana-de-açúcar e seus derivados.
Diante de diferentes conjunturas, favoráveis ou não, o setor seguiu passando por processos de mudanças a partir da incorporação de tecnologias. Os usos de tecnologias são mobilizados nas diversas etapas da produção agrícola, entre as quais estão o preparo do solo, o plantio, o trato e a colheita. As tecnologias, em especial as de caráter mecânico, são realizadas por máquinas agrícolas e substituem o trabalho vivo existente nos canaviais.
No caso brasileiro, a fase da colheita de cana-de-açúcar -que ainda é a responsável pela maior demanda por trabalhadores- acelerou o processo de modernização tecnológica com o advento do uso de máquinas colheitadeiras ocorrida mais fortemente, como aponta Baccarin (2019), a partir de meados dos anos 2007. Tal fato teve implicações diretas nos processos de trabalho, como a precarização para os que ainda persistem na atividade do corte (Favoretto, 2014; Silva, Bueno e Melo, 2014; e Verçoza, 2016) e, também, redução da necessidade de postos de trabalho (Bunde, 2017; Cepea, 2018; Baccarin, 2019; e Lima, 2019).
Muito já se sabe sobre o que é mecanização agrícola na perspectiva empresarial, o porquê os empresários mecanizam e quais impactos as formas hegemônicas de implantá-la provocam para os trabalhadores (Moreno, 2011; e Torquato, 2013). Autores como Alves (1991), Scopinho (1995), Eid (1996) e Scopinho, Eid, Vian e Silva (1999) analisam o processo de mecanização e seus impactos sociais no setor canavieiro brasileiro ocorrido nos anos 1990. Mais recentemente autores como Favoretto (2014), Silva, Bueno e Melo (2014), Baccarin (2019), Reis (2017), Barreto (2018) e Lima (2019) analisam o fenômeno da modernização agrícola no setor a partir da mecanização da colheita. As investigações realizadas identificam que as novas tecnologias incorporadas são geradoras de produtividade, redutoras de custos e, sobretudo, poupadoras de força de trabalho. Pouco se sabe, no entanto, sobre o significado da mecanização para os sujeitos que são impactados diretamente por tais ações. Ou seja, não há respostas à seguinte pergunta: como os trabalhadores interpretam e entendem o processo de mecanização agrícola ocorrido no setor canavieiro e que acaba por interferir diretamente nos seus processos de trabalho?
Este novo contexto, marcado por uma maior quantidade de máquinas ocupando as lavouras de cana-de-açúcar, provoca "estranhamentos" para os sujeitos trabalhadores que vivem essas mudanças e suas subjetividades também passam a ser alteradas. Essa lacuna na bibliografia dedicada ao tema pode ser solucionada a partir de trabalhos que busquem compreender a subjetividade e os processos de subjetivação que os trabalhadores desenvolvem diante da nova realidade na qual estão inseridos. Alguns recursos podem ser utilizados para compreender tais mudanças na subjetividade dos trabalhadores canavieiros como, por exemplo, o estudo sobre as mudanças identitárias, o resgate da memória social ou as representações sociais.
A necessidade de compreender o mundo, para se ajustar e se localizar física e/ou intelectualmente nele é função das representações sociais. Assim, a ponte que se estabelece entre o "estranho" e o "familiar" é realizada por meio das representações ou formas de entendimento que os sujeitos estabelecem junto ao contexto no qual estão inseridos. Um caminho usado para compreender tais representações é proposto pela Teoria das Representações Sociais (TRS), elaborada por Serge Moscovici. Diante disto, o presente texto tem como objetivo apresentar a TRS como recurso para investigar a subjetividade dos trabalhadores canavieiros e, desta forma, ser mais uma via na compreensão do fenômeno modernizante pelo qual os processos de trabalho do setor vêm passando nos últimos anos.
Para alcançar esse objetivo propõe-se a mobilização de bibliografias que discutem as modificações tecnológicas ocorridas nas lavouras de cana-de-açúcar brasileiras a partir da adoção de máquinas e a Teoria das Representações Sociais e seus recursos analíticos utilizados para a compreensão da subjetividade dos sujeitos.
A argumentação apresentada neste texto inicia sua exposição com um olhar sobre a mecanização agrícola, dando ênfase ao processo de colheita de cana-de-açúcar ocorrido no Brasil e os impactos que tal ocorrência tem gerado para o mundo do trabalho canavieiro. Após essa primeira exposição, que tem o objetivo de demonstrar as alterações que ocorreram nos canaviais brasileiros a partir da mecanização da colheita, passa-se a discutir a Teoria das Representações Sociais e suas contribuições para o entendimento deste novo contexto. Por fim, têm-se as considerações finais que buscam reforçar a necessidade de compreender esse fenômeno a partir do ponto de vista dos sujeitos impactados por tais alterações.
A proposição do presente texto busca oxigenar o debate sobre os processos de trabalho no setor canavieiro e, desta forma, contribuir para a discussão que envolve um setor tão presente na história econômica brasileira e que tem passado por intensas modificações tecnológicas nos últimos anos.
Mecanização do processo de colheita e os impactos para o mundo do trabalho canavieiro
No Brasil, o movimento conhecido como industrialização da agricultura1 ganhou maior intensidade a partir dos anos de 1960 e, amparado pelo Estado, buscou reproduzir os mesmos padrões de produção da indústria na área agrícola. Esse movimento desencadeou um processo de modernização agrícola que consistiu na introdução de um conjunto de inovações tecnológicas e organizacionais no sistema de produção rural.
Para aumentar a produção agropecuária, segundo Graziano da Silva (1981), existem dois caminhos a serem trilhados: o primeiro é a ampliação do uso da terra em novas fronteiras agrícolas, ou seja, explorar novos terrenos que viabilizem um aumento quantitativo da produção; o segundo é aumentar a intensificação do uso da terra. Esse segundo caminho promove um salto qualitativo no uso dos recursos naturais e humanos no contexto produtivo, porque é capaz de elevar a taxa de lucro na medida em que aumenta a produtividade e reduz custos de produção. O salto qualitativo deriva da incorporação de um conjunto de inovações físico-químicas, biológicas, mecânicas, entre outras, que o autor chamou de progresso técnico ou tecnológico na produção agropecuária. Entre os diferentes tipos de inovações que compõem essa noção -cada vez mais diversificada em função dos avanços da informática, da inteligência artificial e da engenharia genética- interessa, aqui, aquelas de tipo mecânicas porque elas são responsáveis por alterar, diretamente, o tempo e os processos de trabalho.
Os usos de tecnologias mecânicas ocorrem nas diversas etapas do processo produtivo: preparo do solo, plantio, trato e colheita. Cada uma dessas etapas recebem um tipo de progresso que possibilita modernizar a agricultura e dinamizar a produção. Atualmente, no Brasil, conforme dados do IBGE (2019), existem quase dos milhões de máquinas agrícolas no campo. A maior concentração dessas máquinas está localizada na região Centro-Sul, que concentra 89 % de toda a maquinaria nacional alocada no campo.
A mecanização agrícola, ou a substituição do trabalho vivo pelo morto, ocorrida no mundo rural brasileiro também chega às lavouras de cana-de-açúcar. A intensificação da incorporação no universo canavieiro, de acordo com Vian e Gonçalves (2007), aconteceu entre o final de 1950 e começo de 1960. Esse período foi marcado pela substituição da tração animal pelos tratores nas fases de preparação do solo e plantio. Ao focar a fase da colheita de cana-de-açúcar, como apontam Nyko et al (2013), as primeiras experiências realizadas no Brasil foram em 1956 a partir de máquinas importadas da Austrália. Porém, desde as primeiras experiências até o ano 2000, o sistema de colheita mecanizada não se disseminou. Contudo, fatores como questões trabalhistas, capacidade de investimento, estratégia de associar a imagem do setor a padrões de produção sustentáveis e o avanço tecnológico impuseram uma nova realidade para o setor canavieiro e o mesmo reagiu com a mecanização da colheita.
Segundo Baccarin (2019), mais recentemente -a partir de 2007- a incorporação de tecnologias mecânicas na colheita da cana-de-açúcar vem sendo intensificada e exerce influência direta sobre os trabalhadores, dado que esta é uma das últimas etapas do processo produtivo agrícola do setor canavieiro onde se observa a incorporação de inovações mecânicas. A evolução que a mecanização da colheita obteve nos canaviais brasileiros é exponencial e pode ser percebida através da observação do crescimento do número absoluto de colheitadeiras apresentadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab, 2019). Em 10 anos a quantidade de colheitadeiras praticamente triplicou, saindo de 1905, em 2008, para 5891 colheitadeiras em 2017. Ao comparar as regiões produtoras do país -Centro-Sul e Norte-Nordeste- as diferenças são abissais: no ano de 2017, apenas 3 % das colheitadeiras existentes nos canaviais brasileiros estavam localizadas na região Norte-Nordeste.
A evolução no número absoluto de colheitadeiras nos canaviais se reflete diretamente no percentual da colheita mecanizada, como pode ser observado no figura 1. No ano de2008, 37,10 % da cana-de-açúcar produzida no Brasil foi colhida mecanicamente e dez safras depois, em 2017, esse percentual subiu para 90,20 %. O processo de mecanização agrícola tem se intensificado a partir da relação conflituosa entre trabalho e capital, do avanço tecnológico das colheitadeiras, da necessidade de melhorar a imagem do setor diante do mercado externo e da busca por uma maior competitividade. O uso intensivo da mecanização da colheita, entre os principais produtores nacionais, apresenta-se de forma correlacionada à localização regional na qual o produtor está inserido, ou seja, os produtores localizados na região Centro-Sul do país possuem altos percentuais de mecanização, ao passo que os produtores localizados na região Norte-Nordeste apresentam percentuais bem menores.
A região produtora localizada no Centro-Sul tem puxou a elevação do percentual de mecanização da colheita no cenário brasileiro. A região teve, na safra de 2018, média de 95,60 % de mecanização. A região Norte-Nordeste, por sua vez, teve um baixo desempenho nesse processo de modernização sendo que o maior percentual de mecanização que essa região obteve, no período analisado, foi de 23,50 % no ano de 2016. As diferenças existentes entre as regiões demonstram níveis de incorporação tecnológica dispares que acabam refletindo nos níveis de produção, onde a região com mais utilização de recursos tecnológicos possui maiores ganhos de produtividade com um uso menos intensivo de trabalhadores.
Os altos percentuais de mecanização dos processos de colheita gerados com a incorporação de máquinas colheitadeiras promove implicações para o mundo do trabalho rural. O advento da modernização ocorrida no ambiente rural a partir da adoção de tecnologias foi chamada, por Alves (2009), de perversa por preservar uma profunda exploração dos trabalhadores e ser marcada por fatores como precarização, alterações nas relações laborais e pela forte redução de postos de trabalho.
O "descarte" do ser humano se evidencia nos ganhos produtivos que as máquinas impõem, pois quanto maior a produtividade por elas proporcionada, mais trabalho gratuito é gerado, em comparação ao trabalho manual. Segundo Marx (2008), é só com a indústria moderna que o homem vê o trabalho morto (máquinas) operar em grande escala como se fosse natural e, agora, na lavoura de cana-de-açúcar mecanizada há este fato também. Os dados apresentados pelo Cepea (2018) demonstram uma redução entre 2008 a 2016 de 45,7 % no número de trabalhadores ligados à área agrícola do setor canavieiro nacional. Tal processo ocorreu com maior ênfase a partir de 2007, quando foi iniciada a expansão da mecanização da colheita. Assim, o número absoluto de trabalhadores ligados aos processos de trabalho na área agrícola, que em 2008 somavam 1 023 814 trabalhadores, caiu para 555 929 trabalhadores em 2016.
Alves (2009) apresenta o cálculo de que para cada 4 máquinas colheitadeiras são necessários, aproximadamente, 66 empregos diretos e finaliza afirmando que mesmo com a criação desses postos, ainda há um percentual de trabalhadores que não são absorvidos. Isso porque, em média, uma colheitadeira representa a produtividade de 100 trabalhadores que colhem cana-de-açúcar. O cálculo apresentado demonstra que paralelamente à redução da necessidade de trabalhadores ligados às atividades manuais, há crescimento do número de trabalhadores nas ocupações destinadas à mecanização dos processos agrícolas: tratoristas e operadores de colheitadeira. Bacarrin (2019) aponta que no estado de São Paulo ocorreu um crescimento de 74 % nas ocupações ligadas à mecanização agrícola no período de 2007 a 2014.
Antunes (2011) relata que a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto não acaba por completo com os proletários, embora contribua significativamente para o desemprego estrutural. Marx (2008), ao criticar a falácia da compensação de empregos no mercado trabalho a partir dos deslocamentos provocados pela adoção da máquina, aponta para os possíveis problemas que a massa de excluídos irão enfrentar: intensificação do trabalho, migração para subatividades e desemprego.
A mecanização dos processos de produção agrícola, para Menezes, Silva e Cover (2011), não gera um processo de humanização na atividade canavieira para os operadores das máquinas, assim como não reduz o processo de degradação dos trabalhadores, que ainda persistem nos trabalhos manuais. Contudo, alguns novos efeitos, "perversos", já são percebidos a partir da realidade tecnológica existente no setor. Esses efeitos podem ser divididos em duas esferas: para os trabalhadores que ainda estão na atividade canavieira, ou seja, trabalhando na área agrícola; e para os que foram excluídos pelo novo processo produtivo. Silva, Bueno e Mello (2014), ao analisarem o avanço da mecanização no processo de colheita da cana-de-açúcar identificam o surgimento de atividades "periféricas" que ainda causam a manutenção da degradação do trabalhador canavieiro. Além disso, os novos postos criados lançam luz para o estabelecimento da divisão sexual do trabalho. As mulheres são encaminhadas para "subatividades" como catação de pedras e retiradas de restos de cana-de-açúcar deixadas pelas colheitadeiras. Essas atividades são carregadas de condicionantes insalubres que desumanizam as trabalhadoras nelas inseridas.
Outro efeito decorrente do avanço tecnológico no campo foi a intensificação da exploração do trabalho. O uso intensivo de máquinas promove um movimento de pressão para o aumento da produtividade dos trabalhadores. A partir da redução da necessidade de um quantitativo elevado de trabalhadores surge a criação de uma concorrência entre os cortadores, que tendem a elevar seus níveis de produtividade para garantirem contratos de trabalho futuros. O aumento da produtividade é apenas um dos fatores da intensificação do trabalho canavieiro atual. As máquinas acabam por ocupar os melhores terrenos, ou seja, aqueles nos quais há uma menor declividade. Os terrenos mais inclinados são destinados ao corte manual, fato que requer maior esforço físico dos trabalhadores e, consequentemente, aumento do desgaste físico (Silva, Bueno e Mello, 2014; Favoretto, 2014; Verçoza, 2016).
Os trabalhadores que assumem os novos postos advindos da mecanização agrícola -entre os quais estão os operadores das colheitadeiras, por exemplo-, tidos como menos degradantes e melhor remunerados, não estão isentos do processo de exploração e degradação. As máquinas demandam esforço mental elevado por parte dos condutores, que trabalham em jornadas cada vez mais longas e favorecem o desenvolvimento de distúrbios osteomoleculares provenientes do fato de se manterem sentados por longos períodos (Scopinho et al., 1999; Scopinho, 2000; Rocha e Marziale, 2011).
Os efeitos relativos à intensificação e degradação do trabalho proporcionam o encurtamento da vida produtiva dos trabalhadores. Ao manter um ritmo de trabalho elevado, o desgaste compromete a saúde física e mental dos trabalhadores que não poderão responder com o mesmo nível de produtividade. O resultado é o "descarte" e substituição por outros trabalhadores que possam reproduzir os índices de produção exigidos. O trabalhador, ao ser entendimento ou representado como "supérfluo", passa à condição de excluído ou inserido precariamente no sistema capitalista de produção e, por conseguinte, "amarga" as consequências da mecanização que o sistema agroindustrial sucroalcooleiro adotou no seu processo de reprodução.
As modificações nas relações de trabalho ocasionadas pela busca da flexibilização do capital impõem uma nova realidade para os trabalhadores e neste cenário emergem fatores como: a corrosão do caráter indicada por Sennett (2012); a desfiliação e incerteza destacada por Castel (2010, 2015a e 2015b); e aflexploração que Bourdieu (1998) relata mediante a invasão neoliberal. Porém, tais autores são taxativos no momento em que indicam a emergência da "incerteza" como componente presente no cotidiano dos trabalhadores da contemporaneidade. As bases estáveis de reprodução social são subvertidas pela incerteza e a flexibilidade das relações de trabalho.
Diante do processo da incorporação de máquinas ocorrida nas lavouras canavieiras do Brasil, podem ser percebidos grupos distintos a partir da forma como os mesmos se relacionam com o "novo" e "estranho" contexto de produção. Existem aqueles sujeitos que passam a operar as máquinas e vivem uma nova realidade no campo. Já há os trabalhadores que permanecem em atividades manuais e passam a lidar com condições de trabalho mais precárias. E, por fim, os que já não trabalham mais, pois perdem suas ocupações com a introdução das máquinas.
Diante deste novo contexto existente nos canaviais brasileiros, cabe investigar como os trabalhadores interpretam e atribuem significado a tal realidade. Assim, opta-se pela Teoria das Representações Sociais como recurso possível para investigar esse fenômeno. A seguir, apresenta-se a Teoria dando ênfase a sua contribuição para a compreensão de uma nova realidade existente nos canaviais do Brasil.
Teoria das representações sociais: um recurso para compreensão da subjetividade dos canavieiros em tempos de mudanças
O universo canavieiro, ao longo de sua história secular em território brasileiro, passou por inúmeras configurações: inicialmente com os engenhos e uma forma de produção arcaica baseada no escravismo. No século XX surgem as usinas e o processo de industrialização da produção açucareira se torna mais intenso. A partir de 1960, o processo de modernização da área agrícola inicia. Cada momento desse gerou um novo contexto na realidade dos trabalhadores. Em anos recentes, a realização do corte mecanizado da cana-de-açúcar tem se intensificado e uma "nova" e "estranha" realidade emerge para os sujeitos que interagem com a lavoura canavieira. As investigações realizadas sobre tais alterações destacam que as novas tecnologias incorporadas são geradoras de produtividade, redutoras de custos e, principalmente, poupadoras de força de trabalho. Contudo, entender como os trabalhadores interpretam e entendem esse novo contexto é algo ainda não explorado.
As autoras Silva, Bueno e Mello (2014, p. 95) indicam a importância de escutar os envolvidos no fenômeno para uma melhor compreensão apontando que:
Ainda que a produção canavieira seja feita na superfície da terra, o conhecimento do trabalho que aí é realizado só se faz pelo escutar das vozes e pelo compartilhar das emoções advindas das profundezas não da terra, mas dos interiores daqueles(as) que aí labutam.
Partindo do pressuposto de que o novo cenário ensejado pela modernização agrícola -mais especificamente a mecanização do corte- possibilita a ocorrência de um "estranhamento" para os trabalhadores, cabe a tentativa de entender como se dá a interpretação desse fato por parte dos sujeitos que vivenciam diretamente tais mudanças.
Os padrões de reprodução social contidos no setor canavieiro, e que são vivenciados de forma geracional em muitas famílias, passam a ser alterados ou mesmo extintos. Tal ocorrência acontece com a substituição do corte manual pelo mecânico e, dessa forma, tem-se a extinção de inúmeros postos de trabalho, a precarização para os que ainda persistem na atividade e, também, o surgimento de novos postos de trabalho ligados à operação de máquinas agrícolas. A tensão desenvolvida a partir deste novo cenário, vivenciada por tais sujeitos, provoca alterações na subjetividade dos trabalhadores que devem desenvolver uma maneira de interpretar essa realidade, ou seja, um novo "saber" é requisitado para que haja uma compreensão e, como resultado, um entendimento da realidade cotidiana. Ao interagir com o "novo" ou "estranho", os trabalhadores buscam criar mecanismos aproximativos que possibilitem a explicação de tais fatos. O movimento de aproximação busca converter o "estranho" em "familiar". Moscovici (2015, p. 22) destaca:
Entretanto, uma série de observações nos leva a reconhecer que, na maioria dos casos, é a tensão entre o familiar e o estranho que cria a necessidade de representar e modela os seus resultados. Ela toma esse caminho para ligar elementos díspares ao fundo comum e permitir a todos reconhecê-los. Do mesmo modo que, na conversação, duas pessoas que não se conhecem procuram uma relação comum ou a semelhança que não se encontra nas frases, mas no tom, na maneira de apresentar as coisas, de valorizar certos detalhes. Ou seja, tudo o que permite amarrar juntos os subentendidos pelos quais os interlocutores poderão se entender.
A necessidade de compreender o mundo que cerca o "sujeito", como forma de se ajustar e se localiza física e/ou intelectualmente nele é a função das representações sociais. Assim, a ponte que se estabelece entre o "estranho" e o "familiar" é realizada por meio das representações ou formas de entendimento que os indivíduos estabelecem junto ao contexto no qual estão inseridos, pois seus contextos de interação e vivência influenciam nos processos de subjetivação. Jodelet (2001, p. 17) destaca que "[...] as representações são sociais e são tão importantes na vida cotidiana. Elas nos guiam na maneira de nomear e definir em conjunto os diferentes aspectos de nossa realidade cotidiana, na maneira de interpretá-los, estatuí-los [...]".
Jovchelovitch (1995) entende as representações sociais como uma estratégia para enfrentar a diversidade e a mobilidade da realidade, ou seja, a representação social atua como espaço para a "fabricação do comum", onde as diferenças individuais são condensadas em um domínio comum. Diante disto, temos que as representações sociais são construções concebidas para viabilizar a atuação dos indivíduos no mundo em constante mutação. As mesmas "[...] se relacionam com a construção da realidade cotidiana, com as condutas e comunicações que ali se desenvolvem, e também com a vida e a expressão dos grupos no seio dos quais elas são elaboradas." ( Jodelet, 2015a, p. 40).
O objetivo da representação social é tornar "familiar" o "estranho" por meio da fixação, mediante a classificação e rotulação daquilo que ainda não está categorizado pelo pensamento. A fixação faz com que se estabeleça uma nomeação de algo. Ao dar nome a algo, o sujeito se torna capaz de imaginar esse algo e de representá-lo (Jodelet, 2001). Duveen (2009), por sua vez, destaca que as representações sociais assumem um valor simbólico, pois a mesma atua na forma como o sujeito adquire uma identidade ou definição para um objeto particular. Moscovici (2009, p. 48) aponta que:
[...] nossas coletividades hoje não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam em realidades compartilhadas, relacionadas com as interações entre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fenômenos à parte. E a característica específica dessas representações é precisamente a de que elas "corporificam ideias" em experiências coletivas e interações em comportamento [...].
A partir disto podemos compreender que as representações sociais são percebidas como uma forma de entendimento do contexto social no qual os sujeitos estão imersos e que a mesma auxilia no padrão comportamental de grupos distintos. Isso porque, ao designar um contexto específico, as representações sociais se apresentam aos sujeitos sociais determinando tanto a natureza das características quanto às ações a serem desenvolvidas no ambiente no qual estão inseridos.
Segundo Moscovici (2009, p. 39), as representações sociais possuem duas funções: a convencionalizadora, pois elas convencionam objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram, dando uma forma definitiva ou modelando um entendimento que será compartilhado por um determinado grupo; e a segunda função é a prescrição, ou seja, elas impõem sobre os sujeitos uma forma de entendimento acerca a realidade vivenciada. A partir das duas funções se conclui que:
[...] ao se colocar um signo convencional na realidade, e por outro lado, ao se prescrever, através da tradição e das estruturas imemoriais, o que nós percebemos e imaginamos, essas criaturas do pensamento, que são as representações, terminam por constituir em um ambiente real, concreto. (Moscovici, 2009, p. 39)
Wachelke e Camargo (2007) destacam que as representações sociais, além de assumirem uma postura normativa -tendo em vista que inserem objetos em modelos sociais- e também prescritiva -na medida que servem de guia para as ações e relações sociais-, elas também podem ser tomadas como um recurso passível de aplicação aos campos da realidade, funcionando como chaves interpretativas.
No desenvolvimento da construção da realidade a partir das representações construídas socialmente, têm-se os processos de ancoragem e objetivação. Ancoragem é a maneira pela qual o "estranho e perturbador" passa a ser familiar ou classificar algo. Como destaca Moscovici (2009, p. 62), " [...] representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes". A ancoragem ocorre quando, utilizando um paradigma "estocado" na memória, busca-se estabelecer uma relação com algo ou alguém.
A objetivação é o processo por meio do qual um conceito ou noção abstrata ganha forma e se torna concreta por meio de imagens ou ideias. Em outras palavras, objetificação "[...] está fundamentada na arte de transformar uma representação na realidade da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra" (Moscovici, 2009, p. 71).
Jodelet (2001, p. 25) destaca que "A representação social é sempre uma representação de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito). As características do sujeito e do objeto terão uma incidência sobre o que ela é [representação]". A figura 2 ilustra este processo:
Almeida (2009) aponta a existência de três abordagens teóricas que se desenvolveram a partir da Teoria das Representações Sociais: a abordagem estrutural, a abordagem societal e a abordagem processual. Aqui, opta-se pela abordagem processual que se destaca nos trabalhos de Denise Jodelet. A abordagem processual entende as representações sociais como um produto da interação entre o sujeito e o ambiente no qual ele está inserido. Spink (1993, p. 303) destaca que nessa vertente processual "[...] a representação é uma construção do sujeito enquanto sujeito social. Sujeito que não é apenas produto de determinações sociais nem produtor independente, pois que as representações são sempre construções contextualizadas, resultados das condições em que surgem e circulam."
A partir da passagem em destaque, cabe compreender as condições de produção das subjetividades dos sujeitos, ou seja, quais as influências que os objetos e os sujeitos exercem sobre sua dinâmica interativa para a construção das representações sociais. Cabe destacarmos que as representações sociais emergem do processo de interação social, pois como aponta Farr (2016, p. 40), "As representações estão presentes tanto 'no mundo', como 'na mente', e elas devem ser pesquisadas em ambos os contextos."
Spink (1995) enfatiza que as condições de produção da representação social, enquanto um "produto social", devem ser analisadas, pois sem a leitura desse contexto, a compreensão da representação social se torna limitada. Assim, a análise das modificações que envolvem a mecanização agrícola, condicionantes das transformações nos processos de trabalho do setor canavieiro, são importantes na interpretação das representações sociais que os trabalhadores passam a elaborar nesse novo contexto.
Jovchelovitch (1995) chama atenção para o fato de que as representações sociais são uma forma de mediação entre o "simbólico" e o "real". A autora destaca, ainda, que o espaço público é o lugar onde se constroem as representações sociais, pois é nesse ambiente que há o diálogo entre a intersubjetividade (privado) e a construção do consenso (coletivo/público) sobre o objeto debatido, resultando na simbolização do fato.
Jodelet (2009), na tentativa de avançar no campo da Teoria das Representações Sociais, busca propor um quadro analítico para melhorar a compreensão das representações sociais e sua forma de produção, que se dá em um contexto social. Neste sentido, a autora aponta que:
[...] as representações sociais são fenômenos complexos, incitando um jogo de numerosas dimensões que devem ser integradas em uma mesma apreensão e sobre as quais é necessário intervir conjuntamente. A este respeito, eu proponho um quadro analítico que permita situar o estudo da representação social no jogo da subjetividade. (Jodelet, 2009, p. 695)
A proposta analítica apresentada porJodelet (2009) busca abordar as representações sociais em três dimensões ou "universos": a subjetividade, a intersubjetividade e a transubjetividade. Antes de descrever o percurso metodológico proposto, porém, a autora destaca a importância de resgatar o sujeito e seu papel no contexto social. Confere atenção à evolução que a noção de sujeito/indivíduo teve nas Ciências Humanas e reforça os avanços teóricos que passaram a identificar uma menor dualidade entre sociedade e sujeito, ou seja, há uma relação mútua de produção - o sujeito é agente na constituição da sociedade e a sociedade age na constituição do sujeito e de sua subjetividade.
A ênfase no contexto social no qual o sujeito está inserido tende a romper com a superficialidade analítica que metodologias simplesmente descritivas dos estados representativos assumem ao direcionar o enfoque apenas à dimensão mental/subjetiva. Para uma efetiva compreensão das representações sociais se faz necessário compreender os contextos de produção e interação que influenciam diretamente os sujeitos. Como destacado por Jodelet (2009, p. 696), "[...] os sujeitos devem ser concebidos não como indivíduos isolados, mas como atores sociais ativos, afetados por diferentes aspectos da vida cotidiana, que se desenvolve em um contexto social de interação e de inscrição". Assim, devem ser considerados os fatores de pertencimento nos quais os indivíduos estão vinculados, como o lugar na estrutura social, a posição nas relações sociais ou a inserção em grupos sociais e culturais. A figura 3 sintetiza a proposta analítica de Jodelet (2009).
Ao iniciar sua proposição analítica, Jodelet (2009, p. 696) destaca o nível subjetivo ou individual de análise. Este nível é compreendido pela autora como "[...] os processos que operam no nível dos indivíduos eles--mesmos". Aqui, há ênfase na apropriação e construção da representação social por parte do próprio sujeito. Fatores biográficos (suas memórias) vivenciados pelos sujeitos ao longo da vida influenciam diretamente na construção de suas representações sociais. A dimensão subjetiva auxilia o processo de ancoragem proposto pela abordagem moscoviciana na Teoria das Representações Sociais. O processo de ancoragem incide na busca da memória de fatores que possibilitem a aproximação com o "novo". E é importante distinguir as representações sociais propriamente elaboradas pelo sujeito daquelas que ele integra passivamente ao seu processo interpretativo, em função do contexto das rotinas vivenciadas ou sob a pressão da tradição/influência social.
Seguindo as proposições analíticas de Jodelet (2009) e a busca por tentar compreender o fenômeno da mecanização agrícola nos canaviais brasileiros, cabe evidenciar que os trabalhadores/sujeitos possuem suas biografias e que as mesmas devem ser consideras no momento de interpretar as representações sociais que são elaboradas sobre as alterações ocorridas no universo no qual estão inseridos. As trajetórias, pessoais e laborais, dos trabalhadores/sujeitos devem ser utilizadas como meio compreensivo, haja vista que em vários casos houve transição geracional na inserção profissional destes sujeitos, ou seja, a prática profissional foi repassada de forma hereditária. A utilização de tais recursos nos remete àquilo que Jodelet (2009, p. 697) enfatiza: "Isso nos conduz a integrar na análise das representações os fatores emocionais e identitários, ao lado das tomadas de posição ligadas ao lugar social".
O sujeito não atua solitariamente no processo de constituição da sua representação social. Ele também interage com outros sujeitos ou grupos que, em determinados momentos, possuem similaridades identitárias. Este nível de representação social é denominado por Jodelet (2009, p. 697) de intersubjetividade. De acordo com a autora: "A esfera de intersubjetividade remete às situações que, em um dado contexto, contribuem para o estabelecimento de representações elaboradas na interação entre os sujeitos, apontando em particular as elaborações negociadas e estabelecidas em comum pela comunicação verbal direta".
A representação oriunda da intersubjetividade decorre da partilha de um significado comum entre os sujeitos que vivenciam uma mesma realidade. A intersubjetividade, entendida como espaços de interlocução entre os sujeitos, está baseada, também, em um universojá constituído -no plano pessoal ou social- das representações sociais. Essas, por sua vez, intervêm como meio de compreensão, como ferramentas de interpretação e de construção de significações partilhadas em torno de um objeto de interesse comum ou de acordo negociado. No caso do universo canavieiro há arranjos intersubjetivos derivados de grupos distintos que formam tal ambiente. Por exemplo, os trabalhadores que operam as máquinas compartilham de um sentimento de "orgulho" ou "ascensão profissional" como Scopinho et al. (1999) demonstra em sua pesquisa de campo.
A dimensão da transubjetividade, que atua como pano de fundo para a subjetividade e a intersubjetividade, remete a elementos reguladores das visões de mundo. Isso significa que a transubjetividade estabelece fronteiras para ideias, conhecimentos, valores e condutas que indivíduos e grupos compartilham em razão de sua implicação em uma mesma situação material ou condição social. Esses elementos estão localizados no espaço social e provêm de diferentes fontes: da comunicação midiática; dos valores e normas culturais; das imposições ligadas aos âmbitos institucionais, ideológicos; e às relações de poder. Tais elementos reguladores das visões de mundo são adotados pelos indivíduos conforme o modo de adesão ou de imposição com o qual eles se defrontam. Atravessando os outros níveis de elaboração representativa, esses elementos constituem o pano de fundo das representações sociais compartilhadas que permitem a intercompreensão. Em resumo, podemos compreender a transubjetividade como a macrodimensão na qual a subjetividade e intersubjetividade se estabelecem (Jodelet, 2015b).
É interessante notar, como aponta Jodelet (2001), que o processo de memória social ajuda na construção da ancoragem da imagem e, consequentemente, nas representações sociais que o grupo se condiciona a imprimir nos processos de significação. A memória social é um mecanismo que ajuda a interpretar a realidade, pois resgata fatos vivenciados no passado, mas é, também, uma forma de estrutura que condensa valores, códigos e significações que foram construídos e são utilizados pelos sujeitos do grupo para manutenção da vida associada (Scopinho, Valencio e Lourenço, 2015).
Jodelet (2009) chama a atenção para o fato de que um mesmo acontecimento pode gerar representações transubjetivas diferentes, que o situam em horizontes variáveis. Assim, a autora discute a importância de se analisar o "horizonte" ou ambiente no qual as representações sociais foram formuladas:
Cada um desses horizontes põe em evidência uma significação central do objeto em função de sistemas de representações transubjetivas específicos dos espaços sociais ou públicos nos quais evoluem os sujeitos. Estes se apropriam dessas representações em função de sua adesão, de sua afiliação a esses espaços. (Jodelet, 2009, p. 702)
O processo de construção de representações sociais diferentes sobre um determinado fenômeno foi abordado por Scopinho, Gonçalves e Melo (2016), ao refletirem sobre as representações sociais que assentados elaboram sobre áreas caracterizadas pela existência de sistemas de agroecologia. No estudo, observa-se que há divergências nas representações que assentados e os técnicos agrícolas elaboram sobre os processos. Tal processo de construção de representações sociais pode ser observado, também, nos canaviais brasileiros, em função das diferenciações ocupacionais existentes entre os trabalhadores, pois: a) há aqueles que migram do trabalho manual para operar as máquinas; b) aqueles que se mantem no trabalho manual e passam a competir, em termos de produtividade, com as máquinas; e c) há, ainda, um grande contingente de trabalhadores que perdem seus postos em decorrência da introdução das máquinas nos canaviais.
As representações sociais, entendidas como chaves interpretativas da realidade, tem potência para ajudar na compreensão da dinâmica existente na realidade social. Isso se dá, em especial, no que toca os significados que são dados às mudanças decorrentes de novos contextos vivenciados pelos sujeitos e, mais especificamente (considerando os interesses deste artigo), pelos trabalhadores canavieiros em interações sociais diante de um contexto de incorporação tecnológica. A compreensão dessas representações sociais ocorre, portanto, a partir da interseção das dimensões subjetiva, intersubjetiva e transubjetiva (Jodelet, 2015a).
Valentim (2013) apresenta o fato de que as representações sociais ajudam a entender o processo de mudança social, pois parte do entendimento das mudanças de signos. Compreender as mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho canavieiro e, principalmente, as representações sociais que os trabalhadores passam a ter da nova dinâmica -moderna, mecanizada e tecnológica- é um meio de ampliar a compreensão sobre a nova realidade que se dissemina nos canaviais brasileiros.
Considerações finais
A mecanização do corte nos canaviais brasileiros tem avançado nos últimos anos como consequência do processo de modernização pelo qual a agricultura nacional passou desde o ano 1960. Tais modificações alteram a realidade do campo na medida em que as relações de trabalho mudam, assim como novos processos de trabalho são criados, alterados ou extintos.
Algumas produções acadêmicas realizadas nos últimos anos, como demonstrado anteriormente, acabam por se debruçar sobre tal processo e evidenciam algumas modificações nos canaviais. Muitos destes trabalhos direcionam o enfoque sobre as mudanças a partir do ponto de vista do empresariado ou sobre os impactos que tais mudanças causam na precarização da vida dos trabalhadores rurais. No entanto, ainda há uma lacuna investigativa no sentido de compreender o significado atribuído a esse movimento modernizante a partir da perspectiva dos sujeitos que compõem o sistema de produção canavieiro. Identificar como os indivíduos, subjetivamente, lidam com tal fenômeno, bem como entender a produção constitutiva da subjetividade desses trabalhadores são questões ainda não debatidas.
O presente texto buscou apresentar a Teoria das Representações Sociais como recurso para investigar a subjetividade dos canavieiros e, dessa forma, compreender o fenômeno da mecanização agrícola a partir do prisma dos trabalhadores. Dar ouvidos aos trabalhadores que participam desse processo de modernização pode ser uma maneira de oxigenar o debate sobre trabalho canavieiro e, também, possibilitar uma melhor compreensão sobre o processo de mecanização dos processos de produção agrícola ocorrido nos canaviais brasileiros, tendo como chave interpretativa o significado atribuído pelos sujeitos diretamente impactados por tais alterações. A escuta das falas dos trabalhadores canavieiros sobre esse fenômeno deve dar ênfase, portanto, ao contexto de produção de tais falas, pois como destaca Arruda (2002, p. 16): "Para nós, toda representação é representação de alguma coisa, mas também de alguém que a constrói. [...] O 'alguém que constrói' baseia sua construção num território simbólico que dá o chão para a sua leitura do mundo [...]".
A Teoria das Representações Sociais se apresenta como um recurso que pode proporcionar um novo olhar sobre tal fenômeno, que tem se intensificado nos canaviais brasileiros. Cabe, em trabalhos futuros, realizar a mobilização, junto a trabalhadores ou mesmo e-trabalhadores do setor canavieiro, do aparato teórico que a TRS nos fornece para buscar a compreensão dos modos como estes sujeitos representam seu universo laboral a partir de uma nova perspectiva. Acessar a subjetividade dos trabalhadores que atuam nos canaviais e, principalmente, entender as formas como essa subjetividade é construída poderá contribuir para o debate sobre o mundo do trabalho nos canaviais brasileiros e os impactos que as tecnologias causam no cotidiano laboral dos sujeitos que neles atuam.