Introdução
A relação entre doenças bucais bacterianas e o agravamento de comorbidades sistêmicas tornou tema de discussão recorrente na Odontologia atualmente. As infecções pulpo-periapicais e periodontais apresentam perfil microbiano comum com prevalência de bactérias anaeróbicas que são capazes de destruição tecidual, ocasionar bacterimia e liberar mediadores inflamatórios na corrente sanguínea. Pacientes portadores de diabetes melitus, nefropatias e cardiopatias sofrem forte influência quando acometidos por doenças bucais 1.
A má higiene bucal resulta em um acúmulo de biofilme favorecendo a proliferação de microorganismos patogênicos, o que torna os pacientes mais suscetíveis a patologias bucais dependentes de biofilme que se combinam com doenças sistêmicas e infecções. Tais patologias dependentes de biofilme podem ser agravadas devido a cárie, doença periodontal, fraturas dentárias, lesões orais e polpa necrótica, bem como o atendimento odontológico pode prevenir complicações e atenuar o agravamento das infeccções sistêmicas dos pacientes 2.
A Resolução CFO-163/2015, publicada no dia 25 de novembro, no Diário Oficial da União (DOU), conceitua a Odontologia Hospitalar e define a atuação do cirurgião-dentista habilitado a exercê-la. A Odontologia Hospitalar é uma área da Odontologia que atua em pacientes que necessitem de atendimento em ambiente hospitalar, internados ou não, ou em assistência domiciliar. Tem como objetivos: promoção da saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças orofaciais, de manifestações bucais de doenças sistêmicas ou de consequências de seus respectivos tratamentos 3.
A avaliação da condição bucal e necessidade de tratamento odontológico do paciente no contexto hospitalar pelo cirurgião dentista é de extrema importância para evitar que enfermidades na cavidade bucal possam comprometer outros órgãos e sistemas do paciente já internado e em estado debilitado, podendo levar ao agravamento da sua condição clínica e estender seu tempo de permanência no ambiente hospitalar 4.
A presença do cirurgião-dentista na equipe de saúde multidisciplinar de atendimento hospitalar é essencial através da sua atuação em procedimentos necessários para manutenção da saúde bucal e geral do paciente 5.
O Cirurgião-Dentista, em ambiente hospitalar, deverá estar focado no cuidado ao paciente cuja doença sistêmica possa ser fator de risco para agravamento e ou instalação de doença bucal, ou cuja doença bucal possa ser fator de risco para agravamento e ou instalação de complicação sistêmica. Tal afirmação faz com que haja uma reflexão sobre novos conceitos que devem ser inseridos no que se refere à atuação desse profissional 6.
A avaliação odontológica deve determinar a necessidade e o tempo apropriado de intervenções que venham a diminuir riscos futuros, e a adequação bucal pode alterar positivamente o desfecho clínico, minimizando fatores que possam influenciar negativamente o tratamento sistêmico 1.
A Odontologia torna-se, portanto, indispensável no ambiente hospitalar, assim diante da importância das intervenções do Cirurgião-Dentista no processo de recuperação do paciente, acometido por uma determinada doença no ambiente hospitalar, é necessário realizar pesquisas nesta área.
Este trabalho tem por objetivo verificar a casuística da condição bucal de pacientes da Clínica Cirúrgica do HUUFMA no de 2017, analisando o gênero como variável principal de estudo.
Materiais e métodos
Foi realizado um estudo analítico retrospectivo com a inclusão de 1475 pacientes internados na clínica cirúrgica atendidos pela equipe de Odontologia no HUUFMA no ano de 2017, com exclusão de crianças e pacientes adultos que não foram atendidos pela equipe de odontologia.
Foram analisados os dados obtidos através do resgate das informações odontológicas dos pacientes atendidos, registrados nos livros de evolução e prontuários.
Aspectos éticos
A pesquisa foi aprovada com Parecer nº 2.848.777 pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão.
Procedimentos e instrumentos
Foram colhidos dados como gênero, idade, motivo da internação, tempo de internação, processos patológicos na cavidade bucal, presença e condição de prótese dental, procedimentos realizados e encaminhamentos.
As informações coletadas foram transferidas para um banco de dados preparado no Microsoft Excel* (Microsoft Corporation) com as variáveis epidemiológicas do estudo (gênero, idade e especialidade médica). As especialidades médicas que prestaram atendimento na clínica cirúrgica foram cardiologia, ortopedia, proctologia, plástica, gastroenterologia, cirurgia buco-maxilo-facial, urologia, nefrologia, clinica medica, cirurgia vascular, neurologia, pneumologia, cirurgia geral, otorrinolaringologia e oncologia.
As variáveis clinicas identificadas pela equipe de odontologia foram: cárie, cálculo dental, mobilidade dentária, raíz residual, edentulismo parcial/total, uso de prótese dentária, candidíase, manchas extrínsecas, aparelho ortodôntico, ulceração (lesão traumática). As superfícies que não puderam ser analisadas clinicamente (dentes semi impactados ou com presença de banda ortodôntica) foram excluídas da análise.
Os critérios utilizados durante o exame clínico para as variáveis estudadas foram:
Cárie dentária: a superfície dentária foi considerada saudável ou com presença de cárie diante de superfícies com lesão de cárie cavitante 7.
Raíz residual: destruição coronária do dente, ficando presente apenas sua parte radicular 7.
Bofilme / cálculo dental ou tártaro dentário: localizado acima (supragengival) ou abaixo (subgengival) da margem gengival. O cálculo dental foi considerado ausente ou presente quando visível a olho nu 8.
Mobilidade dentária: presença de movimentação desde graus I e II, podem agravar o estado do paciente através de avulsão, fratura ou bronco aspiração durante os procedimentos pré, trans ou pós operatórios 9.
Edentulismo total como a perda de todos os dentes em uma arcada, podendo ser superior, inferior ou em ambas. Como dedentulismo parcial, considera-se a perda de um ou mais dentes por arcada 10.
Candidíase ou candidose: diagnóstico realizado com base na presença de placa branca através da raspagem das lesões, com descolamento da placa e visualização de uma base eritematosa 11.
Mancha extrínseca: alteração da cor dentária em virtude da descoloração ou manchamento 12.
Tratamento ortodôntico fixo: presença de braquetes, bandas e demais acessórios próprios do tratamento 13.
Ulcerações: lesões de aspecto ulcerado na mucosa bucal 14.
Quanto ao grau de higiene bucal (boa, regular ou deficiente) foram considerados aspectos como presença ou ausência de cálculo, biofilme, cárie, sinais clínicos de inflamação gengival e outros aspectos descritos nesta pesquisa.
Análise de dados
Os dados obtidos foram analisados quantitativamente através do programa de computador Software Epi-info, apresentados em números absolutos e percentuais, sob a forma de tabelas. Também foi empregado o teste do qui-quadrado, a nível de significância de 5%, para verificar se há associação entre a variável independente sexo com as variáveis dependentes sobre condição e higiene bucal dos participantes.
Resultados
Foram incluídos no estudo os dados de 1475 pacientes que foram atendidos pela equipe de odontologia que é formada por cirurgiões-dentistas da EBSERH e cirurgiões-dentistas residentes da equipe multiprofissional do Hospital Universitário do Maranhão.
Os dados epidemiológicos com a análise descritiva de todas as variáveis estão apresentados na Tabela 1. A média de idade dos pacientes foi de 50,36 anos. Quanto ao gênero, a maioria foi do sexo masculino (60,81%). Em relação aos achados clínicos, 11,32% dos pacientes apresentaram cárie dentaria e o cálculo foi detectado em 26,92%. A mobilidade dentária teve prevalência de 7,46%, enquanto que a raiz residual esteve presente em 20% dos pacientes. A higiene bucal regular foi prevalente com 73,54%, seguida por higiene oral deficiente 19,74% e boa com 6,72% (Tabela 1).
Tabela 1 Análise descritiva de todas as variáveis estudadas dos pacientes internados na Clínica Cirúrgica.

*Fonte: HUUFMA
A Tabela 2 apresenta a distribuição dos pacientes por especialidade médica demonstrando que a mais prevalente foi cirurgia geral com 14.46%, seguida de cirurgia vascular e urologia com 12.56% em ambas.
Tabela 2 Distribuição dos pacientes internados na Clínica Cirúrgica e examinados pela equipe de Odontologia, por especialidade médica.

*Fonte: HUUFMA
A Tabela 3 apresenta a associação entre a condição bucal e o sexo dos pacientes internados mostrando que a relação foi relevante no uso de aparelho ortodôntico (p=0,041); uso de prótese (p=0,008); raiz residual (p=0,0005) e manchas extrínsecas (p=0,003). As outras associações entre as variáveis e o sexo não mostraram significância: cálculo/biofilme (p=0,993); cárie (p=0,620); desdentado parcial/total (p=0,834); mobilidade dental (p=0,596) e ulceração (p=1,00), sendo que a candidíase (p=0,052) ficou próximo a significância.
Tabela 3 Associação entre a condição bucal e o gênero dos pacientes internados na Clínica Cirúrgica em um hospital universitário. São Luís-MA, 2017.

* Teste do qui-quadrado (Yates), α=0,05 Fonte: HUUFMA.
A tabela 4 mostra que a associação entre a higiene bucal dos pacientes e gênero não foi significante (p= 0,175).
Discussão
Os homens são mais resistentes a buscar a assistência primária, um dos motivos da criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem pelo Ministério da Saúde 11.
Os dados mostram que a maioria dos pacientes atendidos na clínica cirúrgica, onde são realizadas cirurgias que na maioria das vezes correspondem a consequências de doenças que poderiam ser tratadas na atenção primaria, são homens (60,81%).
O fato da proporção de homens ser bem maior do que a de mulheres reforça a observação de que homens procuram atendimento à saúde quando mais velhos e provavelmente com sintomas que demandam tratamentos mais invasivos 15.
Nesse estudo houve baixa associação entre gênero e higiene bucal, em discordância com outros estudos que apresentam dados nos quais as mulheres apresentam melhores condições de higiene oral em relação aos homens 16.
Fato que pode ser entendido por questões culturais e históricas, nas quais as mulheres desenvolveram um papel cultural de responsabilidade e cuidado familiar; portanto, estariam mais preocupadas com a sua saúde bucal. Além das mulheres apresentarem maior exigência na aparência estética do sorriso 17.
No presente estudo, os achados nos mostraram números significativos para presença de cárie 11,32%, raiz residual 20%, cálculo 26,92% representando uma realidade de precária assistência realizada pelos serviços de saúde. Estudos mostram que a população adulta brasileira ainda apresenta um quadro epidemiológico bastante grave 16-18.
Sobre os fatores responsáveis pela alta prevalência de cárie na população adulta no país, tem-se debatido sobre essa faixa de idade não ter recebido os benefícios do flúor no curso da vida 17,18.
Destaca se que, a saúde bucal dos brasileiros carrega uma herança do modelo assistencial que visava praticas curativas e mutiladoras, associado a essa situação, há registro que a população idosa possua uma resistência aos cuidados com sua saúde sistêmica, bem como bucal, e isso faz com que o número de edentulos cresça 19.
O uso de aparelho ortodôntico e uso de prótese se mostraram mais prevalentes nas mulheres quando foi feita associação com o genero. Este resultado pode encontrar explicação em questões históricas, estereótipos de gênero que ainda permeiam a prática do (auto) cuidado e das políticas públicas em saúde, fazendo com que os discursos sobre prevenção e promoção de saúde não atinjam homens e mulheres de modo integral e equivalente 19.
A presença de raiz residual e manchas extrínsecas foram mais prevalente na população masculina, podendo-se revelar como possíveis causas a resistência na busca pelos serviços de saúde.
Os resultados deste estudo sugerem que diante dos índices considerados de variáveis clinicas que acometem a saúde oral dos pacientes hospitalizados podem aumentar o seu tempo de hospitalização ou até mesmo levar a comprometimentos sistêmicos. Assim, a atuação da equipe de odontologia na equipe multiprofissional se faz fundamental para caracterizar o perfil odontológico de pacientes internados, atendendo casos necessários e informando a importância da manutenção de uma boa saúde oral.
Conclusão
Esta pesquisa mostra que as alterações são frequentes na cavidade bucal de pacientes hospitalizados e há baixa frequência de boa higiene oral. Assim, a atuação da odontologia na equipe multiprofissional se faz fundamental para caracterizar essa população. Desse modo, por meio do exame clinico e atendendo nos casos que se faz necessário, ratifica-se a importância da manutenção de uma boa saúde bucal aos pacientes no ambiente hospitalar.