Em novembro de 2019, o mundo foi surpreendido pelas transmissões do novo coronavírus, que emeigiu na cidade de Wuhan, na China, como sendo um tipo de pneumonia viral, que se espalhou rapidamente pelo país e pelo mundo. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia da covid-19, doença causada após a infecção pelo vírus Sars-Cov-2, com alta taxa de transmissão (Bogoch et al., 2020; Halabchi et al., 2020; WHO, 2020a; WHO, 2020b).
A partir desse cenário, autoridades mundiais passaram a adotar medidas de segurança, cuja principal estratégia era o distanciamento físico, a fim de evitar aglomerações de pessoas e, como consequência, a disseminação do vírus. Para isso, lugares públicos, como escolas, universidades, shopping centers, academias, sedes de eventos esportivos foram fechados, e as atividades realizadas neles passaram a ser proibidas até segunda ordem (Oliveira, 2020; Reis-Filho & Quinto, 2020). Ao mesmo tempo, incentivou-se a manutenção do comportamento ativo durante o período de distanciamento físico, sob a justificativa de que essas práticas contribuiriam para a manutenção da saúde física e mental, já que promoveriam a satisfação com a vida e o bem-estar de seus praticantes, o que subsidiaria maior qualidade de vida deles (Abreu et al., 2022; Kaur et al., 2020; Sousa et al., 2021).
Dessa forma, caracterizou-se como um importante desafio à ciência do esporte e do exercício físico o avanço de pesquisas, avaliações e intervenções associadas à promoção da prática dessas atividades, mesmo diante das situações de distanciamento físico em que adaptações da vida diária foram exigidas (Brooks et al., 2020; Cox et al., 2016; Petersen et al., 2021; Son et al., 2021).
No que diz respeito às pesquisas, ainda são escassos os investimentos de estudos que tenham apresentado conhecimento empírico sobre construtos psicológicos que tenham papéis relevantes para a manutenção dessas atividades durante o período de distanciamento físico. A fim de oferecer contribuições para preencher essa lacuna, esta pesquisa tem como principal objetivo avaliar o papel da paixão pelo exercício para a manutenção do comportamento ativo durante o período de distanciamento físico. Mais especificamente, avaliou-se a relação entre paixão, mindfulness, satisfação com a prática e tempo de prática. Assim como o papel preditivo das dimensões da paixão sobre o tempo de prática do exercício físico e sobre o estado de mindfulness físico experienciados no período de distanciamento físico, e os efeitos desse estado sobre a satisfação com a prática.
Modelo dualístico da paixão
A paixão, segundo Vallerand et al. (2003), está associada à propensão que uma pessoa tem para uma atividade, pessoa ou objetivo considerados significativos em sua vida. De acordo com o autor, uma pessoa apaixonada por determinada atividade investe tempo e energia para realizá-la, organizando sua vida em torno dessa prática, podendo assumir duas maneiras de se apaixonar: paixão harmoniosa (PH) ou paixão obsessiva (PO), as quais geram forte comprometimento com a atividade, mas diferem-se com relação à qualidade de como essa tarefa é internalizada na identidade do sujeito (Vallerand et al., 2019).
Na PH, o indivíduo se envolve de maneira voluntária na atividade, a qual ocupa tempo e espaço significativos, mas não domina a identidade deste e se mantém harmônica com outros aspectos da vida. Diante disso, sujeitos com PH concentram-se na atividade e experienciam resultados positivos durante (afetos positivos) e após (e.g., satisfação) a sua execução. Quando não há possibilidade de envolver-se na atividade em questão, os indivíduos são capazes de concentrar-se em outras tarefas que necessitam ser realizadas e, desse modo, estão no controle da atividade e decidem quando devem ou não participar da atividade de maneira apaixonada (Chichekian & Vallerand, 2018; Vallerand, 2015; Xavier et al., 2020). A PH também está associada a emoções positivas e comportamentos adaptativos, tais como prazer, autonomia e flexibilidade, visto que a pessoa apaixonada de maneira harmoniosa participa das atividades sem visar aos benefícios, praticando o esporte, neste caso, com atenção plena e abertura (Kovacsik et al., 2018; Vallerand, 2015). Dessa forma, adquirindo experiências positivas que são levadas a outras áreas da vida (escola, família, comunidade) que estão em harmonia com a prática, por exemplo, motivação e engajamento (Chichekian & Vallerand, 2018).
Em contrapartida, na PO, o indivíduo se envolve de maneira rígida na atividade, com incontrolável desejo de realizá-la. O sujeito torna-se controlado pela tarefa apaixonada, não conseguindo deixar de envolver-se ou pensar sobre ela, o que, consequentemente, influencia negativamente outras áreas da vida, visto que não é capaz de concentrar-se em outras atividades (Chichekian & Vallerand, 2018; Vallerand, 2015). Tal envolvimento pode gerar resultados benéficos, como alto desempenho, porém pode desencadear possíveis conflitos com outros objetivos (Vallerand et al., 2019). A PO está ainda relacionada a sentimentos negativos e comportamentos desadaptativos, como esgotamento, frustração, ansiedade e vício pelo exercício. Quando o indivíduo se relaciona com a atividade a partir da PO, internaliza pressões externas e internas, como cobranças excessivas, comportamento rígido com relação ao próprio desempenho e engajamento na atividade, bem como não a concilia com outras áreas da vida (Vallerand & Paquette, 2023). Ao mesmo tempo, o prazer pela atividade tende a diminuir, fazendo com que o sujeito mantenha a prática com vistas apenas ao sucesso de vencer, contexto em que os sentimentos de frustração e ansiedade podem emergir (Vallerand, 2015; Vallerand & Paquette, 2023).
Mindfulness, exercício físico e satisfação com a prática
O termo mindfulness foi definido por Kabat-Zinn (2003) como a consciência que surge a partir da atenção plena, com foco no presente e na experiência que acontece momento a momento, sem julgamentos. A prática de mindfulness não tem relação com a mente vazia de sentimentos ou pensamentos, mas refere-se a prestar atenção ao momento presente, sem se preocupar com o passado e futuro.
Diante desses aspectos, as emoções, sensações e pensamentos devem ser observados como eventos da mente (Germer, 2005), podendo haver duas formas de praticá-lo: informal e formal. A prática informal está associada à utilização das competências, ou seja, ouvir os sons da natureza, perceber emoções, como a tristeza, e sensações corporais, como a respiração. A prática formal acontece por meio da meditação e, nesse caso, é necessário treino da atenção e observação dos conteúdos relacionados à mente e ao corpo (Germer, 2005; Shapiro et al., 2016).
Na prática de exercício físico o mindfulness está associado à atenção do praticante para alcançar metas e objetivos, isto é, o seu desempenho. Nesse contexto, para atingir a atenção plena por meio da atividade, conforme as premissas do mind-fulness, a pessoa necessita adquirir uma postura não julgadora com relação às suas experiências internas (Mañas et al., 2014; Noetel et al., 2019; Wang et al., 2023). O mindfulness pode também promover a satisfação com o exercício físico, pois está apoiado nas questões de aceitação e atenção. Tais características tendem a substituir ou inibir tendências habituais indesejadas; dessa forma, melhoram o autocontrole (Tsafou et al., 2017; Whitmarsh et al., 2013). Intervenções ou treinamentos baseados nessa perspectiva também causaram efeitos benéficos para os praticantes, uma vez que experiências consistentes de mindfulness apoiam uma regulação eficaz do exercício físico (Wang et al., 2023). Em contrapartida, pessoas que não vivenciam tal experiência tendem a abandonar suas atividades, por sentirem-se exaustas e estressadas com outros aspectos de suas vidas (Yang & Conroy, 2019).
Em um estudo realizado por Silva et al. (2021), os autores buscaram avaliar a associação entre a mindfulness e o modelo dualístico da paixão em brasileiros praticantes de exercício físico, com idades entre 18 e 74 anos. Para isso, empregaram a correlação de Pearson, que indicou correlação positiva e moderada entre mindfulness mental, mindfulness físico e mindfulness geral com a variável PH, enquanto a PO apresentou associação nula quando relacionada às variáveis supracitadas. Contudo, a literatura tem sugerido prioridade no emprego da variável mindfulness físico no contexto do exercício físico e esporte. Nessa direção, Ullrich-French e Cox (2020) sugerem que as sensações físicas associadas aos movimentos durante a prática do exercício físico promovem um rebaixamento do sistema nervoso parassimpático, facilitando a identificação de estímulos e sensações relevantes no aqui e agora e atendendo-os com atenção. Isso torna as sensações e percepções físicas melhores representantes do estado de mindfulness (Cox et al., 2016; Ullrich-French et al., 2017).
Vale ressaltar que, na presente pesquisa, todos os respondentes referiram-se a sua relação com a prática de atividade física e de exercício físico durante o distanciamento físico. Dessa forma, o estudo propõe a reflexão acerca da percepção dos participantes a partir das condições experienciadas na pandemia e, portanto, a partir das adaptações realizadas para a manutenção da prática de exercício físico. A partir dessa estratégia, esperou-se trazer novas contribuições ao apresentar ativos internos (PO e PH) que podem contribuir para a experiência do estado de mindfulness e da satisfação com a prática exercício físico. Com base no exposto, esta pesquisa teve como objetivo avaliar as relações entre as variáveis "paixão", "mindfulness", "satisfação com a prática" e "tempo de prática". Além de verificar o papel preditivo da paixão e os efeitos de mindfulness na satisfação com a prática, ao propor um modelo integrati-vo em que ambas as dimensões da paixão pelo exercício físico apresentariam poder preditivo sobre o tempo de prática de exercício físico durante o período de isolamento. Como hipótese, espera-se que apenas a PH prediria a experiência de mindfulness que, consequentemente, explicaria a satisfação com a prática de exercício físico (ver Figura 1).
Método
Participantes
A amostra, por conveniência, foi composta de 359 brasileiros, com idades entre 18 e 70 anos (M = 36.6; DP = 11.9), dos quais 67.4 %o eram mulheres. Com relação ao estado civil, 51 % se autodeclararam solteiros; 39.6 %, casados; 8.9 %, divorciados e 0.6 %, separados. Quanto à localidade, eram residentes de diferentes regiões do Brasil, a saber, Sudeste (70.2 %), Nordeste (16.2 %), Sul (8.6 %), Centro-Oeste (3.3 %) e Norte (1.7 %). Importante informar que os participantes foram recrutados por meio de compartilhamento de link nas redes sociais.
Escala de paixão (EP)
É um instrumento desenvolvido por Vallerand et al. (2003), composto de 12 itens, que tem o objetivo de avaliar a paixão em duas dimensões: PH e PO. Nele, os participantes respondem por meio de uma escala tipo Likert de 7 pontos, variando de "discordo fortemente" a "concordo fortemente". Para a estimativa dos escores de PH e PO, são extraídos valores médios dos itens que compõem os respectivos fatores, escores mais elevados indicam maiores níveis das respectivas variáveis. No Brasil, Peixoto et al. (2019) adaptaram a escala para a amostra brasileira, e os resultados das análises das propriedades psicométricas indicaram adequação da estrutura interna baseados na proposta teórica de dois fatores, como também níveis satisfatórios de precisão PH = 0.81 e PO = 0.75.
Escala de satisfação com a prática de exercício físico (ES-PEF)
A ES-PEF foi desenvolvida especificamente para este projeto, como uma adaptação da Escala de satisfação com a vida (Diener et al., 1985). A ES-PEF é composta de três itens, que foram reescritos para compreenderem aspectos de satisfação com a prática, sendo respondidos em uma escala tipo Likert (variando entre "1 - Discordo plenamente" e "7 - Concordo plenamente"). Os itens adaptados foram "1. A minha prática de atividade física está próxima do meu ideal"; "2. Minhas condições para práticas de atividades físicas são excelentes" e "3. Eu estou satisfeito com a minha prática de atividade física". Para verificar a estrutura interna, foram empregadas a análise paralela e a análise fatorial exploratória, que sugeriram estrutura unidimensional e indicaram cargas fatorais entre 0.78 e 0.95, explicando 78.6 % da variabilidade dos dados. Observou-se indicador excelente de consistência interna para a presente o estudo, alfa de Cronbach igual a 0.91. Nesse instrumento, os valores médios dos escores são estimados a fim de compor o fator geral, escores mais elevados sugerem níveis também mais elevados para a medida de bem-estar.
State Mindfulness Scale for Physical Activity (SMS-PA)
Desenvolvida por Cox et al. (2016), tem por objetivo avaliar o estado de mindfulness durante a prática da atividade física. A escala contém 12 itens, sendo separada por dois fatores específicos: mindfulness mental e mindfulness físico. A adaptação do instrumento foi realizada por Peixoto, Palma et al. (2019), a partir das análises foi possível identificar que as propriedades psicométricas corroboraram com o modelo bifactor, dado que os resultados encontraram evidências empíricas que sustentam os resultados da versão espanhola e americana da SMS-PA (Cox et al., 2016; Ullrich-French et al., 2017). Além disso, os níveis de precisão foram considerados bons, visto que os coeficientes alfa de Cronbach foram superiores a 0.80 (Peixoto, Palma et al., 2019). Em concordância aos objetivos da pesquisa, foram utilizados somente os seis itens do fator mindfulness físico. Cabe informar que foram extraídos os valores médios dos itens que integram cada um dos fatores, de modo que a presença de escores mais elevados apontam para a presença de maiores níveis nos domínios de mindfulness.
Questionário sociodemográfico
Instrumento desenvolvido especificamente para o projeto, o qual permitiu acesso às principais características dos participantes, como sexo, idade, estado civil, região do Brasil onde o participante residia e tempo semanal dedicado ao exercício físico (em horas).
Procedimentos
Aspectos éticos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade São Francisco (Parecer n° 4.056.966 - CAAE n° 31959220.6.0000.5514), os dados foram inseridos na plataforma Google Forms e o link foi disponibilizado nas redes de contatos dos pesquisadores. Os participantes, primeiramente, deveriam assentir suas colaborações por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, confirmando a participação de forma voluntária e afirmando ter 18 anos ou mais de idade, para então serem disponibilizados os instrumentos a serem respondidos na seguinte ordem: questionário sociodemográfico, EP, ES-PEF e SMS-PA, com duração estimada de 20 minutos.
Ressalta-se que foram assegurados aos participantes o direito ao sigilo sobre os dados coletados, assim como a possibilidade de desistir da pesquisa a qualquer momento. Ou seja, a pesquisa seguiu os preceitos éticos conforme a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que determina diretrizes sobre pesquisas das áreas de ciências humanas e sociais.
Análises estatísticas
As análises descritivas da amostra foram realizadas com suporte do software Jamovi (2020). O coeficiente r de Pearson foi utilizado para avaliar o grau de correlação entre as variáveis no software SPSS versão 21. Foram considerados indicadores de significância níveis de p < 0.01 e as magnitudes das correlações foram interpretadas de acordo com a classificação proposta por Cohen (1988): de -0.09 a 0.09 nulas; de 0.10 a 0.29 pequenas; de 0.30 a 0.49 média e de 0.50 a 1.0 grandes.
Posteriormente, foi testado o modelo integrativo (Figura 1) em que PH e PO eram preditoras do tempo de prática de exercício físico durante o distanciamento físico e do estado de mindfulness experienciado durante a prática e este, por sua vez, era preditor da satisfação com a prática. A avaliação do modelo hipotético foi realizada por meio da Exploratory Structural Equation Modeling (ESEM), utilizando Path Analysis no software Mplus. O principal benefício das análises de caminho é que as relações entre os dados se tornam mais claras do que na aplicação de análises de regressão, uma vez que a primeira leva em consideração as variáveis residuais e as correlações inter-relacionadas entre variáveis endógenas e exógenas (Kline, 1998). O nível de significância adotado foi p < 0,05 (Marôco, 2014). A qualidade de ajuste do modelo aos dados foi avaliada a partir dos índices recomendados por Muthén e Muthén (2017), sendo estes: qui-quadrado (%2), graus de liberdade (gl), X2/gl, Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA), Comparative Fit Index (CFI) e Tucker-Lewis Index (TLI). Foram utilizados como parâmetros de adequação os valores de referência comumente empregados na literatura especializada: X 2/gl< 5, RMSEA < 0.08, CFI e TLI > 0.90 (Tabachnick & Fidell, 2019).
Resultados
De modo geral, a PH e a PO correlacionaram-se positiva e significativamente (p < 0.01) com as variáveis submetidas a análises. Conforme exposto na Tabela 1, a PH apresentou correlações de magnitude moderada com mindfulness, satisfação com a prática e tempo de prática. A PO, por sua vez, relacionou de maneira fraca a moderada com as três variáveis: mindfulness, satisfação com a prática (fraca) e tempo de prática (moderada).
Tabela 1 Resultados da correlação entre paixão, mindfulness e satisfação com a prática
Mindfulness | Satisfação com a prática | Tempo de prática | |
PH | 0.39 | 0.45 | 0.46 |
PO | 0.16 | 0.21 | 0.36 |
Por meio da ESEM, avaliou-se o modelo integra-tivo hipotetizado, como é exposto na Figura 2. Dessa forma, a PH e a PO foram definidas como variáveis exógenas, enquanto mindfulness, tempo de prática e satisfação com a prática de exercício foram definidas como variáveis endógenas. Os índices demonstraram que o modelo obteve um ajuste excelente com os dados apresentados, χ 2 (gl = 204) = 996.064; p < 0.001; CFI = 0.96, TLI = 0.95, RMSEA = 0.08 (IC 90 % 0.07-0.09). De acordo com os resultados relacionados aos efeitos diretos no modelo, a PH apresentou efeito positivo na variável mindfulness físico (β = 0.55) e demonstrou também um efeito positivo no tempo de prática (β = 0.46). A PO, por sua vez, não apresentou efeitos significativos sobre a variável endógena mindfulness (β = -0.05, p = 0.449), entretanto apresentou efeito positivo sobre o tempo de prática (β =0.33, p < 0.001). Por fim, verificaram-se os efetivos positivos do mindfulness sobre a satisfação com a prática de exercício (β = 0.56, p < 0.001). Vale ressaltar que todas as cargas fatoriais apresentadas pelos itens empregados em cada uma das subescalas do modelo foram iguais ou superiores a 0.4 e significativas (p < 0.001), o que assegura que esses indicadores são bons representantes dos construtos alvos da mensuração.
Discussão
A pesquisa teve como objetivo avaliar a associação entre as variáveis paixão, mindfulness físico, tempo e satisfação com a prática de exercício físico, e estimar os efeitos dos diferentes tipos de paixão (PH e PO) sobre o nível de estado de mindfulness físico experimentado no decorrer da prática e o tempo a esta. Especificamente, buscou-se investigar os efeitos diretos da PH e PO sobre o estado de mindfulness físico, bem como os efeitos mediados pelo mindfulness com relação à satisfação com a prática do exercício físico.
A partir dos resultados que avaliaram as correlações, observou-se que a paixão e mindfulness estão relacionados entre si. As pesquisas indicam a PH como uma variável favorável, ou seja, à medida que trabalha com autonomia e engajamento flexível, permite que os processos sejam adaptativos. Nesse sentido, a PH estaria relacionada de forma moderada e positiva com o mindfulness, como foi observado nos resultados encontrados. Contudo, a PO limita o alcance do estado de mindfulness, visto que tal variável impede a conexão por ser internalizada de forma controladora e ter envolvimento rígido, determinando ausência de associação entre os construtos (PO e mindfulness), destoantes dos resultados observados no presente estudo, que demonstrou correlação positiva de magnitude pequena (r = 0.16).
Os achados são semelhantes àqueles estimados em pesquisas anteriores realizadas no contexto do esporte (Amemiya & Sakairi, 2019; St-Louis et al., 2016) e do exercício físico (Silva et al., 2021). Amemiya e Sakairi (2019) observaram associação positiva entre PH com mindfulness (r = 0.17) e St-Louis et al. (2016) observaram associação moderada da PH com mindfulness (r = 0.30), e nula da PO com mindfulness (r = 0.01). Silva et al. (2021) identificaram uma correlação positiva e de magnitude moderada entre PH e mindfulness (r = 0.44), enquanto a PO apresentou associação nula (r = 0.02). Na ocasião, os autores sugeriram que a diferença na magnitude da correlação poderia estar associada aos instrumentos utilizados para acessar a variável mindfulness. Dado que Amemiya e Sakairi (2019) e St-Louis et al. (2016) utilizaram instrumentos que avaliaram o mindfulness traço, ou seja, a variável de maneira geral, e não a partir de fenômenos específicos vivenciados no esporte ou exercício físico. Dessa maneira, indicam a adequação dos esforços em avaliar e mensurar o fenômeno psicológico mindfulness por meio de sentimentos e experiências específicas do contexto do exercício físico.
De modo geral, os resultados indicaram existência de associações significativas entre as variáveis e sugerem que, embora as duas dimensões da paixão contribuam positivamente para o engajamento no exercício físico (tempo dedicado à prática), apenas a PH é capaz de promover a experiência de mindfulness, que, por consequência, contribuiu para a percepção de níveis mais elevados de satisfação com o exercício físico. Tais resultados corroboram a hipótese teórica e demonstram concordância com a literatura disponível sobre o modelo dua-lístico da paixão (Vallerand, 2015). Essas associações entre as variáveis ficam mais evidentes a partir dos resultados provenientes da ESEM que corroboraram a hipótese teórica de que ambos os tipos da paixão prediriam o tempo de prática de exercícios, mas apenas a PH prediria a experiência de mindfulness durante a prática de exercício, que, por sua vez, prediria a satisfação com o exercício físico. Conforme apresentado na Figura 2, a PH apresenta efeito com relação ao tempo de prática (β = 0.46) e mindfulness (β = 0.56) e um efeito de mindfulness com satisfação com a prática (β = 0.57). Observando a Figura 2, nota-se ainda que a PO indicou efeito com tempo de prática (β = 0.34) e associação de baixa magnitude com mindfulness (β = -0.05).
De acordo com o estudo de Vallerand et al. (2007), os autores descrevem que os dois tipos de paixão predizem a experiência do exercício físico, ou seja, o sujeito engajar-se em longo prazo. A paixão, segundo os autores, relaciona-se na medida em que é considerada como um processo para o desenvolvimento do desempenho. Contudo, existem duas maneiras de alcançar esse objetivo: com a PH, a pessoa tende a focar na atividade, sem preocupar-se com o resultado que a atividade pode vir a gerar, facilitando o desempenho, além de outros resultados adaptativos, como o afeto positivo. Quando o indivíduo é apaixonado obsessivamente pela prática, isso faz com que ele queira praticar por mais tempo, direcionando as horas exclusivamente a ela. Apesar disso, com o foco por mais tempo para atividade, os resultados tendem a ser desadaptativos quanto ao desempenho, pois a vontade de alcançar o sucesso e o vício pelo exercício restringem o envolvimento com outras atividades, desencadeando sentimentos negativos, como frustração e ansiedade (Peixoto & Palma, 2020; Vallerand, 2015).
Dessa forma, é esperado que ambas as dimensões da paixão, PH e PO, possam predizer positivamente o tempo de engajamento com o exercício e o tempo dedicado à prática. Kovacsik et al. (2018), a partir de uma amostra de 190 atletas (participantes de modalidades coletivas e individuais), ao correlacionarem os escores das dimensões de paixão com o tempo dedicado à prática semanalmente, observaram relações positivas e com magnitudes grandes e moderadas entre as variáveis (PO: r = 0.51; PH: r = 0.49), o que corrobora a literatura. Semelhante a esses resultados, Peixoto, Nakano et al. (2019) também observaram, em uma amostra de 789 brasileiros, associações positivas e significativas entre o tipo de paixão e o tempo destinado à prática da atividade física semanalmente (PO: r = 0.27; PH: r = 0.22). Assim, nota-se que a associação positiva entre indicadores de paixão e tempo de prática observadas na presente pesquisa são coerentes com a perspectiva teórica (Vallerand, 2015) e com as pesquisas empíricas supracitadas.
Vale ressaltar ainda que a psicologia do esporte tem destacado o mindfulness como uma importante variável que promove maior engajamento e frequência em atividades físicas. Pesquisas que envolvem o conceito observam associações positivas entre mindfulness com motivação autônoma, afeto positivo, satisfação com a vida e com a prática esportiva, autoestima, bem-estar físico e mental e associação negativa com afetos negativos, ansiedade e depressão (Cox et al., 2016; Cox et al., 2017; Ullrich-French & Cox, 2020).
A literatura tem como enfoque investigar os resultados sobre mindfulness (Grossman et al., 2004), entretanto poucas pesquisas buscam avaliar seus determinantes (Feltman et al., 2009). Na presente, os resultados encontrados revelaram que a paixão é uma variável determinante do mindfulness, visto que promove maior acesso à capacidade inerente de atingir tal estado (Brown & Ryan, 2003). Porém, alcançar o mindfulness depende do tipo de paixão internalizada pelo indivíduo (St-Louis et al., 2016).
Conforme a expectativa teórica, identificou-se que a PH é uma variável promotora do estado de mindfulness durante a prática de exercício físico, enquanto a PO não esteve associada a essa experiência. Adicionalmente, pode-se observar que o estado de mindfulness foi uma variável promotora da satisfação com a prática. Conforme apontado por Chichekian e Vallerand (2018), a experiência mindfulness potencializa o sentimento de emoções positivas, como afeto positivo, engajamento e prazer. Nesse sentido, envolver-se regularmente em uma atividade pela qual se tem paixão de forma flexível, aberta e não defensiva (Vallerand, 2015) deve representar uma maneira de facilitar o estado de mindfulness e, consequentemente, promover maior satisfação com a prática de exercício físico. Compreende-se então que, por meio do mindfulness, é possível experienciar e identificar sensações físicas que ocorrem durante o exercício (Cox et al., 2016); portanto, estar consciente possibilita o aumento da qualidade da atividade e impulsiona os resultados, influenciando positivamente no nível de satisfação com a prática (Ullrich-French & Cox, 2020).
Como é visto na Figura 2, a variável PO não demonstrou ser preditora do estado de mindfulness. Tal resultado é coerente com aqueles observados em estudos realizados no contexto esportivo (Silva et al., 2021), que sugerem que participantes que se relacionam com a prática de exercício de maneira obsessiva integram essa atividade à sua identidade de maneira desproporcional, a partir de vivências de pressões intra ou interpessoais. Assim, o engajamento na atividade pode ter como principais motivadores a incontrolável necessidade da aceitação social ou autoestima, ou seja, motivações externas ao sujeito (Vallerand, 2015). Dessa forma, ao voltar-se para estímulos externos, o praticante deixa de experienciar estados de mindfulness, visto que estaria agindo de forma "automática", com uma baixa consciência das emoções e sensações experienciadas no momento presente (Bishop et al., 2004). Vale destacar resultados de pesquisa que demonstram associação entre o envolvimento obsessivo com exercício físico, com consequências negativas como adição (Kovacsik et al., 2018) e emoções negativas (Peixoto & Palma, 2020).
Cabe ressaltar que a atividade física e o exercício físico proporcionam benefícios à saúde, gerando maior qualidade de vida (Penedo & Dahn, 2005), aumento do sentimento de felicidade (Wang et al., 2012) e satisfação com a vida (Maher et al., 2013). Entretanto, mesmo reconhecendo a importância do comportamento ativo, muitos não o mantêm. Sabe-se que a satisfação percebida afeta o comportamento ativo, além disso é necessário compreender que a satisfação diária se relaciona a vivências positivas, como perceber estar próximo de alcançar objetivos. Nesse sentido, é preciso melhorar as experiências para então aumentar a satisfação (Tsafou et al., 2016; Tsafou et al., 2017; Ullrich-French & Cox, 2020).
Portanto, o mindfulness é uma técnica eficiente para aumentar a consciência e, como consequência, obter maior satisfação com a prática física. Ao estar atento, o sujeito identifica seus sentimentos e sensações corpóreas, podendo ajustar movimentos e, assim, experimentar sentimentos positivos devido à melhoria do desempenho (Tsafou et al., 2016; Tsafou et al., 2017; Ullrich-French & Cox, 2020). Por fim, resultados corroboram as propostas teóricas e resultados de pesquisa que indicam que, para além do desempenho esportivo, o estado de mindfulness durante a prática de exercício está positivamente associado a variáveis como qualidade de vida, motivação intrínseca e satisfação com a prática (Amemiya & Sakairi, 2019; Cox et al., 2016; Peixoto, Palma et al., 2019).
Em outras palavras, o estado de mindfulness durante a prática de exercício contribui para minimizar possíveis impactos negativos em momentos inesperados (e.g., pandemias). Sabe-se que, no enfrentamento da pandemia causada pela covid-19, algumas das medidas preventivas adotadas, como o distanciamento físico, podem gerar sentimentos negativos (e.g., tédio, raiva, frustação). A partir desse panorama, algumas pessoas buscaram, por meio do comportamento ativo, o suporte para lidar com a situação, visto que o exercício físico acarreta benefícios para a saúde mental e física do indivíduo (Amatriain-Fernández et al., 2020; Brooks et al., 2020; Ravalli & Musumeci, 2020), promovendo emoções positivas (e.g., felicidade e bem-estar), bem como melhorando os sentimentos de depressão e ansiedade (Liu et al., 2020; Maher et al., 2013). Contudo, é a maneira como o sujeito se relaciona e interpreta essa prática que influência na sua realização e no seu bem-estar subjetivo (Conversano et al., 2020; Duarte et al., 2020).
Nesse sentido, a partir dos resultados observados na presente pesquisa, compreende-se que pessoas que se relacionam com a prática de exercícios de forma harmoniosa podem manter-se ativas, ex-perienciando estados de mindfulness e, por conseguinte, a satisfação com o exercício, mesmo com as mudanças causadas pela pandemia, como academias e centros esportivos fechados. Assim, contribuindo para fortalecer o enfrentamento dos sofrimentos e sentimentos negativos relacionados ao período de distanciamento físico decorrente da pandemia da covid-19 (Conversano et al., 2020; Duarte et al., 2020).
Considerações finais
A presente pesquisa teve como objetivo avaliar a relação entre as variáveis, o papel preditivo da paixão pelo exercício com relação ao mindfulness e ao tempo com a prática, e o papel mediador do mindfulness físico sobre a satisfação com a prática. Os resultados obtidos corroboram a proposta do modelo dualístico da paixão, que conceitua a PH como facilitadora de acesso a processos internos adaptativos, como o mindfulness e, consequentemente, a satisfação com a prática esportiva. Faz-se necessário ponderar que limitações se fizeram presentes desse processo, considerando que o contexto pandêmico não permitiu a coleta presencial, é possível que vieses no processo de resposta por meio do uso de ferramentas tecnológicas sejam observados. Nesse sentido, sugere-se que, em futuras pesquisas, sejam realizadas coletas presenciais. Recomenda-se também que a aplicação do modelo investigado seja realizado em novos estudos, com o controle de vieses de resposta. Adicionalmente, pensando na estimação de um modelo mais específico, propõe-se que pesquisadores interessados na temática avaliem como outras variáveis, como a modalidade esportiva, podem influenciar as relações entre os construtos, visto que podem acrescentar novas evidências importantes para a compreensão do papel destas no modelo.