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Diversitas: Perspectivas en Psicología

Print version ISSN 1794-9998

Divers.: Perspect. Psicol. vol.8 no.2 Bogotá June/Dec. 2012

 


Do testemunho à memória: o a posteriori entre a história e as ruínas*

Del testimonio a la memoria: el a posteriori entre la historia y las ruinas

From Testimony to Memory: The a Posteriori Between History and Ruins

José César Coimbra**

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

* Este ensaio tem por base o projeto de doutorado 'O que resta da adoção? O comum e o testemunho sobre a busca das origens', o qual está em curso na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio - Brasil), no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS), orientado pela profa. Jô Gondar e não conta com financiamento.

Recibido: 28 de septiembre de 2011, Revisado: 14 de enero de 2012, Aceptado: 3 de mayo de 2012



Resumo

Com base em pesquisa bibliográfica este trabalho analisa as relações entre testemunho e memória a partir de Giorgio Agamben, Sigmund Freud e Walter Benjamin. Nesses autores, verifica-se que as noções de esquecimento, do resto, das ruínas e do a posteriori estão presentes no discurso sobre o testemunho e a memória. Constata-se a sinergia de suas elaborações, as quais destacam as possibilidades de deslocamento das posições subjetivas da testemunha diante do dever da memória. Nesse contexto, o inacabamento da história assume proeminência, permitindo o resgate do passado e de suas significações. No momento em que o Brasil coloca em primeiro plano sua Comissão da Verdade, a discussão aberta sobre o período da ditadura civil-militar ressalta a importância de compreendermos os limites da expressão da memória que o testemunho proporciona.

Palavras chave: Testemunho, memória, história, a posteriori, comissão da verdade, psicanálise


Resumen

Basado en investigación bibliográfica, este trabajo analiza las relaciones entre testimonio y memoria de Giorgio Agamben, Sigmund Freud, Walter Benjamin y verifica el lugar, en esas relaciones, de las nociones de olvido, de restos, de ruinas y el a posteriori. Se constata la sinergia de las elaboraciones de esos autores, las cuales destacan las posibilidades de desplazamiento de las posiciones subjetivas del testimonio frente al deber de la memoria. En el momento en que Brasil instala en primer plano su Comisión de la Verdad, la discusión abierta por el pasado revisitado resalta la importancia de comprender los límites de la expresión de la memoria que el testimonio proporciona.

Palabras clave: Testimonio, memoria, historia, a posteriori, comisión de la verdad, psicoanálisis.



Abstract

Based on library research this paper analyzes the relations between testimony and memory according to Giorgio Agamben, Sigmund Freud and Walter Benjamin. In such authors, it turns out that the notions of forgetfulness, rest, ruins and a posteriori are present in the discourse on testimony and memory. It elaborates the synergy found in the studies by these authors, which stress the possibilities of displacement of subjective positions during the memory task. In this context, the incompleteness of history takes prominence, allowing the recovery of the past and its meanings. Now that that Brazil is putting the spotlight on its Truth Commission, an open discussion of the revisited past emphasizes the importance that we understand the limits of the expression of memory provided by the testimony.

Keywords: Testimony, memory, history, a posteriori, truth commission, psychoanalysis



Mas lá onde há o perigo, cresce também o que salva [...]
Hölderlin

Introdução

O cenário instaurado pela constituição da Comissão da Verdade no Brasil em 2011 convidanos a algumas indagações sobre as relações entre testemunho e memória. Não realizaremos, contudo, um estudo sobre o funcionamento da Comissão da Verdade. Temos, antes, como pressuposto que testemunho e memória são campos de produção de sentido que mantêm relação estrita entre si e, desse modo, também com a existência da Comissão da Verdade. É esse aspecto basilar que exploraremos aqui. Dessa forma, nosso objetivo é: (i) analisar as relações entre testemunho e memória a partir de quatro autores: Agamben, Freud, Lacan e Benjamin; (ii) verificar, segundo as referências escolhidas, o lugar do esquecimento, do resto, das ruínas e do a posteriori nessa relação.

Na relação entre testemunho e memória revelase a uma só vez a importância concedida ao passado e os riscos da cristalização do tempo que poderia advir da hiper-valorização desses termos. Ante esse risco, nota-se a dimensão ética e política da memória e da história, já bastante salientada por diversos autores (Gondar, 2003; 2005; Sarlo, 2007), bem como o que aí se revela como posição subjetiva daquele que testemunha. Nesse contexto, um dos sinais recentes de silêncio como tentativa de apagamento da memória e da história teria sido a inviabilidade do discurso de Vera Paiva quando da instalação da Comissão da Verdade no Brasil1.

Sabe-se que em maior ou menor grau existem críticas ao funcionamento das diversas modalidades de Comissões da Verdade ou Leis de Acesso à Informação que já foram implementadas no mundo, sobretudo na relação entre seu funcionamento e a cultura local (Rose & Ssekandi, 2007; Saunders, 2008). Todavia, é importante notar que o Brasil até agora foi o único país do conesul que não teria implementado nenhum tipo de dispositivo seja para passar em revista o período da ditadura civil-militar seja para responsabilizar aqueles que cometeram crimes associados a ela, tudo tendo por argumento a Lei da Anistia.2 Esse contexto, como apontamos, não nos incitaria a uma interrogação sobre as relações entre testemunho e memória?.


Metodologia

Na pesquisa de onde este ensaio foi derivado o estudo de caso foi escolhido como método, o qual tem por objetivo compreender o significado de uma experiência a partir da análise sistemática de um mesmo fenômeno (Marín, 2004). Isto é, o estudo de caso é antes de tudo interpretativo e aborda "las realidades subjetivas e intersubjetivas como objetos legítimos de conocimientos científicos" (Marín, 2004a, p. 18). Nesse sentido, a intenção primária desse método não é gerar generalizações, mas eleger o particular como alvo. Dessa forma, o estudo de caso caracteriza-se pelo "descobrimento de nuevas relaciones y conceptos, más que la verificación de hipótesis previamente establecidas" (Marín, 2004, p. 70).

Conforme a classificação e a tipologia apresentadas por Marín (2004) podemos ainda apontar que o estudo de caso empregado originalmente é interpretativo, isto é:

Los datos de las descripciones se utilizan para desarrollar categorías conceptuales o para ilustrar, soportar o discutir presupuestos teóricos. Su nivel de conceptualización puede ir desde el planteamiento de relaciones entre variables hasta la construcción de una teoría particular (Marín, 2004, p. 72).

O estudo de caso pode valer-se de uma série de técnicas para levantar informações. Neste ensaio são apresentados os resultados da pesquisa bibliográfica realizada, técnica que associamos ao método escolhido. Ainda que compartilhando o entendimento de que a distinção entre método e técnica pode guardar algo de arbitrário (Gil, 2010), valemo-nos dela aqui na medida em que traduz bem os procedimentos utilizados, restando o método como o aspecto mais geral da pesquisa realizada.


Resultados e interpretação

De que modo articular testemunho e memória? Sabemos que essa articulação não é nova, tendo sido já objeto de trabalhos de Seligmann-Silva (2000 e 2006). Seguindo suas indicações, temos que Benjamin (1994) mantém-se como referência incontornável em qualquer análise que tenha o testemunho como alvo, o que não significa poucos trabalhos sobre o tema. Neste ensaio, analisaremos o valor do testemunho sob a perspectiva da noção de a posteriori, tal como formulada por Freud (1996) e Lacan (1985). Para tanto, realizaremos um breve comentário sobre a tragédia Eumênides. Essa tragédia nos interessa na medida em que apresenta o testemunho no plano judicial como um dispositivo que articularia arranjos de memória que implicariam mudanças subjetivas ao longo das narrativas que ali ocorrem. Embora o foco de nosso trabalho não seja o dispositivo judicial, podemos notar que o plano judicial traduz-se como um dos limiares a partir dos quais análises sobre o testemunho podem ser articuladas.


O testemunho e suas narrativas

A tragédia Eumênides, de Ésquilo (2004), além de nos apresentar o nascimento mítico do Tribunal, descreve em sua narrativa não só o uso da memória e do testemunho na cena jurídica, mas também o movimento necessário nessa cena do que se poderia chamar, com Agamben (2001), de um bom uso da memória e do esquecimento. Tratase nessa tragédia do julgamento de Orestes, que vingou seu pai, Agamênon, assassinando sua mãe, Clitemnestra. Essa vingança ocorreu porque Clitemnestra foi a responsável pela morte de Agamênon. Apolo não apenas insuflou essa ação por reconhecer que Agamênon, rei e herói de guerra, não teve uma morte digna, mas também ajudou Orestes a fugir. Essa fuga era necessária, na medida em que ele passou a ser perseguido pelas Eríneas, deusas vingadoras dos crimes de sangue entre familiares. Trata-se de entidade horrível, olhos repletos de sangue, cabelos feitos de serpentes, que em parte assemelha-se às Górgonas.

É no templo de Atena, deusa da sabedoria e da guerra justa, que Orestes encontra o lugar de seu julgamento. Atena convoca os melhores da cidade para que na forma de um Conselho, o Areópago, participem do julgamento e, para tanto, ordena o modo como as partes envolvidas e os jurados convidados disporiam do espaço e do tempo daquela sessão. Nas palavras de Atena:

Já que a coisa atingiu esse ponto escolho no país juízes de homicídio irrepreensíveis reverentes ao instituto juramentado que instituo para sempre. Vós, convocai testemunhas e indícios, instrumentos auxiliares da justiça. Selectos os melhores de meus cidadãos terei a decisão verdadeira desta causa, sem que injustos violem juramento (Ésquilo, 2004, p. 109)3.

Atena conduz o julgamento permitindo que não só as partes e as testemunhas manifestem-se, mas também que Apolo possa intervir a favor de seu protegido. Essas manifestações são narrativas acerca do que teria ocorrido, bem como dos motivos das ações adotadas. Dados os votos empatados, Atena decide a favor de Orestes (Ésquilo, 2004). Se, nesse instante, Orestes está livre e reintegrado a sua terra pátria, começa outro momento na tragédia: o jogo entre Atena e Eríneas para que estas aceitem o veredito e não amaldiçoem a cidade (Ésquilo, 2004). Esse jogo ocorrerá na forma de um convite para que elas permaneçam junto à deusa e não se sintam derrotadas pelo resultado. É, ao final, que as Eríneas, deusas vingadoras de longa memória, aceitam o convívio de Atena (Ésquilo, 2004) e assumem o nome de Eumênides, também denominadas as Veneráveis ou as Benevolentes.4 As cenas descritas mostram uma estreita relação nessa tragédia de Ésquilo entre a cena judicial, o testemunho e o resultado da (re)integração ou assimilação dos personagens à sociedade, como se depreende dos destinos de Orestes e das Eríneas/Eumênides.

Interessa-nos frisar também que é a partir do instituto criado por Atena que se instaura o tempo entre a ação e seu julgamento, intervalo no qual o passado é recomposto na forma de testemunhos. Antes, a vingança das Eríneas era o signo de uma memória que se colocava à margem do tempo, marcada por um passado que não se deixava interrogar e que não cessava de retornar, sempre o mesmo.

De certo modo, essa tragédia apresenta o dispositivo judicial como o que permite a integração, tal como assinalamos há pouco, daqueles que se situariam à parte do ordenamento simbólico vigente. Orestes, poluído, não estaria apto a retornar a sua terra e ao governo apenas com as purificações feitas por Apolo. Da mesma forma, as Eríneas, que representavam forças que se opunham até aos deuses olímpicos, estão, ao final, subordinadas a um novo regime de leis. Todavia, esse novo regime não está isolado das manifestações da violência e da vingança. Como nos mostra Seligmann-Silva (2005), a instituição do tribunal não significaria exatamente a superação da violência e da lógica da vingança. Faz-se necessário para a própria eficácia jurídica que a violência e a vingança subsistam. No entanto, Ost (1999) aponta-nos que, de certo modo, o regime de funcionamento do tribunal impõe a presença do tempo e, dessa forma, o adiamento da vingança feito pelas palavras dos testemunhos, promoveria novas possibilidades de desfecho, tal como a tragédia Eumênides atesta. São os ritos do tribunal que operam a possibilidade de transição entre duas posições de Orestes: de banido (homo sacer) a rei (sanctus), como bem observa Seligmann-Silva (2005).

Contudo, esse passado que se expressa no testemunho, poderia ser ele inteiramente recuperado na narrativa que o apresenta?


O testemunho e suas lacunas

A consideração precedente nos sugere que haveria formas distintas de definir o testemunho, segundo sua posição ante o que é testemunhado. Nessa perspectiva, Agamben nos lembra que há em latim três termos para definir o testemunho: (i) testis, que "indica a testemunha enquanto intervém como terceiro na disputa entre dois sujeitos" (Agamben, 2008, p. 150); (ii) superstes, que "é quem viveu até o fundo uma experiência, sobreviveu à mesma e pode, portanto, referi-la aos outros" (Agamben, 2008, p. 150); (iii) auctor, que "indica a testemunha enquanto o seu testemunho pressupõe sempre algo - fato, coisa ou palavra - que lhe preexiste, e cuja realidade e força devem ser convalidadas ou certificadas" (Agamben, 2008, p. 150). Além desse esclarecimento, Agamben acrescenta que, em grego, testemunha "é martis, mártir" (Agamben, 2008, p. 35).

Nota-se que todos os sentidos explorados por Agamben apresentam a noção de testemunho como associado à memória em algum grau. Se testis e superstes apelam para algo da ordem da experiência, evidencia-se que em cada um deles o modo como ela será atualizada revela-se marcada por algumas diferenças. Além disso, uma defasagem, que poderíamos entender como uma forma de expressão do tempo, impõe-se entre a experiência e o momento de sua atualização sob a forma de testemunho. Assim, evidencia-se que dessa atualização algo poderá não ser recuperado, que do evento a sua lembrança um resto ditará a impossibilidade de recobrimento de um pelo outro.

Podemos começar a entender essa impossibilidade a partir da correlação entre testemunho e evento, feita por Seligmann-Silva (2000). Em sua argumentação é enfatizado o uso que Lyotard faz do sublime, concluindo que o "sublime é tratado como pertencente ao campo do medo: medo da perda total do eu, da morte, do inconcebível" (Seligmann-Silva, 2000, p. 83). Veremos que essa idéia de uma 'perda total do eu' será um ponto importante deste trabalho, sobretudo na menção que faremos à dessubjetivação, tal como utilizada por Agamben. Todavia, nesse momento da argumentação de Seligmann-Silva, apresenta-se uma das características principais do testemun ho, qual seja, a de portar em si algo da ordem do irrepresentável (Seligmann-Silva, 2000, p. 83). Não é por outro motivo que ele irá explorar as questões associadas ao trauma, segundo a perspectiva psicanalítica, e aquelas relativas à Shoah. Ainda segundo Seligmann-Silva, o testemunho possui outra dupla característica, não só forma de esquecimento, "fuga para frente" (Seligmann-Silva, 2000, p. 90), mas também "libertação da cena traumática" (Seligmann-Silva, 2000, p. 90). Sem dúvida, essas características aparecem de modo nítido na história em quadrinhos Maus, a história de um sobrevivente, citada pelo autor (Seligmann-Silva, 2000). Nessa narrativa, que tem sua primeira parte denominada 'meu pai sangra história', assistimos ao testemunho de Vladek a seu filho, Art, e ao testemunho deste sobre a convivência com seu pai. As lacunas que deixavam imprecisas as lembranças do primeiro, também se apresentavam ao segundo sob a forma de questões, as quais se tornaram a matéria-prima do trabalho desenvolvido. Art recolhe o testemunho do seu pai e faz disso seu testemunho para nós, uma vez que Vladek, ao final, já não mais poderia fazê-lo (Spiegelman, 2005).

Se mantivermos em perspectiva o percurso feito até aqui, entenderemos que o testemunho apresenta-se sob um sentido jurídico e um sentido histórico, assim como pode revelar a sobrevivência ante um evento radical e, daí, a oportunidade que oferece para que questões associadas à representação e a seus limites sejam apreciadas (Seligmann-Silva, 2006).

É possível ler em Agamben os mesmos traços salientados por Seligmann-Silva acerca do testemunho. Não é por outro motivo que encontramos nele as afirmações: "(...) o testemunho traz uma lacuna" (Agamben, 2008, p. 42) ou "o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta" (Agamben, 2008, p. 43). Todavia, Agamben talvez acentue em seu estudo o que poderia ser entendido como uma aporia do testemunho: "(... ) no testemunho, há algo similar a uma impossibilidade de testemunhar" (Agamben, 2008, p. 43). Sem dúvida essas afirmativas estão em linha com os argumentos do livro O que resta de Auschwitz. Se ali o muçulmano seria a testemunha integral, a verdadeira testemunha (superstes), tratar-se-ia também, segundo o argumento apresentado, do testemunho impossível, uma vez que o muçulmano foi aquele que sucumbiu, aquele que viu a Górgona (Agamben, 2008), como escreve o autor. Mas o sobrevivente (testis), que na formulação de Agamben teria ficado aquém da experiência do muçulmano, também ele terá a sua frente uma dupla impossibilidade: a de mesmo assim testemunhar, falar 'em nome de' e, por isso mesmo, não poder dizer a própria lacuna (Agamben, 2008). Devemos esclarecer que 'muçulmano' foi o nome aplicado àqueles que quase não mais conseguiam resistir às condições impostas nos campos de concentração, aqueles que todos consideravam já mortos, embora descritivamente ainda vivos, aqueles que não mais conseguiam fazer valer um sopro de vontade ante a imensidão de desesperança cotidiana dos Lager.

Agamben desenvolve por algumas páginas considerações que integram a relação entre tempo, dessubjetivação e 'experiência vergonhosa', noções que estariam presentes em sua análise do testemunho. Por ora, basta que nos detenhamos nessa relação entre testemunho e dessubjetivação, a qual Agamben formula do seguinte modo:

O testemunho apresenta-se no caso como um processo que envolve pelo menos dois sujeitos: o primeiro é o sobrevivente, que pode falar, mas que não tem nada de interessante a dizer; e o segundo é quem 'viu a Górgona', quem 'tocou o fundo' e tem, por isso, muito a dizer, mas não pode falar. Qual dos dois dá testemunho. Quem é o sujeito do testemunho? (Agamben, 2008, p. 124).

Esse movimento de 'falar em nome de' que o testemunho estabelece, opera, ao mesmo tempo, uma equivocação sobre quem seria o sujeito do testemunho. Desse modo, o testemunho dado remeteria, grosso modo, a outro sujeito que não aquele que seria o seu enunciador. É isso que aparece na letra de Agamben como 'dessubjetivação'. E é exatamente esse aspecto que Agamben procura explorar ao máximo em seu texto:

[...] não existe titular do testemunho; (...) falar, dar testemunho significa entrar em um movimento vertiginoso, em que algo vai a pique, se dessubjetiva integralmente e emudece, e algo se subjetiviza e fala, sem ter - propriamente - nada a dizer ('falo de coisas [...] que eu mesmo não experimentei'). Algo no qual quem é sem palavra leva o falante a falar, e quem fala carrega em sua própria palavra a impossibilidade de falar, de modo que o mudo e o falante, o não-homem e o homem ingressam - no testemunho - em uma zona de indistinção na qual é impossível estabelecer a posição de sujeito, identificar a 'substância sonhada' do eu e, com ela, a verdadeira testemunha (Agamben, 2008, p. 124, grifo nosso).

Esse 'movimento vertiginoso' também assume em Agamben o paralelo com o uso de heterônimos na literatura, no qual reencontramos a equivocação assinalada na citação acima entre superstes/testis. Todavia, esse movimento tanto em um caso como no outro não é completo, algo resistiria a essas passagens. Ou seja, testis não pode ser a testemunha integral que é superstes. Contudo, seria exatamente esse resto, isso que sobra em cada movimento de subjetivação/dessubjetivação, que responderia propriamente pelo que deve ser testemunhado (Agamben, 2008). É essa coincidência impossível entre testis e superstes que responde, de fato, pelo lugar de testemunho (Agamben, 2008).

Nesse momento torna-se mais evidente o sentido de 'autor' atribuído ao testemunho, segundo Agamben. Esse sentido assinala a dualidade implicada no testemunho, impotência e potência de dizer que pressupõe não apenas algo que o antecede, mas também a possibilidade de atestar, convalidar, certificar, mesmo que o isso certificado seja um resto, um impossível de dizer (Agamben, 2008).

Antes de prosseguirmos, cabe assinalar que não pretendemos neste momento desdobrar exaustivamente o tema dessubjetivação, mantendo-nos estritamente próximos ao uso que Agamben faz dele em seu texto. Todavia, cabe registrar algumas referências nas quais esse tema está presente. Na psicanálise temos em Lacan o conceito de destituição subjetiva, formulado na Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l'École, também conhecida como Proposição sobre o Passe ou Proposição sobre a Transferência. Ainda na psicanálise, temos algumas indicações interessantes sobre a relação entre dessubjetivação e memória em Gaufey (1983) e Merlet (1990). Em Bataille (1987) encontramos também algumas referências, bem como, recentemente, em Murakami (2010) que constrói páginas muito sugestivas sobre o que seria a experiência de dessubjetivação na prática literária em comparação com a prática esportiva da corrida de rua.


A posteriori: do dito ao resto a dizer5

Parte do que extraímos do testemunho na seção anterior é evidenciado na psicanálise através de noções e conceitos tais como os de trauma, pulsão de morte, perlaboração e a posteriori [nachtraglich], por exemplo. Esse último nos ocupará neste momento. Seu uso está intrinsecamente ligado às questões sobre tempo e memória, evidenciando-se como um conceito relevante ao longo de toda obra freudiana e mesmo lacaniana (Chemama, 1995; Porge, 1994; Poulichet, 1996).

Basicamente, podemos dizer que para a psicanálise as impressões e traços mnêmicos (ou os significantes, para Lacan) não são portadores de seu próprio sentido (André, 1987; Julien, 1990), mas efetivamente dependem de arranjos associados a um tempo por vir ao de sua inscrição, sempre passíveis de novos movimentos, nos quais um sentido acaba por se estabelecer. Todavia, a memória poderia ser concebida apenas por um arranjo de traços?

É possível observar nas teorizações de Freud uma oposição interna no tocante à memória. Ela manifesta-se numa diferença de tratamento conferida ao tema no qual se nota, por um lado, a relevância dada à urgência do estabelecimento de uma verdade histórica, empiricamente certificada pelo viés da rememoração; e, por outro, a memória sendo apreciada numa perspectiva que a trata como arranjo de traços e construção (Assoun, 1983; Cabas, 1982; Laplanche & Pontalis, 1988). Nas Notas Sobre um Caso de Neurose Obsessiva, Freud faz um comentário sobre a questão da realidade das lembranças, argumentando que as lembranças da infância seriam o resultado do nachtraglich e das lembranças encobridoras (Freud, 1996a).

Assim, no pensamento freudiano encontramos afirmações acerca da veracidade das postulações da teoria da sedução (o pai teria seduzido a filha ou isso é uma fantasia?) e da cena primária (o filho flagrou os pais durante o coito ou isso é uma fantasia?). Mas, também encontramos formulações como as do Projeto e as da Carta 52, nas quais se evidenciam não apenas a impossibilidade de certificação acerca dessa veracidade, mas ainda um limite quanto ao qual a própria realidade falta enquanto esteio da lembrança, verdadeira lacuna na representação (Cain, 1982; Gondar, 1993).

Essa realidade que falta é uma constante nas formulações freudianas sobre o a posteriori. Nelas há considerações sobre um limite que pode ser lido como lacuna na psique (Freud, 1996), de outro modo também salientadas por autores pósfreudianos como, por exemplo, Lacan ou Zizek (1991, 1992, 1993). Na obra freudiana tanto o a posteriori como a memória situam-se numa relação ambígua na qual ambos circunscrevem um campo imagético associado ao ordenamento, à significação, na mesma medida em que não deixam de delimitar algo refratário a esse mesmo campo. No caso de Freud a lembrança responde tanto pela causa como pela possibilidade de cura (Freud, 1996b).

Em Lacan encontramos algo de análogo, na medida em que no seu grafo do desejo o point de capiton [ponto de estofo] indica certa parada, estabilização no que poderia ser um deslizamento sem fim da significação (Eidelsztein, 1993). Ao mesmo tempo, contudo, o grafo se constitui por outros elementos que não apenas os significantes, como, por exemplo, a voz e o gozo [jouissance]. Isso quer dizer que algo seria produzido no registro simbólico, sem contudo encontrar ali o seu lugar. É esse produto que poderíamos chamar, com Lacan, de resto, uma das denominações do objeto a em sua teoria (Conté, 1995). Quanto ao tema do resto como um dos nomes do real, lembramos aqui a importante indicação de Roudinesco sobre a presença velada do pensamento de Bataille nas teorizações de Lacan. Isso ocorreria, sobretudo, no que diz respeito às suas reflexões sobre o impossível (Bataille, 1989; Roudinesco, 1994).

Estamos salientando, portanto, que de nossa perspectiva a memória em Freud, quando analisada a partir do a posteriori, responde tanto por uma concatenação, como também pelo que em torno disso poderíamos chamar de lacunas da memória, ou impossibilidade de tradução mnêmica, e que é exposto de modo extremamente sutil quando Lacan nos pergunta: "O que será que pode ser a memória de algo que está tão apagado, uma memória de memória?" (Lacan, 1985, p. 162). Esse enunciado que fala da impossibilidade de recuperação de um traço do passado talvez seja um dos pontos cruciais com que estamos lidando. É essa impossibilidade que encontramos também no testemunho e no modo como a memória articula-se a ele.

Seja na destruição, ou no encontro absolutamente primeiro, trata-se sempre do quase impronunciável, ou melhor, do que se diz de modo indireto, nas bordas das ruínas, no balbucio da fantasia. Há como que a denúncia de uma relação na qual algo é necessariamente perdido, não passível de reapropriação, donde decorre a noção de trauma como um efeito retroativo da simbolização fracassada (Zizek, 1993).

Ainda tendo a psicanálise como referência, podemos dizer que Philippe Julien também insiste nessa questão, mas de outro modo. Ele nos faz a seguinte pergunta:

O processo analítico tem por alvo uma Bejahung completa, uma exaustão total no simbólico, de tal modo que nada apareça no real? É possível, se é verdadeiro que Freud reconheceu o urverdrangt, o recalcado irredútivel, impedindo que o todo possa se dizer? (Julien,1990, p. 96).

E continua:

A análise não tem por alvo uma exaustão da história do sujeito no simbólico. Em razão disso: o inconsciente freudiano não é redutível ao recalcado; se o fosse, como o recalcamento não é sem retorno do recalcado, uma totalização da história poderia ser realizada inteiramente na palavra nomeadora [... ] (Julien,1990, p. 174).

Nessas citações, podemos notar que ao falarmos de um limite para o testemunho deparamo-nos com o mesmo tipo de questão que é colocado para a psicanálise pelo tema do trauma ou pelo tema da relação entre o simbólico e o real, na perspectiva lacaniana. Nos dois campos, persistem as interrogações sobre o sujeito da ação e sobre o que é pronunciado por ele. Deve ser acrescentado que justamente o que não pode ser dito reveste-se de importância capital para analisarmos o que é transmitido no testemunho.


As ruínas, a história, o tempo

O movimento final deste ensaio deve ser em direção a Walter Benjamin. Se na seção anterior acompanhamos alguns ecos de questões relacionadas ao testemunho naquelas que circunscrevem o a posteriori, seguimos agora a indicação de que esse autor é a fonte para boa parte das obras teóricas que se dedicam ao tema do testemunho (Gagnebin, 1994; Nestrovky & Seligmann-Silva, 2000; Seligmann-Silva, 2005, 2006).

Sabemos que Benjamin era leitor de Freud e se interessava por sua noção de trauma. Benjamin, inclusive, teceu comentários acerca da indistinção semântica entre os conceitos de lembrança e memória na obra freudiana6 (Benjamin, 1995). Assim, torna-se claro que a psicanálise não lhe era um campo de saber alheio. A citação a seguir, que tem a obra de Benjamin como pano de fundo, colabora para que notemos como o testemunho encerra um jogo preciso entre lembrança e esquecimento, tal como o destacamos de Agamben e do a posteriori na psicanálise:

[... ] essa literatura [do testemunho] trabalha no campo mais denso da simultânea necessidade do lembrar-se e da sua impossibilidade; para ela não há uma mera oposição entre memória e esquecimento (Seligmann-Silva, 2006b, p. 388).

De certa forma, essa característica foi um dos traços salientados em nossas considerações sobre Agamben, em particular no que se refere à associação entre o resto, como produto dos movimentos de subjetivação/dessubjetivação, e o lugar do testemunho. Segundo Seligmann-Silva, a força do trabalho da memória em Benjamin advém da destruição dos nexos que ela promove, bem como da reinscrição do passado no presente, realizada no mesmo movimento (Seligmann-Silva, 2006b).

Essa destruição dos nexos e a concomitante reinscrição do passado no presente, que caracteriza o trabalho de memória em Benjamin manifesta-se, por exemplo, no conceito de cesura, que é a valorização de uma interrupção pontual da história, sua descontinuidade (Seligmann-Silva, 2006b). Como especifica Gagnebin, a cesura pode ser pensada como

[...] uma 'interrupção anti-ritmica' (Gegenrhythmisch Unterbrechung) que resiste ao fluxo das representações para deixar aparecer 'a representação mesma', isto é, não só o encadeamento das imagens, mas também o próprio trabalho do pensamento imaginativo (Gagnebin, 1994, p. 118).

Ao acentuar a descontinuidade, as concepções de história, do tempo e da memória em Benjamin opõem-se ao que poderia ser uma narrativa do progresso ou do sucesso. Talvez possamos entender que no corte da história que a cesura ressalta revela-se também a ruína (ou a catástrofe) como uma representação do tempo. A imagem da ruína sugere o tempo que passa e, simultaneamente, a sua permanência; a lembrança que persiste e, também, o esquecimento. É nesse contexto que Gagnebin nos lembra que a interpretação em Benjamin não é apenas uma produção incessante de sentido, apontando também para "as ruínas de um edifício do qual não sabemos se existiu, um dia, inteiro (...)" (Gagnebin, 1994, p. 54).

Esse olhar lançado às ruínas da produção de sentido, faz ressoar o que destacamos em nossa leitura do a posteriori freudiano. Ali também conjugava-se, em um mesmo movimento, a produção de sentido e o seu resto, que assinalaria uma impossibilidade de tradução integral ou a impossibilidade de reintegração total do passado no presente. Nessa chave, Seligmann-Silva nos aponta a pregnância da imagem de soleiras nos escritos de Benjamin: portas, portões, passagens (Seligmann-Silva, 2006b). Esse limiar, que caracterizaria o próprio eu, também seria um modo de colocar lado a lado, ao mesmo tempo, sentido e ruína, passagem entre o que foi e o que será e o que resta dessa transição.

Entende-se que é essa impossibilidade de uma história acabada e completa, sem ruínas, que tornaria a rememoração, para Benjamin, uma atividade redentora, na medida em que faria do sofrimento das vítimas do passado algo inacabado, passível de um novo movimento, de sua salvação. É a partir dessa interpretação que se entenderia a importância da teologia para Benjamin, a qual conjugaria a rememoração [Eingedenken] e a redenção messiânica [Erlösung] (Löwy, 2007). Assim, herdamos do passado a possibilidade de resgatar os vencidos da história, constituindo, por essa via, 'a comunidade dos sem comunidade', a comunidade que não se pauta em nenhum pressuposto identitário, lembrança que não nos faz pertencer a um mesmo grupo (Agamben, 2005). Esse poder de retroação está destacado nas teses sobre o conceito de história, por Löwy, particularmente no que se refere à tese IV7 (Löwy, 2007).

A interpretação que Löwy e Gagnebin imprimem às teses não é a da possibilidade de restauração do passado tal qual ele foi. Um e outro comentador sublinham que em Benjamin a apocatásta-se - assim como se revela no conjunto das teses, em particular a VI8 - assinala um inacabamento constitutivo da história e, por conseguinte, a abertura para o futuro instaurado no momento da redenção. Esclarecemos que a apocatástase é um conceito teológico utilizado por Benjamin e significa a restauração de todos e de todas as coisas no dia do juízo final. De fato, esse conceito aponta para um tempo pós-apocalipse, daí a associação feita com 'a abertura para o futuro'. Não é nosso objetivo avançar sobre as querelas teológicas associadas a esse conceito, mas tão somente apontar de modo breve o seu lugar em Benjamin no que se refere às questões que aqui abordamos.

É possível que essa abertura para o futuro, esse tempo pós-apocalipse, esse tempo inacabado, sejam nomes que o tempo-de-agora [Jetztzeit] assume nas Teses. Nota-se que a partir da tese XIV9 os enunciados se sucedem em torno dessa noção. Nessa tese nos deparamos com a 'citação' e com o 'salto do tigre em direção ao passado', noções nas quais queremos ler a possibilidade de separação do enunciado de seu contexto 'original', como quando é dito que "Ela (a Revolução) citava a antiga Roma exatamente como a moda cita um traje do passado". Não poderíamos reconhecer aqui a ação do testemunho e a ação da memória, tais como as apresentamos neste trabalho? Se já acompanhamos em Benjamin que a retroação não tem por objetivo buscar um passado tal qual tenha sido e em Agamben a impossibilidade da testemunha falar por si, seria possível afirmar que o testemunho expressa modulações da memória que a um só tempo destacam o papel da alteridade e os limites do eu em sua elaboração. 'Salvar [a herança]', 'citar', são verbos que aparecem nas teses (Löwy, 2007, p. 120) e indicam movimentos de retroação que instauram sentidos que antes não existiam, ao mesmo tempo em que assinalam que algo permaneceria como irrecuperável no passado, um passado impossível de ser integralizado no presente: "é preciso tecer na trama do presente os fios da tradição que se perderam durante séculos" (Löwy, 2007, p. 122)10. Outra vez, desenha-se nessa citação a relação que destacamos neste capítulo entre o testemunho e o a posteriori, no qual o resto e as ruínas seriam as constantes no passado (ir)recuperável.


Conclusão

O pensamento de Benjamin acerca da história e da memória, ao reafirmar que o passado não está terminado e que ao futuro caberia o resgate das aspirações não realizadas, encontra, neste trabalho, as considerações tecidas sobre o testemunho e sobre o a posteriori. Depreende-se das proposições de Benjamin, das questões associadas ao testemunho e do a posteriori a ordenação do passado, a constituição de uma narrativa que assume a forma de memória, mas também de um resto que impediria o recobrimento integral do passado pelo futuro. Da mesma forma, esse resto poderia ser notado na impossibilidade de manutenção do status quo ante que se depreende da tragédia de Ésquilo. Ali, Orestes não será mais exatamente aquele de antes da experiência que culminou no julgamento feito no templo de Atena. As Eríneas passaram a assumir um novo nome. É no quadro que delimitamos inicialmente com Ésquilo, que associamos o testemunho à experiência do movimento de subjetivação/dessubjetivação apontada por Agamben.

Assim, Agamben permite-nos observar que se o testemunho integral é impossível, restaria apenas a alternativa de ocupar esse lugar de modo vicário, assinalando os limites de haver uma pronúncia em nome próprio. Nessa relação entre possível/impossível e outro/próprio repousaria uma interrogação sobre o estatuto da memória na experiência do testemunho.

Dessa forma, que o testemunho atualize simultaneamente uma narrativa sobre o passado e o limite dessa narrativa, é um modo de nos depararmos com o inacabamento da história de que fala Benjamin. Através do testemunho, manifestase o tempo a que Benjamin se referia, no qual, a cada segundo apresenta-se "a porta estreita pela qual podia entrar o Messias" (Benjamin, 1994, p. 232) outro modo de retomar a idéia de redenção e de resgate do passado. As Teses apontam que os modos de retroação, como o tempo-de-agora, implicam um resgate que é a possibilidade de refazer a história, indo ao encontro justamente do que teria sido um fracasso, do que teria falhado, das ruínas. A falha, aqui, é exatamente a impossibilidade de coincidência entre testis e superstes, bem como entre o discurso e a lembrança que aí encontram expressão.

Que ao falarmos de testemunho entendamos um movimento de subjetivação que permita propriamente um jogo de enunciados, isso não deve elidir sua contrapartida: a presença da alteridade que constitui a enunciação cujo sentido escapa àquele que vicariamente ocupa o lugar de testemunha. Nesse lugar, toda memória será desde sempre ruína, resto.

O percurso realizado neste ensaio, contudo, aponta para a sinergia dos autores estudados quanto ao tema do testemunho, em particular no que tange à memória. No momento em que o passado recente do Brasil começa a ser posto em revista, situar o testemunho ante as coordenadas relativas à memória e à ética impõe-se como caminho necessário. Talvez desse quadro possam advir novos sentidos para o que repousa quase esquecido nas ruínas da memória.


1 Para ler o discurso não pronunciado de Vera Paiva: http://interfacepsijus.posterous.com/discurso-de-vera-paiva-que-nao-pode-ser-feito

2 Lei 6683/79.

3 Ainda sobre a instituição do Areópago, ver também Ésquilo, 2004, p. 123.

4 Para uma versão atual e irônica dessa tragédia, embora não apresentada como tal, ver o romance As Benevolentes (Littel, 2007).

5 A base desta seção foi desenvolvida de forma ampliada em Coimbra, 1997.

6 Lacan, por seu turno, ao menos uma vez faz a distinção entre rememoração e memória. Rememoração diria respeito à história, "agrupamento e sucessão de acontecimentos simbolicamente definidos, puro símbolo a engendrar por sua vez uma sucessão" (Lacan, 1985, p. 234); memória não seria mais do que uma característica do ser vivo, "propriedade definível da substância viva" (Lacan, 1985, p. 234).

7 "A luta de classes, que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não há coisas finas e espirituais. Apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de outra maneira que a da representação de uma presa que toca ao vencedor. Elas estão vivas nessa luta como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade, e elas retroagem ao fundo longínquo do tempo. Elas porão incessantemente em questão cada vitória que couber aos dominantes. Como flores que voltam suas corolas para o sol, assim o que foi aspira, por um secreto heliotropismo, a voltar-se para o sol que está a se levantar no céu da história. Essa mudança, a mais imperceptível de todas, o materialista histórico tem que saber discernir" (Benjamin apud Löwy, 2007, p. 58, grifo nosso).

8 "Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjulgá-la. Pois o Messias não vem somente como redentor; ele vem como vencedor do Anticristo. O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado peal convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer" (Benjamin apud Löwy, 2007, p. 65).

9 "A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit). Assim, a antiga Roma era, para Robespierre, um passado carregado de tempo-de-agora, passado que ele fazia explodir do contínuo da história. A Revolução Francesa compreendia-se como uma Roma retornada. Ela citava a antiga Roma exatamente como a moda cita um traje do passado. A moda tem um faro para o atual, onde quer que este se mova no emaranhado do outrora. Ela é o salto do tigre em direção ao passado. Só que ele ocorre numa arena em que a classe dominante comanda. O mesmo salto sob o céu livre da história é o salto dialético, que Marx compreendeu como sendo a revolução" (Benjamin apud Löwy, 2007, p. 119, grifo nosso).

10 A tese XVIII aproxima o tempo-de-agora da abreviação [Abbreviatur, historischerZeitraffer], "tempo messiânico que 'resume' toda a história da humanidade (...)" (LÖWY, 2007, p. 138). Eis a tese completa: "'Os míseros cinqüenta mil anos do homo sapiens', diz um biólogo recente, 'representam, em relação à história da vida orgânica sobre a terra, algo como dois segundos ao fim de um dia de vinte e quatro horas. Inscrita nessa escala, a história inteira da humanidade civilizada perfaz um quinto do último segundo da última hora'. O tempo-de-agora que, enquanto modelo do tempo messiânico, resume a história de toda a humanidade numa prodigiosa abreviação, coincide, exatamente, com a figura que a história da humanidade ocupa no universo" (Benjamin apud Löwy, 2007, p. 138).



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** Correspondência: José César Coimbra, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ - Brasil). Correio electrónico: arcoim@yahoo.com.br