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Revista de la Facultad de Medicina

Print version ISSN 0120-0011

rev.fac.med. vol.63  supl.1 Bogotá Sept. 2015

https://doi.org/10.15446/revfacmed.v63n3sup.50122 

DOI: http://dx.doi.org/10.15446/revfacmed.v63n3sup.50122

OPINIONES, DEBATES Y CONTROVERSIAS

Deficiência Intelectual, Gênero e Sexualidade: algumas notas etnográficas em uma APAE do interior do Estado de São Paulo-Brasil

Intellectual Disability, Gender and Sexuality: some ethnographic notes on a APAE in the state of São Paulo-Brazil

Julian Simões1

1 Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - São Paulo - Brasil.

Correspondencia: Julian Simões, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, CEP 13083-896, Campinas. Telefone: +55 15 997143763. São Paulo. Brasil. Correio eletrônico: julian_sociais@yahoo.com.br.

Recibido: 13/04/2015 Aceptado: 08/05/2015


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a concepção de deficiência e a implicação dessa concepção em como se percebe a sexualidade dos alunos matriculados em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de uma cidade do interior do Estado de SP-BR. Para os professores da APAE, deficiência intelectual é sinônimo de falta e desvantagem. Assim sendo, a sexualidade dos alunos é concebida como descontrolada e por isso perigosa. Para os alunos da Associação, deficiência é uma das múltiplas configurações do existir humano. Dessa forma, a sexualidade é compreendida como uma maneira de amenizar sua condição de pessoa com deficiência. Portanto, privilegio analisar como ambas as noções se regulam e como essas levam ao limite as normatividades sexuais que tensionadas se reconfiguram.

Palavras-Chave: Deficiência Intelectual; Gênero; Sexualidade (DeCS).


Simões J. Deficiência Intelectual, Gênero e Sexualidade: algumas notas etnográficas em uma APAE do interior do Estado de São Paulo-Brasil. Rev. Fac. Med. 2015;63:S143-8. Portuguese. doi: http://dx.doi.org/10.15446/revfacmed.v63n3sup.50122.


Summary

This article aims to analyze the concept of disability and the implication on how to apprehend the sexuality of students in an Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) of a city in the state of SP–BR. For APAE's teachers, intellectual disability is a synonym of lack and handicap. Therefore, the student's sexuality is conceived as uncontrolled and dangerous. For Association's students, disability is one of multiple configurations of human existence. Thus, sexuality is understood as a way to ease their disabled condition. Therefore, I privileged the analysis of how both notions are regulated and how they lead to limit sexual regulations stressing on their reshaping (of the regulations).

Keywords: Intellectual Disability; Gender; Sexuality (MeSH).


Simões J. [Intellectual Disability, Gender and Sexuality: some ethnographic notes on a APAE in the state of São Paulo-Brazil]. Rev. Fac. Med. 2015;63:S143-8. Portuguese. doi: http://dx.doi.org/10.15446/revfacmed.v63n3sup.50122.


Considerações Iniciais

Nota Informativa

O equivalente em português ao conceito disability em inglês e ao conceito discapacidad em espanhol é deficiência (1-2). Dessa maneira, é importante destacar que a perspectiva adotada toma deficiência como um constructo sociocultural, político, econômico, ético e moral. Ponto de vista esse sustentado pela perspectiva do que ficou conhecido como o modelo social da deficiência (3-4).

Sobre os métodos de pesquisa

Um dos objetivos da pesquisa antropológica é apreender e refletir como culturas, sociedades e grupos sociais representam, organizam e classificam suas experiências. Nesse sentido, segundo Gilberto Velho (5), a tarefa é captar esses constructos socioculturais a fim de explicitar os elementos constituintes das práticas sociais analisadas. Para elaborar uma análise adensada sobre o fenômeno social observado, Cardoso de Oliveira (6) afirma ser fundante a composição de um trabalho etnográfico edificado na construção antropológica do olhar, ouvir, e escrever. Dessa maneira, seguindo as indicações analíticas de autores clássicos da Antropologia Social (7-8), realizei uma pesquisa etnográfica durante o primeiro semestre de 2012 em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de uma cidade do interior do Estado de São Paulo–BR. A investigação adotou a observação participante como metodologia (8).

A APAE é a maior instituição do Brasil especializada no atendimento de pessoas com Deficiência Intelectual e/ou Múltipla. Segundo a FENAPAE (9), a história da associação de pais e amigos começa no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1954 quando é fundada a primeira das inúmeras filiais. Atualmente está presente em mais de dois mil municípios do território brasileiro e atende a mais de 250.000 pessoas com deficiência. A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Vila de Santa Rita (todos os nomes foram alterados para preservar a identidade dos interlocutores da pesquisa) foi fundada em 1999 e atende 42 pessoas.

Durante os meses em que realizei a pesquisa, acompanhei as atividades desenvolvidas na sala de aula composta por nove alunos (quatro homens e cinco mulheres) com idade entre 17 e 54 anos de idade. Acompanhei também os atendimentos oferecidos pela psicóloga, pela fonoaudióloga e pela terapeuta ocupacional. Vale indicar que era responsabilidade da psicóloga realizar os encontros coletivos de Educação Sexual. Foram realizados quatro encontros e participavam apenas as alunas e alunos autorizados pelos pais e/ou responsáveis. Ainda realizei um levantamento documental e uma análise crítica dos prontuários de atendimento dos alunos matriculados na Associação.

Introdução à Problemática de Pesquisa

Peço licença ao leitor para transcrever duas citações. O procedimento pode parecer um tanto exagerado, todavia me parece bastante fecundo para iniciar esta breve apresentação da pesquisa que desenvolvi no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (10). A primeira citação é: "Um estatuto voltado a mais um grupo social, desta vez para as pessoas com deficiência, está em fase final de elaboração no Congresso e deve provocar polêmica em vários setores caso todos os pontos previstos sejam mantidos. O documento prevê alterações tanto no Código Civil, dando direito a deficientes intelectuais a se casarem sem ter autorização dos pais ou da Justiça, quanto na Lei de Cotas, com a inclusão de pequenas e médias empresas na obrigação de empregar pelo menos um deficiente" (11).

A segunda citação é: "Do namoro ao casamento de Arthur Dini Grassi Netto, 27, com Ilka Farrath Fornaziero, 35, passaram-se três anos. Um ano todo foi para que vencessem impedimentos legais. Como ambos têm síndrome de Down, o Código Civil os restringe, por conta própria, de assinar o documento de casamento. Logo, tiveram de fazer, com apoio das famílias, uma maratona de consultas jurídicas e enfrentar negativas de cartórios. Agora, o Estatuto da Pessoa com Deficiência explicita que deficientes intelectuais ou mentais vão passar a ter o direito ao casamento, sem restrições, inclusive aqueles interditados, sob curatela. Uma vez que houver manifestação do casal, em idade legal, pelo desejo de viverem juntos, não será mais preciso ordem da Justiça ou autorização dos responsáveis para o ato. O documento prevê ainda o direito a votar e ser votado, à saúde sexual e à reprodutiva. Apenas restrições sobre patrimônio foram mantidas" (12).

Pouco mais de um ano de finalizada a etnografia que realizei Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Vila de Santa Rita, são publicadas em um jornal de grande circulação nacional duas notícias que envolviam pessoas com deficiência. Temas como casamento, deficiência, deficiência intelectual e sexualidade são abordados pelos textos. Dessa maneira, o que antes esboçava os interesses de pesquisas acadêmicas (2-3) passa, agora, a evidenciar a urgência em se debater questões sobre políticas de gestão de vidas.

Em outra oportunidade discuti sobre a constituição e disputa conceitual da noção de deficiência (13). Para o momento, é suficiente perceber que o tenso debate (4-14) entre o que ficou conhecido por modelo médico da deficiência e o que ficou conhecido por modelo social da deficiência, explicita um emaranhado e complexo jogo de poder. Jogo esse que envolve, entre outros fatores, a disputa de saberes científicos, sua eficiência e sua aplicabilidade na construção de políticas de garantia de direitos. De um lado tem-se a proposição do paradigma médico que percebe a deficiência como a expressão de uma lesão, ou várias, que impõe restrições à participação social de uma pessoa que a possua.

O suposto por de trás dessa formulação assume a deficiência exclusivamente como falta, seja ela falta de membros, de inteligência, de visão, de audição, ou uma associação de várias faltas. A deficiência, então, é compreendida como um atributo biológico que vem a tona através de uma lesão corporal (motora, sensorial ou intelectual), ou qualquer anormalidade do corpo biológico impossibilitadora da participação deste indivíduo na vida social. Em suma, a deficiência é uma consequência natural da lesão em um corpo. Nesse sentido, esse corpo é tratado como um todo lesionado em que a lesão corporal se tornava uma marca constitutiva primordial. Como resultado emergem procedimentos terapêuticos e práticas médicas que tem como centro de sua abordagem um corpo exclusivamente biológico sujeito a conserto.

Do outro lado do debate tem-se a perspectiva do modelo social que se preocupava em distinguir e apontar quais aspectos sociais oprimem as pessoas com deficiência. O propósito visa denunciar a estrutura social que transforma um corpo lesionado em um corpo desabilitado, desvantajoso, incapacitado, enfim, em um corpo deficiente. Longe de ignorarem a existência da lesão materializada nos corpos, os teóricos do modelo social operam uma inversão na lógica de causalidade desse processo materializador. Se para o modelo médico a deficiência resulta da lesão, para o modelo social a deficiência advém de arranjos sociais opressivos a todas as pessoas com algum tipo de lesão. "Para o modelo médico, lesão levava a deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência" (15).

Dessa disputa conceitual, aqui muito brevemente tratada, vale salientar o inegável papel do modelo social da deficiência na luta pelos avanços e conquistas de direitos civis, políticos e mais recentemente sexuais e reprodutivos (16-17) para as pessoas com deficiência. Haja vista todo o esforço do campo da saúde em construir um novo documento classificatório–Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (18) —capaz de abarcar o corpo biológico, mas também os contextos sociais em que estes estão inseridos—.

De qualquer maneira, essas conquistas não minimizam o fato de que reforçando o caráter socialmente construído da deficiência em contraposição ao corpo biológico lesionado, o modelo social acaba por reforçar a dicotomia entre natureza (lesão) e cultura (deficiência). Influenciado pelo argumento de Butler (19) ao discutir gênero, minha investigação durante toda a pesquisa realizada no mestrado, deslocou-se do "como a deficiência é constituída como uma interpretação da lesão", para "através de quais normas regulatórias é a própria lesão materializada?" (19). Buscando explodir esse dualismo lesão/deficiência sustentados nas disputas entre os modelos, minha abordagem seguiu algumas das normas regulatórias do corpo através do entrelaçamento entre sexualidade, gênero e deficiência intelectual.

Deficiência intelectual, gênero e sexualidade na APAE de Vila de Santa Rita

Esclarecidos alguns pontos sobre o escopo analítico, posso apresentar, ainda que brevemente, alguns dos resultados da investigação. De início, saltou aos olhos o fato de que a noção de deficiência intelectual formulada pelos interlocutores da pesquisa implicava diretamente na concepção de sexualidade que se acreditava ser a experimentada pelos alunos que frequentavam a APAE de Vila de Santa Rita. Ou seja, reconhecer ou não a sexualidade do aluno estava intimamente ligada ao modo como a deficiência intelectual era apreendida. Por isso, meu esforço investigativo foi perceber quais os discursos estavam sendo movimentados pelos diferentes agentes dessa relação que se formava na instituição. Preocupei-me também em compreender como esses discursos materializavam práticas regulatórias na vida desses alunos. Por uma escolha didática, separei em dois eixos analíticos a investigação.

O primeiro eixo analisou como os professores e profissionais compreendem a deficiência e a sexualidade dos alunos. Pensada, sobretudo como falta, incapacidade e anormalidade, o aluno com deficiência intelectual passa a ser visto como corpo anômalo. Isso quer dizer que todas as esferas da vida dessas pessoas também são vistas como algo "anormal". Dessa maneira, qualquer tentativa de estabelecimento de diálogo, troca de experiências e principalmente a sexualidade desses alunos é vista como altamente desregulada. Por tal fato, os professores organizam e classificam a sexualidade dos alunos da Associação por um referencial constitutivamente anormal e por isso transbordante de um "poder perigoso" (20).

"Mais desenvolvidos intelectualmente" ou "menos desenvolvidos intelectualmente" são a base pelas quais as apreensões diferenciadas da sexualidade dos alunos são construídas. Se quanto "menos desenvolvidos intelectualmente", mais descontrolados ou desabilitados sexualmente são os alunos —as categorias de hipersexualizados e assexuados respectivamente—, quanto "mais desenvolvidos intelectualmente" mais a necessidade de reiterar a normatividade do socialmente hegemônico (21). Há ainda um grupo de alunos —os potencialmente mais sexualizados— que se localiza entre as extremidades das "pulsões sexuais" (22).

Isso não quer dizer que os "mais desenvolvidos intelectualmente" não sejam considerados como descontrolados sexualmente. Muito pelo contrário, por sua própria condição de pessoa com deficiência intelectual não há possibilidade de existência fora do descontrole. O fato é que no último caso a capacidade intelectual, por assim dizer mais apurada, é condição essencial de diferenciação: ela indica, aos professores e profissionais da Associação, uma possibilidade de melhor compreensão das normatividades sexuais que precisam ser reiteradas constantemente.

Nos encontros de educação sexual ficou bastante claro como operavam as normas regulatórias sobre o sexo. Tentando elucidar o quadro de condutas possíveis e permissíveis, a psicóloga operava uma distinção que colocava como fora da norma a "sexualidade deficiente" dos alunos. Contudo, durante esse processo de instituição de normalidades e anormalidades sobre o sexo, os encontros de educação sexual também gestavam a "sexualidade não deficiente" dos professores e profissionais. Assim, fica bastante marcado que o "fora" e o "dentro" da norma sexual enunciado nos encontros e no dia a dia da associação é uma ficção discursiva. Como bem afirma Butler (19) esse "fora" é elemento fundante para construir um "dentro" da norma. Assim sendo, "dentro" e "fora", "normal" e "anormal", "deficiente" e "não deficiente" são elementos que só se criam, se recriam e se transformam em relação aos seus opostos.

Isso me levou a pensar que nos encontros de educação sexual não se dizia apenas sobre como regular as tais "sexualidades deficientes" dos alunos, mas também como se devia regular a "sexualidade não deficiente" da psicóloga, dos professores e dos demais profissionais da instituição. Como bem afirma Foucault (23), as sexualidades periféricas, ou seja, a sexualidade das crianças, dos loucos, dos criminosos, acrescentaria aqui a das pessoas com deficiência, são elementos constitutivos para se pensar a sexualidade das pessoas ditas normais. Diz ele "Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas, têm agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são. Sem dúvida não são menos condenadas. Mas são escutadas; e se novamente for interrogada, a sexualidade regular o será a partir dessas sexualidades periféricas, através de um movimento de refluxo" (23).

O segundo eixo analítico investigou como os alunos matriculados na Associação compreendiam a sua própria condição de pessoa com deficiência intelectual e o que isso implicava em suas a sexualidades. Os alunos não se baseavam necessariamente em uma distinção ligada ao desenvolvimento intelectual. "Pessoa com deficiência intelectual" também não era um termo utilizado pelos alunos para se auto referirem. Essa condição de pessoa com deficiência era assumida pela chave da diferença e, em termos práticos organizava quase todas as esferas da vida desses. Dessa maneira, a condição singular enunciada pelos alunos indica uma possível diferença de habilidades, uma possível diferença de capacidade, uma possível diferença de aprendizagem ou mesmo uma possível diferença ocasionada por algum problema de saúde.

É bem verdade que nem sempre essa singularidade é pensada como um valor positivado. Em certas ocasiões "ser diferente" é assumido como desvantagem, tornando-se um valor marcadamente negativo. Por tanto, seja incorporando a diferença como valor positivado que indica a pluralidade do existir humano, seja incorporando a diferença como valor negativado explicitado no afastamento da normatividade operante, a condição de singularidade elaborada pelos alunos sinaliza uma especificidade histórica, política e cultural experienciada. Deste modo, como bem afirma Brah (24), essa diferença enunciada explicita as normas regulatórias através das quais pessoas e/ou grupos são marcados e posicionados socialmente.

Como não podia deixar de ser, essa singularidade vivenciada pelos alunos não escapa a construção de outras distinções. Observei duas maneiras pelas quais eles diferenciam-se uns dos outros. A primeira se dá pela capacidade de decidir por si. Essa capacidade diz respeito às atividades mais básicas da vida diária até as mais complexas como trabalhar e prosseguir os estudos. A segunda se dá através de um relacionamento ou possível relacionamento afetivo e sexual via namoro e casamento. A meu ver é exatamente a partir dessa segunda maneira de distinção que se pode perceber com mais clareza a regulação operada pelas normatividades. Afirmo isso por duas razões: 1) através do namoro e casamento explicitam-se quais fronteiras sociais atuam distinguindo pessoas com deficiência intelectual de pessoas sem deficiência intelectual; 2) traz à tona as normatividades sexuais compartilhadas pelos professores, profissionais, alunos, pais e/ou responsáveis. Por isso, desestabiliza as noções forçosamente materializadas e cristalizadas nas figuras dos assexuados, hipersexualizados e potencialmente mais sexualizados enunciada pelos professores.

Através do entrelaçamento entre "ser diferente" e a performatividade de gênero, constitui-se um complexo quadro que permite a criação de critérios de elegibilidade para o estabelecimento de vínculos afetivos e/ou sexuais através de possíveis namoros e casamentos. Isso não necessariamente precisa ser um ato concreto em si, afinal apenas a enunciação discursiva implica em uma sinalização positivada de mudança de status dos alunos. Contudo, era esperado que a normatividade de gênero fosse interiorizada a fim de delinear homens e mulheres de prestígio. Tal internalização é fundamental para a transformação do status de criança para o de adulto através de uma idade social completamente desvinculada da idade cronológica.

É a aquisição de responsabilidades advindas do namoro, mas preferencialmente do casamento o ponto de inflexão perseguido pelos alunos. A possibilidade criada por esses vínculos afetivos e sexuais expande socialmente o campo de ação rompendo assim as limitações até então por eles vivenciadas. Ajuda também na desconstrução de uma noção de corpo anormal, uma vez que, como no caso de alguns deles, a efetivação de uma relação sexual indica uma consciência sobre próprio corpo. Consciência essa que ultrapassa a dimensão anormal entendida como a condição inerente de um corpo construído como deficiente intelectual. Dessa maneira, na perspectiva dos alunos a busca pela satisfação de seus desejos e a experimentação dos prazeres afetivos e sexuais advindos da relação ou possível relação com um parceiro, longe de serem poderes perigosos, são atenuantes de sua condição de pessoas com deficiência intelectual.

Considerações Finais

Ao cruzarmos as duas percepções descritas sobre deficiência intelectual e sexualidade, fica evidente a tensa relação entre uma "sexualidade deficiente" apreendida pelos professores e uma sexualidade como forma de satisfação de desejos afetivos e/ou sexuais como movimenta pelos alunos. Em ambos os casos os corpos deficientes sexualizados são tomados como poderes capazes de tencionar um conjunto de normas sexuais. Gregori (25) propõe chamar essa relação entre prazer e perigo de limites da sexualidade. "Tais limites indicam, de fato, um processo social bastante complexo relativo à ampliação ou restrição de normatividades sexuais, em particular, sobre a criação de âmbitos de maior tolerância e os novos limites que vão sendo impostos, bem como situações em que aquilo que é considerado abusivo passa a ser qualificado como normal. A maior contribuição da antropologia tem sido a de apontar que essa fronteira é montada, considerando a multiplicidade de sociedades e de culturas, por hierarquias, mas também pela negociação de sentidos e significados que resultam na expansão, restrição ou deslocamento das práticas sexuais concebidas como aceitáveis ou 'normais' e aquelas que são tomadas como objeto de perseguição, discriminação, cuidados médicos ou punição criminal" (25).

Se para os professores e profissionais da APAE deficiência intelectual é sinônimo de falta, desvantagem e incapacidade, para os alunos da Associação de Vila de Santa Rita deficiência intelectual é uma das múltiplas configurações do existir humano. Se apoiados por sua noção de deficiência os professores assumem a sexualidade dos alunos como descontrolada e por isso perigosa, os próprios alunos assumem a sexualidade como uma maneira de amenizar sua diferença e, sobretudo, como um prazer que nada tem de anormal.

Em minha análise privilegiei reconstruir os caminhos pelos quais deficiência intelectual e sexualidade são circunstancialmente estabilizada pela reiteração e repetição de convenções que são visibilizadas e ocultadas na medida em que esse processo repetitivo se desenvolve19. Minha preocupação foi perceber como, no contexto da APAE de Vila de Santa Rita, deficiência intelectual regula a sexualidade, como a sexualidade regula a deficiência intelectual e como essas levam ao limite as normatividades que tensionadas se reconfiguram. Assim é possível pensar em formas de despatologização tanto da deficiência intelectual como da sexualidade das pessoas com e sem deficiência.

Conflitos de interesses

Nenhum declarado pelo autor.

Financiamento

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq Brasil.

Agradecimentos

A minha orientadora Professora Doutora Maria Filomena Gregori e as Professoras Doutoras Guita Grin Debert (UNICAMP) e Heloisa Buarque de Almeida (USP) membros da banca de defesa.


Referências

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