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Ideas y Valores

Print version ISSN 0120-0062

Ideas y Valores vol.59 no.144 Bogotá Sept./Dec. 2010

 

 RAWLS: O PROBLEMA DA AUTONOMIA E O COERENTISMO

Rawls: The Problem of Autonomy and Coherentism

 

ELNORA GONDIM
Universidade Federal de Piauí (ufpi) - Brasil
elnoragondim@yahoo.com.br

Artículo recibido: 30 de septiembre de 2009; aceptado: 1 de diciembre de 2009.


RESUMO

A mudança da idéia de autonomia na justiça como eqüidade altera o conjunto da obra de Rawls. Por exemplo, em Uma Teoria da Justiça é adotado um sentido de autonomia do tipo kantiano; em O Liberalismo Político a autonomia se estende ao campo do político.

Palavras-chave: J. Rawls, autonomia, coerentismo.


RESUMEN

La transformación de la idea de autonomía en la de justicia como equidad modifica la obra de Rawls en conjunto. Así, en Una teoría de la justicia se adopta un sentido de autonomía de tipo kantiano; en El liberalismo político, la autonomía se extiende al ámbito de lo político.

Palabras clave: J. Rawls, autonomía, coherentismo.


ABSTRACT

The transformation of the idea of autonomy into that of justice as equality modifies the work of Rawls taken as a whole. Thus, while in the Theory of Justice, a Kantiantype of autonomy is adopted, in Political Liberalism, autonomy is extended to the sphere of the political.

Key words: J. Rawls, autonomy, coherentism.


Introdução

Pode-se, plausivelmente, afirmar que a idéia de autonomia, utilizada por John Rawls, teve algumas modificações e expansões, alterando, desta forma, o significado do conjunto da obra desse citado autor.

Neste presente artigo temos como objetivo prioritário mostrar como a utilização do conceito de autonomia tem uma relevância fundamental na justiça como eqüidade como, também, analisar e constatar: (i) as alterações que o conceito de autonomia sofreu ao longo da trajetória das obras rawlsianas e a importância do sentido de tal termo quanto à construção da teoria da justiça como eqüidade; (ii) a justificação epistêmica coerentista presente na teoria de Rawls sendo corroborado pelo significado que a palavra autonomia foi tomando ao longo de suas obras.

1. O histórico da autonomia rawlsiana

Inicialmente em Uma Teoria da Justiça, Rawls adota a idéia de autonomia kantiana. Por este motivo, é interessante lembrarmos aqui o problema prático de Kant. Este reside em sua proposta de uma moral que seja autônoma, auto-imposta, onde a pessoa humana é um fim em si e, ao mesmo tempo, rejeita algo heterônomo ou imposto.

Neste sentido, em Uma Teoria da Justiça (daqui por diante tj), Rawls, ainda, segue o modelo de autonomia kantiano fazendo da posição original um recurso procedimental; colocando as partes como representantes dos cidadãos da sociedade, onde estes ignoram o lugar reservado para eles, isto é, o contexto social e particular. Os parceiros, em posição original restritos pelo o véu de ignorância, somente em virtude disto, são caracterizados como autônomos e completamente livres para formarem as suas convicções morais.

Em TJ, Rawls afirma que:

Agir de forma autônoma é agir segundo princípios que aceitaríamos na qualidade de seres racionais, livres e iguais [...] A Posição Original define essa perspectiva [...] consideramos a escolha dos princípios desembaraçados das singularidades das circunstâncias concretas. (1997 575)

Neste livro, é acentuado o caráter racional para que os cidadãos tenham autonomia e, para não se ter uma concepção heterônoma, há uma preocupação em não se imiscuir a escolha dos princípios com circunstâncias concretas, pois os juízos particulares não devem ser levados em consideração e, sendo assim, a autonomia dos cidadãos não é violada como, também, nela não pode ser considerado algo como uma "[...] mera colisão de vontades que se autojustificam" (Rawls 1997 579).

Deste modo, Rawls afirma que da interpretação que ele faz da concepção de justiça kantiana deriva o princípio de liberdade e a sua prioridade.1 Neste sentido, ele diz que a força da doutrina kantiana deve-se aos seguintes aspectos:

  1. Na idéia de que os princípios morais são objetos de uma escolha racional, onde eles definem a lei moral que os homens objetivam para reger sua conduta em uma comunidade ética;
  2. [a] legislação moral deve ser acatada caracterizando os homens como seres racionais, livres e iguais, isto é, uma pessoa age de modo autônomo quando escolhe princípios que denotem a sua natureza de livre, racional e igual.

Assim, Rawls afirma que a justiça como eqüidade é uma teoria de interpretação da doutrina kantiana nos seguintes aspectos:

  1. O véu de ignorância priva as pessoas de obterem uma escolha dos princípios de forma heterônoma;
  2. [a]s pessoas escolhendo e agindo conforme os princípios de justiça de forma autônoma, elas expressam a sua própria natureza;
  3. [o]s princípios de justiça apresentam-se como imperativos categóricos, onde as partes não agem de forma heterônoma, deixando ser levadas por desejos particulares, mas, pelo contrário, desejam apenas aquilo que é racional, geral, independente dos outros desejos e aplicado a qualquer um, isto é, desejam os bens primários;
  4. [o] desinteresse mútuo, pois este permite que a escolha dos princípios seja livre.

Rawls, no entanto, diz que ampliou a noção kantiana de autonomia. Segundo ele, a parte que falta no argumento de Kant é aquela que diz respeito ao conceito de expressão. A posição original aponta argumentos que dizem quais princípios seriam escolhidos por pessoas racionais, livres e iguais. Assim sendo, a posição original é um nôumeno perante o mundo, onde as partes expressariam sua liberdade de escolha como membros de uma sociedade e ela não seriam um artifício nem transcendente nem transcendental.

Desta forma, há um afastamento de Rawls em relação a Kant, porquanto na teoria rawlsiana a escolha em posição original é coletiva, isto é, os princípios devem ser aceitáveis para outros eus, já que todas as partes são racionais e livres, por isto devem ter o direito igual de voz em relação aos princípios públicos da comunidade adotados. Outro aspecto do distanciamento, é que na justiça como eqüidade, as partes sabem que estão sujeitas às condições da vida humana, porque elas estão situadas no mundo com outros homens onde todos enfrentam determinadas limitações. Neste sentido, a liberdade humana deve levar em consideração essas restrições e, assim, os dualismos kantianos são remodelados, fazendo da justiça como eqüidade uma teoria que considera, também, os dados empíricos com a pressuposição de que as partes sabem que estão sujeitas às condições da vida humana, onde a liberdade humana deve ser regulada (Rawls 1997 275-283).

1.1. Controvérsias quanto ao sentido de autonomia rawlsiano

No entanto, há controvérsias em relação à utilização, por parte de Rawls, da concepção de autonomia kantiana. Neste sentido, Oliver Johnson afirma que no § 40 de tj, embora ele seja intitulado como uma interpretação kantiana da justiça como eqüidade, ele assim não o é, então: "Rawls se equivoca quando acredita que a sua teoria pode ter uma interpretação kantiana [...] em relação à concepção que ele tem da natureza do homem enquanto ser moral, isto é oposto ao que era considerado por Kant" (1974 58, tradução nossa).2

Para fazer tal afirmação, Oliver Johnson considerou tais conceitos pertinentes à teoria kantiana e à rawlsiana, sendo eles: autonomia, imperativo categórico e racionalidade comparados com a posição original, imperativos hipotéticos, véu de ignorância e heteronomia.

A autonomia rawlsiana, segundo Oliver, está mais próxima da heteronomia de Kant, pois a autonomia kantiana é independente de qualquer propriedade da vontade e os argumentos de Rawls, em posição original, estão sob a natureza diversa de motivos que levam o homem a agir. Desta forma, os indivíduos são motivados por um desejo de desenvolver seus próprios interesses. No entanto, para Kant a distinção entre autonomia e heteronomia reside nos motivos pelos quais os atos são feitos e não em relação às circunstâncias nas quais elas são executadas.

Em réplica ao argumento de Johnson que afirma ser a autonomia rawlsiana uma forma de heteronomia kantiana, Darwall afirma (1976) que se a tese de Oliver Johnson for considerada, isto significa que há um profundo abismo no processo de justificação dos princípios de justiça. Porquanto, na teoria rawlsiana, a interpretação kantiana é uma justificação para os constrangimentos em relação a escolhas dos princípios em posição original.

Segundo Darwall, existem diferenças entre a teoria de Kant e à de Rawls, porém isto não afeta a idéia kantiana de autonomia concebida em posição original. Rawls concebe a escolha em posição original não como autônoma, no entanto quando os homens atuam em consonância com os princípios escolhidos em posição original, a decisão deles é autônoma e as suas ações, também, assim o são.

Para replicar o que Oliver afirma, Darwall cita uma passagem de TJ que é a seguinte:

Como se supõe que as pessoas na posição original não têm interesses pelos interesses dos outros (embora possam se preocupar com terceiros), pode-se pensar que a justiça como eqüidade é em si mesma, uma teoria egoística [...] alguns podem pensar, como pensava Schopenhauer a respeito da doutrina de Kant, que, mesmo assim, ela é egoística. Mas essa é uma opinião equivocada. Pois o fato de que na posição original as partes são mutuamente desinteressadas não implica que na vida comum ou em uma sociedade bem-ordenada, as pessoas que defendem os princípios supostamente acordados não têm da mesma forma, interesse umas pelas outras. É claro que os dois princípios da justiça, bem como os princípios da obrigação e do dever natural, exigem que consideremos os direitos e reivindicações dos outros. E o senso de justiça é, normalmente, um desejo efetivo de agir de acordo com essas restrições. A motivação das pessoas na posição original não deve ser confundida com a motivação das pessoas na vida quotidiana, que aceitam os princípios de justiça e que têm o senso de justiça correspondente [...]. Ele -o indivíduo- adota voluntariamente as limitações expressas pela interpretação do ponto de vista moral. (Rawls 1997 159)

E, em consonância com essa passagem, Darwall afirma que Rawls parecia prever críticas tais quais às de Oliver. Assim, quando esse último diz que a escolha em posição original é motivada por interesses e, por este motivo, é egoísta, ele não leva em consideração que os interesses em posição original é um interesse do agente racional, onde estes desejam certos bens primários, abstraindo, assim, dos seus desejos subjetivos, das suas concepções do bem, de sua posição social etc. Neste sentido, o interesse por bens primários significa que os agentes reconhecem que são seres humanos nas circunstâncias de justiça, por este motivo as informações gerais são necessárias. Assim, é neste contexto que a interpretação kantiana pode ser pensada, que os princípios de justiça podem ser caracterizados como autônomos e, para tanto, Darwall argumenta que:

Johnson comete o erro de supor que desde que algo caracteriza a escolha das partes em posição original (e daí seus fundamentos para aceitarem os princípios), isto deve conseqüentemente caracterizar os próprios princípios ou os fundamentos da pessoa real (fora da posição original) afetando os princípios. (170, tradução nossa)3

Portanto, a afirmação de Johnson que a escolha dos princípios de justiça é condicionada pelos desejos e, por este motivo, ele a considera como um imperativo hipotético. No entanto, afirma Darwall, isto é um equívoco, porquanto o desejo pelos bens primários não é um desejo dentre outros e, embora a escolha em posição original possa não ser autônoma, quando os homens atuam sob princípios escolhidos em posição original, esta é uma decisão autônoma.

Oliver Johnson, por sua vez, afirma (1977) que concorda com Darwall quando ele diz que há uma conexão entre a teoria de Kant e Rawls, embora o que não considera é a interpretação kantiana de Rawls no §40 de tj. Ele constata que a natureza heterônoma da escolha em posição original afeta, necessariamente, os princípios de justiça. Assim, Johnson diz que o próprio Darwall, contrariamente a Rawls, admite que as escolhas em posição original não são autônomas. Neste ponto, afirma Johnson, a postura dele e a de Darwall são iguais. O que Oliver não admite é a tese de que nas situações da vida real, os cidadãos, que tem como base os princípios escolhidos em posição original, sejam autônomos. Então Oliver Johnson pergunta: como podeuma escolha heterônoma engendrar ações autônomas? É isto kantiano? Ele recorda que Kant considerou toda a escolha auto-interessada como heterônoma. Então, a autonomia das ações na vida real é tão heterônoma quanto às partes em posição original assim o são.

Portanto, para Oliver, tanto Darvall quanto Rawls não tem uma clara concepção do que significa a autonomia kantiana. Além disto, Darwall mostra-se, na própria defesa de uma interpretação kantiana de tj, contrário a Rawls quanto à questão do significado da autonomia.

Aqui é conveniente ressaltar que Rawls tendo uma clara concepção do que Kant chamou de autonomia, em seus escritos posteriores, ele continuou com tal idéia, embora a tenha ampliado.

1.2. Ampliacão do conceito de autonomia

Em Justiça e Democracia (1998), Rawls afirma que:

Os artigos contidos neste volume [...] foram escritos durante um período em que eu reformulava a interpretação do conceito de justiça [...] os textos [...] visam mostrar em que sentido a teoria da justiça como eqüidade deve ser compreendida como uma concepção política da justiça. (1998 8)

Neste sentido, ele adiciona algumas idéias àquelas de tj, concebendo os agentes como seres que fazem parte de um processo de construção, onde esses são movidos, apenas, por seus interesses superiores, isto é, aqueles interesses de primeira ordem que impelem os agentes a efetivarem a sua personalidade moral, desenvolvendo e exercendo as suas faculdades morais, onde a sociedade é considerada um bem que permite a concretização desses interesses superiores.

Em Justiça e Democracia, Rawls amplia a sua idéia de autonomia e afirma que os parceiros em posição original são considerados como pessoas morais, livres e iguais, onde isto significa dizer que eles têm uma concepção do bem e um senso de justiça. A liberdade, entendida assim, expressa que as pessoas enquanto representantes em posição original consideram aquilo que é de interesse superior submetidos à regra da razão, exprimindo, assim, sua autonomia pelo fato deles seguirem princípios razoáveis e racionais. No entanto, essas pessoas não têm um fim último particular e têm como conduta apreciar e revisar seus fins tendo como parâmetro considerações razoáveis.

Desta forma, aqui ainda se constata a utilização feita pela teoria rawlsiana da idéia da autonomia racional. Esta depende dos interesses superiores que mobilizam os parceiros e não de princípios de justiça autônomos e anteriores.

Sendo assim, os parceiros são autônomos, porque eles:

  1. Nas deliberações não precisam aplicar nem seguir princípios de justiça prévios;
  2. [s]ão movidos por interesses superiores objetivando a concretização dos bens primários por causa do véu de ignorância. Aqui é conveniente ressaltar que agir em função desses interesses não significa heteronomia, pois o que importa é o tipo de desejo que faz com que as partes tenham uma ação que corresponda à concepção do bem.

Em Justiça e Democracia (1998), Rawls amplia a sua idéia de autonomia. Sendo assim, os cidadãos agindo a partir dos princípios de justiça e defendendo-os na vida pública, eles expressam a autonomia completa. Em contrapartida, a autonomia racional é a autonomia dos agentes artificiais que fazem parte de uma construção feita para modelar essa concepção mais completa.

Quanto à liberdade, esta é relacionada com a questão das reivindicações. Assim sendo, "[a]s pessoas são fontes autônomas de reivindicações no sentido de que estas têm um valor próprio. As reivindicações são consideradas autônomas tendo em vista uma concepção da justiça social. Um aspecto da liberdade é constituído pelo fato de ser uma fonte autônoma de liberdade" (Rawls 1998 93).

Neste sentido, a liberdade dos parceiros ocorre pelo fato deles não justificarem nem pedirem que outros justifiquem as reivindicações que desejam fazer, porque eles, devido a sua autonomia racional, não fazem intervir princípios dados anteriormente. Desta forma, é pela capacidade deles de formular reivindicação de maneira autônoma que a liberdade é representada.

Os parceiros, em posição original, são autônomos e representam o racional. A autonomia completa, por sua vez, inclui o racional e a capacidade que faz com que as concepções do bem avancem no sentido de compatibilizarem com os termos eqüitativos da cooperação social, ou seja, com os princípios de justiça. Assim, as partes reconhecem publicamente os princípios de justiça agindo conforme os mesmos.

Quanto às partes como racionalmente autônomas, isto significa que elas:

  1. Não são obrigadas a aplicar nenhum princípio de direito ou de justiça dados previamente, pelo contrário, elas especificam os termos eqüitativos da cooperação à luz do que cada uma delas considera seu benefício pessoal ou bem.
  2. Defendem os interesses de ordem superior, considerando que estes têm nos bens primários meios essenciais para a sua realização juntamente com as capacidades morais e as concepções específicas do bem.

Desta maneira, os interesses superiores são puramente formais e o objetivo das partes é atingir um acordo sobre os princípios de justiça que capacite os cidadãos, que são representados pelas partes, a se tornarem pessoas completas. Assim, os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada são plenamente autônomos, aceitando e agindo conforme os princípios de justiça justos e reconhecendo como àqueles que teriam aceitado se estivessem em posição original.

Em O Liberalismo Político (2000), Rawls consegue dar uma ênfase ao aspecto construtivista da sua teoria, fornecendo uma interpretação de seu pensamento a partir da explicação da característica do político para os seus principais conceitos e adotando elementos que no processo de construção dos princípios de justiça são justificados como algo que está implícito na cultura das sociedades democráticas. Desta maneira, ele estende o princípio da autonomia moral ao campo do político e Rawls segue a mesma idéia de autonomia vista em Justiça e Democracia. Assim, ele diferencia a autonomia racional da autonomia plena e afirma ser esta última um ideal político que é uma parcela constituidora das sociedades bem-ordenadas.

Desta forma, tanto a autonomia plena quanto à racional exigem pessoas:

  1. Com a capacidade que elas têm para formular, revisar e concretizar racionalmente as suas concepções do bem;
  2. [c]omo autenticadoras de reivindicações válidas;
  3. [c]apazes de assumir responsabilidades por seus fins.

Aqui cumpre salientar que a autonomia plena é política, realizada na vida pública através dos princípios políticos e da proteção aos direitos e liberdades básicas. Portanto, para se ter autonomia plena é preciso ter publicidade plena, somente assim é que os cidadãos podem entender seus princípios conforme a idéia de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação. A autonomia plena é moldada tendo em vista as condições razoáveis impostas às partes como racionalmente autônoma, porque em posição original as partes necessitam selecionar princípios de justiça que garantam a estabilidade dado o fato do pluralismo razoável.

Às condições de razoabilidade impostas às partes significam que "[a] justiça como eqüidade afirma a autonomia política de todos, mas deixa o peso da autonomia ética para ser decidida pelos cidadãos separadamente, à luz de suas doutrinas abrangentes" (Rawls 2000 123).

Isto ocorre dado o fato do pluralismo razoável, porquanto a autonomia moral não satisfaz a restrição da reciprocidade, tendo em vista que existe a possibilidade de muitos cidadãos rejeitá-la.

Portanto, a autonomia como valor político ocorre quando cidadãos agem conforme a concepção política de justiça orientados pela razão pública em busca do bem tanto em sua vida pública quanto na sua vida não-pública e não levando em consideração somente à proteção dos desejos materiais, porque, caso o contrário, a posição original só modelaria o aspecto heterônomo dos cidadãos. Desta maneira, a autonomia política é fundada na razão pública e, quando os cidadãos afirmam a concepção política em seu conjunto, eles são considerados seres autônomos.

Considerações finais

Neste sentido, a autonomia racional é somente uma maneira de se expressar a idéia do racional em posição original e a autonomia plena é um ideal político que pode ser expresso através da independência jurídica, da garantia de integridade dos cidadãos e da igualdade de um em relação aos outros quanto ao exercício do poder político.

Assim sendo:

O resultado da Posição Original produz os princípios de justiça apropriados para cidadãos livres e iguais. Isto expressa a justiça procedimental pura, pois aqui não há um critério prévio e já determinado em relação ao qual o resultado deva ser avaliado. Na Posição Original como justiça procedimental pura, descreve-se a deliberação das partes de tal modo que possam modelar a autonomia racional dos cidadãos.
(Rawls 2000 118)

Neste sentido, as partes, em posição original, são: (i) um artifício da razão; (ii) formais. Elas não são plenamente autônomas, em contrapartida, os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada o são, pois eles agem conforme os princípios de justiça justos e reconhecem como aqueles que teriam adotados em posição original, fazendo com que os procedimentos justos façam gerar resultados justos. Desta forma, Rawls recorre ao procedimento de autodeterminação ao modelar concepções do bem e do senso de justiça pelo procedimento construtivista, sem o recurso a uma fundamentação última e sem recorrer auto-constituição dos valores morais. Ele retoma a concepção kantiana de pessoa como um recurso procedimental a ser modelado por uma situação contratual de justiça política, no entanto a diferencia da autonomia política, porque Rawls procura representar apenas a ordem de valores políticos baseados em princípios da razão prática juntamente com as concepções políticas de pessoa e sociedade e não a constituição da ordem moral pela atividade da razão prática (Oliveira 1998 121).

Assim, quando Rawls diferencia o razoável do racional, em O Liberalismo Político (daqui por diante lp), ele considera uma concepção política que prioriza, na construção da justiça como eqüidade, não mais os ideais kantianos de autonomia moral, mas sim os valores lockeanos da estabilidade social e da tolerância exprimidos na idéia de consenso sobreposto.

Neste sentido, Rawls, em lp, reconhece que, contrariamente a tj, não se deve considerar a teoria da justiça como eqüidade como uma teoria da decisão racional, porque isto só não basta e não é o essencial. O que é importante é modelar as convicções bem ponderadas, fazendo com que os cidadãos compatibilizem sua liberdade e igualdade de uma forma justa em uma sociedade democrática constitucional. Desta forma, Rawls estende o princípio da autonomia moral ao campo do político e, assim, expressa algo decisivo para o seu problema fundamental que é aquele de decidir sobre o tipo de sociedade em que as concepções do bem e do senso de justiça podem ser desenvolvidas e aplicadas.

Então, o caráter autônomo, no sentido do político, da justiça como eqüidade, faz desta teoria algo que não recorre a fatores exteriores ou a priori, ou seja, heterônomos. Portanto, a autonomia política, expressa em lp, é uma característica que, além de corroborar para que tal teoria tenha um caráter falibilista, ela, também, garante o não-fundacionismo da doutrina de Rawls. Assim, tal como ocorre em uma justificação do tipo coerentista, a teoria rawlsiana não reconhece um fundamento último e inabalável para se atingir os princípios de justiça.

No entanto, embora, em tj, Rawls não se utiliza da restrição ao político, parece já ter uma forma de justificação coerentista; em sua teoria pelo fato da posição original ser considerada como uma interpretação procedimental da idéia kantiana de autonomia, onde a escolha das partes como eus noumênicos é tomada como coletiva, isto faz com que Rawls evite o transcendentalismo de Kant, impedindo, assim, uma justificatação fundacionista para a justiça como eqüidade.

Portanto, Rawls com a sua idéia de autonomia política vem ampliar o tipo de justificação que caracteriza a justiça como eqüidade, mostrando que o importante é modelar as convicções bem ponderadas, fazendo com que os cidadãos compatibilizem sua liberdade e igualdade de uma forma justa em uma sociedade democrática constitucional, afirmando, desta forma, uma das características do coerentismo: a coerência dos enunciados dentro de um mesmo sistema de crenças, isto é, a ausência de contradição e a consistência entre as crenças que compõem esse dito sistema sem, contudo, recorrer a alguma instância exterior a ele.

Rawls quando amplia o princípio da autonomia moral ao campo do político, pode-se constatar que a sua forma de argumentar é internalista4, porque ele não procura constituir a ordem moral pela atividade da razão prática, mas, apenas, representar a ordem de valores políticos baseados em princípios da razão prática juntamente com as concepções políticas de pessoa e sociedade. Contudo, isto não significa que a teoria rawlsiana é uma teoria da escolha racional como poderia ser assim pensada em tj. Em lp, Rawls utilizando de uma argumentação internalista, ele assim o faz sem recorrer a nenhuma doutrina moral abrangente, porquanto para que os cidadãos tenham autonomia e, para a justiça como eqüidade não ser uma concepção heterônoma, há uma preocupação em não se imiscuir a escolha dos princípios com os juízos particulares; estes não devem ser levados em consideração e, sendo assim, a autonomia dos cidadãos não é violada como uma mera colisão de vontades que se autojustificam, pois liberdade e autonomia são aspectos correlatos, onde tanto os parceiros quanto os cidadãos podem apreciar e revisar seus fins tendo como parâmetro considerações razoáveis. Isto significa que, relacionada à idéia de autonomia, pode-se afirmar que as crenças no sistema do pensamento rawlsiano podem sofrer mudanças. Nele novas crenças podem ser propostas e estas podem ser integradas ao dado sistema. Desta maneira, é plausível constatar que a justiça com eqüidade não se fundamenta em nenhuma doutrina moral compreensiva e, em contrapartida, ela é uma teoria política e não metafísica, se utilizando de uma argumentação internalista e, assim sendo, este é mais um aspecto a ser ressaltado da presença da justificação coerentista no pensamento rawlsiano, porquanto é o conjunto de crenças que faz o sistema, onde o critério de justificação é um critério interno de coerência e, se ocorre alguma incoerência ou inconsistência de uma crença com o restante do sistema, essa não se justifica, por não satisfazer o critério do apoio mútuo entre as várias crenças desse dito sistema.

Assim, Rawls utilizando-se da justificação coerentista, constatase que uma crença é incorporada ao sistema somente quando ela for compatível com o mesmo, assim, somente quando o procedimento produz os princípios de justiça apropriados para cidadãos livres e iguais. Isto expressa à justiça procedimental pura, onde aqui não há um critério prévio e já determinado em relação ao qual o resultado deva ser avaliado; o que avalia o resultado do sistema, é ele próprio. Logo, Rawls, quando afirma a autonomia política, diz, também que a sua teoria é algo derivado de um construtivismo, em que ela é avaliada a partir de sua própria construção, onde as crenças que a compõe se sustentam por si mesmas dentro do procedimentalismo puro construtivista em que a autonomia política é um aspecto que garante a construção e o reconhecimento do resultado do sistema que são os princípios de justiça.

Assim sendo, embora a posição original represente um meio de reflexão para os juízos das partes, o mais importante é considerar todo o sistema do dispositivo contratual, este, então, modelando as convicções políticas bem refletidas. Porquanto, o construtivismo de Rawls, através do seu ideal de autonomia, modela as concepções de pessoa e sociedade, onde os agentes racionais e razoáveis são sujeitos a restrições relativas à razoabilidade. Isto significando que o coerentismo rawlsiano é do tipo construtivista, onde a autonomia política é um dos aspectos fundamentais para o tipo de justificação que Rawls utiliza.


1 Regra da prioridade: a liberdade só pode ser restringida em nome da liberdade.

2 "[...] he is mistaken in believing that his theory can be given a kantian interpretation [...] For the conception that he has of man's nature as a moral being is basically opposed [...] that held by Kant [...]" (Johnson 1974 58).

3 "Johnson makes the mistake of supposing that since something characterize the parties choice of principles within the original position (and hence their grounds for accepting the principles), it must therefore characterize the principles themselves or the grounds of actual person (outside the original position) for holding principles [...]" (Darwall 170).

4 O internalismo epistemológico é a teoria segundo a qual um agente tem que ter acesso consciente às boas ou suficientes razões que contribuem para a justificação de suas crenças, caso contrário, as crenças não estarão de modo algum justificadas. Independentemente de haver ou não acesso consciente às crenças, se existirem boas razões para justificá-las, mesmo o agente não tendo consciência delas, há a possibilidade de se afirmar que as suas crenças estão justificadas por essas razões, embora ele não tenha consciência delas.


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