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Revista Interamericana de Bibliotecología

Print version ISSN 0120-0976

Rev. Interam. Bibliot vol.41 no.2 Medellín May/Aug. 2018

https://doi.org/10.17533/udea.rib.v41n2a05 

Artículos de investigación

A biblioteconomia e a “construção do social”*

Library Science and the “Social Construction”

La bibliotecología y la “construcción de lo social”

Gabrielle Francinne Tanus1 

1 Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brazil. Doutora e mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharela em Biblioteconomia pela mesma universidade. Foi bibliotecário do Sistema de Bibliotecas da UFMG. gfrancinne@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2463-7914


Resumo

A análise e a relação discursiva da Biblioteconomia podem ser empreendidas a partir de diferentes correntes de pensamento. Concentra-se, neste trabalho, nos discursos da Biblioteconomia com as Ciências Sociais e Humanas; em particular, com a corrente de pensamento intitulada "construção do social". Essa vertente busca compreender não mais as totalidades ou as estruturas, mas o indivíduo e suas ações sociais. Para essa discussão instaurada no campo das Ciências Sociais e Humanas em diálogo com os discursos da Biblioteconomia foram convocados os seguintes autores: Alfaro-Lopez (2010), Rendón-Rojas (2005), Brown-César (2000) e David Lankes (2015). A compreensão dos saberes que conformam parte do discurso da Biblioteconomia possibilita uma visão mais aprofundada desse campo científico, trazendo luz, também, ao contexto mais amplo das Ciências Sociais e Humanas, onde se insere como modalidade específica do pensamento.

Palavras-chaves: biblioteconomia; correntes de pensamento; ciências sociais e humanas; análise do discurso

Abstract

The analysis and the discursive relation of Library Science can be undertaken from different currents of thought. In this work we focus on the Library Science discourses with the Social and Human Sciences; in particular, with the current of thought entitled "construction of the social". This strand seeks to understand no more totalities or structures, but the individual and his social actions. For this discussion in the field of Social and Human Sciences in dialogue with the Library Science discourses the following authors were convened: Alfaro-Lopez (2010), Rendón-Rojas (2000), Brown-César (2000) and David Lankes (2015).

The understanding of the knowledge that forms part of the discourse of Library Science allows a more in-depth view of this scientific field, bringing also light to the broader context of the Social and Human Sciences, where it is inserted as a specific modality of thought.

Keywords: Library science; currents of thought; social and human sciences; discourse analysis

Resumen

El análisis y la relación discursiva de la bibliotecología pueden ser abordados desde diferentes corrientes de pensamiento. Este trabajo se enfoca en los discursos de la bibliotecología con las ciencias sociales y humanas; en particular, con la corriente de pensamiento llamada “construcción de lo social”. Esta corriente no busca comprender totalidades o estructuras, sino al individuo y sus acciones sociales. Para esta discusión en el campo de las ciencias sociales y humanas en diálogo con los discursos de la bibliotecología, se recurrió a los trabajos de los siguientes autores: Alfaro-Lopez (2010), Rendón-Rojas (2000), Brown-César (2000) y David Lankes (2015). La comprensión de los saberes que hacen parte del discurso de la bibliotecología permite una visión más profunda de ese campo, poniendo de relieve, también, el contexto más amplio de las ciencias sociales y humanas, en las cuales se inserta como una modalidad específica de pensamiento.

Palabras clave: bibliotecología; corrientes de pensamiento; ciencias sociales y humanas; análisis del discurso

1. Introdução

A Biblioteconomia é um campo do conhecimento e está associada ao plano empírico da existência das primeiras bibliotecas ainda na Antiguidade, trazendo em seu desenvolvimento três grandes momentos, nomeados de fases: pré-científica, proto-científica e científica (Pulido & Morrilas, 2006). Esta última - fase científica - tem sua origem vinculada aos acontecimentos do século XIX, dentre eles, no plano da ciência, o desenvolvimento e a consolidação do positivismo - primeira corrente de pensamento das Ciências Sociais, inaugurada por Auguste Comte e continuada por Émile Durkheim, que delineou o “fato social” como objeto de estudo da Sociologia. Durkheim é considerado também “pai” do funcionalismo, uma vertente de pensamento preocupada com a ordem social e com as funções desempenhadas para o bom funcionamento da sociedade. De modo geral, o positivismo objetivava um método único, o mesmo das ciências naturais e exatas às ciências sociais; atribuía um papel exterior ao indivíduo inserido em uma realidade estável; busca de regularidades e leis constantes, tendo como guia os pressupostos da matemática e a observação dos fenômenos (Collins, 2009).

Num primeiro momento, no que se relaciona à Biblioteconomia, Alfaro-López (2010) destaca que o positivismo foi importante para a constituição da cientificidade da Biblioteconomia, atrelada a uma “vontade de serviço”, relacionada ao surgimento da biblioteca pública, no século XIX. Contudo, sem adentrar nesse processo histórico de constituição das bibliotecas e da Biblioteconomia, salientase que a estrutura positivista do pensamento possibilitou àquela uma elevação como uma “ciência positiva” (Araújo, 2013). Ademais, a influência mais marcante do positivismo na Biblioteconomia, no plano das práticas e do empírico, revela-se a partir dos esquemas de catalogação e classificação, que buscavam a representação do conhecimento, bem como o pensamento voltado “para dentro”, aos documentos e as coleções custodiadas nas bibliotecas (Araújo, 2013).

As influências positivistas e do funcionalismo na Biblioteconomia colaboraram para conformar as características da corrente de pensamento “ordenamento do social”, a qual traz a marca de uma compreensão pela ordem, integração e manutenção do sistema social, partindo das estruturas para olhar o social, isto é, de um “holismo metodológico”. Outra corrente que se faz presente na Biblioteconomia é a “contradição do social”, marcada pelo pensamento crítico e marxista, que busca desvelar as contradições e os conflitos que perpassam e estruturam a sociedade também a partir de um olhar macrossocial. Neste trabalho, concentra-se em explorar uma terceira corrente de pensamento das Ciências Sociais e Humanas, pautada pela “construção do social”, que se concentra nas múltiplas teorias que enfeixam as análises, e que tem em comum o fato de tomarem os indivíduos como ponto de partida de suas investigações, isto é, um olhar microssocial com vistas à compreensão das interações individuais e da construção social da realidade (Lallement, 2008).

Essas correntes de pensamento supracitadas são nomeadas por Alexander (1987) de “teorias coletivistas”, “teorias do conflito” e “teorias individualistas”, as quais a partir dos diversos discursos possibilitam agrupá-las em escolas e tradições do pensamento sociológico. Ademais, essas teorias conformam um movimento mais pendular do que linear, expresso no movimento dialético de abordagem dos seguintes conceitos: sociedade x indivíduo; coletivo x individual; ação x estrutura; macro e microssocial etc., situando-nos nesse segundo momento do movimento angular do pêndulo, focado na ação dos indivíduos. Para situar e relacionar a discussão pautada pela “construção do social” dentro do campo da Biblioteconomia foi convocado intencionalmente as seguintes produções teóricas: Bases teóricas y filosóficas de la Bibliotecología (2.a ed.), de Miguel Rendón-Rojas (2005); Estudios epistemológicos de Bibliotecología, de Héctor Guilhermo Alfaro-Lopez (2010); Expect more: melhores bibliotecas para o mundo complexo, de David Lankes (2015); e Elementos para una teoría bibliotecária, de Javier Brown-César (2000).

Acreditase que a análise discursiva dos saberes da Biblioteconomia possibilita uma maior compreensão desse campo, que ainda parece pouco explorado teoricamente, dentro de um contexto em que vários discursos diferentes são tensionados e relacionados com as Ciências Sociais e Humanas. Outrora, salientase que o extrato deste trabalho faz parte da pesquisa de doutorado defendida no programa de pós-graduação em Ciência da Informação (UFMG), cujo objetivo geral consistiu na análise dos discursos da Biblioteconomia produzidos por autores norte-americanos, brasileiros e mexicanos, bem como estabelecer uma relação com as Ciências Sociais e Humanas, em especial, a partir das correntes de pensamento: ordenamento do social; contradição do social e construção do social.

2. Corrente de pensamento: construção do social

A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade enfraquece o seu poder crítico. A uniformidade, além disso, ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo (Feyerabend, 1977, p. 10)

Nas Ciências Sociais e Humanas é instaurado outro olhar para a realidade diante dos fenômenos sociais, diferente daquele baseado na lógica de leis gerais ou universais. Um olhar também diferenciado em relação ao sujeito como um indivíduo não mais resultante da estrutura social e imerso na realidade estável e pronta para ser apreendida pelo pesquisador. Esse deslocamento para a compreensão dos fenômenos do primado do sujeito teve como precursor o filósofo alemão Wilhelm Dilthey, autor do livro Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história (2010).1 Nessa obra antipositivista Dilthey aborda que as “ciências do espírito” não devem ser analisadas sob o olhar das “ciências da natureza”, pois o objeto daquela ciência, o homem, é dotado de consciência, agindo em função dos valores, das crenças, de representações e não se limitam a reagir aos estímulos do meio ambiente.

Na esteira deste pensamento, encontra-se também o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) que estabeleceu as bases teórico-metodológicas da Sociologia Compreensiva, cuja base é o construtivismo social. Ao lado dele, encontrase também o construtivismo metodológico, que dá origem a conceitos próprios para a investigação objetiva da realidade (Domingues, 1995; Minayo, 2010). Essa corrente de pensamento está inserida e se desenvolve, inicialmente, em outro contexto, a Alemanha, onde foi constituído um diferencial a construção do pensamento voltado para a diferença, ou seja, para a diversidade e a busca da compreensão qualitativa dos processos históricos e sociais. Segundo Costa (2005), isso ocorreu, porque diferente da França e da Inglaterra, inseridas num pensamento urbano e industrial, sede do pensamento burguês da Europa, a Alemanha se direcionou mais tardiamente para o social a partir de outras influências das ciências humanas, como o Historicismo e a Filosofia alemã, sobretudo, com o Idealismo de Emmanuel Kant.

Weber, em Ciência e política: duas vocações (2008),2 considera a sociologia como ciência empírica da ação, focada na compreensão e interpretação da obra humana, uma “ciência da cultura”. A construção do pensamento social se perfaz como ciência essencialmente hermenêutica e distante de explicações metafísicas e da ordem do senso comum, propondo como objeto de estudo e de análise as investigações das condutas humanas ou “ações sociais”, ações individuais dos sujeitos, as quais são carregadas de sentido e influencia a ação - presente, passada ou futura - de outros indivíduos/agentes. No livro Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. (2009),3 ele esclarece que a seleção dos fenômenos culturais é subjetiva e singular; assim o cientista dotado de valores e ideias deve ser guiado por uma atividade racional, desvinculando-se da ideologia e interesses, colocando-se do lado oposto ao homem da política, dotado de um apurado julgamento de valor. Sendo necessário o cientista expor os valores e as escolhas, de modo consciente, junto às pesquisas e controlá-los através de procedimentos de análise para um desenvolvimento racional da atividade.

É instituído no campo das ciências um “divisor de água”, tendo em vista que o conhecimento sobre a realidade passa a ser visto de modo relativo, segundo contextos específicos e não mais pelo viés do materialismo histórico e da totalidade ou por meio das estruturas. A Sociologia Compreensiva ciência histórico-cultural fragmenta os contextos de modo a possibilitar várias interpretações sobre os fenômenos sociais e sobre os indivíduos, distanciando-se das generalizações e do efeito coletivo gerado pelas abordagens anteriores (ordenamento do social e contradição do social) que tendiam a apagar a subjetividade dos sujeitos, os quais eram coagidos pelas pressões externas e pelos fatos sociais (Lallement, 2008). Dessa forma, no campo do pensamento sociológico foi Weber quem inseriu definitivamente a Sociologia no rol das Ciências Sociais e Humanas com as suas devidas especificidades e particularidades, sendo, portanto, considerada como uma ciência preocupada com a compreensão interpretativa da ação individual - essencialmente subjetiva - dotada de sentido e significações e fruto das relações entre os atores sociais em suas realidades que são infinitas e vinculadas a múltiplas causalidades (Minayo, 2010).

Desse modo, é operada uma virada do ponto de vista, que antes partia de um todo a assunção do indivíduo não mais determinado pelas regras e normas da sociedade, mas um sujeito social capaz de escolher, de agir e interferir no processo histórico. Com esse deslocamen to, o método compreensivo e interpretativo se instaura na Sociologia, o qual visava à reconstrução do sentido atribuído pelos indivíduos às ações sociais, distante das leis do determinismo, das leis gerais, das relações de causa e efeito. Apesar da diferença significativa entre o Positivismo Sociológico e a Sociologia Compreensiva, Weber se preocupou também com a objetividade da ciência, propondo que a aproximação da realidade ocorra de maneira sistemática pela construção do método sociológico dos tipos ideais, os quais são instrumentos (categorias mentais) criados pelos cientistas para ordenar os fenômenos sociais, destituindo-os de juízos de valor; em suma, são conceitos histórico-concretos que “sintetizam e evidenciam os traços típicos e originais de determinado fenômeno, tornando-o inteligível” (Minayo, 2010, p. 98).

De tal modo que a realidade organizada de forma lógica pelo pesquisador pode ser apreendida não em sua totalidade ou de modo correspondente, mas por meio de quatro tipos puros, ou ideais de ações, que sintetizam e fazem sobressair às características de cada ação, a qual é direcionada a um fim, um objetivo. Segundo Weber, tais construções mentais são: 1) ação social racional com relação a fins: ação é estritamente racional, a ação se torna num fim buscado racionalmente; 2) ação social racional com relação a valores: é o fim que orienta a ação, dos valores, sejam éticos, religiosos, políticos ou estéticos; 3) ação social afetiva: as ações são conduzidas por sentimentos diversos; 4) ação social tradicional: tem como fonte motivadora os costumes e hábitos. Esses tipos ideais expressam racionalidades distintas do indivíduo e não encontradas de forma estrita na realidade. Ainda sobre os tipos ideais, Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2009) salientam que eles “não passam de modelos conceituais puros, o que quer dizer que em geral as ações sofrem mais de um desses condicionamentos, embora possam ser classificadas com base naqueles, no caso é o predominante” (p. 117).

Embora, o agente individual e suas ações sejam a unidade de interesse da Sociologia Compreensiva, Weber se ateve em conceituar essas ações dos indivíduos dotadas de sentidos em interação com outras de modo a formar uma ação plural (de vários), reciprocamente orientada, nomeada de relação social. A “relação social é a probabilidade de que uma forma determinada de conduta tenha, em algum momento, seu sentido partilhado pelos diversos agentes numa sociedade qualquer” (Quintaneiro et al., 2009, p. 117). Essas relações sociais, reciprocamente orientadas e dotadas de sentidos, inseridas em um grupo social que as reconhecem e partilham num determinado espaço e tempo, dão forma as estruturas sociais de uma sociedade que, por sua vez, constituem o objetivo de investigação das Ciências Sociais. Weber também buscou compreender as regularidades das relações sociais, voltando-se aos conceitos: poder, dominação, carisma, burocracia, etc.

Em síntese, a possibilidade de entender a sociedade e suas instituições passa pela análise do comportamento dos indivíduos, seus valores e ideias são figuras centrais de compreensão. Tudo o que existe na sociedade, seus grupos, instituições e comportamentos são expressões e objetivações da atividade dos homens que lhes dá seu sentido e seu significado. É por esta razão que o indivíduo é o fundamento da explicação microsocioló- gica e do individualismo metodológico que tem como princípio a ação do indivíduo, dotada de sentido, de significação e não como uma ação de sentido objetiva ou verdadeira. Outras correntes teóricas têm em comum a apreensão da realidade pelo indivíduo, o sujeito social, em constante processo de construção por meio da interação social com o outro e com o ambiente. Para tanto, lançam mão de uma diversidade de métodos e técnicas de pesquisa, essencialmente, as qualitativas, que possibilitam a imersão do pesquisador nos contextos, dando voz aos sujeitos das pesquisas, afastando-se, assim, das abordagens quantitativas, em que o sujeito é visto objetivamente e diante de uma realidade acabada. Desse modo, as abordagens alternativas revelam uma “necessidade essencial, porque corresponde não só ao cansaço das metodologias tradicionais, como, sobretudo, à busca persistente, de caminhos novos diante da realidade que sempre é nova” (Demo, 1995, p. 229).

2.1 Múltiplos caminhos: teorias compreensivas

Dentre as teorias compreensivas é possível agrupar as mesmas a partir de alguns elementos comuns: foco na experiência vivencial e o reconhecimento de que as realidades humanas são complexas; o contato com as pessoas se realiza nos contextos sociais; relação entre o investigador e o sujeito se dá de modo intersubjetivo; os resultados buscam explicitar a racionalidade dos contextos e a lógica interna dos diversos autores e grupos; os textos apresentam realidades dinâmicas e evidenciam os pontos de vista dos atores; as conclusões não são universalizáveis, embora as compreensões dos textos permitam inferências mais abrangentes (Minayo, 2010). A abertura da realidade, a micro análise dos fenômenos humanos diante da assunção de múltiplos contextos possibilitou a construção de outras vertentes de pensamento que mantêm, de modo geral, a essência da Sociologia Compreensiva, estando entre elas: interacionismo simbólico, etnometodologia, fenomenologia e construtivismo.

As discussões acerca das relações humanas, as interações dos sujeitos, e a construção do mundo social, a partir da consciência e da ação humana localizadas em uma situação específica assumem a tônica da contribuição norte-americana junto ao pensamento sociológico. O desenvolvimento das abordagens microssociológicas teve como base inicial o pragmatismo americano e seus principais representantes: William James, Charles Pierce e John Dewey. Segundo Collins (2009), “a contribuição mais importante do pragmatismo foi a de estimular os sociólogos a elaborar uma teoria totalmente sobre a natureza da mente e do self, com ênfase na ação” (p. 214). Em relação à teoria dos papéis ou do self destaca-se Charles Cooley, autor do livro Human Nature and Social Order (1983),4 que pode ser visto como um dos primeiros autores voltados ao pensamento microssociológico e de uma “teoria da mente social”. Segundo este autor, para a compreensão da sociedade o ponto de partida não são os corpos dos indivíduos, mas as ideias que partem da mente humana, que é social e conforma a sociedade. Assim, a sociedade é vista como uma relação entre ideias e processos mentais, os quais devem ser interpretados pelos pesquisadores sociais.

Na esteira dessa sociologia do pensamento se encontra George Herbert Mead com os estudos do self, que buscou compreender os vários papéis (ou selves) que os indivíduos desempenham para si e para o outro. Assim como os papéis são negociados pelos participantes, a realidade é também uma construção social dos indivíduos que negociam as situações. Essa virada comprometida com a fluidez das relações sociais constituiu a pauta do interacionismo simbólico, que se volta à intersubjetividade dos indivíduos e suas relações so ciais. Este termo “interacionismo simbólico” foi criado por Hebert Blumer (1968), que definiu três premissas básicas: 1) os seres humanos agem no mundo em relação aos significados oferecidos; 2) os significados dos elementos são provenientes/ provocados pelas interações; 3) os significados são manipulados por um processo interpretativo. Berger e Luckmann (1991) também retomam ao interacionismo e aos clássicos como Durkheim, Marx e Weber, aliando assim análises da microestrutura à estrutura trabalhada pela macroestrutura, de uma realidade subjetiva e objetiva. Para estes autores a sociedade é uma construção social, o homem é produto dessa realidade mutável, o caráter intrínseco da vida cotidiana com as interações e as relações sociais, bem como a linguagem e socialização dos indivíduos (primária e secundária) são trabalhadas no livro A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento (1991).

A Etnometodologia, criada por H. Garfinkel, autor do livro Studies in Ethnomethodology (1967), se opõe às noções explicativas, concentrando-se nas experiências, nos “métodos pessoais”, na vivência do indivíduo, em sua vida cotidiana, em que a realidade é construída socialmente por meio das ações dos agentes sociais, os quais são vistos como reflexos das estruturas sociais. Outro importante autor dentro dessa abordagem microinteracionista está Erving Goffmann autor do livro A representação do eu na vida cotidiana (2003),5 que retoma o clássico Durkheim com a teoria dos rituais e a teoria do teatro com conceitos “performance”, “ator”, “palco”, “figurino”, entre outros, para discorrer sobre a vida cotidiana, o comportamento dos indivíduos e a questão da consciência subjetiva e a estrutura social.

A Fenomenologia social de Alfred Schutz posta já em seu primeiro livro The phenomenology of the social world (1967),6 atribui particular importância a experiência e a compreensão da ação do sujeito na vida cotidiana e nas relações intersubjetivas estabelecidas pelos indivíduos no mundo social, tendo como referência a ação social de Weber e a questão da consciência e da intencionalidade trabalhadas por Husserl. Na construção de seu pensamento, Schutz congrega a sociologia e a filosofia, partindo dos atores sociais a “compreensão subjetivamente significativa” das ações observáveis e do comportamento que levam as ações sociais. Tal ação do indivíduo é “biograficamente determinada” no sentido de que é impossível uma experiência ser vivenciada da mesma forma por sujeitos diferentes, cada um tem seu “estoque de experiência” e “estoque do conhecimento”, que o coloca no mundo da vida e no mundo social. Um mundo pré-concebido (físico e sociocultural) que existe antes do próprio nascimento do indivíduo, sendo necessário o compartilhamento comum de crenças, valores, signos, de um “espírito comum” e de uma linguagem que permite a “intercomunicação” entre os atores sociais.

Ainda na esteira do pensamento fenomenológico, que busca a compreensão da realidade social por meio dos fenômenos, da essência das coisas, concentra-se na compreensão dos fenômenos de como eles se manifestam e são percebidos no mundo, individualmente, por meio da consciência, nomeando-a de “sociologia da consciência” (Collins, 2009). O filosofo Husserl a fim de captar a essência dos fenômenos “volta às coisas mesmas” e retoma o conceito de intencionalidade “um olhar direcionado a algo”, desvelando as ações do olhar e o encontro entre sujeito e objeto (uma influência de Bolzano e Brentano, segundo Reale & Antiseri, 2004). De modo que, a fenomenologia em uma direção idealista é vista como a “ciência das essências, isto é, dos modos típicos do aparecer e do manifestar-se dos fenô- menos à consciência, cuja característica fundamental é a intencionalidade” (Reale & Antiseri, 2004, p. 182).

Husserl preocupado em estabelecer um rigor metodoló- gico a este olhar dos fenômenos propõe duas reduções: redução eidética e redução transcendental, colocando convicções, pré-juízo e opiniões em relação à existência do mundo exterior entre parênteses, para que os conteúdos da consciência sejam examinados, fornecidos pela percepção, intuição, recordação e imaginação do sujeito da pesquisa, uma suspensão do julgamento nomeada de epoqué. A ação intencional da consciência, o conceito de intencionalidade como um olhar direcionado ao objeto desvela a relação entre sujeito e objeto, não mais sendo vistos como apartados um do outro (Reale & Antiseri, 2004, p. 182).

A partir de Husserl, a fenomenologia de Heidegger expressa em Sere o tempo (1927), coloca o ser como problema ontológico de compreensão, um “retorno à questão do ser” a partir do processo de interpretação hermenêutico. O homem é um ser-aí (Dasein), está sempre em uma situação e enfrenta as situações a partir de seu projetar-se. O homem não é um sujeito isolado do mundo, sendo um ser-no-mundo e um ser-com-os-outros, no mundo o homem está envolvido, com suas vicissitudes, ele forma e se transforma a si mesmo. O homem não pode ser apreendido pela racionalidade ou pela objetividade, mas por meio de sua essência (relação com o ser e o modo de ser) e seu projeto existencial (possibilidades de vir a ser, do poder-ser); destacando a finitude do homem e a realização de sua existência autêntica diante da compreensão de um ser para a morte, sendo a angústia um sentido essencialmente da existência humana. Segundo Heidegger, o viver-para-a-morte constitui o sentido autêntico de sua existência, pois a consciência da morte é a possibilidade permamente da existência - “apenas a compreensão da possibilidade da morte como impossibilidade da existência faz o homem reencontrar seu ser autêntico” (Reale & Antiseri, 2004, p. 201).

O Construtivismo, outra vertente do pensamento, instaurada no século XX desponta devido à suspensão da realidade objetiva ou empírica para lançar à luz o processo de construção dos conhecimentos e da realidade (Chaui, 1999). Assim, com o construtivismo o conhecimento da realidade é visto não como uma realidade imediata, mas de conhecimento aproximativo e corrigível, diferente dos modelos anteriores cuja visão era racionalista ou empiricista. O homem é visto como o construtor do conhecimento sobre uma realidade ou outro conhecimento e não uma instância pronta que faz uso ou apreende apenas. E esse conhecimento construí- do se dá a partir da interação do indivíduo com o meio físico e social (Giddens & Turner, 1999).

No âmbito da Filosofia das ciências, Gaston Bachelard (2006) defende que o conhecimento sobre o objeto de estudo da ciência é também uma construção intelectual sujeita às especificidades históricas, podendo as ciências sofrer processos de “rupturas epistemológicas”, que seriam descontinuidades do modelo anterior vigente. Na educação, o construtivismo se desponta por meio de Jean Piaget e Lev Vygotsky, os quais defendem o conhecimento como uma construção vinculada a processos de interação tendo o sujeito papel ativo e central na aprendizagem, que é dinâmica e não estável. Portanto, o construtivismo postula que a construção do conhecimento exige uma elaboração ativa do sujeito, uma relação necessária e recíproca entre sujeito e objeto do conhecimento que, com suas ações e estruturas cognitivas funda o conhecimento e a representação da realidade.

Em suma, é possível perceber a complexidade e a variedade com que as teorias compreensivas do campo das Ciências Sociais e Humanas se desenvolveram ao longo dos séculos. Não sendo viável aqui sintetizar todas as correntes e teorias que compartilham do pensamento do indivíduo com um sujeito sócio-histórico construtor da realidade, um ser ativo no processo de construção da sociedade, que envolve muitos e múltiplos sujeitos. Parte-se, então, para a compreensão da manifestação desse pensamento no campo específico da Biblioteconomia.

3. Relações biblioteconômicas com as ciências sociais e humanas

Alfaro-Lopez (2010), partindo das ideias de Gaston Bachelard (2006), fundamenta a construção de seu pensamento, discorrendo sobre a importância de a Biblioteconomia “libertar-se” da epistemologia positivista indo em direção a epistemologia construtivista e a consolidação de uma Biblioteconomia científica e autônoma. Segundo o autor, o positivismo, no momento de formação da Biblioteconomia, possibilitou a sustentação de suas práticas, conformando um campo de conhecimentos centrado nas regularidades dos fenômenos com o foco nos fatos empíricos observáveis. Devido ao nascimento das bibliotecas públicas, no século XIX, do contexto de uma sociedade industrial, as bibliotecas acabaram por se circunscrever em uma necessidade social, numa “vontade de serviço” pautado em experiências, no conhecimento empírico e técnico. Logo, o positivismo, naquele momento, foi uma importante base epistemológica à Biblioteconomia, mas tem se tornado num entrave para o desenvolvimento teórico e conceitual do campo desde as mudanças da sociedade a partir do século XX.

Para esse autor a postura da biblioteca como sendo da ordem do concreto, do imediato, da atividade cotidiana, arraigado no pensamento positivista e funcionalista e voltado às funções e eficiências dos processos, não tem deixado pensar a biblioteca enquanto conceito abstrato, convertendose num obstáculo epistemoló gico, cuja superação se daria por meio de uma ruptura e conformação de um novo espírito científico. Nessa direção, Alfaro-López (2010) defende que a Biblioteconomia precisa ser guiada por problemas, no sentido de que deve ser colocado ao campo, sempre perguntas ao seu próprio desenvolvimento científico. Este autor, seguindo o pensamento de Bachelard, da ciência como desdobramento problematizante, também destaca a construção do objeto, visto como uma construção discursiva, rompendo com a ideia do objeto do positivismo, sendo aquele da ordem do observável e advindo de etapas sucessivas: observação, hipótese, experiência, resultado, interpretação e conclusão (Alfaro-López, 2010).

A consciência da construção discursiva do objeto, de maneira não neutra ou imparcial, bem como a evidência de possíveis erros é desvelada. Segundo Alfaro-López (2010) a ciência avança retificando os erros, os quais fazem parte da construção do conhecimento, portanto, não são escondidos como queria o positivismo. Outra crítica posta e que fundamenta essa base construtivista da ciência é a defesa da realidade como sendo também um processo de construção. A realidade não é um dado, nem se atém aos fatos empíricos, mostra-se diante dos problemas que são colocados, sendo necessário tecer perguntas, as quais se constituem, segundo Alfaro-López (2010), no guia da ação à investigação. Ademais, a questão da “representação social” é colocada pelo autor, seguindo o pensamento de Jean Claude Abric que rompe com a noção de mundo exterior e interior do indivíduo, com a relação sujeito e objeto como sendo separáveis e de uma realidade objetiva. Assim, a realidade é vista pelos autores como representação da qual se apropriam e estruturam os indivíduos, não sendo um reflexo da realidade.

Interessante destacar ainda a concepção de campo, que revela o autor como espaço cognitivo e de construção, a saber: “campo não é uma construção etérea e que se desenvolve no vazio, pelo contrário, é um campo do conhecimento que se encontra imerso no espaço social. E a relação entre campo e espaço social é de caráter dialético” (Alfaro-López, 2010, p. 62). Ao discorrer sobre o campo, este autor cita o sociólogo Pierre Bourdieu que escreveu sobre campo científico como sendo um espaço de luta e de posições. Um jogo marcado por interesses que, segundo Alfaro-López (2010), não pode perder de vista o entorno social, isto é, os conhecimentos desenvolvidos precisam ser divulgados à sociedade, para além da comunidade científica. Essa divulgação garantiria, além do desenvolvimento da ciência, considerando a dinâmica do conhecimento, em responder perguntas, que geram mais perguntas e respostas, o reconhecimento da sociedade sobre determinado campo, o isolamento do conhecimento e da sociedade seria prejudicial para ambos.

Na direção de um distanciamento do âmbito concreto, da biblioteca reduzida às práticas, da visão da biblioteca para além dos acervos, dos registros do conhecimento, e do próprio edifício como espaço demarcado é também corroborado por David Lankes. Assim, para este autor, as bibliotecas são uma plataforma para que a comunidade crie e compartilhe conhecimentos, uma biblioteca da comunidade ao invés de uma para a comunidade. Lankes (2015, p. 36) aborda que, a centralidade da ação da biblioteca deve recair sobre os processos de aprendizagem e do conhecimento, tendo como missão “melhorar a comunidade onde está inserida, facilitando a criação de conhecimento”. A biblioteca é vista também como um centro de aprendizagem, um espaço social, um lugar de ideias, de criação e, sobretudo de interação dinâmica entre a própria configuração sócio-cultural e processos psicológicos de cada um.

A conversa assume também importância particular, pois é a partir dessa ação entre duas ou mais pessoas que se comunicam, ouvindo, escutando e falando, que o conhecimento é construído. Sob essa perspectiva da teoria da conversação de Gordon Pask, e abordada no livro The Atlas of New Librarianship (Lankes, 2011), as bibliotecas se transformariam um ambiente capaz de moldar os diálogos para um amanhã melhor. Desta maneira, Biblioteconomia não se baseia em livros ou artefatos, mas nos processos de compreensão do comportamento e da aprendizagem, transcendendo as ferramentas e a organização da informação com um fim em si mesmo. Logo, percebe-se que na construção do pensamento biblioteconômico, o conhecimento é figura central, o qual não é a priori registrado, medido, estático, mas intimamente ligado ao sujeito, a uma construção advinda de um processo ativo. As bibliotecas têm, portanto, como missão facilitar a criação do conhecimento através de quatro modos: fornecer acesso; fornecer ca pacitação; proporcionar ambiente seguro; motivar para aprender (Lankes, 2015).

Inferese, assim, que essa postura teórica tem como suporte a teoria cognitiva do construtivismo, o qual postula que o conhecimento é criado dentro de uma pessoa e não a partir do exterior, tendo como base a interpretação das experiências dos sujeitos. Em especial, a construção social desempenha um papel importante, já que apresenta o conhecimento vindo de dentro para fora da pessoa, interagindo socialmente com outras pessoas. Nessa direção, convoca-se Lev Vygotsky, um dos fundadores e representantes do sócio-construtivismo dentro das teorias educacionais, em especial da aprendizagem, que defendeu sobre o desenvolvimento cognitivo do sujeito. Sendo assim, o sujeito e o processo de construção do conhecimento estão vinculados socialmente, interagindo com outros indivíduos e com o meio. A interação social que requer, pelo menos, duas pessoas para que haja troca de experiências e de conhecimentos; a aprendizagem é uma experiência social, mediada pela utilização de instrumentos e signos.

A motivação é também outro importante elemento vinculado às teorias da aprendizagem. Os bibliotecários, integrantes da comunidade devem além de facilitar, empoderar, advogar, inspirar os integrantes da biblioteca e da comunidade. Ambos (bibliotecários e usuários) são membros da sociedade, de modo que a ação do bibliotecário a beneficiará, tendo em vista que uma sociedade democrática requer cidadãos bem informados, proativos e participativos na vida política. Segundo Lankes (2011) a presença da biblioteca também se faz a partir da ideia do sociólogo Ray Oldenburg, que define três espaços: sendo o primeiro onde você vive, a casa, por exemplo; o segundo espaço, onde você trabalha, seu escritório; e, o terceiro espaço, onde você se sente parte da comunidade, no caso, a biblioteca. A integração de uma comunidade, segundo Lankes (2015), reflete inclusive na constituição dos acervos das bibliotecas, que devem estar dirigidos à comunidade para a sua construção, criando memórias locais e “acervos vivos”, como os áudios e gravações dos indivíduos, demonstrando o quanto as comunidades são ricas e multifacetadas.

Outro autor e sob outras perspectivas, Brown-César (2000), salienta que, o usuário do sistema de gestão documental é um sujeito histórico, um seraqui que tem sua história e é considerado pela sua historicidade, tendo como base o pensamento de Heidegger. Por outro lado, Rendón-Rojas (2005) que também trabalha com o pensamento deste filósofo vai além ao dizer que a instituição informativa documental seria capaz de promover a autenticidade do sujeito inautêntico, bem como desalienar esse sujeito, por meio da desobjetivação e autoconhecimento do espírito humano, uma postura que Brown-César (2000) não considera. Para este autor, livros ruins, por exemplo, são capazes de alienar, considerando que nem sempre os livros são bons, já a autenticidade do sujeito se dará apenas mediante a morte. Ademais, conforme o próprio Heidegger essa existência autêntica é a consciência de um serpara-amorte, somente assumindo essa possibilidade o homem encontra seu ser autêntico - a morte é uma possibilidade imanente, uma iminência, que o seraí deve assumir, sendo incondicionada e insuperável, caminhando rumo a um ser-para-o-fim (Reale & Antiseri, 2004).

Apesar dessa aproximação de Brown-César (2000) a essa corrente de pensamento, suas ideias encontram aporte na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, compreendendo a biblioteca como um Sistema de Gestão Documental, que é delimitado a partir de três funções básicas: integração, representação e disposição; caracterizando seu pensamento como sendo mais voltado mais para um ordenamento do social (Tanus, 2016). Todavia, Rendón-Rojas (2005) assume mais detidamente a hermenêutica de Heidegger como base à construção teórica e filosófica da Biblioteconomia. Este autor trabalha com a ideia central de que o homem se caracteriza por ser um projeto que se realiza em si mesmo, e configura a biblioteca como uma instituição informativa documental que funcionaria como um dos elementos auxiliadores no vir a ser desse sujeito. O ser humano chega a sua existência autêntica a partir da linguagem, e a biblioteca proporciona esse desvelamento através dos documentos. A biblioteca, para Rendón-Rojas (2005), é, portanto, mais que um armazém de livros sem esperança de ser consultado, é um espaço que propõe condições necessárias à satisfação das necessidades dos usuários (necessidades ontológicas) e permite a desobjetivação da palavra escrita e um autoconhecimento do espírito humano. Ainda, segundo o autor, quando um usuário busca informação ele não o faz para “encher um vazio”, mas sim em um sentido metafórico, “encher-se a si mesmo” (Rendón-Rojas, 2005).

Os bibliotecários têm como missão fazer com que os usuários acessem o mundo da informação, sendo vistos como agentes ativos e participantes do processo de desenvolvimento do ser, do sujeito, do usuário (Rendón-Rojas, 2005); ele é profissional que desempenha uma atividade dotada de sentido, de vontade, de subjetividade, sendo que sua ação dá vida à instituição. Destarte, é um ator e não um elemento passivo dentro do sistema de comunicação social, que faz parte e requer outro sujeito para um diálogo intersubjetivo. Embora, Rendón-Rojas (2005) não cite Max Weber, pode se relacionar a figura do bibliotecário ao do ator, com a ideia do indivíduo como agente social que dá sentido a sua ação. A ação social weberiana é guiada pelo sujeito que age segundo motivos, os quais são dotados de sentidos e efeitos, não existindo imparcialidade ou neutralidade nas ações. O fato de agir levando em consideração o outro dá um caráter social a toda ação humana, o que Rendón-Rojas (2005) destaca a partir do diálogo com o outro. Ademais, o sujeito não existe sozinho, já que sua relação com o mundo real e com o mundo da informação se torna indispensável à compreensão do pensamento de Rendón Rojas.

Em particular, o mundo da informação se refere ao mundo em que se encontra o sujeito com sua intencionalidade e contexto, influindo de maneira determinante na construção do mundo da informação. A informação que está vinculada a este mundo é o conceito de informação pragmática (relação advinda do sujeito com sua intencionalidade mais o contexto), isto é, de uma informação que é construída pelo sujeito a partir do processo de síntese da sua estrutura cognitiva e dos dados que recebe. A materialização da informação se dá pela via dos documentos, que denotam “intenções da alma”, os quais convertem os usuários ao mundo daquela, estabelecendo uma relação íntima com o ser, no sentido de sua formação e da memória social, que proporciona identidade ao ser e a sociedade, o documento como um patrimônio cultural. Em síntese, o mundo bibliotecológico possibilita ao usuário que se encontre como sujeito, tornando-se um ser autêntico, afastando da alienação, e promovendo um autoconhecimento vindo da relação com os documentos acessados no mundo da informação (Rendón-Rojas, 2005).

4. Considerações finais

De fato, acredita-se que não há como não convocar autores das Ciências Sociais e Humanas para se pensar e construir um pensamento biblioteconômico. A Biblioteconomia é uma Ciência Social voltada às categorias interpretativas e de compreensão do ser humano, dos indivíduos que assumem comumente a denominação de leitor, de usuário ou mais recentemente de interagente (designação ainda não consolidada). Sujeitos e/ ou indivíduos que utilizam/apropriam da informação, das fontes de informação ou dos “produtos/artefatos culturais” disponíveis nas “instituições de cultura”, “equipamentos culturais”, onde são realizadas ações de mediação, intervenção, ações estas intencionais. Usuários e bibliotecários que se apropriam, transformam, comunicam e criam significados em uma realidade construída socialmente, num duplo movimento fundante e fundação. Informações e conhecimentos, entes ideais, materializados ou não, que são localizados em um espaço-tempo histórico, trazendo marcas temporais, culturais e sociais dos sujeitos envolvidos e de outros sujeitos, de outros processos, de outras histórias, que colaboram à conformação da sociedade presente, passada e futura.

Está no cerne da constituição da Biblioteconomia, ela como Ciência Social, embora o compromisso com o social tenha tido vários enfoques; o que parece ter havido foi um apagamento do indivíduo em prol das estruturas, centro das abordagens macrossociológicas. Outra questão que se revela é a do social, que, num, primeiro momento estava voltada à manutenção da ordem, o que não vai ao encontro das especificidades do indivíduo, é como se ficasse na superfície dos problemas sociais, escamoteando uma realidade a favor da ideologia das classes sociais dominantes. A Biblioteconomia sob essa corrente de pensamento da “construção do social” busca em sua complexidade compreender o sujeito e a sociedade, requerendo ações que extrapolem ações técnicas de organização e tratamento do acervo, indo numa direção mais ativa de comunicar e tornar possível a apropriação, em diversos formatos e suportes da informação, fazendo jus à dimensão social e democrática das bibliotecas. A multiplicidade e a desestabilidade se tornam palavras de ordem; a relação da comunicação e do sistema não é unidirecional, mas multidimensional. Uma Biblioteconomia que dê conta de desvelar os conflitos, os interesses e minimizá-los, ou melhor, fazer com que diminuam as desigualdades entre os que têm acesso e os que não têm acesso aos espaços e à informação.

Uma Biblioteconomia realizada por profissionais conscientes de suas ações, dotadas de intencionalidades e de efeitos de poder, bibliotecários que não se coloquem como neutros, imparciais ou objetivos. É necessário expor as direções das ações, o questionamento; o pensamento crítico é essencial para não cair no discurso vazio da totalidade, pois a biblioteca não consegue atender a todos, mas o que é o todo ou quem são todos, afinal? Perguntas são fundamentais ao desenvolvimento e compromisso crítico aliado à responsabilidade social. Ações que sejam imbricadas ao pensamento teórico, à práxis (prática aliada à teoria); ações socialmente responsáveis de cada um e afinadas a uma Biblioteconomia social e para o social. Não mais a imagem da biblioteca como depósito, detentora de um saber registrado, mas a biblioteca como um espaço de utopia, de fantasia, de lazer, de imaginação, de trocas simbólicas, de construção e também de desconstrução. A biblioteca menos como espaço concreto e mais como experiência, labirinto ou caminho para outros saberes, uma imagem dinâmica em que usuários mergulhem nas fendas e espaços entre os textos/discursos, formando conexões e descobertas muito mais profundas que, simplesmente, a busca de fatos específicos (Radford, 1992).

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*Este trabalho é fruto da pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante os anos de 2013-2016.

1Primeira ed. 1883.

2Primeira ed. 1917.

3Primeira ed. 1922.

4Primeira ed. 1902.

5Primeira ed. 1959.

6Primeira ed. 1932 [A construção significativa do mundo social].

Recebido: 28 de Novembro de 2017; Aceito: 30 de Janeiro de 2018

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