1 Introdução
Obituários também são sobre indivíduos, cujas vidas e identidades eles registram - e para muitas pessoas, eles representam uma instância única em que sua história de vida é contada por um terceiro. (Taussig, 2017, p. 459)
Obituários são atos de memorialização representados em tentativas de homenagear aqueles que faleceram mediante um modo particular de lembrar e esquecer. Também podem ser considerados uma forma de gestão de identidades dos falecidos, ao destacar suas imagens positivas e diminuir as negativas.
Como referem Árnason et al.(2003) os obituários são construídos como um processo seletivo, no qual determinados aspectos sobre a vida do falecido são enfatizados e outros ignorados. Desse modo, a identidade do falecido é privatizada, pois sua construção é restrita ao seu relacionamento com o obituarista, isto é, aquele que redigiu o obituário, conforme foi notado por Lawuyi (1991). Essa construção, baseada na aspiração e não na verdadeira identidade da pessoa retratada no obituário faz com que este também funcione como como uma propaganda socialmente legitimada de pessoas falecidas e enlutadas, conforme destacado por Williams (1997), Bonsu (2007) e Phillips (2007).
Os obituários também têm sido estudados como indicadores de organização social. Ao comprovarem como as pessoas são desiguais na vida e na morte, e alocar prestígio post-mortem os obituários promovem e criam discursivamente a existência de uma sociedade estratificada. Fowler (2004), amparada em uma perspectiva teórica bourdieusiana comenta que os obituários não devem ser vistos meramente como uma homenagem a indivíduos, mas como parte de um jogo mais amplo de poder simbólico.
Por sua vez, os obituários acadêmicos podem ser entendidos como micronarrativas biográficas, e desse ponto de vista são uma expressão do reconhecimento científico àqueles que contribuíram para ampliar o conhecimento em suas áreas de atuação e podem revelar um tipo de avaliação post-mortem realizada pelos pares científicos, nos termos já postos por Merton (1973), Bourdieu (1988) e Hamann (2016).
Como pode ser observado, os estudos de análises de obituários adotam diferentes perspectivas teóricas, entre elas a sociológica, histórica, literária, linguística. Entretanto, a análise de obituários acadêmicos ainda é escassa na literatura científica, principalmente na área de Ciência da Informação, embora esses gêneros textuais estejam presentes em diversos periódicos científicos.
Desse modo e visando contribuir para o alargamento dos estudos na área de Ciência da Informação esse artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que foi orientada pela seguinte questão: quais são as características de avaliações post-mortem de trajetórias acadêmicas realizadas pelos pares em obituários acadêmicos publicados em um periódico científico do campo dos estudos feministas e de gênero? Para obter respostas para essa questão foram estabelecidos os seguintes objetivos: identificar e analisar as avaliações post-mortemcontidas nos obituários acadêmicos publicados na Revista Estudos Feministas (REF).
A escolha desse campo de estudos e do periódico REF deve-se aos seguintes fatores: pela representatividade da REF no campo de estudos feministas e de gênero, pois é publicada desde 1992 e está classificada no estrato mais alto (A1) do sistema de avaliação de periódicos científicos denominado Qualis/CAPES mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Brasil referente ao período 2016-2020.Além disso, os autores desse artigo já realizaram pesquisas sobre gênero e ciência (Camargo & Hayashi, 2017; Hayashi et al., 2018), o que confere segurança teórica e metodológica para escolha da REF.
A fundamentação teórica e metodológica do estudo advém dos campos da Ciência da Informação e da Sociologia da Ciência uma vez que essas áreas permitem compreender como os obituários acadêmicos podem ser considerados um tipo de avaliação post-mortem de trajetórias acadêmicas e revelar aspectos singulares da trajetória de cientistas e intelectuais de diferentes áreas de conhecimento. Cabe ressaltar ainda que vários estudos abordaram a questão de obituário acadêmicos com as mais variadas metodologias e enfoques teoricos, contudo o presente estudo inova em relação aos demais ao utilizar um modelo de análise de obituários baseado em indicadores quantitativos advindos da Bibliometria e qualitativos baseados no referencial da Sociologia da Ciência. Diante disso, ao eleger os obituários acadêmicos como objeto de estudo a pesquisa contribui para alargar a produção de conhecimento no campo da Ciência da Informação. A próxima seção apresenta uma breve síntese da literatura científica que fundamentou a pesquisa sobre obituários acadêmicos.
2 Um esboço da literatura científica sobre obituários acadêmicos
Os obituários permitem que você veja os princípios de relacionamento com colegas e alunos, pontos de vista sobre a profissão, a missão de um cientista, a avaliação de suas qualidades morais e profissionais e outros componentes da cultura corporativa. (Kuzoro, 2017, p.46)
Ao elegeram os obituários acadêmicos e homenagens póstumas como objeto de estudo a pesquisa de Kinnier et al., (1994) analisaram os obituários publicados na revista The American Psychologist no período de 1979 a 1990, visando criar um perfil demográfico dos psicólogos falecidos e classificar os valores com os quais eles eram associados. O estudo revelou que praticamente todos psicólogos obituariados eram acadêmicos e pesquiadores altamente produtivos e envolvidos ativamente em outras áreas profissionais, tais como administração e serviços
Posteriormente, Radtke et al. (2000) também focalizaram os obituários do The American Psychologist ampliando o recorte temporal até 1997. Por meio da análise do discurso verificaram que a imagem predominante do psicólogo bem-sucedido continua sendo a do cientista homem e a imagem dominante da Psicologia como disciplina continua sendo a versão neopositivista da ciência. Como consequência, as contribuições das mulheres para a disciplina são marginalizadas em relação às dos homens, e as controvérsias epistemológicas e teóricas que podem muito bem levar a mudanças significativas nas práticas disciplinares são suavizadas e ignoradas.A profissão bibliotecária retratada nos obituários do New York Times foi estudada por Dilevko e Gottlieb (2004). Os resultados mostraram que embora a Biblioteconomia seja uma profissão majoritariamente feminina, 63,4 % dos obituários narravam a vida de bibliotecários homens. O estudo de Mumford et al. (2005) analisou obituários de cientistas de várias áreas de conhecimento. Ao comparar os cientistas de alto e baixo desempenho em relação a eventos criativos nas suas carreiras, os autores verificaram que a realização científica e a criatividade eram fortemente influenciadas por um conjunto de características que foram denominadas de disposicionais, pois dependiam de um ato próprio do sujeito e que incluíam inteligência, pensamento crítico e flexível, abertura, curiosidade e motivação para conquistas.Por sua vez, Tight (2008) analisou os obituários de uma centena de acadêmicos publicados na imprensa britânica no ano de 2007 para observar o que diziam sobre a natureza mutável do trabalho acadêmico contemporâneo e como este era apresentado nesse gênero específico de escrita. O autor concluiu que o domínio masculino e a influência da Oxbridge, isto é, das universidades de Oxford e Cambridge, do Reino Unido, e do sistema de ensino superior americano permanecem fortes nos níveis mais altos da vida acadêmica que chegam às páginas do obituário. Outra conclusão foi que os obituários também ilustram o impacto de eventos e tendências globais, como a guerra mundial e a mobilidade internacional de mão-de-obra altamente qualificada, na academia. No nível individual, os obituários apresentaram uma imagem de conquistas quase míticas, trazidas à terra por relatos de carinho e excentricidadeessencial.Ao partir do entendimento de que os obituários fornecem um último julgamento valioso e subutilizado sobre lideranças intelectuais Macfarlane e Chan (2014) analisaram obituários acadêmicos publicados entre 2008 e 2010 no periódico Times Higher Education, e sugeriram quatro elementos de liderança intelectual, vinculados aos obituários acadêmicos: paixão pela transformação, equilíbrio de virtudes pessoais, compromisso com o serviço e superação de adversidades. O estudo permitiu identificar a importância das características pessoais e das realizações acadêmicas na formação da reputação acadêmica.Fernández (2015) analisou um corpus de obituários publicados no Journal of Philosophy, Culture, Science and Education visando detectar quais são os assuntos que merecem esse tipo de homenagem póstuma dirigida geralmente para cientistas e educadores, bem como sua relação com a concepção de cultura moderna que é dominante nesta publicação. O estudo conclui que figuras femininas são exceção e masculinas são majoritárias nesses obituários, os quais são destinados a intelectuais sintonizados com a orientação ideológica da publicação, isto é, cientistas, educadores, filósofos, jornalistas e políticos que colaboraram com o avanço da ciência e da educação. Para a autora, os obituários produzem uma “apropriação simbólica de certas figuras mediante o uso seletivo de dados sobre sua trajetória de vida que levam a resgatar determinadas facetas por razões de afinidade intelectual e proximidade ideológica” (Fernández, 2015, p. 203). Para Hamann (2015) os obituários acadêmicos publicados em revistas acadêmicas expõem um sistema de valores e geralmente são de autoria de um porta-voz da comunidade devidamente designado para fazer o julgamento final de um membro falecido. Na visão do autor, como geralmente pesquisadores de mérito é que são reconhecidos em um obituário, esse gênero textual permite compreender até que ponto o trabalho biográfico reconhecido não é apenas honrado, mas também avaliado no contexto de um sistema compartilhado de virtudes acadêmicas. Posteriormente Hamann (2016) reconstruiu as características básicas das avaliações de acadêmicos por meio de uma análise qualitativa de obituários publicados em periódicos científicos. Os resultados obtidos nessas pesquisas demonstraram como os obituários categorizam assuntos acadêmicos posicionando-os dentro de esferas de conhecimento acadêmico e cargos institucionais, e também legitimam sujeitos acadêmicos aplicando narrativas biográficas de talento e mérito.Boccio e Macari (2017) argumentam que ao serem vistos como documentos históricos os obituários oferecem grande valor nas salas aula de Psicologia. Os autores advogam que os obituários de psicólogos proeminentes possuem vantagens distintas sobre as abordagens instrucionais tradicionais, pois incluem histórias que geralmente não são abordadas em livros de Psicologia típicos, apresentam informações biográficas que têm o potencial de aumentar a relevância pessoal para os alunos e capitalizar sobre o próprio efeito de referência e refletem o zeitgeist do campo e da sociedade em que foram escritos. Uma análise textual de obituários publicados nas revistas Journal of Neurosurgery e Neorusurgery, e ainda no jornal The New York Times no período entre 1960 e 2018 foi realizada por Kelly et al. (2019) com o objetivo de elucidar os respectivos julgamentos de valor da comunidade neurocirúrgica e identificar as características do legado de um neurocirurgião que são mais emblemáticas da profissão. Os resultados apontaram que tanto os periódicos neurocirúrgicos quanto os artigos de imprensa leiga baseavam-se em narrativas lineares, com maior ênfase na liderança profissional e treinamento de residência em revistas da área de Neurocirurgia e, proporcionalmente, maior menção à família naimprensa leiga. Os obituários oferecem uma janela única para os valores e as dimensões sociais da vida acadêmica. Dessa perspectiva Murray et al. (2020) analisaram obituários publicados entre 1850 e 2019 no The Lancet que é uma das mais antigas revistas médicas do mundo com revisão por pares publicada semanalmente. Os autores verificaram que a representação relativa dos assuntos dos obituários mudou ao longo do tempo, e que os detalhes da família e dos falecidos estavam super-representados até 1920. Após a Primeira Guerra Mundial a erudição acadêmica e a personalidade tornaram-se mais comuns. Recentemente, a carreira científica e as conquistas acadêmicas estão ressurgindo nesses textos. Em conclusão, os autores consideram que obituários científicos refletem a importância dos eventos mundiais, da carreira profissional e personalidade, mas o gênero evolui. No Brasil dois estudos abordaram os obituários acadêmicos sob as perspectivas teóricas da sociologia da ciência e da memória e da história, conforme expostos a seguir. Fetz (2016) argumenta que a análise da função e do papel social da dinâmica da morte no campo científico tem recebido pouca atenção dos pesquisadores e por essa razão investigou dois obituários publicados no periódico luso-brasileiro A Illustração publicado em Paris entre 1884 e 1892. Em sua visão, os obituários reforçam o ethos social da comunidade científica ao preservar e fortificar a lógica interna de funcionamento do campo acadêmico, uma vez que a morte é cientificamente aproveitada como mecanismo de consolidação do prestígio social atribuído a determinados agentes sociais que demonstraram aptidão para sobreviver.Por sua vez, Silva (2019) analisou obituários, entrevistas póstumas e homenagens fúnebres publicados na Revista Estudos Feministas com o objetivo de abordar esse material com base em sua dimensão biográfica por meio da mediação da situação de luto e de relações intelectuais e institucionais de uma publicação acadêmica. O referencial teórico adotado para essa empreitada adveio da narrativa biográfica que apresenta histórias de vida acionadas pela morte presentes em discursos retóricos laudatórios como epitáfios, obituários e memoriais. A análise revelou que os obituários representam concomitantemente a externalização da dor da ruptura surgida da trajetória e das vivências dos obituariados e também de uma espécie de noblesse oblige de reverenciar aqueles que se vinculam aos valores e ideais do grupo.
3 Percurso Metodológico
Contar a história de uma pessoa morta - seja no funeral, obituário, registro, inquérito ou sessão espírita - é um tipo particular de trabalho que precisa ser compreendido e valorizado por si só. (Walter, 2005, p. 409).
O estudo realizado pode ser caracterizado como uma pesquisa exploratória e descritiva de cunho bibliográfico e documental, haja vista que as unidades de análise selecionadas - obituários acadêmicos publicados em um periódico científico específico - ainda não haviam sido analisados do ponto de vista das metodologias das análises bibliometria e de conteúdo. Esses métodos permitem mapear e conhecer como se configura um campo de conhecimento, e extrair informações de forma objetiva e sistemática visando realizar inferências sobre conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dos textos. (Silva, Hayashi & Hayashi, 2011; Bardin, 2011) .
A fonte de dados foram obituários acadêmicos (n=19) publicados no período entre 1996 e 2016 na Revista Estudos Feministas (REF). Foram excluídas desse corpus as homenagens póstumas, pois embora apresentem semelhanças com os obituários há diferenças conceituais sutis entre esses dois gêneros textuais. Os obituários geralmente apresentam uma seleção de fatos e episódios marcantes da vida e trajetória acadêmica dos falecidos considerados importantes por aqueles que o redigem. Por sua vez, as homenagens póstumas assumem a forma de artigos publicados em edições especiais de periódicos organizadas para homenagear um membro ou figura-chave da comunidade científica recém-falecido ou por ocasião de aniversários de falecimentos.
A coleta dos dados foi realizada no site oficial da REF desde o primeiro volume publicado em 1992 até o volume atual. (REF, 2021).
Em seguida, mediante a leitura integral dos textos dos obituários publicados na REF foi elaborado um modelo de análise dos obituários acadêmicos (Quadro 1) contendo as categorias e os indicadores que permitem identificar as avaliações post-mortem presentes nos obituários.
Quadro 1 Modelo de análise dos obituários acadêmicos da REF
| Categorias | Indicadores |
|---|---|
| Informações pessoais e atributos acadêmicos dos obituariados* | Nome e gênero, país de nascimento, datas de nascimento e morte, idade no óbito, causa mortis, Alma mater, formação acadêmica inicial, área de atuação, destaques da produção científica, orientação científica; prêmios e honrarias acadêmicas. |
| Informações acadêmicas dos obituaristas** | Nome e gênero, área de conhecimento; vinculação institucional, relações pessoais e acadêmicas com o falecido |
| Informações bibliográficas dos obituários | Ano de publicação, seção do periódico, extensão do obituário, fotografia do falecido, tipo de autoria (individual ou coautoria), obituarista mais frequente, obituarista que depois foi obituariado |
| Virtudes e valores pessoais e acadêmicos do obituariado | Bom humor, humildade, paciência, seriedade, pioneirismo, rigor teórico, liderança intelectual e inspiracional, propensão ao diálogo; referência na área, reconhecimento pelos pares, interlocutor valioso; capacidade de construir equipes; dedicação à formação de pesquisadores |
| Reconhecimento pelos pares | Lembranças da convivência acadêmica; contribuições científicas para a área, impacto pessoal e acadêmico post-mortem |
(*) Obituariadas são as acadêmicas falecidas. (**) Obituaristas são aquelas(es) que redigiram o obituário.
Fonte: Elaborado pelos autores
Com base nesse modelo de análise os dados coletados dos obituários foram registrados em uma planilha Excel. Vale observar que essa etapa de coleta e registro de dados foi bastante lenta, pois os textos dos obituários nem sempre traziam todas as informações referentes às categorias de análise adotadas, tais como datas de nascimento e morte, área de conhecimento, alma mater e fotografia das obituariadas. Isso exigiu uma pesquisa complementar em sites institucionais, Plataforma Lattes, Wikipedia, plataformas acadêmicas como Researchgate e Google Scholar e Google Imagens. Na etapa seguinte os dados foram descritos mediante a elaboração de gráficos, tabelas e quadros. A análise e discussão dos resultados foi realizada por meio de técnicas quantitativas e qualitativas oriundas da análise bibliométrica e de conteúdo e do referencial teórico da Ciência da Informação e Sociologia da Ciência.
4 Resultados e Discussão
A Tabela 1 apresenta a distribuição temporal dos obituários publicados na REF.
Observa-se que no período entre 1992 e 2016 o total anual de obituários se manteve estável, com um e no máximo dois obituários publicados por ano, e algumas variações ocorridas em 2008 e 2013, anos em que foram registrados os escores mais altos (n = 3) .
Para apresentar as obituariadas e foi elaborado um painel imagético (Figura 1) com fotografias extraídas dos obituários ou de sites na internet.
Ao mesmo tempo que essas fotografias funcionam como uma forma de lembrança para quem conheceu e/ou compartilhou trajetórias acadêmicas e de militância, também dão oportunidade para identificação visual de algumas das principais lideranças intelectuais aos recém-chegados ao campo dos estudos feministas e de gênero.
Como a REF é um periódico dedicado aos estudos feministas e de gênero não causa estranheza que os obituários (n = 19) publicados sejam de mulheres militantes
Tabela 1 Distribuição temporal dos obituários publicados na REF
| 1992 | 1996 | 2004 | 2006 | 2008 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 |
|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| 1 | 1 | 1 | 1 | 3 | 1 | 2 | 1 | 2 | 3 | 1 | 2 |
Fonte: Elaborado pelos autores
e intelectuais com expressiva representatividade no movimento feminista brasileiro e internacional. Contudo, observou-se que ao longo dos 24 anos em que os obituários foram publicados não figuraram nas páginas da REF obituários de homens e pessoas transgênero inseridas no campo de estudos feministas e de gênero. Seria porque nesse período tais mortes não ocorreram, ou caso tenham ocorrido, não foram consideradas merecedoras de serem registradas e lembradas em um obituário da revista?
4.1 Perfil das obituariadas, das obituaristas e dos obituários
Trajetórias biográficas trazem disciplinas acadêmicas, representando de onde vêm os pesquisadores, quais são seus campos de especialização, quem são seus amigos e inimigos e o que eles alcançaram. (Hamann, 2016, p.2)
O modelo de análise de obituários acadêmicos permitiu identificar um conjunto de características sobre o perfil das obituariadas, obituaristas e dos obituários(Quadro 2).
Em relação ao país de nascimento das obituariadas observa-se que a maioria (n = 15) nasceu no Brasil. As exceções são Betty Friedan e Gloria Evangelina Anzaldúa, nascidas nos EUA, Nara Araújo, em Cuba e Nicole-Claude Mathieu em França. Esses resultados sugerem que são privilegiados na REF os obituários de mulheres que contribuíram para o fortalecimento do campo dos estudos feministas e de gênero no Brasil.
Contudo, considerando que o período abrangido pela pesquisa cobre 24 anos, isto é, de 1992 até 2016, fica em aberto se, e porquê, outras feministas do Brasil, da América Latina e do Caribe, e dos Estados Unidos e Europa falecidas nesse período não foram obituariadas, como por exemplo Lélia Gonzales (1935-1996), Rosa Parks (1913-2005) e Zuleika Alembert (1922-2012). As duas primeiras foram ativistas do movimento negro cujas atuações possuem interseções com o feminismo e a terceira foi uma das primeiras mulheres a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo e a primeira mulher a participar do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), destacando-se na luta pelo protagonismo feminino na sociedade brasileira. Lélia Gonzalez foi intelectual do movimento negro brasileiro, cuja trajetória foi marcada por colocar em destaque a situação e a importância da organização das mulheres negras. E Rosa Parks, foi uma notável ativista do movimento dos direitos civis nos EUA, considerada por Davis (2016) como epítome da condição da mulher negra. Essas e outras ausências poderiam sugerir que há um lugar privilegiado a ser ocupado nas memórias hegemônicas construídas nos obituários publicados pela REF?
Outro aspecto a ser destacado no Quadro 1 advém do cruzamento dos dados relativos à data de nascimento, idade das obituariadas ao falecer e causa mortis. Pode-se observar que há um contingente representado por 42,8 % (n = 8) de mulheres mais longevas nascidas entre as décadas de 1920 e 1930 e a primeira metade dos anos 1940 e falecidas com idades entre 85 e 72 anos. Em seguida, comparecem as mulheres que faleceram com idades entre 47 e 63 anos totalizando 47,3 % (n = 9) do total nascidas entre 1943 até 1953. Vale observar que apenas 10,5 % (n = 2) das mulheres faleceram antes de completarem cinquenta anos: Elisabeth Lobo, com 47 anos e Noemi Castilhos com 48 anos de idade. Tais resultados sugerem a ocorrência da intergeracionalidade acadêmica ao revelar a convivência entre diferentes gerações de pesquisadores que compartilham e/ou confrontam paradigmas teóricos e metodológicos por meio de um intercâmbio de ideias e práticas de pesquisa que fazem avançar o conhecimento científico da área.
Observou-se que o câncer foi a maioria (n = 9) da causa mortis dessas mulheres que faleceram com idades de 62 (n = 2), 63 (n = 3), 67 (n = 1), 67 (n = 1), 72 (n = 1), 76 (n = 1) e 83 (n = 1) anos. Dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2023) apontam que a morte por câncer é um dos principais problemas de saúde pública no mundo e já está entre as quatro principais causas de morte prematura, antes dos 70 anos de idade, na maioria dos países. Doenças cardiovasculares (n = 3), complicações de doenças como diabetes e outra não especificada (n = 2) e acidentes automobilísticos (n = 2) foram as demais razões dessas mortes. Não foi possível obter nos obituários e em pesquisa complementar na internet três causa mortis.
Esses resultados mostram que os obituários acadêmicos são um meio de se estudar uma ampla gama de tópicos, entre eles o envelhecimento, a expectativa de
Quadro 2 Perfil das obituariadas, obituaristas e obituários
| 1 País de nascimento: EUA (Betty; Gloria); Cuba (Nara); França (Nicole-Claude); Brasil (Ana Alice, Cristina, Elisabeth, Fulvia, Gabriela, Heleieth, Heloneida, Karin, Luzia, Maria Isabel, Maria Lúcia, Miriam, Noemi, Rose Marie, Zahidé) |
| 2 Ano de nascimento: Betty (1921), Miriam (1926), Rose Marie (1930), Heloneida (1932); Heleieth (1934); Nicole-Claude (1937); Zahidé (1939), Fúlvia e Glória (1942), Elisabeth (1943); Cristina e Nara (1945), Noemi e Maria Isabel (1947); Karin e Maria Lúcia (1948), Ana Alice e Gabriela (1951), Luiza (1953) |
| 3 Idade ao falecer: Miriam (86), Betty (85), Rose Marie (83); Heleieth, Nicole-Claude e Zahidé (76); Heloneida (75), Fulvia (72), Cristina (67); Ana Alice, Karin, Luiza, Nara (63), Gabriela e Maria Lúcia (62); Glória e Maria Isabel (61), Noemi (48), Elisabeth (47) |
| 4 Causa mortis: Câncer (Ana Alice, Cristina, Fulvia, Gabriela, Karin, Luzia, Maria Lúcia, Nicole, Rose); problemas cardiovasculares (Betty, Heleieth, Heloneida); acidentes automobilísticos (Elisabeth e Maria Isabel) complicações de doenças (Glória e Nara); sem identificação (Noemi, Miriam, Zahidé) |
| 6 Almas Maters: USP (Fúlvia, Gabriela, Heleieth, Maria Lúcia, Miriam); UFRGS (Elisabeth, Luiza, Noemi); UFRJ (Heloneida Rose Marie); Escola de Sociologia e Política-SP (Cristina); PUC-RS (Zahidé); PUC-SP (Maria Isabel); UFBA (Ana Alice); UFMG (Karin); EHESS-Paris (Nicole-Claude); Pan American University/EUA (Glória); Smith College/EUA (Betty); Universidade Estatal de Moscou Lonomossov (Nara) |
| 7 Área de formação inicial: Ciências Sociais (Ana Alice, Gabriela/não concluído; Heloneida, Maria Isabel); Psicologia (Betty, Fulvia, Karin); Letras e Literatura (Elisabeth, Glória, Nara, Zahidé); Sociologia (Cristina, Heleieth); História (Maria Lúcia, Miriam); Administração (Luiza); Antropologia (Noemi, Nicole-Claude); Física (Rose Marie) |
| 8 Seções da REF que publicaram os obituários: In Memoriam (n=12); Nota de Falecimento (n=3); Homenagem (n=3); Artigo (n=1) |
| 9 Extensão dos obituários: Entre 1 e 3 páginas (n=13); Entre 5 e 8 páginas (n=6) |
| 10 Obituários com e sem fotografias: Com (n=4); Sem (n=15) |
| 11 Tipos de autorias do obituário: Coordenação editorial (n=5); individual feminina (n=10); dupla feminina (n= 2); individual masculina (n=1); dupla masculina (n=1) |
| 12 Nome e gênero dos(as) obituaristas: Mulheres (Ana Rita Fonteles Duarte; Carmen Susana Tornquist; Cecília Cunha; Cecília Sardenberg; Francirosy Barbosa Ferreira; Heleieth Saffioti; Letícia Cardoso Barreto; Luciana Zucco; Luzinete Simões Minella; Mara Coelho de Sousa Lago; Tânia Regina de Oliveira Ramos; Teresa Kleba Lisbôa); Homens (Benedito Medrado; Jorge Lyra; Vinícius Ferreira) |
| 13 Instituições de vinculação dos obituaristas: UFSC (n=11); UFPE (n=2); UFBA (n=1); UNESP (n=1); FFCL/USP-Ribeirão Preto (n=1) |
| 14 Obituarista que foi obituariada: Heleieth Saffioti |
| 15 Obituarista que contribuiu com mais obituários: Luzinete Simões Minella (n=3) |
Fonte: Elaboração dos autores
vida e a longevidade dos membros de uma comunidade científica, embora esses aspectos ainda não tenham sido estudados na literatura científica que aborda esse gênero textual.
O cruzamento dos dados sobre a alma mater, isto é, a instituição em que a pessoa se graduou e forneceu subsídios intelectuais para a formação de seus egressos, com as áreas de formação inicial das obituariadas permitiram observar os seguintes aspectos da trajetória acadêmica das falecidas:
Amaioria das obituariadas brasileiras são egressas de curso de graduação realizados na USP (n=5); UFRGS (n=3) e UFRJ (n=2), e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a PUC-SP e PUC-RS, a UFBA e a UFMG foram as instituições com menor incidência; no exterior duas instituições dos EUA, uma da França e outra da Rússia figuram como alma mater das obituariadas.
Predominou na formação inicial realizada nessas instituições a área de Ciências Sociais, Sociologia e Antropologia (n=6) seguida pelas áreas de Psicologia (n=3), Letras e Literatura (n=3) e com menor incidência na História (n=2), na Administração (n=1) e na Física (n=1) sendo esta a única no campo das Ciências Exatas. Vale observar, contudo, que algumas obituariadas realizaram mais de uma graduação em diferentes instituições.
Em relação ao perfil dos obituários os resultados apontaram que a maioria foi publicada na seção da REF denominada “In Memoriam” (n=12). Os demais foram publicados nas “Nota de Falecimento” (n=3), “Homenagem” (n=3) e apenas um na seção “Artigo” .
A extensão desses obituários também variou entre uma e três páginas (n=13) e os mais extensos tinham entre cinco até oito páginas (n=6). Aqueles mais curtos seguem, de certa forma, a estrutura e o estilo da maioria dos obituários jornalísticos, isto é, são micronarrativas que iniciam com uma breve síntese biográfica da pessoa falecida enfatizando suas realizações e os significados que agora as suas ausências implicarão para aqueles que sobreviveram a essa perda. Por sua vez, os obituários mais longos, além de conter esses enfoques, também se debruçam mais detalhadamente a analisar a vida e a obra das pessoas que faleceram, geralmente fazendo um contraponto com a oportunidade de terem compartilhado vivências acadêmicas e relações de amizade que se revelaram importantes para rememorar as suas trajetórias e as do falecido.
Verificou-se também que a maioria (n=15) dos obituários da REF não possuíam uma fotografia da pessoa falecida, ou seja, apenas 21% do total (n=4) estamparam uma imagem. Para além de um registro histórico e de cumprir o papel de colocar em destaque aspectos fisionômicos dos retratados, as fotografias nos obituários dão um rosto a identidades acadêmicas e pessoais para que essas não sejam esquecidas e conhecidas por aqueles que não conviveram com as falecidas.
Ao analisar os tipos de autorias dos obituários verificou-se que prevaleceram as autorias individuais femininas (n=12) e as coautorias duplas femininas (n=2). Essas mesmas tipologias totalizaram duas quando se referiu aos homens como autores e coautores. Ou seja, os dois únicos obituários realizados por homens foram os de Fulvia Rosemberg, escrito por Jorge Lira e Benedito Medrado que tinham sido seus alunos, e o de Nicole-Claude Mathieu elaborado por Vinícius Kauê Ferreira. Cinco obituários são de autoria da coordenação editorial da REF.
Em relação gênero dos obituaristas (n=18) que contribuíram como autores e coautores, a maioria eram mulheres (n=15) sendo os demais (n=3) homens. Verificou-se ainda que a maioria das instituições de vinculação dos obituaristas foi a UFSC (n=11) denotando que essa é um celeiro de colaboradores da REF para a elaboração de obituários. Em seguida comparecem os obituaristas vinculados à Universidade Federal de Pernambuco (n=2), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (n=1) e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (n=1).
Outros dois aspectos chamaram atenção em relação aos obituaristas da REF. A autora Luzinete Simões Minella contribuiu com mais de um obituário, a saber, dos falecimentos de Cristina Bruschini, Maria Isabel Baltar da Rocha Rodrigues e Luiza Helena Barros. Observou-se também que Heleieth Saffioti, autora do obituário de Elisabeth de Souza Lobo, o primeiro a ser publicado na REF, posteriormente foi obituariada pela editoria da revista na seção “Nota de falecimento” .
4.3 O que dizem os obituários da REF?
Os filósofos enfatizaram que podemos determinar o que conta como uma virtude para um determinado tipo de pessoa em um determinado contexto cultural, analisando o que as pessoas dizem sobre os mortos. (Alfano, Higgins & Levernier, 2018, p. 59)
Tendo como diretriz o modelo de análise de obituários acadêmicos, o Quadro 3 apresenta um conjunto de categorias que revelam as virtudes e valores pessoais e acadêmicos atribuído às obituariadas e que foram ex-traídas dos textos completos dos obituários publicados na REF.
Quadro 3 Virtudes e valores acadêmicos e pessoais das obituariadas
| Virtudes e valores acadêmicos |
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| Ana Alice - Inspiradora e articuladora. Beth - Munida de rigor teórico, detinha esta qualidade da paciência de observar este fazer-se entrelaçado da classe e do gênero, intervindo, com competência e ao lado de outros agentes sociais, neste processo. Cristina - Compartilhou a autoria tanto com parceiras de geração quanto com novas gerações de pesquisadoras. Gabriela - Gostava de diálogos que aconteciam em clima informal. Sempre mantinha uma postura combativa e segura dos seus ideais. Karin - Feminista convicta, auxiliou na formação de várias gerações de militantes e pesquisadores, deixando sua marca de delicadeza e cuidado para com o outro em tudo que realizava Maria Isabel - Capacidade de intenso diálogo. Habilidade de ouvir vários argumentos para articulá-los de modo produtivo. Soube colocar inúmeros estudantes nas trilhas das investigações sobre suas áreas de interesse. Maria Lúcia - Refinada e detalhista. Cuidado em textos primorosos, baseados sempre em farta e minuciosa pesquisa historiográfica. Notável dedicação e seriedade nas pesquisas que fazia. Miriam - O trabalho de documentação bibliográfica coloca em relevo o seu trabalho historiográfico e detido. Nara - Competência intelectual Nicole-Claude - Grande potencial de mobilização, de inspiração. Noemi - Respeitada como figura-chave entre estudantes e colegas. Incansável pesquisadora. Dedicada ao ensino com um zelo incomum. Apesar de estar aposentada e com saúde comprometida demonstrou um extraordinário vigor em promover pesquisas Rose Marie - Popularizou seu pensamento de modo contestador, corajoso e inovador. Intelectual apaixonada pelas letras. |
| Virtudes e valores pessoais |
| Ana Alice - Coragem, garra, bom humor, sorriso largo, solidariedade. Doçura e aspereza, capacidade de ser amiga. Exemplo de luta e coragem. Gabriela - Pessoa simples e muito afetuosa Karin - Exemplo de coragem, dignidade e lealdade que caracterizou sua vida pessoal e suas atividades profissionais. Maria Isabel - Dinamismo. Por trás da sua trajetória brilhante, havia uma pessoa simples. Maria Lúcia - Zelo e cuidado. Nara - Entusiasmo e amor à vida. Nicole-Claude - Pensamento vívido e sagaz Noemi - Amiga solidária e companheira de farra a conhecemos também como filha atenta e mãe coruja Rose Marie - Personalidade marcante e sensível. |
Fonte: Elaboração dos autores
O Quadro 3 mostra que a maneira específica pela qual os obituários avaliam as biografias de pesquisa é determinada por lembranças pessoais, uma vez que os autores são agentes das regras costumeiras que devem ser seguidas em atos de avaliação, conforme explica Hamann (2016). Além disso, é possível observar que a norma social de apenas falar bem dos mortos foi seguida nesses obituários, de tal forma que as avaliações post-mortem realçam as principais virtudes do falecido.
A análise dos obituários revelou as contribuições que as obituariadas fizeram ao campo dos estudos feministas e de gênero (Quadro 4), conforme mostram os seguintes excertos dos obituários.
É possível observar nesses extratos, conforme explica Hamann (2016), como os obituários localizam os falecidos nas esferas do conhecimento acadêmico, definindo sua relevância acadêmica, seus campos de especialização, as comunidades às quais pertenciam e, geralmente, sua disciplina de origem. Não sendo, obviamente, um relato em primeira pessoa, esses exertos dos obituários podem servir como representações concisas dos aspectos mais importantes das obituariadas, além de revelar suas redes sociais e acadêmicas.
Quadro 4 Contribuições das obituariadas para seus campos de estudo
| Ana Alice - Deixa um legado de grande importância para as lutas das mulheres, pela igualdade de gênero, para o feminismo no Brasil. |
| Betty - Seu livro, a Mística Feminina, tornou-se um dos principais desencadeadores da segunda onda do feminismo. |
| Cristina - referência na área das Ciências Sociais, em particular para diferentes gerações de feministas. Atuou, de modo significativo, na constituição do campo dos estudos feministas e de gênero. |
| Elisabeth - Mas Elisabeth Lobo, sem dúvida, com sua insistência em jamais perder de vista, quer no pensar, quer no viver, as relações sociais, colocou vários grãos de sal nesta nova maneira de conceber o mundo e de construir o objeto do conhecimento. Sua contribuição, portanto, não se situa somente no terreno das observações e inferências substantivas; ontológica e epistemologicamente, sua obra representa um avanço considerável para a área. |
| Fúlvia - Foram muitas as contribuições para o movimento feminista, para o campo da defesa das crianças e para as políticas de promoção de igualdade racial. |
| Gabriela - Destacou-se pela sua forte militância no movimento das prostitutas, tornando-se uma importante liderança. |
| Glória - Desempenhou um papel vital no movimento feminista de inclusão. |
| Heleieth - Nome de destaque nos estudos sobre mulheres no Brasil, tendo produzido tese pioneira sobre o tema. Suas contribuições teóricas são um importante legado para gerações de estudiosas/os de gênero e feminismo. |
| Karin - Destacou-se na militância do movimento feminista brasileiro, em Minas Gerais, em plena época da ditadura militar no país. |
| Luiza - Liderança dos movimentos negros e feministas se destacou pela persistência e competência na definição de ações e de estratégias de resistência. |
| Maria Isabel - Bel desenvolveu pesquisas sobre política de população, saúde reprodutiva e saúde da mulher trabalhadora, destacando a análise dos aspectos políticos, sempre na interface com a demografia. |
| Maria Lúcia - Deixa trabalhos fundamentais nos estudos de gênero, neste campo espinhoso e tenso que são as reflexões e pesquisas sobre maternidade e feminismo. |
| Miriam - Contribuiu significativamente para o não esquecimento desses diários escritos por mulheres viajantes, tão importantes para nossa compreensão sobre o ser mulher com o passar dos tempos. |
| Nara - Generoso empenho para fortalecer essa área de estudos que apenas se iniciava entre nós. |
| Nicole-Claude - Seu texto clássico sobre a noção de “dominação” marcou gerações. [Suas obras] representam uma contribuição essencial ao feminismo e à antropologia. |
| Noemi - Excelente profissional que em muito contribuiu para a Antropologia e os estudos de gênero no Brasil. |
| Rose Marie- Seu legado político e teórico no campo feminista contribuiu para a construção de novos ideais feministas e de direitos sociais, materializados nos seus feitos e no reconhecimento social conquistado. |
| Zahidé - Reescreveu uma nova história da literatura brasileira, dando visibilidade às escritas de mulheres do século XIX e à crítica e à teoria feminista dos séculos XX e XXI. |
Fonte: elaborado pelos autores.
Finalmente, a abertura ou fechamento do texto dos obituários são espaços nos quais os obituaristas tentam exprimir suas lembranças de convivência com a falecida e impressões sobre o impacto da perda e o significado que a ausência da pessoa falecida terá nos âmbitos pessoal e acadêmico. Ao mesmo tempo, também funcionam como uma espécie de avaliação post-mortem das obituariadas. Servem de exemplo os seguintes excertos (Quadro 5) extraídos dos obituários da REF.
Esses exemplos mostram como as falecidas são evocadas pelos obituaristas, e ao mesmo tempo sugerem à comunidade acadêmica como essas vidas devem ser lembradas. Entretanto, como refere Hamann (2016), quando ocorre o falecimento pode haver casos em que “ex-alunos ou colegas podem não ter a oportunidade de transferir para a memória pública sua visão sobre o colega ou professor falecido e, portanto, ter que conviver com o julgamento final feito pelo autor do obituário.” (p. 11) .
Quadro 5 Lembranças pessoais e impactos acadêmicos post-mortem
| Ana Alice - Muita gente que a amou e admirou e que jamais poderá esquecê-la. Lembranças de momentos felizes e de alegria que ela nos proporcionou. Por tudo isso, fará muita falta. Para nós que a conhecemos de perto ficará para sempre uma imensa saudade. Betty - a militância feminista de Betty Friedan a marcou para a vida inteira. Cristina - A lacuna de sua perda soma-se àquela representada pelo falecimento das sociólogas Maria Isabel Rocha Baltar (2008) e Heleieth Saffioti (2010), da psicóloga Karin Ellen von Smigay e da historiadora Maria Lúcia Mott (2011). Elisabeth - Guardo de Beth, ao lado de seus ensinamentos, lembranças muito agradáveis. Fúlvia - Memórias e momentos de aprendizagem são tantos e tão intensos quanto a saudade. Gabriela - Essa enorme perda nos deixa a certeza de que ainda há muito a ser feito pelos direitos das prostitutas e que a luta continua. Glória Sentimos tristeza pelo falecimento fora do tempo de Anzaldúa. Heleieth - Sua perda nos deixa de luto. Heloneida - Foi considerada uma das 100 brasileiras mais importantes do século XX e cotada entre 1.000 mulheres para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz Karin - Deixa sua marca de delicadeza e cuidado para com o outro em tudo que realizava. Luiza - Seu combate persistente às formas de intolerância, servirão como fonte de inspiração constante para nossa geração e para as futuras. AXÉ, Luiza! Maria Isabel - Ao lamentar profundamente esta perda irreparável todas/os que a conhecemos continuaremos a sentir muitas saudades. Maria Lúcia - Sua perda foi sentida de forma coletiva. Miriam -Estou ainda sob o efeito da perda, ausência-presença desta que marcou minha vida acadêmica. Nara - Seu entusiasmo e amor à vida e à amizade não serão esquecidos. Noemi - Feminina e engajada trouxe suas pesquisas para dentro da vida deixando um saldo imenso de carinho. Rose Marie - Descrever suas realizações em poucas linhas é impossível. Esta homenagem uma pequena expressão de agradecimento pelo seu pioneirismo nas lutas por oportunidades para todas as mulheres brasileiras. Zahidé - Como ela sonhou. Como ela acreditou. |
Fonte: Elaboração dos autores
5 Discussão
Para ser reconhecida como tal pela comunidade, a avaliação de uma biografia de pesquisa deve seguir as regras habituais de consagração que determinam como falar com respeito dos mortos, o que enfatizar e o que omitir. (Hamann, 2016, p.11)
Conforme a orientação teórico-metodológica da Sociologia da Ciência e da Ciência da Informação adotada nessa pesquisa a análise dos obituários publicados na REF permitiu traçar um perfil quantitativo e qualitativo das principais categorias que compõem os obituários. Dentre os achados da pesquisa destacam-se a prevalência de obituários de feministas brasileiras nascidas entre as décadas de 1920 e 1950 e falecidas entre 1992 e 2016 com idades que variaram entre 47 e 86 anos, sendo o câncer a causa mortis mais frequente. A maioria das obituárias tinham como alma mater a Universidade de São Paulo (USP) sendo que a área de Ciências Sociais - incluindo Sociologia e Antropologia - predominou nas suas formações iniciais. Verificou-se ainda que a maioria dos obituários não possuíam fotografias das obituariadas.
Em relação às autorias e coautorias dos obituários foi observado que a maioria foi escrita por mulheres com vinculação institucional à Universidade Federal de Santa Catarina, instituição sede da REF. Os achados também revelaram que uma autora contribuiu com três obituários e uma obituarista falecida posteriormente foi obituariada.
A análise qualitativa dos obituários revelou um conjunto de virtudes e valores pessoais e acadêmicos das falecidas atribuídos pelas(os) obituaristas. As principais contribuições das obituariadas para o campo dos estudos feministas e de gênero também foram destacadas nos textos dos obituários, juntamente com lembranças de vivências compartilhadas entre as falecidas e obituaristas, bem como as repercussões dessas perdas nos âmbitos pessoal e acadêmico. O conjunto de resultados obtidos demonstraram que a avaliação post-mortem das trajetórias acadêmicas das obituariadas realizadas pelos seus pares é marcada por narrativas de cunho memorialístico que ressaltam suas qualidades pessoais e acadêmicas representadas por um conjunto de virtudes e valores atribuídos pelas(os) obituaristas.
Por último, é importante destacar que dado o tamanho da amostra analisada e por se referir a obituários publicados em um único periódico dos estudos feministas e de gênero, os resultados obtidos não podem ser generalizados. Contudo, futuros estudos podem suprir essas limitações de modo a permitir a comparação de resultados.















