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Escritos

versión impresa ISSN 0120-1263

Escritos - Fac. Filos. Let. Univ. Pontif. Bolivar. vol.20 no.44 Bogotá ene./jun. 2012

 

RESGATE DA METAFÍSICA: UMA RESPOSTA TRANSCENDENTAL À CRISE DO HOMEM HODIERNO?

THE RESCUE OF METAPHYSICS: A TRANSCENDENTAL ANSWER TO THE CRISIS OF CONTEMPORARY MAN?

Juliane Vasconcelos Almeida Campos*

*Doctora en Filosofía y Licenciada Canónica (Magíster) por la Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín). Pertence a la Asociación Heraldos del Evangelio y a la Sociedad de Vida Apostólica de Derecho Pontificio Regina Virginum. Es profesora de Filosofía del Instituto Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT, Brasil) y del Instituto Filosófico Teológico Santa Escolástica (IFTE, Brasil). Bachiller en Teología por la UniÍtalo (SP, Brasil). Correo electrónico: juliane.campos@arautos.com.br.


Resumen

El pensamiento metafísico es factor de equilibrio ontológico para el hombre, pues él busca, dentro de sí mismo, un Ser absoluto que sea su causa, así como también causa de todos los seres. La "muerte" de la metafísica de la causalidad, con Kant, propició la transferencia de este Absoluto a una obligación moral, cuya legisladora sería una buena voluntad subjetiva, introduciendo el relativismo en el pensamiento humano y generando, a lo largo del tiempo, una crisis ético-antropológica y la pérdida de la auténtica trascendencia. ¿Sería el rescate de la metafísica una respuesta transcendental a la crisis del hombre contemporáneo?

Palabras clave: Razón, Metafísica, Absoluto, Crisis, Trascendencia.


Abstract

Metaphysical thinking is an ontological equilibrium factor for man because he looks in himself for an Absolute Being who is, at the same time, his cause and that of all beings. The "death" of Metaphysics of Causality, attributed to Kant, caused the transference of this Absolute to moral obligation, introducing relativism into human thinking and generating, in time, an anthropological-ethic crisis and the loss of authentic transcendence. ¿Would the rescue of Metaphysics be a transcendental answer to the crisis of contemporary man?

Key Words: Reason, Metaphysics, Absolute, Crisis, Transcendence.


Na observação e conhecimento da natureza e do que existe, São Tomás (Suma Teológica I, q.2, a.3; q.45, a.7), em seu realismo, desenvolve suas consagradas vias para o conhecimento de um Ser Absoluto, que ele chama Deus. Ao raciocinar em função da relação de causas e efeitos, evidencia que o efeito pode representar a causa, ainda que analogicamente, de maneiras diversas. Por exemplo: a fumaça representa o fogo pelo que denomina vestígio, pois é como o movimento de alguém que passou e já não é. Mas o efeito pode representar a causa também na semelhança com a forma dela, como o fogo gerado que representa o gerador, o que seria uma representação de imagem.

Nesta perspectiva metafísica da Philosophia perennis, o Ser Absoluto deixa seus vestígios, de modo análogo a pegadas, nos efeitos que guardam menor relação com ele; e deixa sua imagem -imago Dei- naqueles que têm relação causal mais estreita com ele (Romero-Baró 6), sendo, além de sua causa, seu fim último, atraindo-os para si, como é o caso dos seres inteligentes. É por isso que diz Dionísio: "Deus converte tudo para si" (De div. Nom. ctd em São Tomás de Aquino. Suma Teológica I-II, q.109, a.6).

Existe, assim, um desejo natural interno -desiderium naturale-, uma busca deste Ser Absoluto, no qual todos os seres se fundamentam e que tudo mantém em seu próprio ser (São Tomás de Aquino. Suma Teológica I, q.12, a.8). O princípio de causalidade é o que permite ao homem elevar-se a tal causa absoluta e primeira de todas as coisas. É este o movimento espontâneo em uma criança quando contempla, por exemplo, o firmamento e as estrelas. Logo compreende as palavras do salmista: "Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos" (Sl 18,2). "O primeiro olhar da inteligência sobre o céu estrelado conduz a Deus e faz vislumbrar sua grandeza" (Garrigou-Lagrange 1945 335). Pode-se dizer, então, que este primeiro olhar da inteligência humana sobre o real já contém, ainda que confusamente, "toda a verdade que a sabedoria filosófica descobrirá, que se elevará ao conhecimento do Ser supremo, Verdade primeira, o qual, segundo a Revelação se chama 'Aquele que é'" (Id. 332).

Nesse sentido, pode-se afirmar que esta busca do Absoluto no homem é inerente ao seu próprio ser. Tinha razão quando afirmava São João Damasceno que "o conhecimento de que Deus existe está naturalmente inserido em todos" (De Fide Orthodoxa ctd em Gilson 1970 58). Por isso, o homem sempre teve o desejo de conhecê-lo conscientemente, tornando-se necessária sua explicitação racional. E quando, pelo raciocínio, o homem chega à contemplação de tal Absoluto -que já estava em si mesmo, de maneira transcendental e intrínseca-, ele se dá conta de que este era o objeto de seu desejo, sob o nome de felicidade, a qual perseguia como fim último.

Ora, a modernidade irrompeu na História como algo novo e libertador, numa ruptura com todo o patrimônio da humanidade vindo do passado. A revolução científica dos séculos XVI-XVIII parecia desvendar um novo panorama de conhecimento para o homem. O racionalismo de Descartes -considerado por muitos como o pai da filosofia moderna-, pôs em descrédito tudo o que não fosse comprovado cientificamente, colocando a metafísica da causalidade entre parênteses. Assim, até a própria filosofia, antes tida e havida como a ciência da razão, do pensamento e da transcendência, a "scientia rerum per altissimas causas", passa a ser pensada segundo o método experimental científico.

Mas Descartes e os que o seguiam ainda "pensavam metafisicamente", apesar do racionalismo e da desfiguração da metafísica escolástica. Por esta razão, costuma-se apontar para o fato de a filosofia moderna ter surgido, realmente, com a fundamentação crítica da filosofia tradicional, e de Kant ter sido justamente aquele que colocou em dúvida a possibilidade da metafísica (Heidegger 2006 64). Porém, a metafísica se ocupa das coisas divinas (São Tomás de Aquino. Suma contra los gentiles L.I, c.4), tendo por fundamento o princípio de causalidade, o qual -ontológica e intrinsecamente-, era o equilíbrio da razão e do ser humanos. E o que fez Kant foi tentar desmontar seus argumentos lógicos, eliminando-a do panorama filosófico. Consequentemente, uma vez "morta" a metafísica da causalidade, iniciou-se um processo que culminou -na perspectiva metafísica do Ser Absoluto- com Nietzsche, decretando a "morte" do próprio Deus.

1. "Morte" da metafísica: raiz da separação da Fé e Razão

A partir de Kant, a questão religiosa tornou-se um dos pontos centrais da mudança de reflexão da filosofia, e ele a fundamenta na razão prática (Mondin 93-94). Contrariando tudo o que veio antes e separando a Razão da Fé, afirma que a filosofia não tem nenhuma relação com a religião, pois sua função seria apenas a de mostrar que não podemos saber se Deus existe ou não. Ele crê que a razão especulativa não leva a nenhuma crença, mas sim ao agnosticismo, uma vez que os argumentos tradicionais vão mais além da experiência humana. E sustenta que as provas especulativas da existência de Deus são insuficientes, sendo impossível o pensamento metafísico. Para Kant, a única prova da existência de Deus é "uma prova prática ou moral, que produz a fé moral, cuja certeza é subjetivamente suficiente ainda que insuficiente objetivamente (Crítica da Razão Prática, Parte I, Livro II, cap. II, 5)" (Garrigou-Lagrange 1980 28; 44). A crítica kantiana e pós-kantiana subverteu, assim, as provas tradicionais da existência de Deus e a objetividade dos princípios racionais.

Kant considera que o conceito tradicional de metafísica transformou-se, na Idade Média, em algo de tal modo extrínseco e em si confuso, que não se chega absolutamente ao ponto em que a metafísica mesma ou o meta/, em seu sentido próprio, passem a ser um problema filosófico, por causa da união entre Fé e Razão. Por isso, em sua concepção crítica elimina a Fé de seu pensamento, e se atém à tarefa de questionar a concepção dogmática do que chama de "filosofia primeira", buscando em seu interior um impulso para "transformar a metafísica mesma em problema" (Heidegger 2006 54).

Porém, sua "problematização" se reduz a responder às inquietudes filosóficas com a mera receptividade dos sentidos. Deste modo, segundo suas concepções, as noções que se tem a respeito do homem e da natureza, da vida e da morte, ou acerca do livre-arbítrio, da alma e de Deus permanecem completamente desconhecidos em si mesmos, porque não se pode -em virtude da limitação dos sentidos-, provar sua existência. Para Kant, não assiste ao homem nenhum direito de ser positivo a respeito de coisa alguma, e é mister pôr de parte todos os dogmas. "É interessante notar quão positivo pode ser este filósofo em sua enunciação do ponto de vista positivo. Kant acredita profundamente no testamento racional da descrença. Mata o dogma com espada dogmática" (Thomas ctd em Kant 2008 134-135).

Kant distingue as ideias (puros conceitos da razão) e as categorias (conceitos intelectivos puros) como conhecimentos de espécie, origem e uso diversos, e afirma que essa distinção é importante elemento para a fundamentação de uma ciência que deva conter o sistema de todos esses conhecimentos a priori; sem essa distinção "a metafísica é absolutamente impossível ou, ao sumo, não passa de tentativa desordenada e imperfeita, sem conhecimento dos materiais que se manuseiam e da aptidáo dos mesmos para serem aplicados desta ou daquela maneira, que se propóe apenas construir um castelo de cartas" (1959 103). Considera que se a Crítica da Razáo Pura não houvesse conseguido outra coisa senáo distinguir essa lacuna metafísica, já teria sido urna grande contribuigáo para a filosofía.

Com a demoligáo da metafísica especulativa, feita por Kant, e, em consequéncia desta, o traslado do religioso ao espago extrarracional e extrametafísico do sentimento que a ela se seguiu na evolugáo filosófica, se abriu urna fossa insalvável entre a nova concepgáo metafísica e a religiáo, pois esta nova concepcáo passa a ser mera razáo teorética, sem acesso a nenhum Deus. E religiáo não tem lugar no espago da ratio (Ratzinger 2006 24-25). Dá-se a ruptura entre Fé e Razáo, e o Absoluto passa a ser urna mera ideia intuitiva.

2. O Absoluto como mera ideia

Havendo a razáo especulativa deixado um espago vazio, Kant só vai preenché-lo em sua Crítica da razáo prática, com o raciocínio prático no campo da moralidade, que exige um legislador supremo para justificar o dever moral. Esta, para Kant, não é urna prova, mas urna intuigáo da existência de Deus (Arboleda Mora 26). A partir daí, o Ser Absoluto supremo, Causa Causarum de todo o universo, passa a ser urna mera ideia reguladora da razáo, urna vez que o homem será o fim de si mesmo, como veremos mais adiante.

Ele critica o argumento ontológico da existência de Deus, rompendo com o pensamento metafísico escolástico, e não localiza o ser como o pensamento orientador de sua obra capital, a Crítica da razáo pura. Apenas no fim desta, dedica urna segáo (A 592, B 620) a esse tema -intitulada "Da impossibilidade de urna prova ontológica da existência de Deus"-, na qual ele tenta desacreditar a pergunta pelo ser do ente, vista em seu elemento biforme: o ente em si e o Ente Supremo, a onto-teología. Modificando a ideia de lógica e de ser, desaparece o sentido ontológico -"Deus é"-, ficando a mera existência, dependendo do pensamento e da ideia. O Ser passa a ser subjetivo (Heidegger 1979 231-254).

    A questáo de saber se e como e em que limites a proposicáo 'Deus é' como posicáo absoluta do possível torna-se e permanece para Kant o aguilháo secreto que impulsiona todo o pensamento da Crítica da Razáo Pura e anima as principáis obras que seguem. O fato de se falar do ser como posicáo absoluta, á diferença da posicáo relativa enquanto posicáo lógica, faz crer, é verdade, que nenhuma relacáo é posta na posicáo absoluta (Id. 240).

Contudo, o homem é essencialmente marcado pela autotranscendéncia. Ele constantemente sai de si mesmo e ultrapassa os confins da própria realidade, impelido por urna torça superior absoluta, que supóe urna existência pessoal. Mas é essa concessáo que a filosofía de Kant -e de certo modo toda a filosofía a partir da modernidade- não está disposta a fazer. Por sua influência, apareceu "toda urna gama de filósofos que afirmam que Deus é absolutamente incognoscível e indemonstrável, ou entáo, afirmam que a ideia de Deus é somente urna hipostenizacáo das necessidades e dos ideáis do homem; numa palavra, Deus é urna criatura da mente humana" (Mondin 78).

Havendo destruído Deus em seu espírito -mas não podendo expulsá-lo de seu próprio ser-, Kant o "criou" em seu coracáo, na Crítica da Razáo Prática -como aponta meio humorística e meio seriamente Heine-, por ver como sofría seu velho criado Lampe ao saber que ele havia acabado com a existência de Deus em suas teorías. Distingue, entáo, a razáo teórica da prática e, "como se fora urna varinha mágica, ressuscita o cadáver do deísmo, que a razáo teórica assassinara", e esta obra passa a ser urna refutacáo da sua anterior Crítica da Razáo Pura. Kant, entáo, declara que como não se pode basear a religiáo sobre a ciência, pode-se fazé-lo sobre a moral, que passa a ser a realidade absoluta neste mundo, a que ele chama de imperativo categórico, conduzindo a consciéncia humana para urna distincáo entre o certo e o errado. E por mais que ele negué a sede do Absoluto que há no homem, em seu próprio ser -desejando chegar á sua causa e fim-, e reduza este Absoluto a mera ideia, reconhece: "Aceitai uma crença em Deus, porque tendes necessidade de tal crença" (Thomas ctd em Kant 2008 135-137).

É o imperativo categórico que, para Kant, rege a consciência moral, bem como a boa vontade -valor existente em cada homem e, segundo ele, boa em si mesma-, e que lhes outorga uma liberdade de ação plena, em sua mais íntima subjetividade, não havendo autoridade que possa atentar contra tal liberdade, pois o homem passa a ser o fim de si mesmo, princípio que é a condição suprema restritiva da liberdade das ações de cada homem (Kant 2008 61-62).

3. O homem como fim de si mesmo: subjetivismo da lei moral

Desmontados os argumentos cosmológicos para ir a Deus e perdendo o referencial do Ser Absoluto -causa e fim do ser participativo e contingente-, o homem, para Kant, passa a ter seu fim em si mesmo, ocupando o lugar deste Absoluto que fora abolido da ordem do Universo.

Ele afirma que o homem tem na consciência de si mesmo, como sujeito último do pensamento, um elemento substancial, uma intuição imediata de que todos os predicados do senso interno se referem ao eu como sujeito. Rompe uma vez mais com a contingência e a relatividade de ser em relação ao Absoluto, afirmando: "não podemos continuar pensando este eu como predicado de algum outro sujeito. Por onde, aqui se nos afigura que a totalidade na relação dos conceitos dados como predicados a um sujeito, não é apenas ideia, mas que o objeto, a saber, o próprio sujeito absoluto, nos seja dado na experiência" (Kant 1959 108-109).

E depois acrescenta que embora se dê o nome de substância a este eu pensante, não se pode demonstrar seu caráter de existência absolutamente permanente a partir do conceito de substância como coisa em si -de sujeito que não existe como predicado de outra coisa, que não pôde nascer ou perecer por virtude própria ou de outra coisa natural-, só como necessária para a validade da experiência. "Semelhantes proposições sintéticas a priori nunca podem ser demonstradas em si mesmas, mas apenas em relação a coisas enquanto objetos de uma experiência possível" (Id. 110).

Supondo, então, que haja algo, cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto, -por isso, tendo o fim em si mesmo- e possa ser o fundamento de determinadas leis, ele crê que nesse algo, e somente nele, está o fundamento de um imperativo categórico, ou seja, de uma lei universal. Define taxativamente, então, o que seria esse algo:

    Agora eu afirmo: o homem -e, de uma maneira geral, todo o ser racional- existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim (Kant 2008 58-59).

E fundamentando-se na afirmação de que a natureza racional existe como fim em si, coloca no lugar do Absoluto -que havia desprezado-, sua ideia de um princípio prático supremo e um imperativo categórico, no que diz respeito à vontade humana, como representação do que é necessariamente um fim para todos, porque é fim em si mesmo, passando a ser um princípio objetivo da vontade, servindo de lei prática universal, como um imperativo da consciência.

Kant assim os define: "O imperativo categórico antecede e fundamenta o princípio personalista do valor absoluto ou fundamental da pessoa humana. O imperativo prático será, pois, o seguinte: age de tal maneira que possa usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (Ib. 58-62). É esta uma faculdade prática dada à razão que produzirá, para ele, uma vontade boa em si mesma, submetida a uma lei da qual ela pode se considerar autora, pois passa a ser a legisladora universal. Ta l boa vontade, sem qualquer intenção ulterior, na verdade será o bem supremo e a condição de todo o resto, até mesmo da aspiração da felicidade. Assim este conceito de boa vontade se encontraria no bom senso natural e estaria contido no conceito de dever.

Esquece-se Kant, porém, que a noção de bem e mal está como que impressa na consciência do homem, é propriedade de seu ser (Nicolas ctd em São Tomás de Aquino. Suma Teológica 2003 101), de maneira que, por instinto da razão, ele sempre busca fazer o bem, e só faz o mal quando lhe dá uma aparência de bem (Mongillo ctd em São Tomás de Aquino. Suma Teológica 2005 287). São Tomás chama estes primeiros princípios presentes na razão, como por instinto, de sindérese, que "inclina ao bem e protesta contra o mal, enquanto que com a ajuda dos primeiros princípios tratamos de descobrir o que devemos fazer e julgamos o que descobrimos" (São Tomás de Aquino. Suma Teológica I, q.79, a.12).

Ora, fundamentando a lei moral em uma boa vontade pessoal -legisladora em si mesma, e não seguindo leis universais de bem ou mal-, Kant (2008 54-55) introduz um subjetivismo nesta lei e racionaliza a questão do mal praticado pelo homem. Ele chega a afirmar que quando se transgride um dever, não se quer que aquela máxima se torne lei universal -porque seria impossível e deve-se manter a lei-, apenas se tomou a liberdade de abrir uma exceção nela para si mesmo ou para algum caso específico, em proveito da própria inclinação. Como o homem passa a ser fim de si mesmo, Kant afirma que ele não pode ser mau, nem praticar o mal. Assim, não vê nesse ato nenhuma contradição, pois se segue reconhecendo o imperativo categórico, apesar dessas exceções forçadas, para ele consideradas insignificantes.

Todas essas novas ideias trouxeram como consequência uma mudança de mentalidade completa na humanidade. Pois, se antes, para o ser, o mal era a perda de uma perfeição, um bem incompleto que não possui a bondade que deveria possuir enquanto ser, e o homem não podia nem devia tolerar viver parcialmente mal, em um mundo também parcialmente mal, evitando-o -malum vitandum, pois o mal é ausência de ser, e deve ser evitado, vencido, superado (Grenet 224)-, a partir de Kant passa a ser justificado, como exceção à lei universal, abrindo as portas os mais absurdos relativismos, a que se chegou depois.

4. Mudança de mentalidade do homem

Com Kant se arruinou toda e qualquer fé em verdades gerais e transcendentes, pois estas passaram a existir só para quem as forjasse para si mesmo. "O seu subjetivismo fazia a experiência religiosa perder-se numa bruma de boas intenções e de crenças afinal irracionais" (Daniel-Rops 69). Tudo isso introduziu uma desordem no pensar do homem, sobretudo ao expulsar Deus de seu ser, deificando-se a si próprio, e tornando-se legislador universal.

Ora, em sua parte animal, o homem tem paixões e tendências que às vezes o levam a reagir de forma irracional. De si mesmas as paixões humanas são neutras, mas não é raro que se tornem avassaladoras (Clá Dias 8-9). E por ter uma razão lógica, ao encontrar argumentos que lhe permitam justificar-se, subjetivamente, em suas transgressões morais -em virtude destas paixões e más tendências, já sem freios, haverem se tornado dominantes-, se introduz a desordem também na sociedade, que entra em lenta e profunda crise. Aberta a porta do subjetivismo e perdido o referencial do Ser Absoluto, o homem foi perdendo a noção da experiência transcendental, mais além de si mesmo.

O problema passa a ser mais antropológico-ético que ontológico-metafísico.

Com efeito -como Paul Bourget pôs em evidência em sua célebre obra Le Démon du Midi- 'cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu' (Op. Cit., v.II, Paris: Librarie Plon, 1914. p. 375). Assim, inspiradas pelo desregramento das tendências profundas, doutrinas novas eclodem. Elas procuram por vezes, de início, um 'modus vivendi' com as antigas, e se exprimem de maneira a manter com estas em simulacro de harmonia que habitualmente não tarda em se romper em luta declarada (Corrêa de Oliveira 1982 23).

Não se trata aqui de fazer uma análise histórico-sociológica das mudanças ocorridas na sociedade, no mundo e no homem ocidental, desde então. Mas sim de fazer uma reflexão sobre o quanto as novas doutrinas -quiçá impulsionadas pelo pensamento kantiano e por todas as correntes filosóficas que a ele seguiram- abalaram o homem em seu próprio ser, mudando-lhe a mentalidade, o que se refletiu em seu comportamento ético e em seu senso moral.

Já Descartes havia substituído a busca da "ordem da razão" pela "ordem das coisas", aparecendo o homem científico. A ciência passou a ser vista como autógena (Maritain 208-209) e apareceu como a mais deslumbrante e assombrosa das estrelas da cultura, considerada como um bem em si mesma, atividade produtora de novas idéias (Bunge ctd em Uribe Carvajal y Osorio 34). O racionalismo científico determinava que só o que se explicasse pelo método científico era verdadeiro. Fascinado pela ciência, o homem elevou-a até ocupar o lugar do sagrado. Mas não era um simples conflito entre a ciência e a fé. Por trás de tudo aquilo latejava um empenho de proclamar a salvação da humanidade por si mesma, e o advento de uma sociedade iluminada unicamente pela razão humana (Aguiló 2009).

Até onde penetraram essas novas hermenêuticas? Não se pode imaginar um declínio total e imediato. Mas é impossível negar que a influência que exerceram foi considerável. Sendo limitado o número de intelectuais, no limiar do século XVIII as ideias avançadas de racionalismo e libertinagem alcançavam apenas homens de letras, nobres ou grandes burgueses ávidos de bel esprit. E apesar de tantas transformações e crises, aqueles que se tardaram a separar a Razão da Fé -ou seja, sobretudo os que se mantinham cristãos, especialmente os católicos-, apoiados nos alicerces da Fé e de tradições antigas e sólidas, se mantiveram ainda mais arrazoados e menos abalados em seu próprio ser (Daniel-Rops 80-81).

Isso porque quando a Razão se separou da Fé, não só proclamou-se independente desta, mas lhe declarou guerra e começaram os grandes dramas da sociedade (Casté 20). Morta a metafísica da causalidade, com Kant -e separada a Razão da Fé-, já Hegel tinha uma concepção de religião como "um momento lógico, natural da evolução do Espírito Absoluto e, contra qualquer subordinação da religião à filosofia". E em fins do século XVIII, entrando pelo XIX, "por obra de Marx, Engels, Comte, Nietzsche e Freud, irrompe a desmistificação da religião, a qual encontra amplos consensos e muitíssimos defensores num momento em que impera o positivismo e o materialismo" (Mondin 98).

Por isso, diz João Paulo II (1999 n.46) que não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu afastando-se progressivamente da Fé Cristã. E a partir do subjetivismo e da perda do referencial Absoluto, com Kant, bem como com seu relativismo moral, a filosofia deu origem a uma mentalidade difusa, chegando a um pensamento niilista, onde não se deve assumir qualquer compromisso, porque tudo é fugaz e provisório.

Dominando a ciência e bastando-se a si mesmo, o homem provocou uma verdadeira revolução na sociedade humana. Deixou de ser visto como o sujeito da história, relegando a tradição e a iniciativa, a herança filosófico-cultural e o gênio criador, caindo em um morboso naturalismo dessacralizador, desfigurando a imagem ontológica do homo Dei (Rodriguez y Rodriguez 235). Este novo homem, seguro de ter o domínio da ciência e da técnica, se afastou até de si mesmo como seu próprio fim e passou a ser dominado e controlado por elas, considerando-as como algo e fim último, desligado da consciência das pessoas (Adorno ctd em Domingues 162), degradando-se a si mesmo, perdendo seu senso moral.

A modernidade, chegando ao seu auge na era da pós-modernidade, revela uma questão antropológica complexa e articulada, que se verifica nas reflexões filosóficas dos últimos séculos. Não foi ela um simples fenômeno cultural que mudou as sociedades, mas, na realidade, obriga a uma compreensão mais exata do que ocorreu com o espírito humano (Bento XVI 2008a 8). O temperamento da opinião pública passou a ser tão vegetativo, que a vida de pensamento parece eliminada dela. Os mais tremendos acontecimentos não afetam mais o indiferente homem egocêntrico e globalizado, já sem referencial de fim último. Frente a manifestações de degradação moral, a mais completa, apresenta uma atonia radical, pela qual nem o sim é o sim, nem o não é o não, nem o bem é o bem, nem o mal é o mal. Ele a tudo olha com indiferença e apatia, exceto para sua vidinha pessoal (Corrêa de Oliveira 1975; 1983).

Aquela luz que a razão projeta sobre todas as coisas -o lumen rationis-, dando uma visão integral destas, parece estar se extinguindo do ser humano. O homem foi ficando cada vez menos sensível à contradição, ao ilogismo, mesmo ao disparate ou ao estapafúrdio, significando uma insensibilidade para com a própria razão. Essa evanescença do lumen rationis produz um cambalear geral da humanidade, que passa a ser presa fácil de qualquer força que a queira conduzir. Perdida a luz do Absoluto, que antes lhe iluminava a razão, o homem passa a ter seu lumen rationis cada vez mais esmaecido, "reduzido a uma brasa ou a um farolete de lanterna, que está apenas -para me exprimir assim- comburente, mas que não projeta mais, não põe em claridade zonas de uma sala, apenas na sala se percebe que ele está lá. É um lumen rationis coincé, quer dizer, comprimido de vários lados e reduzido ao seu estado inicial" (Ibíd).

Assim, o sonho iniciado nos séculos XVI-XVII -de que homem se converteria em senhor e possuidor da natureza e do mundo-, afinal gerou uma nova humanidade autônoma e aparentemente livre, mas que na realidade perdeu o rumo de seu próprio ser, quase incapaz de pensar com clareza e lucidez, que transformou sua liberdade em libertinagem, produzindo um caos nas mentes, perdendo o sentido do humano, ademais do divino.

Sem embargo, como uma brasa que ainda fumega, a luz da razão vai, como que, se despertando. Como um movimento pendular que tende a voltar ao seu badalar equilibrado -depois de atingir o outro extremo e dele se ter saturado-, o século XX se iniciou com um resgate da metafísica, pela analítica dos neotomistas, abrindo as portas para um novo diálogo filosófico com a causalidade e uma redescoberta do transcendente.

5. Resgate da metafísica e volta da transcendência: saudades do Absoluto?

Ainda que não queira, o homem não deixou de ser homem e continua tendo, no fundo de seu ser racional, aquela noção simpliciter, naturalmente incerta, de sua causa e fundamento: um Ser Absoluto. É um conhecimento que pode ser comparado ao de uma pessoa que sabe que alguém vem, mas não conhece a este que vem. E a questão do homem de hoje é que não lhe é manifesta, pela inteligência, a percepção de que alguém está vindo. Porém, a ideia deste Absoluto -Deus, que não é objeto só da inteligência, senão que de outras dimensões do ser humano, não a excluindo, mas envolvendo a numa forma distinta de especulação (Zubiri 408)-, permanece latente em seu ser. É a "brasa que ainda fumega" na mente desordenada do homem hodierno. E quando este se desperta para buscar e conhecer o fundamento último para toda sua experiência real e possível, e quer ir atrás e mais além de qualquer dessas experiências, torna a ser um metafísico.

Analisando a história da civilização ocidental -para restringir o campo de observação-, é fato evidente e objetivo que os homens ambicionaram tal conhecimento por mais de vinte e cinco séculos. E ainda quando, supostamente, demonstraram que não o deveriam procurar mais e se comprometeram a não voltar a fazê-lo, se encontram buscando-o novamente (Gilson ctd em González 16), numa acepção autenticamente tomista, que considerava o conhecimento de Deus como a sabedoria por excelência (São Tomás de Aquino. Suma Teológica I, q.1, a.6): "merece o título de sábio aquele cujas especulações versam acerca da causa suprema do Universo, quer dizer, de Deus" (Gilson 1945 92-95). É um resgate da metafísica ou um "tomismo", meio subconsciente, que começa a reviver nas mentes, antes mesmo que na filosofia, o que ocorreu em meados do século antepassado.

A modernidade saturou o homem de razão, que passou a sentir falta da Fé e da moral. Havendo-se fartado de ideologias materialistas, racionais e subjetivas, em que o Absoluto é um "Acaso" que forja circunstâncias para esmagar o destino que supostamente escolheu com liberdade, através de fatos fortuitos e imprevisíveis (Corrêa de Oliveira 2008 364-365), o homem começa a ter nostalgia da transcendência que lhe proporcionava a Fé. Porém, quem se estabelece firme na Fé, não vê inconveniente em compreender racionalmente o que crê (Gilson 2007 291-292), e sua nostalgia é desta união. Este é o eixo do pensamento tomista, que distingue a Fé e a Razão, unindo-as harmonicamente.

Maritain (107-111) reconhece que a modernidade, amando a inteligência e tendo abusado dela, só poderia agora ser curada por ela; porém não por ela sozinha. E sendo São Tomás o santo da inteligência, mas que conduz toda a Razão à luz da Fé -"luz que ilumina racionalmente o homem que vem do mundo e luz que ilumina sobrenaturalmente o homem regenerado na fé", com sua filosofia de existências e não de essências, que vem das intuições naturais da experiência sensível e da inteligência-, coloca esta mesma Fé em relações vitais e orgânicas com o mundo da afetividade, instintividade e emoção, bem como o da vontade ou do suprarracional, numa concepção humanista cristã que respeita verdadeiramente a grandeza original do homem, descendo às raízes do ser humano, num ascenso metafísico ao Ser Absoluto: a via metafísica por excelência (González 226).

Na realidade, ao afirmar que o conhecimento natural de Deus se faz a partir do mundo sensível, em que os efeitos remontam à causa -"Deus naturali cognitione cognoscitur per phantasmata effectus sui"- São.

Tomás reconhece que a causalidade é débil, pois um efeito finito é desproporcionado a uma Causa infinita, mas encontra sua força na analogia, a única ponte por onde se pode passar do mundo a Deus (Manser 535-536). Ao contrário, como foi visto, rompendo esta linha de pensamento que vinha desde os gregos, passando por São Tomás e chegando até Descartes ou Newton, que reconheciam o princípio supremo de inteligibilidade da natureza como sendo Deus, Kant afirma, em seu criticismo, que uma vez que Deus não é objeto apreendido nas formas apriorísticas da sensibilidade -espaço e tempo-, não é possível referir-Lhe senão como categoria de causalidade, pois não é objeto do conhecimento humano. E o homem estabeleceu sua existência apenas pelas exigências da razão prática (Gilson 1945 123-127).

Ora, abandonar tal questão por considerá-la imprópria na ordem dos conhecimentos positivos é cortar a raiz da especulação referente à natureza e existência de Deus, produzindo uma postura radicalmente nova do homem com relação à verdade, que é a do princípio de imanência, oposto à transcendência (Fabro 16). Portanto, segundo Gilson, a questão se decide entre Kant e São Tomás, pois todas as demais posições que o seguiram são somente "hospedarias ou paradas no caminho que leva ao agnosticismo religioso total ou à teologia natural da metafísica cristã" (Gilson 1945 128).

Mas a humanidade, de modo geral, mantém o establishment em que se fixou desde os tempos modernos, pois o avanço das tecno-ciências -as telecomunicações, a medicina, a biotecnologia e tantos ramos da ciência-, sobretudo nos séculos XIX e XX, trouxe-lhe um enorme progresso que a deixou inebriada.

No entanto, entrados já uma década no século XXI, vemos como o progresso em mãos inescrupulosas pode transformar-se em algo terrível: o mal. Se ao progresso técnico-científico não corresponde um progresso ético-religioso do homem, não é verdadeiro progresso, mas uma ameaça para o próprio homem e para o mundo (Bento XVI 2008b 8). E é a mesma ciência, cheia de ares de confiança em si, que se encontra vulnerável, urna vez que tantos cientistas, longe de encontrar resposta para tudo, estáo dispostos a admitir que sua visáo do universo está longe de ser completa e que provavelmente nunca o seja (Johnson 1998), e se voltam para o transcendente.

"A ciência e a tecnología encontram sua justificacáo no serviço que devem render ao homem e á humanidade, e a ciência racional deve estar unida com urna série de esferas do conhecimento amplamente aberto aos valores espirituais" (Joáo Paulo II 1981). O velho sonho moderno de substituir a filosofía e a teología pela ciência fracassou. Contudo, permanece urna inquietude transcendental no homem, que é intrínseca a seu próprio ser, e nem sequer a ciência a pode tirar, pois a Razáo está criada para a verdade e a Fé assalta a inteligência, porque expóe tal verdade (Ratzinger 2005 40).

Com a razáo saturada, o homem começa a dar-se conta de todos esses fracassos, e senté urna insegurança crescente diante da ameaça das foreas da própria natureza, que parece disposta a desencadear-se para arrastar consigo seu incauto explorador, bem como percebe que o caminho que se havia aberto a seus olhos como sendo o da suprema liberdade, tornou-se, ao contrário, o de sua última alienacáo (Fabro 17-18). A inquietude em busca da verdade se reaviva, e como afirma Edith Stein: "quem procura a verdade procura a Deus, ainda que não o saiba" (Aguiló 2006 8).

Essa inquietude vem do instinto do infinito, da busca do Absoluto inerente á alma humana, conforme analisado no início deste artigo. E aquilo que é natural intrínsecamente, quando se rompe por um fator externo, cedo ou tarde tende a voltar com mais força do que antes, como táo bem o explicitam os franceses: Chassez le naturel, il revient au galop! -Rompei o que é natural e ele voltará a galope!

A nostalgia de Deus habita no coracáo do homem. É como um espinho cravado em sua carne... Santo Agostinho começa suas Confissóes com um brado que talvez sintetize todo o seu livro e muito reflete o homem hodierno, confundido em meio ao caos de sua mente, com tantas filosofias e pensamentos contraditórios -ele mesmo quase sem pensamento, com a perda da integridade de seu lumen rationis-, saturado de razão, deixando-se arrastar pelos acontecimentos, mas sentindo em seu ser a angústia de explicar-se a si mesmo e transcender: "Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós" (Santo Agostinho Confissões. L.I, c.1).

6. Uma resposta transcendental à crise do homem hodierno?

O homem hodierno, ainda que não explicite, sente uma insatisfação. Todo mundo está insatisfeito com tudo. E por quê? Porque lhe falta esse Absoluto com o qual precisa conectar-se (Corrêa de Oliveira 1985). E isso se reflete em suas relações sociais. Não basta a razão para que a sociedade seja solidária, justa e equilibrada. Para isso é preciso haver equilíbrio na pessoa, atendendo sua razão, vontade e sensibilidade. Ou seja, pessoa e sociedade devem procurar o bem, a verdade e a beleza, que se desdobram na ética, ciência e arte. Quando se idolatra a razão, sem elevar à sua altura a ética e a estética, se desequilibram indivíduo e sociedade. Tal foi o que passou com o mundo depois da modernidade. Fixado o subjetivismo, sobretudo moral, a razão não foi suficiente para organizar a sociedade, pois o comportamento humano está cheio de sombras e matizes, alheios à razão, que se desembestam segundo as molas da vontade e do sentimento. Este foi o fracasso da Ilustração, que rompendo com a Fé verdadeira não teve mais guia para a Razão, que se extraviou (Aguiló 2006 43). Assim começaram a aparecer várias concepções a respeito de Deus, a grande inquietude do homem.

Essa tendência, quase instintiva, de perguntar-se por Deus, a qual pode ser chamada de teologia natural espontânea, independe de qualquer demonstração filosófica, e não se deve a mitos primitivos ou a uma educação religiosa recebida -como afirmam alguns-, pois, atualmente, muitos não tiveram nenhuma educação religiosa, ou pior, tiveram uma educação antirreligiosa, e segue sendo decisiva a pergunta por Deus. O contato com as perfeições e maravilhas da natureza ou a solidão implacável do homem acossado por desgraças profundas, ou ainda a perspectiva da morte iminente podem ser ocasiões para pôr-se a pensar em Deus. Que provam esses fatos? Não provam nada. Não são provas, são apenas fatos que dão aos filósofos ocasião para levantar, uma vez mais, questões concretas a respeito de Deus. São experiências pessoais que precedem qualquer tentativa de prova da existência de Deus (Gilson 1945 128-130).

Segundo Gilson (Id. 150-153), o problema de muitos de nossos contemporâneos não é que sejam agnósticos -porque estes só fazem mal a si mesmos-, mas que sejam teólogos descarrilados, que combinam conhecimento científico e generosidade social com a falta de cultura filosófica, substituindo a filosofia natural -que não entendem- por mitologias perigosas. O que mais discutem, com frequência, é o problema do Ser. Por que há seres organizados? Por que há algo mais que o nada? São perguntas que não têm sentido cientificamente, mas têm todo sentido metafísico. A ciência pode explicar o mundo dos fenômenos, quiçá chegue algum dia à sua total compreensão, mas nunca saberá por que algo é ou existe, pois tudo o que existe e toda energia existencial depende de um Ato puro de existência, uma Causa suprema que só pode ser Absoluta; e ao criar, seu ato criador deve ser livre. Mas é também ordem, quer dizer, contém em si o princípio da ordem: o pensamento. Ora, uma Causa Absoluta, autossuficiente e pensante, não pode ser algo, mas Alguém, fazendo coincidir a causa da natureza e da História, um Deus filosófico que também pode ser o Deus da religião.

Daí nasce um convite para refletir sobre a vinculação do homem com Deus, que é o que nutre a consciência moral. Já o "conhece-te a ti mesmo" da filosofia antiga, tinha na consciência moral sua mais completa e elevada expressão, aspecto decisivo e essencial do desenvolvimento da personalidade humana. Porque nesta forma de consciência o espírito está orientado por uma tendência natural relativa ao obrar humano, superando os limites subjetivos, tendendo à relação com Deus. "A consciência moral se mede na consideração do bem e do mal, guiando o homem à sua fonte e seu término, e dando ao espírito o sentido que posteriormente se converterá em juízo, de sua responsabilidade transcendente (Cf. São Tomás, S.T. I, q.79, a.12; I-II, q.94, a.1 ad.3)" (Paulo VI ctd em Rodríguez y Rodríguez 62).

Terminamos a presente reflexão, levantando uma importante questão: no atual caos mental do homem contemporâneo, saturado de uma razão que perdeu seu lumen -comprovando definitivamente o fracasso do sonho moderno-, em que o bem se tornou subjetivo, a verdade relativa, a transcendência mera vivência e onde até a ciência, autônoma e autógena, reconhece sua impotência frente ao infinito, de que linguagem se utilizaria o Absoluto -Verdade e Bem metafísicos em Si mesmo- para, de dentro de seu mistério, manifestar-se presente e atrair o homem para Si?

Quiçá seja a beleza -como sendo o esplendor de todas as perfeições harmonizadas, ou seja, de todos os transcendentais reunidos (Garrigou Lagrange 1936 299)-, falando a linguagem ontológico-metafísica e universal de Deus, por cima de qualquer interpretação filosófica, uma porta que se abre, em meio ao caos hodierno, para fazer repousar o irrequieto coração do homem na degustação da experiência transcendental do Absoluto. E no resgate da metafísica, é o pulchrum -o outro nome do verum e do bonum-, que dá uma resposta transcendental à crise do homem hodierno, num autêntico reencontrar-se com Deus.


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