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Escritos

Print version ISSN 0120-1263

Escritos - Fac. Filos. Let. Univ. Pontif. Bolivar. vol.20 no.45 Bogotá July/Dec. 2012

 

A ORIGEM DO GÓTICO NAS IDÉIAS DE ERWIN PANOFSKY

THE ORIGIN OF THE GOTHIC IN THE IDEAS OF ERWIN PANOFSKY

Vinícius Sabino Gomes*

*Doctor en Filosofía por la Universidad Pontificia Bolivariana. Profesor del Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista de São Paulo, Brasil. Miembro de la Asociación Internacional de Derecho Pontificio Heraldos del Evangelio.

Correo electrónico: sabino.ep@gmail.com

Artículo recibido el 3 de febrero de 2012 y aprobado para su publicación el 28 de junio de 2012.


RESUMO

O presente ensaio procura determinar quais foram as idéias que influenciaram o abade Suger na reforma da igreja de Saint-Denis - origem do gótico. Erwin Panofsky dá os traços essenciais desta investigação e abre novas possibilidades de aprofundamento. Em seu fascinante estudo, Panofsky teve o mérito de ter sido o pioneiro em descobrir uma influência das obras do Pseudo-Dionísio sobre a reforma de Saint-Denis. Desde então, a polêmica não cessou mais. Destaca-se o papel de Hugo de S. Vítor como transmissor da influência mística sobre Suger.

PALAVRAS CHAVE: Panofsky, Suger, Saint-Denis, Gótico, Hugo de S. Vítor.


ABSTRACT

The present essay aims to determine the ideas which have influenced the abbot Suger in the reformation of the church of Saint-Denis - origin of gothic. Erwin Panofsky provides the essential traces of this investigation and opens new deepening possibilities. In his fascinating study, Panofsky had the merit of having been pioneer in discovering an influence of Pseudo-Dionisio's works on the reform of Saint-Dennis. Since then, the controversy has not ceased. One outstands the role played by Hugo de S. Victor as transmitter of the mystic influence over Suger.

Key words: Panofsky, Suger, Saint-Denis, Gothic, Hugh of St-Victor.


A origem do gótico remonta à reforma artística que o abade Suger empreendeu em Saint-Denis entre 1137 e 1144. Em poucos anos o curso da arte ocidental foi alterado: um novo estilo de arquitetura e escultura surgiu, novas formas - como a estátua-coluna - foram inventadas, e o vitral encontrou a sua utilização em larga escala. O estilo gótico conquistou a arte européia durante três séculos, e seu impacto pode observar-se no estilo neogótico dos séculos XIX e XX. O que terá levado Suger a empreender a reforma de Saint-Denis e dar origem ao estilo gótico?

Em 1946, Erwin Panofsky em seu livro Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures (1979), foi o primeiro autor a descobrir uma influência do Pseudo-Dionísio sobre Suger, tornando-se assim o marco para todas as outras iniciativas deste gênero. Panofsky considera Suger uma das figuras mais notáveis na história de França, e o descreve com uma ampla envergadura de dons:

    (...) um patriota feroz e um bom gestor; retórico um pouco em excesso e extremamente enamorado pela grandiosidade, e no entanto inteiramente terra a terra nos assuntos práticos e temperado nos seus hábitos pessoais; trabalhador e bom companheiro, pleno de uma natureza afável e bom senso, vaidoso, sagaz e de uma vivacidade irreprimível. Num século invulgarmente pródigo em santos e heróis, Suger distinguiu-se por ser humano (37).

Suger (1081-1151) tornou-se abade de Saint-Denis a partir de 1122 e assim permaneceu até ao ano de sua morte. Saint-Denis, designada como a mãe das igrejas francesas e coroa do reino, era abadia onde se depositavam as insígnias do poder real e onde se encontravam os sepulcros dos soberanos da dinastia francesa: merovíngia, carolíngia e capetíngia. Encontrava-se aí também o túmulo de S. Denis, padroeiro de França, o qual, devido a um equívoco, acreditava-se ser o mesmo que foi convertido e tornou-se discípulo de S. Paulo, Dionísio Areopagita, e um autor sírio, o Pseudo-Dionísio. Como Saint-Denis era a abadia mais régia e importante da época, muitos príncipes se educaram lá, o que favoreceu a Suger se tornar um respeitável diplomata e conselheiro a serviço de Luís VI (1081-1137) e Luís VII (1120-1180), chegando até assumir a regência do reino durante a segunda cruzada (1147-1149).

A reforma na igreja de Saint-Denis promovida por Suger teve duas etapas: a primeira tratou de uma renovação completa do nártex, através de uma cobertura de cruzaria de ogivas, e da fachada, com a inserção de uma rosácea, duas torres, três portais de entrada e um novo programa iconográfico (com estátuas-coluna e mosaicos); a segunda era ainda mais inovadora, através da combinação de elementos do arco quebrado, cruzaria de ogivas e colunas adossadas, a antiga abside carolíngia foi substituída por nove capelas radiais, com amplas aberturas para os vitrais. No dia 9 de Junho de 1140, foi consagrada a fachada ocidental, e no dia 11 de Junho de 1144, com a presença do rei, cinco arcebispos e quatorze bispos, realizou-se a consagração do coro luminoso.

Entretanto, para concretizar os seus planos Suger teve que enfrentar um grande obstáculo: o antagonismo estético de S. Bernardo. Durante o século XII, o abade de Claraval empreendeu uma nova cruzada contra a decadência moral e dos costumes nos ambientes monásticos, sendo o próprio Suger acusado pela sua postura negligente quanto à aplicação estrita dos ideais religiosos de austeridade. Não há dúvida de que na célebre Apologia ad Guillelmum Sancti Theoderici Abbatem, a descrição de um abade habituado a deslocar-se nas suas viagens com uma escolta superior a sessenta cavaleiros, não podia ser outro senão Suger. "Minto, se eu próprio não vi um abade que levava em sua comitiva mais de sessenta cavalos. Diria, ao vê-los passar, que não são pais de um mosteiro, mas senhores de um castelo; que não parecem mestres de almas, mas governantes de províncias" (Bernardus. Apologia P. L. 182 cap. XI 914 A).

Em 1127, Suger atendeu a invectiva de S. Bernardo e promoveu uma "reforma moral" na abadia de Saint-Denis e nas demais abadias sob a sua jurisdição. O que não era para menos, a série de cartas que o monge cisterciense lhe endereçou após a sua conversão, a par de não poupar elogios à sua nova administração, mostram que Saint-Denis, antes da reforma, era comparada - glosando Homero e S. João - à casa de oração que tornara-se um "antro de ladrões", uma "oficina de Vulcano" e uma "sinagoga de Satanás".

    Esta abadia, tão venerável pela sua antiguidade e ligações reais, tornara-se ponto de reunião de intriguistas políticos e militares. César obteve, na verdade, o que era seu sem fraude, demora ou dificuldade; todavia, o que era devido a Deus não foi respeitado tão fielmente. Falo agora, não pelo conhecimento direto, mas baseado no que me foi contado: diz-se que os claustros da abadia costumavam ser invadidos por homens armados, utilizados para transações de negócios públicos e por vezes profanados por alguns que os cânones não aprovam. Que espaço restava num local desses para algo espiritual, sagrado ou divino? Contudo, as coisas agora alteram-se. Foi restaurada a disciplina regular, a meditação e as leituras sagradas ocupam as horas de lazer dos monges; o silêncio e a paz da boa ordem criam uma atmosfera propícia à oração (...). Estas coisas mencionadas são em louvor de Deus, o Autor e Origem de todo o nosso bem; no entanto, algum mérito vos deve também ser atribuído como seu coadjuvante na obra ocorrida. Outrora, o Redentor censurou aqueles que transformaram uma casa de oração num covil de ladrões (Mat., 7, 6); portanto, Ele louvará o homem que libertou o seu lugar santo dos cães e as suas pérolas dos porcos; por cuja obra e zelo o que parecia ser uma oficina de Vulcano foi restaurado para o estudo celeste, de fato, a habitação de Deus foi restaurada a Ele, e restaurada do que antes era uma sinagoga de Satanás (Bernardus. Epistola LXXVIII P. L. 182 193 B - 194 A).

O abade de Saint-Denis renunciou ao mundanismo, mas permaneceu convicto de que a beleza material era um meio legítimo de se reverenciar e unir-se a Deus. Pode-se dizer que Suger, como estava "francamente apaixonado pelo esplendor e pela beleza em todas as formas" (Panofsky 14), concebeu o próprio cerimonial litúrgico como um ato estético. "Para ele a bênção da água benta é uma dança maravilhosa, com incontestáveis dignitários da Igreja, «decorados com vestes brancas, esplendidamente ataviados com mitras pontifícias e preciosas capas embelezadas por ornamentos circulares», a andar «à volta do cálice» como um «coro mais celestial do que terreno»" (Ibíd). O santuário inteiro também devia ser decorado pela pintura sacra e por toda espécie de ornamentos, pedras preciosas, tapeçarias, etc.

    Que cada um proceda segundo o seu entender. Confesso que a mim me compraz que todos os objetos mais preciosos devem ser usados sobretudo para a administração da santa Eucaristia. Se ânforas de ouro, frascos de ouro, e pequenos almofarizes de ouro eram habitualmente usados, segundo a palavra de Deus ou o mandamento do Profeta, para colher o sangue das cabras ou bezerros, ou da vaca ruiva, quanto mais justo não será reservar com contínua e inteira reverência para receptáculo do sangue de Cristo vasos dourados e pedras preciosas. (...) Os detratores objetam também que uma mente santa, um coração puro e uma intenção piedosa devem ser suficientes para esta função sagrada; também nós afirmamos explícita e especificamente que são estes que em primeiro lugar importam. Mas professamos que devemos render homenagem também através dos ornamentos exteriores dos vasos sagrados (Sugerius. In administratione P. L. 186 cap. XXXII 1234 C - D).

S. Bernardo, pelo contrário, condenava tais adornos. Como os monges têm que abandonar o mundo, renunciando a todos os prazeres da vista, ouvido, olfato, paladar e tato, inclusive, repudiando-os como escórias para conquistar o reino de Cristo, o abade de Claraval não via nenhuma vantagem no esplendor material do santuário. A sua posição crítica em relação às artes está condensada numa passagem da Apologia ad Guillelmum Sancti Theoderici Abbatem:

    Não comentarei a imensa altura, a imoderada vastidão das vossas igrejas, as suas dispendiosas pintura que atraem os olhares dos fiéis e impedem a sua devoção, além de recordarem um pouco o antigo ritual dos judeus. Admitamos que tudo isto é para a glória de Deus. Porém, como monge que sou, permiti que pergunte aos monges o que um pagão indagou dos pagãos: Dizei-me, pontífices, para que fim este ouro no templo? (Pérsio-sat., 2, 69). Dizei-me, pobres - se porventura fordes verdadeiros pobres - o que faz o ouro nos vossos santuários? (...) Expõe-se a belíssima figura do santo ou da santa, e qualquer um crê que é tão santo quanto colorido. Correm os homens para oscular, e ao mesmo tempo são convidados à doação, e mais é olhada a beleza do que é venerada a santidade. (…) Oh, vaidade das vaidades, mais loucura ainda do que vaidade! Os muros da igreja são resplandecentes de riquezas e os pobres vivem no despojamento; as suas pedras são cobertas de douradura e as crianças privadas de vestuário; faz-se servir o bem dos pobres a embelezamentos que seduzem o olhar dos ricos. (...) Qual é a intenção nas paredes do claustro, onde os irmãos lêem, aqueles monstros de deformada beleza ou de bela deformação? A que se destinam aquelas representações de macacos sujos, leões ferozes, centauros monstruosos, seres semi-humanos, tigres pintados, guerreiros em combate e caçadores a tocarem trompa? Ali podem admirar-se vários corpos sob uma única cabeça ou uma cabeça em vários corpos. (...) Meu Deus! Se o absurdo de todas estas coisas não nos cobre de vergonha, porque não lamentamos, ao menos, o seu custo? (Bernardus. Apologia P. L. 182 cap. XII 914 D - 916 B ).

Com efeito, embora Suger, após a conversão, tenha se tornado um grande amigo de S. Bernardo, promovendo inclusive o seu primeiro encontro com Luís VI em 1128, era forçoso justificar a sua reforma artística em Saint-Denis, para assim evitar que surgisse uma possível Apologia ad Sugerium Abbatem Sancti Dionysii. Deste modo, Panofsky considera que Suger, para defender-se do ataque de um "opositor imaginário", compôs os três opúsculos: De Consecratione Ecclesiae a se Aedificatae; Liber de Rebus in Administratione sua Gestis; e Ordinatio a.d. MCXL vel MCXLI confirmata; e retirou do Corpus dionisiacum "(...) não apenas a mais poderosa arma contra S. Bernardo, como também uma justificação filosófica de toda a sua atitude perante a arte e a vida" (Panofsky 18). Suger descobriu na obra do patrono da abadia - ou do suposto como tal - uma filosofia cristã que lhe permitia exaltar a beleza material como um veículo da beleza espiritual, ao invés de voltar as costas para o mundo sensível. "Ao aceitar o que ele julgava ser o ipse dixit de S. Denis, não só prestava homenagem ao santo padroeiro da sua Abadia como também encontrava a mais autorizada confirmação das suas crenças e inclinações inatas" (Id. 24).

O Corpus dionysiacum havia sido depositado na abadia de Saint-Denis por Luís o Pio, em 807, e fora traduzido do grego e comentado por João Escoto de Erígena, em 862, em substituição da tradução mal feita por Hilduíno, abade de Saint-Denis, em 835. Segundo Panofsky, as formas arquitetônicas de Saint-Denis deviam refletir o cerne da doutrina do Pseudo-Dionísio: o método anagógico:

    As hierarquias imateriais se revestiram como uma variedade de figuras e de formas materiais, para que nos elevássemos analogicamente destes sinais sagrados às realidades espirituais simples e inefáveis das quais são apenas imagens, uma vez que nem é possível à nossa mente, elevar-se até à imitação e contemplação das hierarquias celestes, sem que conte com a conduta material que é com ela comensurável (Dionysii. De coelesti hierarchia P. L. 122 cap. I 121 D).

Erígena absorveu a imagem dionisiana de luz, pela qual o mundo se converte numa "maximum lumen" (luz imensa), composta de muitas partes, e constando, por assim dizer, de "multis lucernis" (inúmeras lâmpadas), para revelar as formas puras das coisas inteligíveis e torná-las visíveis à agudeza do espírito, uma vez que a mente só pode elevar-se aquilo que é imaterial auxiliada por aquilo que é material.

    Há uma outra razão, que nos faz ver muito claramente que toda criatura visível e invisível é luz, e tira sua origem do Pai das luzes. (...) Tomemos um exemplo tirado da esfera mais íntima da natureza. Esta pedra ou este lenho representa para mim uma luz; e, se perguntares como, a razão me exorta a responder-te que a consideração desta ou daquela pedra me sugere muitas coisas que me iluminam o espírito. Com efeito, verifico que ela existe como algo de bom e belo, de acordo com uma analogia apropriada do ser; distingue-se dos demais gêneros e espécies em virtude da sua diferença genérica e específica (...). Estas e outras coisas semelhantes, que observo na pedra, se me apresentam como outras tantas luzes ou iluminações (Erigena. Super ierarchiam caelestem sancti Dionysii P. L. 122 cap. I 1 129 A - C).

O método anagógico do Pseudo-Dionísio, assimilado por Erígena, expõe a ascensão do mundo material para o mundo imaterial, "(...) e isto é o que Suger professou como teólogo, proclamou como poeta e praticou enquanto patrono das artes e organizador de espetáculos litúrgico" (Panofsky 20). Na luz física que iluminava o novo santuário de Saint-Denis, aquela realidade mística parecia tornar-se palpável aos sentidos, mas a luz não era apenas da arquitetura, era também da ourivesaria, dos relicários ornados de pedras preciosas, iluminados pelas velas e pelos reflexos das luzes que atravessavam os vitrais. Em seus escritos, Suger exalta a beleza do ouro e das pedras preciosas, cujo esplendor multicolorido seria capaz de conduzi-lo deste mundo material ao mundo imaterial.

    Quando, extasiado pela beleza da casa de Deus, o encanto das pedras multicoloridas afastou-me dos cuidados externos, e a meditação valiosa induziu-me a refletir, transferindo aquilo que é material para o que é imaterial, pela diversidade das virtudes sagradas: então, parece que eu me vejo habitando, por assim dizer, uma estranha região do universo, que nem existe totalmente na lama da terra nem na pureza do céu, e que, pela graça de Deus, posso ser transportado deste mundo inferior para o superior de um modo anagógico (Sugerius. In administratione P. L. 186 1234 A).

Na consagração da fachada, os versos que Suger registrou na porta dourada aludem à teoria da iluminação anagógica (Panofsky 23-24), onde os relevos em bronze são considerados luzes que esclarecem as mentes dos observadores por uma iluminação espiritual.

    Quem quer que tu sejas, se buscas enaltecer a glória destas portas,
    Não te maravilhes com o ouro e o custo, mas com o trabalho da obra,
    A nobre obra é clara, mas sendo de nobre clareza a obra
    Iluminará as mentes para que, através das luzes verdadeiras, cheguem
    Até à verdadeira luz, onde Cristo é a verdadeira porta.
    A porta dourada define desta maneira a luz interior:
    A mente entorpecida eleva-se à verdade através daquilo que é material,
    E ao ver esta luz, ressuscita da sua submersão anterior (Sugerius. In
    administratione
    P. L. 186 cap. XXVII 1229 A).

Já os versos do epitáfio da consagração do coro luminoso são para Panofsky uma "(...) orgia neoplatônica da metafísica da luz" (21), na qual Suger faz um trocadilho com as palavras clarere, clarus, clarificare, sendo que claritas é a palavra que Erígena explicitamente decidiu traduzir, para melhor se adequar às numerosas expressões gregas do Pseudo-Dionísio sobre o brilho ou esplendor que emana do "Pai das Luzes".

    Uma vez juntada a nova parte posterior à parte anterior,
    A igreja brilha com a parte central clareada.
    Porque o claro é aquilo que claramente se junta ao claro,
    E claro é o nobre edifício que é invadido pela nova luz
    (Sugerius. In administratione P. L. 186 cap. XXVIII 129 D).

Com a reforma de igreja fundamentada na personalidade tripla do patrono da abadia, Suger estava respaldado de uma possível ofensiva de S. Bernardo, pois agora se podia dizer que a igreja de Saint-Denis dava a Deus o que era de César. No entanto, o confronto artístico não se sucedeu. O que poderá, então, ter levado o abade de Claraval a ver com olhos mais benevolentes a reforma artística em Saint-Denis, e a ter maior complacência no caso de Suger do que costumava ter com os outros adversários espirituais? Panofsky supõe que tenha havido um acordo tácito de interesses entre os dois potenciais adversários. "Suger e S. Bernardo se haviam reconciliado. Porque reconheceram o quanto se podiam prejudicar mutuamente enquanto inimigos - um conselheiro da coroa e do maior poder político da França e o outro mentor da Santa Sé e principal força espiritual da Europa - decidiram ser amigos" (11). Em resumo, fazendo concessões ao zelo de S. Bernardo em questões morais e eclesiásticas, Suger logrou paz e liberdade em todos os outros aspectos.

Entretanto, não foi só o temor da personalidade de S. Bernardo que levou Suger a ter deixado suas impressões e memórias por escrito, Panofsky (29-30) ainda aponta dois motivos: o primeiro era sua vaidade pessoal, que embora disfarçada pelos seus protestos, ou antes, exatamente por causa deles, transparece em seu desejo de auto-perpetuação e nos costumes não condizentes com um monge do século XII, como gravar pelo menos treze vezes seu nome nas paredes e objetos litúrgicos, e pelos menos cinco vezes reproduzir sua imagem nos vitrais ou nos relevos; o outro seria a hipótese dele ser um arquiteto amador.

    Até que ponto ele era responsável ou co-responsável mesmo pelo desenho das suas estruturas deixo a outros que respondam. Mas parece provável que quase nada fosse feito sem a sua participação no mínimo ativa. Que era ele que selecionava e convidava pessoalmente os artistas, que era capaz de encomendar um mosaico para um lugar onde aparentemente ninguém o queria, e que idealizava a iconografia das suas janelas, crucifixos e painéis de altar, é atestado pelas suas próprias palabras (36).

A "disputatio" em torno de Suger, Saint-Denis e o gótico

Não foram poucos os autores que seguiram Panofsky na interpretação dionisina em Suger. Desde então, e partindo dos escritos de Suger, as questões do significado assumido pela luz que penetra os vitrais coloridos em Saint-Denis, e do papel que o abade exerceu no desenvolvimento arquitetônico, têm sido amplamente discutidas. Sem dúvida, este é o ponto mais debatido a respeito do gótico, e as mais variadas soluções apresentadas deram origem a uma espécie de disputatio escolástica.

Uma nova interpretação de Suger aparece com a tese de Simson, cuja base de pensamento mantém-se idêntica à de Panofsky. "A estreita analogia entre a metafísica dionisina da luz e a luminosidade gótica é evidente" (Simson 1964 106). O elemento novo é a influência de S. Agostinho na obra de Suger. "A estética de Suger, ou antes a sua teologia da beleza, é em todos os seus principais aspectos a do século XII. As suas tendências platonizantes e as suas fontes principais, Agostinho e, sobretudo, o Pseudo-Areopagita" (Id. 131). A influência agostiniana em Suger transparece na sua linguagem enfaticamente musical, utilizando-se da visão platônica da harmonia cósmica para exprimir os fundamentos místicos do seu santuário; esta observação Simson retira do seguinte trecho de Suger:

    O admirável poder de uma razão única e suprema equaliza pela composição adequada a disparidade entre as coisas humanas e divinas; e o que parece colidir reciprocamente pela inferioridade de origem e contrariedade de natureza é unido pelo singular, maravilhosa concordância de uma harmonia superior e moderada. Certamente, aqueles que se esforçam por tornar-se glorificados por uma participação nesta suprema e eterna razão freqüentemente devotam sua atenção ao debate contínuo dos semelhantes e dessemelhantes, no julgamento e sentença das partes litigantes, recostando-se no trono de uma mente engenhosa como se estivessem sentados num tribunal. Com a ajuda da caridade, pela qual se opõem ao conflito interior e à perturbação interna, saciam sua sede de modo salutar na fonte da eterna sabedoria da razão, antepondo o espiritual ao corporal, o que é eterno ao que é perecível. Põem em segundo plano as penas da sensualidade corpórea e dos sentidos exteriores e suas mais aflitivas exigências; elevando-se a si mesmos de sua opressão, de modo muito firme centrando a visão de sua mente na esperança da recompensa eterna, ocupam-se fervorosamente apenas daquilo que é eterno (Sugerius. De consecratione P. L 186 1239 B - C).

Esta passagem introdutória do De Consecratione Ecclesiae a se Aedificatae, que à primeira vista parece um tanto obscura e enigmática, "quase intraduzível" segundo Panofsky, é para Simson uma síntese do pensamento platônico de Erígena. Através da diversidade das coisas sensíveis o homem pode, de maneira anagógica, ascender à unidade e harmonia do mundo espiritual. Ao elaborar este comentário no prólogo do tratado sobre a construção da sua igreja, Suger pretendia sublinhar o significado anagógico da harmonia arquitetônica, do mesmo modo como havia salientado o significado anagógico da luminosidade. Para Simson, em suma, esta passagem deve ser entendida como uma reafirmação da estética musical da tradição platônica.

    O Prof. Panofsky pensa que ela constitue apenas «um prelúdio de orgão enchendo o quarto de magnífico som antes de surgir um tema discernível». O tema de Suger, no entanto, era inteiramente discernível para os seus contemporâneos. Torna-se-nos igualmente inteligível logo que olhemos para a obra do teólogo em quem Suger confiava como tradutor e intérprete do Corpus areopagiticum, isto é, Johannes Scotus Erigena. O platonista irlandês deteve-se repetida e longamente na lei da proporção harmônica, pela qual, dizia ele, a contrariedade e dissonância entre as diferentes partes do universo se reconciliam. Esta lei musical é para Erígena, bem como para Agostinho e Platão, a origem de toda a beleza (135).

Terão as idéias platônicas dos escritos de Suger determinado a composição arquitetônica de Saint-Denis? Simson não omitiu a questão, o abade de Saint-Denis tendo o conhecimento ao menos de um arquiteto amador, teria sido o dirigente da obra, aquele que fornece as idéias, não de natureza técnica, mas estética e simbólica (97-98). O seu objetivo principal estava relacionado com pretensões políticas de transformar a sua abadia no centro religioso e monárquico de França. "Suger empreendeu a reconstrução da sua igreja na intenção de concretizar o seu plano-mestre na esfera da política" (89).

Quanto à questão da controvérsia entre S. Bernardo e Suger, Simson difere completamente de Panofsky. Acredita que a teologia de S. Bernardo, tão próxima da dionisiana e, sobretudo, sendo essencialmente agostiniana, não era uma ameaça para Suger, mas um elemento de influência para o desenvolvimento do papel da luz e da harmonia musical em Saint-Denis. "A igreja de Suger, como é de recordar, é posterior à sua reforma do mosteiro, empreendida por insistência de S. Bernardo. Este fato e as relações de cada vez maior cordialidade entre os dois homens sugerem que a arte de St. Denis possa refletir as idéias de S. Bernardo" (Simson 111).

Em 1981, por ocasião do nono centenário do nascimento de Suger, foi realizado um simpósio no The Cloisters Museum - situado no The Metropolitan Museum of Art - e na Columbia University. Os ensaios apresentados foram compilados por Paula Lieber Gerson, e publicados na obra Abbot Suger and Saint-Denis: a symposium (1986). Um dos objetivos principais do simpósio era corrigir a negligência em relação à compreensão da verdadeira importância da figura de Suger, que agora era apresentada não só devido a sua posição de abade de Saint-Denis, mas também por causa da variedade de interesses e de força com que cumpriu os seus objetivos, cujo impacto foi sentido em áreas tão diversas como a política, estética, arte, literatura e teologia. "Suger ainda não recebeu a atenção dos estudiosos que foi concedida às figuras do século XII, tal como Pedro Abelardo, Pedro o Venerável, e Bernardo de Clairvaux -homens que tiveram sem dúvida grande impacto, mas cuja amplitude de interesses e influência eram muito mais restritas" (Gerson XI). Embora os ensaios abranjam diferentes facetas da carreira do abade Suger, todos os autores foram unânimes em reconhecer que realmente houve uma influência do Pseudo-Dionísio sobre Saint-Denis.

O ensaio Suger, Theology, and the Pseudo-Dionysian Tradition de Grover Zinn, apontou para a influência de um novo personagem em Suger, ao qual ainda não se havia dado muita atenção: Hugo de S. Vítor. "Suger foi, creio eu, fundamentalmente influenciado por Hugo em sua concepção da função das portas e outros aspectos de seu programa iconográfico em Saint-Denis" (Zinn 1986 35). Com efeito, Zinn critica a tendência de não se prestar atenção à configuração do pensamento do século XII, o que implica estreitar o foco da inspiração de Suger, vendo-o como um homem que se apropriou praticamente sozinho das idéias do Pseudo-Dionísio. Panofsky surge como o propulsor desta corrente, por ter apontado a figura de Erígena, do século IX, como o transmissor da influência dionisiana em Suger. "Panofsky habilmente trouxe à luz os elementos dionisíacos no pensamento de Suger, mas há uma necessidade evidente em seu trabalho para uma maior consideração do pensamento do século XII, bem como uma separação mais cuidadosa dos textos dionisíacos e erigeanos" (Id. 33).

De acordo com Zinn, o poema de Suger, encontrado na porta de bronze dourado da fachada oeste de Saint-Denis, não é uma noção dionisíaca da luz - como Panofsky fez crer - pela qual as coisas do mundo material são luzes capazes de elevar as mentes para a "vera lux", onde Cristo é a verdadeira porta; muito menos são uma síntese de toda a teoria da iluminação anagógica, apresentada pelo Pseudo-Dionísio e pelo seu tradutor e comentarista Erígena; em realidade, o poema, interpretado em conjunto com a porta e as suas oito cenas retratadas, tem um significado mais exegético do que anagógico (cf. Zinn 34-35). A advertência de Suger, para não se maravilharem com o ouro e as despesas, mas com o trabalho das portas, significa que as temáticas dos oito medalhões estão para a instrução, e não apenas para exibição ou devoção. Seguindo a admoestação da abertura do poema, o caráter definidor da porta não é, contudo, a idéia geral de que a porta, em seu brilho e cor, representa de forma exemplar uma grande variedade de lâmpadas materiais destinada a liderar a mente para a verdade invisível. "Gostaria de sugerir que é a iconografia da porta que se destina a apontar para uma compreensão muito específica do modo pelo qual a realidade visível leva à verdade invisível" (Zinn 35).

Os oito medalhões da porta de Suger mostram cenas da Paixão, Ressurreição e Ascensão de Cristo, incluindo uma representação dos dois discípulos de Emaús com Cristo, na qual Suger se inclui na postura de doador. Zinn sugere que Suger estava preocupado em transmitir a idéia de que somente através dos trabalhos associados ao Cristo crucificado, ressuscitado e ascendido, que se pode ter acesso ao verdadeiro significado do mundo material que conduz à verdadeira luz. "É proclamado pelo poema e pela porta, não um cosmos simbólico geral, com luzes materiais elevando-se à verdade, mas um cosmos especificamente cristocêntrico, enfatizando a humanidade de Cristo e o significado da Sua Crucificação, Ressurreição e Ascensão, à função simbólica do mundo material" (35). Deste modo, o fato de Suger - peregrino deste mundo e distante das realidades espirituais - incluir-se na cena de Emaús, significa que somente através da iluminação da Redenção de Cristo que os olhos físicos abrem-se para a realidade invisível.

Esta visualização de Suger sobre o papel da Redenção na obra da Criação, corresponde à distinção que Hugo de S. Vítor fez da teologia: 0 assunto da "divina theologia" é a obra de Restauração, enquanto que a "mundana theologia" tem por objeto próprio a obra da Criação (Hugo de S. Victore. Comment. in hierarchiam coelestem P. L. 175 lib. 1 cap. I 926 C). Embora sejam duas teologias, elas estão unidas, pois Cristo, sendo o Criador e o Redentor do mundo, unifica as realidades materiais e espirituais. Entretanto, apesar de Deus se manifestar em ambas as teologias, Ele só é verdadeiramente compreendido na teologia divina, que abrange a humanidade de Cristo - ou a Encarnação do Verbo - juntamente com seus sacramentos. Como Zinn (35) assinala, a ênfase sobre a centralidade do sofrimento e da humanidade de Cristo, está completamente ausente no pensamento do Pseudo-Dionísio e nos comentários de Erígena. Esta ênfase particular é obra própria de Hugo, que no prefácio de seu Commentariorum in Hierarchiam Coelestem S. Dionysii Areopagite, fez do Pseudo-Dionísio o modelo da sua teologia centrada na Encarnação do Verbo, e constituiu assim o tema distintivo dos vitorinos para a interpretação da tradição do pensamento dionisíaco.

Na passagem em que Suger comenta que o vitral dos Profetas levando trigo para o moinho manejado por S. Paulo, "(...) impele-nos (excitans) do material para o imaterial" (Sugerius. In administratione P. L. 186 1237 B), Zinn mostra que o verbo excitans não tem o sentido do anagogico mos de Erígena, que Panofsky tentou demonstrar (37). No entanto, Hugo de S. Vítor, numa passagem muito importante, o utiliza para distinguir a beleza visível da beleza invisível: "(...) a mente humana convenientemente impulsionada (excitata) ascende da beleza visível à beleza invisível" (Hugo de S. Victore. Comment. in hierarchiam coelestem P. L. 175 lib. II cap. I 949 C). O mesmo se pode aplicar ao verbo transfer da célebre passagem de Suger - extasiado pela beleza das pedras preciosas - "(...) transferindo (transferendo) aquilo que é material para o que é imaterial" ou "(...) transportado (transferri) deste mundo inferior para o superior de um modo anagógico", que estão mais próximo do transfero de Ricardo de S. Vítor do que do anagogico mos de Erígena (Zinn 36).

    Em conclusão, permitam-me mencionar uma passagem de outra influência possível dos vitorinos sobre Suger. Em 1120, Hugo produziu um desenho complexo, que apresentou em um símbolo visual a soma de seus ensinamentos cosmológicos, histórico, teológico e contemplativo. O desenho não existe mais, mas temos uma descrição detalhada de Hugo no De arca Noe mystica. Ele retratava Cristo segurando um disco que cobria seu corpo, deixando a cabeça, mãos e pés visíveis. O disco representa o cosmo e inclui complexos esquemas iconográficos ilustrando os seis dias da Criação, os doze meses do ano, os signos dos zodíacos e as estações, o curso da história sagrada de Adão até o presente, e o Juízo Final. O Juízo Final é retratado aos pés de Cristo, com os condenados e salvos indicados à direita e à esquerda, acompanhado pelos textos do Evangelho de Mateus, e muito parecido com a cena do tímpano de Saint-Denis (37).

Em 1987, Peter Kidson em Panofsky, Suger and Saint-Denis investiu-se contra cada pilar das interpretações de Panofsky, contrariando assim toda a tradição de pensamento que se havia construído até o momento. Embora reconhecendo o mérito de Panofsky em ter corrigido a visão puramente técnica que Viollet-le-Duc havia criado sobre o gótico, Kidson o acusa por ter consentido na "(...) tentação de reescrever a história de modo muito mais entusiástico do que a evidência justifica" (1987 1), de modo a produzir uma geração de historiadores de arte na Inglaterra e nos EUA restringidos à tendência panofskiana de interpretar a iconografia de Saint-Denis à luz do pensamento neoplatônico; o que talvez seja uma clara alusão ao symposium de Paula Gerson.

Kidson nega que Suger tenha sido criador do gótico, o que seria um "exagero grosseiro" de Panofsky, influenciado pelo fato do gótico nascer tão próximo de um movimento intelectual que transformou a Europa do século XII. "O que deveria ser óbvio para os historiadores da arte, se a mais ninguém, que patronos, mesmo os mais iluminados e exigentes entre eles, normalmente não inventam estilos. (...) Mas esta obviedade é algo que os medievalistas tenderam a negligenciar nos últimos anos, em parte alguns temendo a influência de Panofsky" (2). Como quase todos os documentos medievais relativos ao gótico provêm de Suger, isto provocou uma impressão distorcida do que realmente aconteceu, pois a contribuição do simbolismo religioso na arquitetura gótica pelo clero é um fator superficial no processo de design dos artistas (Ibíd). No entanto, os historiadores de arte foram sonhando constantemente com fantasias iconográficas, que na maioria das vezes jamais poderiam ter sido levadas a sério por qualquer arquiteto, ainda que lhe fossem apresentadas.

    Seria ridículo culpar Panofsky sozinho por tal estado de coisas, embora como um dos pais fundadores do estudo iconográfico, ele não pode escapar inteiramente de alguma responsabilidade. O que ele pode ser acusado é de ter retorcido a história para provar seu ponto de vista. Que ele o fez de boa fé não está em questão; (...) mas ele foi um historiador bom demais para tentar enganar, e precisamente porque ele procurou apresentar um caso bem documentado, ele é vulnerável às críticas que afirmações mais vagas do mesmo ponto de vista não são (Ibíd).

Kidson acredita que a autoridade de Panofsky deu ao seu ensaio uma importância estratégica fora da proporção de seu tamanho modesto e objetivos limitados, ainda mais porque aqueles que desejam reabrir o inquérito têm um ponto de partida óbvio para a investigação. Isto explicaria o motivo pelo qual Panofsky concentrou sua atenção mais na pessoa de Suger do que na arquitetura de Saint-Denis, deixando aos outros o prosseguimento das conseqüências implícitas de sua tese. Entretanto, os próprios fundamentos de Panofsky não seriam válidos, a começar que o Pseudo-Dionísio e Erígena não são mencionados pelos nomes e nem há citações identificáveis nos escritos de Suger (Id. 5). Como supostamente se tratava de uma defesa intelectual - contra S. Bernardo - o lógico seriam existir, sobretudo tendo em conta que nesta época a argumentação e citação das autoridades eram consideradas indispensáveis. A tentativa de se identificar idéias dionisinas características nos textos de Suger seria algo contraditório, pois acerca da principal delas, sobre a descrição dos nove coros angélicos longamente tratados no De coelesti hierarchia, não há nenhuma palavra em Suger e nem uma iconografia em Saint-Denis (Ibíd). Na ausência de referências explícitas, Panofsky teve que interpretar algumas evidências subtis que são consideradas saturadas do espírito do Pseudo-Dionísio.

A primeira é que Suger conhecia a metafísica da luz, o que o coloca como precursor da teoria que seria explicitada mais tarde por Robert Grosseteste e Roger Bacon (6). No entanto, o efeito visual deslumbrante da descrição do coro luminoso por Suger não necessitava de qualquer comentário dionisiano. "Panofsky faz um grande estardalhaço sobre a metafísica da luz em seu ensaio, mas não tinha muito como ir adiante em Suger, pois o que há tem falta de nitidez e precisão" (5). Panofsky também teria se convencido de que os versos da poesia de Suger contêm uma "orgia neoplatônica da metafísica da luz", mas os mesmos "(...) podem ser lidos facilmente como uma piedade convencional sem maiores implicações" (6). Inclusive, a referência ao anagogicus mos de Suger, não deve ser interpretada como uma linguagem direta do platonismo cristão convencional. Não existe o menor fragmento de evidência para sugerir que Suger tenha feito algum tipo de estudo sistemático do Pseudo-Dionísio ou mesmo que tivesse qualquer simpatia ou compreensão real da vertente neoplatônica na teologia cristã (Ibíd). A metafísica da luz, como a entenderam os filósofos da antiguidade e a patrística, estava certamente superior à capacidade de Suger e, ainda que a conhecesse, não teria utilidade no campo artístico, pois os próprios intelectuais medievais não estavam preocupados com a arte, quando se referiam à beleza, era apenas a beleza divina, etérea ou invisível que tinham em mente. A luz era o elemento encontrado para expressar a realidade entre o mundo material e o mundo espiritual, e era utilizada como uma linguagem semântica para a compreensão da teologia e não para fundamentar conceitos estéticos de objetos artísticos.

    As palavras de Suger soam como a confissão pessoal de alguém que tenta descrever uma experiência complexa para a qual o vocabulário comum de sua época não faz nenhuma provisão adequada. Isto envolveu uma intuição de valor que não era nem mística, nem intelectual. Suger achou propício à contemplação religiosa, e nesta medida houve um sentimento de elevação que lhe permitiu tomar emprestado a expressão anagogicus mos dos teólogos, embora ele próprio não se enganou, e nem devemos ser levados a pensar que tinha sido transportado para um reino além do dos sentidos. O essencial sobre isso é que estava fundamentado na beleza física do edifício e seus ornamentos. A arquitetura religiosa estava aqui realizando o que as almas sensíveis e imaginativas podem considerar ser o seu bom funcionamento, ou seja, oferecendo um antegozo do paraíso através dos sentidos. Em vez de conduzir a alma para o céu, ela traz o céu para a terra. Nós preferimos chamar tal experiência de estética, embora para Suger os elementos religiosos e estéticos estavam indissociavelmente fundidos, e ele não tinha nem o incentivo nem os meios para distingui-los. Longe de ser um platônico, Suger revela-se como um proto-jesuíta (7).

Em relação à controvérsia entre S. Bernardo e Suger, como ambos estavam comprometidos na reivindicação pela soberania universal do papado, Kidson acredita que esta aliança política superou divergências secundárias, como a da arte monástica (4). Neste aspecto, Kidson se aproxima de Panofsky, mas difere ao afirmar que não houve necessidade de Suger apelar as doutrinas dionisianas para defender o seu gosto pela arte (8). Como S. Bernardo já havia se oposto ao intelectualismo de Abelardo e de Gilbert de la Porrée, e o próprio Erígena era considerado suspeito de promover heresias panteístas, as teorias de simbolismo baseadas na metafísica da luz não lhe afetariam.

    Sem o Pseudo-Dionísio Suger perde muito de seu encanto artístico e histórico. Ele deixa de ser o comandante intelectual e reverte para um estilo mais convencional de patrocinador. Mas isto não significa que St. Denis deixe de ser sua criação especial. Mesmo sem o benefício da metafísica da luz havia ainda uma grande quantidade de luz, ou melhor, de cor, no prédio. As janelas eram certamente uma própria contribuição de Suger (10).

Se escritos de Suger não visavam uma defesa à censura de S. Bernardo, qual era o seu propósito ao escrevê-los? Segundo Kidson, a resposta está no próprio conteúdo, ou seja, se trata de uma prestação de contas, cujo objetivo era justificar o seu programa artístico aos seus subordinados, não havendo interesse fora do circuito da abadia de Saint-Denis. "Em suma, eles foram destinados unicamente para consumo interno" (9). Como as janelas eram a razão de ser do novo edifício, Suger teria se apropriado de toda obra, ocultando assim o verdadeiro mentor: um arquiteto genial, sem o qual seria impossível construir a complexa estrutura arquitetônica. "Quer Suger soubesse ou não, empregou um arquiteto de gênio que merece as nossas saudações, embora ele não pudesse ser nomeado" (11). Mesmo que Suger tenha sugerido algum simbolismo, foi o arquiteto que apresentou todas as soluções técnicas; o caso isolado do comentário alegórico de Suger sobre as doze colunas, explica-se devido à imagem ter sido sugerida pela necessidade do edifício, e não o contrário (14).

    Suger não era em nenhum sentido um sério seguidor do Pseudo-Dionísio. Ele era um clérigo ortodoxo numa posição de grande poder, e o seu principal objetivo como patrono era homenagear os santos de sua abadia. O novo coro de St. Denis foi concebido como um cenário para altares e relicários, e na medida em que era novidade, isto se deveu a um modo de apresentação que foi dramático o suficiente em seu próprio direito, e não deve nada ao simbolismo (17).

Contudo, embora seja um detrator da interpretação panofskiana, Kidson deixa em aberto a possibilidade de ter havido uma influência dionisiana em Saint-Denis, não proveniente de Suger, mas dos vitorinos. "Quanto ao Pseudo-Dionísio, se ele tinha algo a ver com a arte religiosa do século XII, foi através do movimento exegético associado (entre outros) com os cânones de S. Vítor, em vez de S. Denis" (17). Conrad Rudolph, três anos depois, não perdeu a oportunidade de levar ao extremo a brecha de Kidson - e a tese de Zinn - ao estabelecer Hugo de S. Vítor como o idealizador do programa artístico de Saint-Denis, em seu ensaio Artistic Change at St-Denis. Abbot Suger's Program and the Early Twelfth-Century Controversy over Art (1990). "É possível, eu acredito, ser mostrado que a participação de Hugo foi com toda a probabilidade muito mais direta do que se acreditava previamente, e muito mais fundamental para o programa de arte do que apenas a área isolada do misticismo da luz do Pseudo-Dionísio" (33).

O fundamento da tese de Rudolph está na controvérsia artística do século XII, conduzida por S. Bernardo. Entre os dois extremos monásticos da época, a austeridade dos cistercienses e o liberalismo dos beneditinos, Suger teria optado por uma posição moderada (8-11). Como a posição de Suger em relação à vida monástica não se ajustava ao ideal da reforma cisterciense, era preciso criar a aparência de que a reforma moral de Saint-Denis correspondia aos critérios de austeridade professados por S. Bernardo. "É interessante que as mudanças que entraram em vigor por Suger foram descritas como uma «reforma», mas por Bernardo apenas como «uma mudança inesperada». Dadas as circunstâncias, parece que Suger queria muito que suas alterações parecessem ser uma reforma" (10). Entretanto, a reforma moral de Saint-Denis parece ter sido pouco afetada pelas prescrições de S. Bernardo, sobretudo no que tange à liturgia e à disciplina, pois Suger não renunciou a riqueza na liturgia, o direito de sepulturas para a realeza, a expansão das propriedades, a visita de peregrinos, a melhora da qualidade nas refeições dos monges, etc. Seja como for, S. Bernardo se dispôs a aceitar as mudanças como suficientes, talvez como um incentivo, e lhe escreveu uma carta em 1127, felicitando-o pelo abandono dos envolvimentos sociais e do luxo na abadia.

No entanto, a reforma moral de Suger não era suficiente para justificar o seu programa artístico em Saint-Denis. No que se refere às artes monásticas, S. Bernardo concebia a arte como uma distração para os monges, pois a renúncia dos sentidos estava em oposição ao luxo, a espiritualidade em oposição ao materialismo e a simplicidade ou a pobreza voluntária em oposição aos gastos desnecessários (15-17). Nem mesmo a função de instruir os ignorantes era aceita para a arte dentro de uma igreja monástica, uma vez que o movimento da Reforma havia transferido a função do ensino para o clero secular. Deste modo, era necessário justificar o programa artístico de Saint-Denis ao nível intelectual/espiritual (19). Para se defender às críticas das despesas desnecessárias, Suger mostra que a reforma artística de Saint-Denis era feita para homenagear a Deus e aos santos, o que exigia o máximo do esplendor. A descrição de inúmeros sinais celestiais durante a reconstrução mostravam que a obra não era uma invenção humana mas procedia da vontade divina. "De fato, sinais tais como a disponibilidade de uma nova pedreira, de inesperadas vigas de madeira, de grandes quantidades de ouro e jóias, eram declarações tão claras da intenção divina que teria sido uma ofensa ignorá-las" (27). Contra a acusação de materialismo, Suger apresenta a arte com a função de elevar do material para imaterial.

Com efeito, toda a reconstrução e a ornamentação do interior da igreja de Saint-Denis era uma "reação moderada" ao antagonismo estético de S. Bernardo (11). Entretanto, já há muito que tem sido observado que Suger não teria capacidade para elaborar o complexo programa artístico de Saint-Denis, e muitos menos de apresentar o fundamento teológico da obra. Assim sendo, do mesmo modo que Suger procurou em diversas regiões os maiores especialistas artísticos que poderia encontrar, ele também procurou o maior especialista intelectual da época. "Era lógico que Suger, como provavelmente o único autor monástico de seu tempo que não compõe um único tratado teológico, deveria ter se voltado a Hugo para o aconselhamento teológico de seu complexo programa" (34). A patente contradição da linguagem pouco sofisticada de Suger com a sistematização teológica de seu programa artístico, sugere a presença de um intelectual na elaboração do projeto da reconstrução de Saint-Denis.

    Originalidade, clareza, geometria, o uso complexo da exegese, e o aparecimento do misticismo da luz do Pseudo-Dionísio, estão entre as características para as quais o programa de arte em St-Denis é mais conhecido. E, no entanto, os escritos de Suger são marcados pela falta de originalidade, pela virtual ausência de um sistema facilmente identificável de organização, de qualquer discussão sobre geometria, de qualquer argumento teológico substancial, e de qualquer apresentação abrangente do pensamento do Pseudo-Dionísio. Não é por acaso que é precisamente sobre esses pontos que Hugo de St-Victor, o teólogo contemporâneo parisiense, se destacou (32).

Devido ao estreito laço da abadia de S. Vítor com a realeza, Rudolph acredita que é muito provável que Suger e Hugo se conheceram (35-36). A abadia havia sido construída por Luís VI em 1113, que inclusive escolheu este local para o sepultamente de dois de seus filhos. Hugo dedicou seu comentário De Coelesti Hierarchia a Luís VII. Por outro lado, Guilherme de Champeaux, fundador da escola de S. Vítor, era íntimo amigo de S. Bernardo, ambos haviam perseguido o exagero dialético de Abelardo, o que favorecia o pensamento de Hugo ser plenamente aceitável pelo movimento da Reforma. Além disso, os escritos de Hugo estão pervadidos de referências à arte: comentários de Vitruvius, discussões sobre o simbolismo das obras de arte e uso de metáforas artísticas. Hugo, sem dúvida, era o maior comentador de S. Agostinho e do Pseudo-Dionísio do século XII. Deste modo, Rudolph considera que Suger teria baseado a defesa da sua arte monástica na exegese agostiniana e na teologia dionisiana através de Hugo, como seu conselheiro externo (72).

A complexidade exegética da iconografia de Saint-Denis era o meio pelo qual Suger poderia reivindicar o valor espiritual de sua arte, contra a objeção da arte como uma distração da espiritualidade dos monges. Por detrás da obscuridade das imagens estava a consciência teológica de Hugo, que se revelava aos monges através da leitura e da meditação, tornando-se um auxílio para se alcançar a contemplação das verdades sobrenaturais (62-63). O mesmo método teria sido aplicado na temática do conjunto de vitrais, o que leva Rudolph a concluir que a principal influência da criação do gótico não veio do Pseudo-Dionísio, mas da teologia simbólica agostiniana (70-72). De qualquer modo, a confluência do pensamento agostiniano e dionisiano no programa artístico de Saint-Denis era praticamente uma síntese da teologia de Hugo de S. Vítor (47).

Em 2005, o tema da célebre disputatio é retomado por Andreas Speer no ensaio: Is there a Theology of the Gothic Cathedral? A Re-reading of Abbot Suger's Writings on the Abbey Church of Saint-Denis. Semelhantemente a Kidson, Speer critica a interpretação panofskiana de que as idéias neoplatônicas terão determinado uma intenção metafísica no programa arquitetônico de Saint-Denis. Speer (2005) considera que esta idéia é baseada numa suposição transhistórica de uma congruência entre as noções modernas e medievais de estética (68). No entanto, uma compreensão de estética não pode ser encontrada na Idade Média. "O fascínio por aquilo que se chama estética medieval - ou eu diria o prejuízo - levou a um círculo metodológico: encontra-se o que se está procurando. Mesmo uma grande idéia é capaz de obscurecer a visão individual dos fatos óbvios!" (79). Sendo que o conceito distinto de belas-artes não aparece antes de 1750, com a Aesthetica de Baumgarten, a tentativa de encontrar uma fundamentação teórica, entre uma idéia filosófica e uma obra de arte, não é outra coisa que senão uma projeção moderna. Mesmo que se substituísse o termo "luz metafísica" pelo da "teologia da luz", referindo-se a luz como um nome divino, o problema hermenêutico ainda prevaleceria.

    A mesma problemática permanece válida para as tentativas de substituir Dionísio, o Areopagita, por exemplo, com Hugo de St. Vítor, quando procurando um fundo teológico contemporâneo. Portanto, o esforço de Conrad Rudolph para estabelecer Hugo como o verdadeiro gênio teológico criativo responsável pela fundamental «mudança artística» em Saint-Denis - uma tese sem qualquer evidência apoiada por fontes, com base apenas na presunção de Rudolph de uma estreita conexão entre as duas abadias de Saint-Denis e Saint-Victor com relação à teologia e à política da igreja - parece da mesma forma ser impulsionada pela convicção de que há a necessidade de uma efetividade formal entre uma idéia criativa dominante (metafísica ou teológica) e os princípios de arquitetura de uma obra de arte, no nosso caso a catedral gótica. De fato, esta foi também a tentativa de Otto Von Simson, que em seu livro «The Gothic Cathedral» procurou demonstrar uma causalidade formal e eficiente entre a filosofia neoplatônica-dionisíaca e a arquitetura gótica, enquanto Panofsky em sua introdução tentou apenas através de uma associação relacionar especulações filosóficas e teológicas à luz do brilho do tesouro da arte e dos radiantes vitrais das janelas (68-69).

Tanto Panofsky como Simson teriam se lançado em investigações de questões modernas, das quais os medievais não estavam interessados. Ambos autores, preocupados em descobrir os princípios do novo estilo arquitetônico ou as idéias criativas por trás do novo coro gótico, negligenciaram a importância central e a chave pela qual Suger se expressa: a liturgia. "Como Von Simson justamente sustenta, ele não está realmente interessado em estética, ele é - como eu enfatizo - muito mais guiado por necessidades litúrgicas" (69). Speer recorda que o próprio Suger, no Prooemium do De Consecratione, revela que a reforma na igreja era para homenagear os santos ali venerados, e que devido à superlotação de peregrinos em dias de festas - particularmente na entrada e na área de encontro entre o transepto e a abside - decidiu ampliar o coro e o nártex (72-74). Toda a reforma da igreja teria se elaborada de acordo com as intenções litúrgicas, a partir dos ofícios litúrgicos e da celebração Eucarística. Deste modo, a liturgia seria a fonte teológica da qual Suger utilizou-se para reconstruir Saint-Denis.

    A teologia que temos aqui de reconhecer, não é uma especulativa, que serve de acordo com um paradigma de estética hegeliana como a principal idéia criativa por detrás do empreendimento artístico e que inspirou uma nova arquitetura. A abordagem teológica de Suger está profundamente enraizada na história de vida de um monge medieval, e dentro de uma tradição que eu chamo de «teologia viva» (81).

Conclusão

Atualmente, o desfecho para esta disputatio não está tanto em lançar uma nova hipótese em detrimento das anteriores, mas trata-se de depurar as soluções apresentadas ao longo das décadas, para se estabelecer um quadro aproximado das idéias que guiaram Suger na origem do gótico em Saint-Denis. Para o efeito, não podemos ater apenas à estrutura arquitetônica, como fez Kidson, ou aos escritos de Suger, como fez Speer, é preciso considerar o todo integrado, juntamente com o contexto histórico no qual Suger empreendeu sua obra.

A concepção monástica de Suger, "moderada" como definiu Ruldoph, e que está atestada em seus escritos, particularmente pelos decretos de seu abaciado no Ordinatio a.d. MCXL vel MCXLI confirmata, diferia consideravelmente dos ideais austeros que o abade de Claraval prescrevia. As regras cistercienses, condensadas no Exordium Magnum Ordinis Cisterciensis ou na Apologia de S. Bernardo, proibiam o emprego de pinturas, esculturas e qualquer forma de luxo. Se Suger tivesse sido influenciado pela estética de S. Bernardo, como propôs Simson, em Saint-Denis não poderiam ter existido pinturas, esculturas, douradura de entalhes, luxuosos ornamentos litúrgicos, tapetes coloridos nas paredes, vitrais, cálices de ouro incrustados de pedras preciosas, etc. Assim sendo, não resta dúvida que S. Bernardo era um obstáculo para a realização da reforma artística de Saint-Denis (Panofsky), embora tal confronto não tenha se sucedido. O mais provável é que Saint-Denis, sendo um santuário de peregrinação, tenha sido incluindo na exceção que S. Bernardo estabeleceu para as igrejas episcopais: "Recordai que as igrejas episcopais e as monásticas não devem ser julgadas segundo o mesmo padrão. Os bispos, como devedores a sábios e a ignorantes, devem utilizar imagens convincentes para estimular a devoção de seres carnais aos quais as coisas puramente espirituais pouco atraem" (Bernardus. Apologia P. L. 182 cap. XII 914 D). Ademais, parece que à posteriori S. Bernardo se impressionou pelo significado dado à luz em Saint-Denis, pois os cistercienses foram uns dos principais responsáveis pela expansão do gótico na Europa, através de um programa arquitetônico ascético, onde não havia esculturas e as janelas eram transparentes.

Assim como S. Bernardo havia fundamentado doutrinariamente sua concepção estética, Suger precisa justificar sua obra ao nível intelectual/ teológico (Rudolph). Por outro lado, não sendo um teólogo e nem um pensador sistemático, Suger era incapaz de elaborar o fundamento doutrinário de seu projeto artístico (Kidson), aliás, como o próprio Panofsky reconhece: "Em lugar algum evidencia ele o menor interesse pelas grandes controvérsias teológicas e epistemológicas de seu tempo, como a disputa entre os realistas e os nominalistas, a amarga querela acerca da natureza da Trindade, ou aquela grande questão do dia, o caso da fé vs. razão" (17). Entretanto, a linguagem de Suger esboça de modo superficial um conhecimento teológico erudito, próprio dos escolásticos. O fato dele "tomar emprestada a expressão anagogicus mos dos teólogos", como diz Kidson, mostra que Suger contou com a ajuda de um conselheiro escolástico, que lhe forneceu o fundamento teórico de sua experiência vivencial ou, segundo Speer, de sua "teologia viva", e que certamente elaborou o complexo programa artístico de Saint-Denis. Deste modo, os epitáfios descritos por Suger no De Administratione e gravados por toda a igreja também não devem ter sido de sua autoria, uma vez que fazem parte do projeto arquitetônico. Em nenhum momento Suger fez um comentário sobre o conteúdo dos versos, ou seja, de sua simbologia, mas simplesmente mencionou sua presença ao relatar cada etapa da reconstrução de Saint-Denis. Daí a aparente contradição do conteúdo doutrinário dos epitáfios e da arquitetura com a linguagem pouco técnica de Suger.

Speer desacreditou a tentativa de se avaliar a concepção de Suger através da arquitetura, uma vez que o próprio abade relatou que a causa da reforma de Saint-Denis era por amor e a devoção aos santos mártires (especialmente S. Denis, o padroeiro), e devido à superlotação da igreja, principalmente em dias de festas. Entretanto, o próprio Suger explica também - em um trecho despercebido até ao momento - que para homenagear os santos e ampliar a igreja não elaborou o projeto sozinho, mas contou com o "virorum sapientum consilio", isto é, o conselho de intelectuais, o que não dever ser confundido com os bispos ou a nobreza, pois aos mesmos Suger se refere como "virorum illustrium" (homens ilustres). "Comecei a empreender a aumentar e amplificar o nobre mosteiro consagrado pela mão divina, ajudado pelo conselho dos homens sábios, pelas preces de muitos religiosos, para que não desagradasse a Deus nem aos santos Mártires". (Sugerius. In administratione P. L. 186 cap. XXV 1227 D).

Como era o costume da época, as decisões importantes eram debatidas em um "capítulo geral". Para se medir a magnitude de um capítulo geral, a ata dos decretos do Ordinatio está assinada por oitos bispos. Portanto, tudo indica que a obra de Saint-Denis foi elaborada por um conjunto de homens ilustres e sábios; a própria linguagem de Suger, em geral, está na terceira pessoa do plural. "Sem dúvida Suger discutiu seus planos com aqueles irmãos que ele achou interessados e cooperativos, e ele teve o cuidado em ter suas decisões formalmente aprovadas pelo capítulo geral" (Panofsky 28). Então, qual é a razão de Suger ter omitido as suas fontes? A resposta está na particularidade da personalidade de Suger observada por Panofsky e reconhecida por Kidson, o desejo de auto-realização, que o levou a se apropriar das duas partes mais importante da obra: a contribuição técnica e intelectual. Suger não fez nenhuma menção ao arquiteto de Saint-Denis, um verdadeiro gênio como Kidson se referiu, e do mesmo modo omitiu o responsável intelectual do projeto, utilizando-se de uma racionalização muito própria à Idade Média: "Portanto, sob a inspiração de Deus que empreendemos a primeira obra nesta igreja" (Sugerius. In administratione P. L. 186 cap. XXIV 1227 C).

Embora os escritos de Suger pouco revelem sobre suas fontes de inspiração, a estrutura arquitetônica de Saint-Denis, a iconografia dos vitrais e das esculturas, os versos registrados, refletem visivelmente um esquema sistemático de doutrinas metafísicas e teológicas/místicas. Como a reforma de Saint-Denis era uma homenagem ao seu santo padroeiro, o Corpus dionisiacum tornou-se a principal fonte de inspiração. Kidson se precipitou ao objetar que ninguém encontrou uma relação entre a doutrina do Pseudo-Dionísio sobre os nove coros angélicos e a arquitetura de Saint-Denis. Simson já havia mostrado que a exata disposição de nove capelas ao redor do coro e da cripta era uma referência a tal doutrina, assim como as celebrações dos prelados na cerimônia de consagração eram uma imagem da hierarquia angelical (139). Por detrás do coro luminoso, que produzia a elevação do mundo material para o imaterial, estava também a teologia dionisina da luz. Além disto, os dois principais epitáfios, do portal central e do coro, são um silogismo do conceito metafísico da luz. Negar a influência do Pseudo-Dionísio no projeto artístico de Saint-Denis é ignorar o legado documental de Suger e o consenso tradicional dos historiadores que se construiu desde Panofsky.

Por outro lado, como Zinn e Gerson demonstraram, a iconografia de Saint-Denis está relacionada com a cristologia e com a exegese simbólica. A iconografia dos vitrais, como os da "janela anagógica" de Suger - com as representações de Cristo e os sete dons do Espírito Santo entre Ecclesia e Synagoga, e de Cristo retirando o véu de Moisés -, tem uma particularidade exegética alegórica, onde o Antigo Testamento não é senão o Novo coberto por um véu e o Novo senão o Antigo desvendado. Os versos inscritos em torno dos vitrais ou descritos por Suger no De Administratione, são um testemunho incontestável de sua simbologia, como o da figura acima mencionado: "Quod Moyses velat, Christi doctrina revelat. Denudant legem qui spoliant Moysen" (O que Moisés oculta, a doutrina de Cristo revela. Aqueles que desvelam a lei despojam Moisés). Este tipo de alegoria, que aparece por primeira vez na iconografia, já era amplamente desenvolvido pela patrística, principalmente por S. Agostinho, e encontrou em Hugo de S. Vítor o maior representante do século XII, considerado um alter Augustinus. Portanto, é muito provável que Suger tenha convocado Hugo para fundamentar o projeto de Saint-Denis na principal autoridade teológica (S. Agostinho) e mística (Pseudo-Dionísio) da Idade Média e que tenha colocado nas mãos do arquiteto as soluções das questões técnicas. Deste modo, o pensamento agostiniano e o dionisiano não constituem duas fontes para Suger, mas apenas uma, a vitorina. E precisamente porque evocava o arquétipo teológico e místico da escolástica, o estilo de Saint-Denis foi adotado por todas as catedrais de França e tornou-se a expressão monumental da escolástica de pedra.


Referências1:

Bernardus Claraeballensis. Apologia ad Guillelmum sancti Theoderici abbatem.         [ Links ]

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1 Todos os documentos da Patrología Latina de Migne utilizados neste ensaio foram extraídos da URL: <http://www.documentacatholicaomnia.eu>.