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Escritos

Print version ISSN 0120-1263

Escritos - Fac. Filos. Let. Univ. Pontif. Bolivar. vol.24 no.52 Bogotá Jan./June 2016

https://doi.org/10.18566/escr.v24n52.a03 

http://dx.doi.org/10.18566/escr.v24n52.a03

AUTOFICCIÓN EN LA LITERATURA BRASILEÑA CONTEMPORÁNEA "JOSÉ", DE JOSÉ RUBEM FONSECA

AUTOFICTION IN BRAZILIAN CONTEMPORARY LITERATURE: JOSÉ RUBEM FONSECA'S "JOSÉ"

AUTOFICÇÃO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA "JOSÉ", DE JOSÉ RUBEM FONSECA

Jacqueline Oliveira Leão*

* Pós-Doutorado em Estudos Literarios pela Universidade Federal de Minas Gerais (20112013). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Brasil. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: "Espacos na Literatura Brasileira Contemporânea", UFMG/CNPq. Este estudo, "Autoficção na Literatura Brasileira Contemporânea, José, de José Rubem Fonseca", é resultado dos estudos de Pós-Doutoramento em Estudos Literários/UFMG (2011-2013). Vale dizer que "autor" e "autobiografía" são instáncias complexas e se abrem para muitas frentes de estudo acerca das complexidades entre o que se entende por discurso ficcional e não-ficcional. jacleao@hotmail.com CV: http://lattes.cnpq.br/6282997570287150

Artículo recibido el 29 de julio de 2015 y aprobado para su publicación el 4 de abril de 2016.


RESUMEN

Este texto propone reflexionar sobre el gênero autoficcional, dada la importante presencia de la escritura del yo en la literatura contemporánea. Esta reflexión se propone desde el marco teórico de la perspectiva comparatista. Por otra parte, este estudio propone discutir las movilidades intersubjetivas - autoficción, memoria e imaginación - y las posibilidades de relación de dichas categorías con la novela José, de Rubem Fonseca. Para tal fin, el trabajo enfatiza preguntas importantes sobre la fábula como gênero, la construcción del texto y la movilidad contenida en el concepto de autoficción.

PALABRAS CLAVE: Autoficción. Memoria. Imaginario. La Literatura Brasileña Contemporânea. Rubem Fonseca.


ABSTRACT

The article aims to reflect on the autofictional genre bearing in mind the significant presence of the writing of oneself [l'écriture de soi] within contemporary literature. Such a reflection is developed from a comparative perspective. The article, also, aims to discuss the intersubjective mobilities -autofiction, memory and imagination- and the possibility of relating such categories to Rubem Fonseca's José. In order to achieve such a purpose, emphasis is placed on relevant issues concerning the fable as genre, construction of the text and the mobility included in the concept of autofiction.

KEYWORDS: Autofiction, Memory, Imaginary, Brazilian Contemporary Literature, Rubem Fonseca.


RESUMO

Este texto propõe refletir sobre o gênero autoficcional, dada a importante presença da escritura do eu na literatura contemporânea. Esta reflexão parte do marco teórico da perspectiva comparatista. Por outra parte, este estudo levanta a discussão acerca das mobilidades intersubjetivas - autoficção , memória e imaginação - e as possibilidades de relação de tais categorias com a novela José, de Rubem Fonseca. Para este fim, o trabalho enfatiza perguntas importantes sobre a fábula como gênero, a construção do texto e a mobilidade contida no conceito de autoficção.

PALAVRAS-CHAVE: Autoficção. Memória. Imaginário. A Literatura Brasileira Contemporânea. Rubem Fonseca.


1. Introdução

Os autores de diários, qualquer que seja sua natureza, íntima ou
anedótica, sempre escrevem para serem lidos, mesmo quando
fingem que ele é secreto.

Rubem Fonseca

Ao pensarmos sobre a questão da autobiografía e como ela se atualiza enquanto relato da vida de um eu, imediatamente nos vem à memória uma variante muito recorrente, a certeza de que aquele que escreve sobre si nunca se contenta apenas com os registros de suas ideias no papel. Aliás, busca sempre retratar o seu eu por inteiro, procurando pincelar o que é e o que foi para tentar capacitar o leitor a entendê-lo e visualizá-lo através das imagens de si sugeridas. O eu que escreve sobre si recorda, diante da horizontalidade das linhas traçadas, os atos e dias, sem ter, contudo, a inteireza do tempo que já passou, mas encurta a distância do passado de um eu na única matéria privilegiada: a própria existência, a experiéncia de vida registrada em palavras escritas.

Nesse sentido, nem mesmo o simples fato de escrever um diário, gênero próximo à autobiografia, tão ingenuamente acreditado como forma exata de se expor a si mesmo, de expor o eu mediante os fatos vividos, as lembranças, os acontecimentos d-i-a-r-i-a-m-e-n-t-e registrados no papel, a forma de se descobrir aquilo que se é e aquilo que já não se é mais, através do passar do tempo, pode ser dado como escrita de um eu factual. O diário sugere, sim, apenas o pacto de autenticidade através dos fatos e acontecimentos ali registrados, pois é sempre um experimento de escrita. Os registros cotidianos, no sentido restrito do termo, não são mais que uma oficina de frases testadas, remendadas, ajustadas ao escritor ante o diálogo de sua intimidade, de seu próprio fazer escritural.

Parafraseando Roland Barthes (136), o diário, enquanto substância romanceada, não seria aquele texto que, além de encenar o imaginário por meio de um eu totalmente imaginado - ou se sentindo como tal -,despoja-se de seu autor na duração de sua narrativa? Se o diário se reveste de imagens que, na verdade, passam a ser aquela "cota de prazer" que o diarista oferece a si mesmo ao escrever/reler sempre as suas páginas, o imaginário é a "matéria fatal do romance e labirinto de redentes nos quais se extravia aquele que fala de si mesmo" (Barthes 136). No diário, pensando bem, o eu também se vira bem ou mal no espaço estreito de sua escritura.

Em vista disso, interessante é o sentido da frase que serve de epígrafe a este estudo. Nela, é Rubem Fonseca quem reafirma o fingimento literário como movimento contínuo de duplicidade: quanto mais o autor se esforça para mostrar sua interioridade, paradoxalmente, mais livre se mantém para encenar, permanecendo-se incógnito e consciente no jogo de sua própria encenação. Daí entendermos que não somente os autores de diários, mas todos os autores, mesmo fingindo sobre suas narrativas, escrevem para ser lidos, embora, às vezes, produzam, de forma inacreditável, verdades; outras tantas, mentiras.

Então, diante de tal complexidade discursiva, damo-nos conta de que a criação literária, em face de seu processo de idas e vindas imaginativas, possibilita aos escritores ficcionalizarem a si mesmos. Todavia, se a presença do gênero autobiográfico se vinca no legado romântico a partir do século XVIII, momento inconteste da elitização do eu, do interesse pela individualidade, como analisar as ficções tomadas por verdades autobiográficas? Como mapear a identidade ou a confissão do eu que escreve, se ele mesmo já encobre uma auténtica ficção na rede bem tramada que é a literatura?

Se nenhum texto pode ser definido com precisão, se todo texto ocupa sempre uma posição instável, se a escrita só se realiza em plenitude na negociação entre a oferta do autor e a demanda do leitor, se a própria escrita se coloca em movimento, apresentando-se como espaço aberto a significações no momento em que é atravessada pelo olhar, apossada por outro sujeito, a este breve estudo interessa discorrer sobre o gênero autoficcional, tendo em vista a presença significativa da escrita de si, do impulso autobiográfico e do recurso à autoficção como estratégia de criação literária, sobretudo quando traz à cena o romance José, de Rubem Fonseca, um dos grandes escritores da ficção brasileira contemporânea.

2. Autor. Autobiografia. Autoficção

L'autobiographie est toujours, en fait, une autofiction.
[A autobiografia ainda é, de fato, uma autoficção ]

Serge Doubrovsky

Para Foucault, em O que é um autor, a obra, que antes conferia imortalidade ao autor, passou a atestar o seu próprio assassinato. A identidade individual do sujeito que escreve, por intermédio do todo o emaranhado entre ele próprio e o escrito, destituiu-se de autonomia formal, fundindo-se ou esfacelando-se na própria construção do texto, cujos signos criados não refletem mais que a ausência do seu autor (36).

Não é isomórfica a relação entre o nome de autor e o nome próprio. O primeiro caracterizaria um modo de ser do discurso, assegurando-lhe uma função classificativa, capaz de descrever, metonimicamente, o conjunto de textos produzidos por alguém e relacioná-los entre si, além de não se confundir com tracos tradicionalmente atribuídos às personagens. O segundo seria apenas um elemento do discurso, agregado ao indivíduo real e exterior que o produziu. O nome de autor "[... ] não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas, sim, na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular" (Foucault 46).

De outro viés, em Estética da criação verbal, Mikhail Bakhtin afirma que ante a criação estética e os princípios do sentido, a relação entre o autor e o personagem deve ser compreendida em função dos próprios elementos constitutivos da obra. Conforme Bakhtin (03-09), o autor e o personagem são vistos como instáncias que se interpenetram, embora as afirmações feitas pelo autor acerca do personagem não somente vão além, como abrangem as afirmações do personagem sobre si mesmo.

No entanto, a posição valorativa, axiológica do autor abarca, além do personagem, o objeto estético no que se refere às formas, á linguagem. Daí ser ingênuo pensar-se na voz criativa, na voz do escritor como voz localizada e direta. Ela se constrói, na criação estética, sempre de modo deslocado. A voz criativa do autor-criador, como elemento estético-formal, deve ser entendida não como a voz direta do escritor, mas como ato de apropriação transpassado por uma voz social qualquer, capaz de ordenar o todo estético, de trabalhar a linguagem enquanto permanece fora desta mesma linguagem.

Para Costa Lima (297), todo gênero literário ou não-literário é uma forma de comunicação que se acerca de regras, com o intuito de eliminar equívocos e contradições na interação entre um interlocutor, que põe em evidéncia o processo de leitura, a expectativa do leitor porque, na verdade, quem se propõe a escrever nunca saberá ao certo como será lido, pois é o leitor que se prontifica a diferenciar o eu empírico do eu autobiográfico embaralhado no universo ficcional.

Nesse sentido, Costa Lima (293) acrescenta que tomar a autobiografia como confissão da verdade ou, caso não o seja, como grande fraude, engodo, significa classificá-la documentalmente, isto é, tentar provar de forma suficiente como alguém testemunha ou vive certa experiência, colocando o eu que narra em uma posição constantemente igual.

Se o eu imaginado é construído nas experiências passadas, a sinceridade é o axioma da autobiografia, mas sabemos que não é o seu ponto estável, início irredutível que se possa apoderar e reverter em palavra. Além disso, a autobiografia não pode ser tomada como documento histórico, pois é apenas o retrato do modo como alguém se vê a si próprio, "de como formulava a crenca de que era outro que atendia pelo nome de eu - um outro sem dúvida aparentado ao eu que agora escreve, com reações semelhantes e uma história idéntica, mas sempre um outro a viver sob a ilusão da unidade" (Costa Lima 294).

No âmbito da estética da recepção não podemos imaginar mais a autobiografia como gênero rigidamente estruturado. Na verdade, o pacto entre autor e leitor é que legitima a forma de leitura do texto engendrado como autobiográfico, que não apresenta regras explícitas para sua definição , regras para sistematizar-se como tal. Isso quer dizer que é, sobretudo, o modo de leitura que garante as identidades de autor, narrador e personagem, além da relação entre estas instáncias, uma vez que o importante é considerar a autobiografia como forma de leitura e não exclusivamente como forma de escrita, como efetivação de pactos discursivos específicos entre autor e leitor.

Além disso, o discurso autobiográfico constituído na modernidade é o pano de fundo sobre o qual se constrói o discurso da autoficção, que implica em uma nova noção de sujeito, pondo em evidência o retorno da figura do autor depois da crise filosófica do século XIX. Para Diana Klinger, "sustentar a existência de um retorno do autor implica necessariamente entrar no debate sobre a produção da subjetividade em relação com a escrita" (27). Na ficção contemporánea, não é mais possível demarcar com exatidão a velha fórmula do estilo individual, do traço inconfundível do tal sujeito da escrita.

Da problematização acerca do autor enquanto instância, afirmação de um eu, de um estilo individual, abre-se uma frente para o leitor que surge, então, como coprodutor de sentidos do texto, estes construídos conforme a maneira própria de sua leitura. Por este viés, o autor ascende ao status de personagem e o leitor ascende ao status de coautor, sugerindo tudo isso novas articulações de papeis, tornando mais complexa e dinâmica a criação literária, meio constante das reinvenções entre as funções de autor, de texto e de leitor.

Mais de trinta anos depois do surgimento do neologismo autoficção, a crítica ainda não sabe defini-lo em sua inteireza. O termo foi cunhado por Julien Serge Doubrovsky, J.S.D., iniciais que se referem realmente ao autor, ao descrever a relação entre pai e filho, no romance Fils, em 1977,que foi baseado em sua própria vida. Vale dizer que, em Fils, Doubrovsky faz referência ao gênero a que a obra poderia pertencer e, como salienta, não seria uma autobiografia, por ser esta um "privilégio" reservado a autores importantes; seria, pois, uma autoficção, ou seja, a ficcionalização de fatos e eventos rigorosamente verdadeiros, escritos, em que o nome do personagem principal coincide com o próprio nome do autor.

Claro que Doubrovsky abre outro espaço de percepção do texto autobiográfico, quando, em Fils, apresenta um romance com identidade onomástica entre autor, narrador e personagem. Isto, de certa forma, não só preenche a "casa vazia" deixada por Philippe Lejeune (49), em seu "pacto autobiográfico" 1, como também, ao mesmo tempo, antecipa outro tipo de pacto de leitura: em Fils, embora o nome do autor e do personagem seja o mesmo, é este último uma construção completamente ficcional, o que destitui o legado tradicional da autobiografia como também do romance.

A autoficção, segundo Doubrovsky em Écriture de soi (212), é mais que a ficção de fatos e eventos estritamente reais. É também a arte de acomodar os restos do eu no interior da obra, através da sintaxe da linguagem, mas escapando das formas do romance tradicional. A autoficção designa a atividade literária de ficcionalização do eu na literatura: o eu diz que o que se diz é verdade ou afirma que se mente ao dizer a verdade, e este gesto comprova a impossibilidade de transposição da vida para o universo ficcional.

Se Serge Doubrovsky tenta definir e se definir dentro da própria obra literária, inspirado no diálogo ou no contraponto das questões abordadas no pacto de Philippe Lejeune para a crítica literária, esses questionamentos se tornaram alvos de muitos estudos, provocando um constante debrucar em torno de dois pilares básicos: os postulados de Lejeune, ou seja, o pacto autobiográfico que preconiza a coincidéncia entre o nome do personagem e o seu autor, e a definição para o conceito de autoficção a partir de Doubrovsky, conceito que, paralelo à autobiografia, é deslizante e híbrido por ser a ficcionalização de si mesmo por parte do escritor.

Como defendido por Doubrovsky, o conceito de autoficção é contraditório ou até mesmo incompatível e só faz sentido quando se pensa na junção de elementos entre a autobiografia e a ficção, no movimento de interação do texto. Dessa forma, devemos levar em conta que escrever a própria autobiografia é, na verdade, tentar contar a própria história de forma original, auténtica, embora com todas as ressalvas resguardadas quanto à transposição do eu no texto por meio da escrita.

Na autobiografia, tenta-se acirradamente contar a história de si mesmo, da origem até o suporte máximo garantido pela escrita; já na autoficção , pode-se reduzir a própria história, dando-lhe aspecto bastante diferente, uma intensidade narrativa diferente da história vivida, um aspecto romanceado, embora com a presença dos dados factuais.

Para Eneida Maria de Souza, a realidade e a ficção são instâncias totalmente indissociáveis, pois não se opõem de forma radical, o que significa dizer que não é prudente, ou também satisfatória á análise literária, verificar, em se tratando de biografia ou autobiografia, se o acontecimento é verídico ou não, tendo em vista que o "próprio acontecimento vivido pelo autor -ou lembrado, imaginado - é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o mínimo distanciamento e o máximo de invenção " (21).

Há de se entender que não se trata de reduzir a obra à vivéncia do autor, demonstrando se a ficção é fruto ou resultado de sua experiência pessoal e única. A escrita autoficcional, por certo, funde fato e ficção, mas, por outro lado, deixa sempre garantida a incapacidade de o sujeito se mostrar, se revelar, se expor por inteiro através da escrita. A ficcionalização do eu é, na verdade, o próprio encenamento do eu, encenamento de sua subjetividade no ato da escrita e do discurso. O dado narrado no texto é, sobretudo, uma reinvenção do vivido, e ainda que esta se paute pela fidelidade às normas dos acontecimentos, há de se afirmar sempre como uma construção literária.

O discurso autobiográfico fundido ao discurso ficcional relativiza ambos, pois admite outras possibilidades de representação do escritor e, ao mesmo tempo, oferece outro viés de percepção do objeto literário, que se torna híbrido e diferenciado, pois não se pode falar em fronteiras delimitadas do discurso autobiográfico e ficcional.

Se Doubrovsky, em 1977, cunhou o conceito de autoficção, Vincent Colonna o reconfigurou como gênero híbrido, em que a ficcionalização do eu se torna para os mais variados grupos de autores uma prática literária pautada pela escrita das aparências. De acordo com os estudos de Vincent Colonna - Autofictions (93) -, ficcionalizar o eu é criar um sujeito imaginário, sujeito que conta uma história, contribuindo e colaborando com a fabulação de si, pois passa a ser, ele próprio, o elemento de sua própria invenção. Na literatura autoficcional, o autor e o personagem se vinculam a partir de uma identidade nominal que compartilha a obra de ficção, embora uma mesma obra possa ser determinada pela coexistência de diferentes posturas e práticas autoficcionais.

Nesse sentido, a autoficção confere à ficção o estatuto do vivido, jogando com a verdade através de um sujeito metamorfoseado, ambiguamente fortalecido pelo pronome eu, que figura entre o factual e fictício. O que desconstrói o limite rígido entre a autobiografia e a trama potencialmente engendrada no texto literário, porque "a trama literária tem a liberdade de engendrar autobiografias falsas" (Souza 72).

Por outro lado, conforme Silviano Santiago (174), na composição literária, no jogo autoficcional, o autor pode se alicergar nos dados autobiográficos, vistos como "força motora" da criação, no momento em que idealiza e compõe os seus escritos e, eventualmente, pode por eles ser explicado, jogando por terra a expressão meramente confessional, porque o próprio autor põe em cena a subjetividade criadora e os fatos da realidade. O que conta no processo criativo é o discurso marginal em constante contaminação, o texto híbrido, a contaminação da autobiografia pela ficção e da ficção pela autobiografia, porque ao trabalho do escritor e à escrita criativa inserir

[...] alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam (Santiago 174).

Na visão de Evando Nascimento (195), a autoficção não se apresenta com características definidas como o gênero autobiográfico - que se constitui no eu criado através do registro do outro, do outro que se diz dizer a verdade - e tentar enquadrá-la em qualquer classificação, mesmo que provisória, soa como traição à criação literária, ao "impulso inventivo", pois, em muitos casos, o atestado de verdade do texto é justamente aquele que já o certifica como verdade ficcional através do ato performativo do discurso.

Vale dizer que a autoficção não se limita, não legitima nenhum gênero, não se compromete nem mais ou menos com o factual e, muito igualmente, nem com o ficcional, simultaneamente, hibridiza o real, o imaginário, a ficcionalidade, a referencialidade na própria incerteza discursiva, na incerteza daquilo que se afirma como sendo o mundo referente, mas que é o tempo todo apenas o que o representa como se fosse o que parece ser.

Então, se o discurso preserva tanto as marcas factuais quanto ficcionais do sujeito que o produziu através de uma hibridização perturbadora, a autoficção deve ser compreendida dentro de uma performance discursiva e não sob aótica ontológica/convencional dos vários gêneros, pois os textos autoficcionais rompem as barreiras entre o "literário" e o "literal" e, ao fazer "coincidir, na maior parte das vezes, os nomes e as biografias do autor, do narrador e do protagonista, o valor operatório da autoficção cria um impasse entre o sentido literal (a referência real da narrativa) e o sentido literário (a referência imaginária)" (Nascimento 196-197).

Vale registrar aqui o tradicional quadro As meninas, de Velásquez, que sugere, através do pintor que pinta o seu eu espelhado, a mobilidade do conceito de autoficção, ou seja, o eu espelhado que se vê e se viu, vive e viveu, refletindo-se no espelho que o representa, como "se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro que está representando e ver aquele a quem se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis" (Foucault As palavras 3). Nessa perspectiva, a autoficção põe em questão o fazer autoral, as suas influéncias intertextuais e a sua recepção, deixando, principalmente, o reflexo do autor na própria ficção, ficção em que o personagem não somente se identifica com o autor, mas, através dele, se configura, tornando-se fundamental no texto.

3. "José", de José Rubem Fonseca

[... ] a história verdadeira da vida de uma pessoa jamais poderá ser
escrita. Fica além do poder da literatura. A história plena de qualquer
vida seria a um tempo absolutamente aborrecida e absolutamente inacreditável.

Isaac Singer

Se através de seus textos máscaras, textos isentos de correlação claramente explicitada com o próprio autor, textos imbuídos de personagens autónomos que se revelam como potências criadoras no universo ficcional, através do jogo de espelhos e enganos, de duplicidades, de identidades simuladas - Fernando Pessoa, há muito tempo, afirmou que "o poeta é um fingidor" -, atestando o próprio fingimento estético pluralizado, no romance José, Rubem Fonseca narra ao leitor, em linhas quase autobiográficas, as suas memórias - preservadas desde a infância -, de autenticidade duvidosa.

Veja-se quanto é ambígua tal narrativa. As memórias do personagem "José" configuram-se em passagens ora pingadas do plano ficcional, ora pingadas do plano factual, mas sempre embaralhadas a fatos duvidosos e, ao mesmo tempo, não menos auténticos, não menos referenciais, relacionados à vida de José Rubem Fonseca, o autor de carne e osso. Assim, sugestivamente, em muitas cenas de cunho autobiográfico, Rubem Fonseca apresenta a si mesmo dentro de uma escrita nada ingénua e carregada de malícia, sempre, contudo, pressupondo, a existência de outro: o leitor.

Cansado de ficar recordando, José quer parar um pouco e depois, mais tarde, bem mais tarde, voltar a recapitular as coisas que aconteceram em sua vida. Mas quer lembrar um episódio que se esqueceu de relatar (Fonseca 133).

Além disso, diríamos que, em José, há um jogo de vaivém em que se duplica, ambiguamente, a imagem do personagem e a do autor empírico. Este jogo escritural artificioso é muito peculiar aos textos contemporâneos, nomeados de autoficcionais. Lembrando que os textos autoficcionais apresentam em sua construção ficcional certo espelhamento indireto, ou seja, os dados biográficos do autor, do indivíduo, da pessoa, da estampa autoral se misturam ou se confundem com as criações literárias produzidas pelo autor, aquelas criações próprias do imaginário, do fazer poético, da fantasia, da construção fabricada do eu, enfim, da fabulação de si.

Nesse sentido, se os autores estão sempre atualizando os seus contratos de escrita com os seus leitores, produzindo narrativas que se querem o tempo todo verdadeiras, no texto fonsequiano, José, o autor deixa sempre a marca inconteste da memória como construção imaginária, e também o incontestável fato de que o texto literário se abre como arena, como lugar de jogo, como representação da realidade referencial.

De outro caráter, se seguirmos o raciocínio sugerido pelas palavras de Isaac Singer sobre a história da vida de uma pessoa, ainda acerca da ficção fonsequiana, destaca-se outro dado curioso e não menos intrincado: a capa do livro já se apresenta como grande jogo labiríntico da história vivida por José. Por meio de sugestóes imagéticas, o leitor percebe que, sob o primeiro plano da fotografia familiar envelhecida, fotografia que, inclusive, o leva a acreditar que pertenga ao personagem "José", lê-se o nome - do autor? - em letras garrafais: RUBEM FONSECA. Porém, no pequeno quadrado destacado pelo tom amarelo ouro, que também se sobrepóe ao plano da foto, dá-se relevo ao nome JOSÉ: este é o título do próprio livro, livro isento da correlação "romance". Se isso não bastasse, segue abaixo do nome JOSÉ, a assinatura em letra cursiva, tal qual é comum encontrarmos no Registro Geral de qualquer pessoa, tal qual é comum encontrarmos nos livros assinados pela pessoa civil, registrada: Rubem Fonseca.

Sendo assim, não é verdade, ou uma falsa mentira, que esses pequenos artifícios de escrita e imagem trazem à cena questões referentes à autoria do livro, à criação literária e ao seu processo de idas e vindas imaginativas, à ficcionalização do eu e à reinvenção da própria escrita, à veracidade acerca da assinatura do autor mineiro, de Juiz de Fora, pessoa civil, José Rubem Fonseca?

Veja-se que, possivelmente, com o propósito de encabular o leitor, brincar com a própria identidade da obra autobiográfica com um eu [i]legítimo, no decorrer da narrativa, aparece descrita, na fotografia/capa do livro, a hipotética cena familiar, um retrato compósito de ambiguidades extensivas não somente á condensação da cena, mas à enunciação, ao enunciado, à cópia e à apropriação da ideia de autenticidade. Ressalte-se que, ao colocar a suposta fotografia de infância na capa de uma pretensa autobiografia, o autor empírico altera, por tal gesto, a relação de representação, de modo que a fotografia original primeira, passa a ser aquela que se apresenta na capa do livro, enquanto a outra, a fotografia copiada, torna-se apenas uma repetida lembranga tal qual foi rememorada. Para o leitor, ver tal fotografia em relevo fortalece a percepção solitária - de que ele tem - da presença de algo que foi perdido, a cena fotografada da qual ele não participou, mas que, um dia, o olhar do fotógrafo transformou-a em imagem condensada, estática, desejosa de ser autêntica.

José tem até hoje uma foto, em que a máe e o pai estão de pé, tendo ao lado os dois filhos mais velhos, e ele está sentado num banquinho, de pimpão e laço de fita na cabeça; a mãe tem a mão colocada sobre o ombro de José, como quem diz fica quieto, não vá fugir para rolar o morro. Seu pai está meio de lado, de braços cruzados, vestido com um terno bem-talhado, um homem bonito. Sua mãe também está bonita, com um vestido de seda pregueado. Seus dois irmãos estão em pé, e o mais velho já tinha a fisionomia boa, responsável e generosa, que o faria sofrer e morrer do coração aos cinquenta anos. O irmão do meio demonstra no rosto a falta de sensatez que o faria criar problemas para toda a família (Fonseca 12).

Por certo, em José, a autoficção joga, ironicamente, com a própria ficção a partir mesmo do relato do autobiógrafo que, ciente das ocorrências traiçoeiras da memória, da inexatidão dos fatos narrados, representados, reafirma o seu esforgo para que, ao falar de sua infáncia, nada seja inventado. Contudo, "José" sabe e acentua que "todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras [pois] o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo" (Fonseca 6). Destas palavras de Rubem Fonseca, podemos tecer algumas considerações.

Em se tratando de autobiografia ficcional ou não, ou mesmo de autoficção, lembrar-se das coisas passadas não é lembrar-se das coisas como exatamente aconteceram, desenrolaram, sucederam e foram, é, sobretudo, dar corpo à ficcionalização de si, à fabulação, à impossibilidade de exprimir uma verdade de escrita. Ressalte-se que esta verdade sequer pode ter ocorrido enquanto dado factual, mas se apresenta enquanto constructo real da enunciação, no plano da escrita que faz emergir aos olhos do leitor as criações fictícias e imaginárias.

Desse modo, o leitor deve entender que a história narrada é, por excelência, imaginária, embora o autor não narre mentiras, mas finge narrar verdades e o leitor, dentro deste jogo cruzado, deve também fingir que a história aconteceu. Afinal, ler ficção é como participar de um jogo: o leitor re-significa uma infinidade de coisas, partindo do pacto de fidelidade às sugestões dadas implicitamente pelo autor.

Além disso, em José, o jogo de escrita, de ficção fingida, inventada, a que recorre Rubem Fonseca, leva o leitor a se ver imbricado em um mundo de trapagas, pois os dados ficcionais se entrelaçam com as representações factuais, ou seja, os fatos narrados pelo personagem "José" mostram-se próximos aos dados biográficos do autor José - José Rubem Fonseca -, coincidéncias que se iniciam pelo nome próprio. Note-se que tal qual o autor empírico, "José" estudou em uma instituição de ensino pública, no Rio de Janeiro, graduando-se também em Direito Criminal. Também é contista, escritor e, ao escrever, deixa claro que os seus textos são motivados por acontecimentos pessoais, ambições, sonhos, pesadelos, experiências de vida, tornando-se a si mesmo o protagonista dos episódios que se propóe a relatar. Não obstante, por formação e paixão, para "José" - e Rubem Fonseca -, o Rio de Janeiro é a sua cidade "e o cenário da maioria dos seus livros, ele se orgulha de ter nascido em Minas e gosta quando o chamam de escritor mineiro" (Fonseca 55).

Por outro lado, considerando a escrita sob o viés do autor empírico, também se nota que da imaginação de Rubem Fonseca estrutura-se a ficção José, ou melhor, a escrita de José se estrutura no "entrecruzamento dos planos do vivido, do sonhado e do imaginado, que, postos em contiguidade pelo relato do narrador, acabam equiparando-se, dissolvendo as dicotomias entre interioridade e exterioridade, entre o real e o fictício" (Figueiredo 66). Isso equivale a dizer que, em José, a escrita, a produção literária, o jogo autoral, tudo aponta para as contradições da narrativa contemporánea, ao mesmo tempo que transgride os padróes estéticos da tradição, pois o autor empírico joga com a identidade autobiográfica, ampliando artificiosamente as análises críticas entre fato e ficção e, consequentemente, as relações intersubjetivas entre ficção, memória e imaginário. Sendo assim, a escrita

[... ] nasce e trata da dúvida confessada, da divisão explicitada, em suma, da impossibilidade de um lugar próprio. Articula o fato constantemente inicial, a saber, que o sujeito não é nunca autorizado por um lugar, que não poderia se fundar num cogito inalterável, que permanece estranho a ele mesmo e privado para sempre de um solo ontológico e, portanto, sempre como resto ou sobra, sempre devedor de uma morte, endividado em relação ao desaparecimento de uma substância genealógica e territorial, ligado a um nome sem propriedade (Certeau 312).

Da análise apresentada até aqui, fica claro que o leitor pode começar a pensar na escrita artificiosa de Rubem Fonseca, José, como jogo de autoficção, isto é, o grande jogo intertextual que constitui o livro e o coloca frente aos deslizes contrastantes da estética contemporânea, estética esta em que a "ficção do escritor realiza entre o dentro e o fora, entre o próprio e o alheio, e entre o autor e o leitor" (Figueiredo 12). Vale dizer que, enquanto modalidade de escrita, certamente, a autoficção não aponta para um novo lugar em que se rompem as certezas canónicas, mas aponta para as possíveis leituras que rompem as barreiras entre o dado factual e dado como ficcional. Além disso, ao misturar memória, imaginário, tempo e espago, a autoficção remodela a identidade do autor, embora toda e qualquer narrativa se faz, se revela no próprio proferir da enunciação.

Vale dizer também que o autor que recorre a ficcionalização, de si, deixa um pequeno fio transparente entre o eu representado e o eu ficcionalizado, já que, na autoficção, o jogo exaustivo com o real se dá entre as remissóes passadas, os fatos supostamente vividos na vida pessoal do autor, nas barreiras que deslocam a leitura daquilo que se nomeia por factual e ficcional. Assim, o autor que ficcionaliza a si mesmo curva-se à própria história e, por meio do jogo de espelhos, fisga a representação, não no sentido de ilusão da realidade, mas para "fazer emergir o seu caráter de representação de uma representação" (Figueiredo 14).

4. Considerações finais

A autoficção, por um lado, não se constitui gênero específico, embora seu estudo esteja emergente, sendo, inclusive, uma tendência crescente na crítica contemporânea. Por outro lado, os textos que parecem conter os dados biográficos do autor têm sido nomeados indiscriminadamente por autoficcionais. Disso decorre que se, em dado texto ficcional, o personagem principal tem o mesmo nome do autor, o leitor depara-se com "autoficção"; se há semelhanga entre aspectos familiares e pessoais, "autoficção", o que não faz muito sentido à análise crítica. Obviamente, o termo autoficção carrega em si uma classificação ambígua e, ainda que haja o pacto ficcional que transcenda o pacto autobiográfico entre a vida do autor e a fidelidade do narrado, tais elementos podem fazer referência à realidade, mas não devem ser o centro de referência da leitura que, na verdade, é o conjunto de interação entre o texto, o leitor e o autor.

Embora sendo muito controverso, o conceito autoficção se acerca do gênero híbrido, da reinvenção na escrita, do movimento dúbio entre a ficção e o espago ambíguo da autobiografia. A autoficção aproxima-se, de forma sinonímica, do romance autobiográfico ou da autobiografia ficcional, pois é a própria ficção de acontecimentos reais, a subversão da escrita introspectiva, das fabulações de si. Vale dizer, inclusive, que as imersóes ao mundo imaginário juntamente com as apropriações das experiências factuais, ocorrências próprias do constructo ficcional, são estratégias escriturais que possibilitam o esfacelamento do eu, seja o eu textual, ou o eu autoral, ou o eu fictício, ou o eu empírico em vários sujeitos enunciativos, configurando-se um atentado contra o gênero autobiográfico canónico, aquele proposto por Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico.

Se pensarmos nas abordagens de Doubrovsky e Colonna, podemos tomar como ponto de interseção que a autoficção apoia e, ao mesmo tempo, configura a obra como ficcional, pois o autor, sim, ao recorrer aos dados de sua vida, a algum episódio em específico, os altera por questões pessoais ou estéticas, mas, sem dúvida, este mesmo autor não somente dá corpo a um personagem que o representa na ficção, como também evidencia a própria presenga dentro da obra.

Daí decorre que a autoficção se configura por ser aquela prática de escrita em que o autor e o personagem se fundem, extrapolando as fronteiras do que se convencionou a chamar factual e fictício; aliás, estas instáncias se confundem na própria confusão das identidades do autor e do personagem. Ademais há de se considerar que o pacto de leitura sugerido frente à obra autoficcional é aquele que pressupõe as possibilidades ficcionais experimentadas pelo autor dentro da própria ficção, ou seja, a ficcionalização de si mesmo pelo próprio autor. Desta forma, a obra que se firma sob o estatuto da autoficcionalidade reafirma o seu caráter híbrido de pacto com o leitor, tensionando a autobiografia com o caráter romanesco do texto produzido, pois a autoficção traz à tona, especialmente, a construção da autoria que, por outro parámetro, também provoca discussóes acerca da recepção textual no contexto contemporáneo.

Desse modo, a autoficção problematiza os personagens da ficção de forma dicotômica. Primeiro, há de se entender que o autor, através de seu autoengendramento, se recria a si mesmo, vinculando-se ao personagem construído na ficção. Segundo, o autor, como espectador de sua imagem projetada na narrativa, abre-se em possibilidades literárias de hibridizar fato e ficção, de forma simples ou combinada, sendo, por isso, outro, um duplo com natureza fictícia, outro que habita o mundo da ficção e que se mantém apoiado, paradoxalmente, pela realidade referencial, por meio daquele que o reflete. Se entendida assim, logo a autoficção é uma construção narrativa proposta pelo pacto de autenticidade identitária do autor, mas é sempre uma criação literária, atestada pelo caráter de ficção do próprio fazer literário.

O autor, na autoficção, embora esteja apagado biograficamente, constrói-se nas brechas de sua própria escrita de contar de si mesmo, como o eu produzido no texto. Ora, se o objeto literário é sempre resignificado, a autoficção, paralela à escrita autobiográfica, pode ser vista como procedimento literário que, além de hibridizar as fronteiras entre o factual e o fictício, traz á cena aporias que possibilitam o ressurgimento da figura autoral, ou seja, na autoficção o autor se legitima nos textos e se representa através do escrito ou representa aquele que intenta dizer, pois não se constitui como instáncia explicativa dos textos, e sim como possibilidade performática - dessubjetivação - de sua própria imagem, imagem, esta, encenada nos textos autoficcionais. Nesta perspectiva, o autor aparece borrado, investido da impossibilidade de confirmar o dado narrado como verdade ou não, sendo, ao mesmo tempo, uma figuração de si, uma visibilidade transparente, porque o próprio contar de si, seja este contar reminiscente ou não, já é ficção.

Na autoficção, estabelecem-se fronteiras discursivas entre o eu real e o eu imaginado, pois alarga a expressão do eu referencial, duplamente considerado ficção: o eu referencial - autor empírico - e a construção de si - a sua figura que, embora ficcional garante a sua presenga no texto. Então, o autor declarado anteriormente morto, ressurge assumindo um duplo estatuto: o eu dessubjetivado, vazio, em que se insere a escrita no texto e, contraditoriamente, o autor como enunciador, embaralhado no universo ficcional, recriado na escritura, já que, na autoficção se pretende reafirmar a própria figura de si, a própria posição do autor, que finge, dentro do texto, ser outros atràs das marcas ficcionais.

Sendo assim, a construção ficcional alude aos dados que se contemplam na relação intersubjetiva com o leitor, levando à contínua espiral de perguntas: isso se trata de uma ficção ou de uma autobiografia? Ou de uma autoficção, embora o autor tencione escrever uma ficção? Como responder a tal pergunta, se o autor, muitas vezes, é tomado em seu estatuto ontológico de personagem, o eu fictício é tomado por real, e o real ficcional é vicariamente dado por real?

Rubem Fonseca, ao explorar o vinco factual e ficcional no romance José, ficcionaliza-se atràs de personagens e situações imaginárias, reforgando o caráter de ficção da obra, tornando-se a si mesmo ainda mais indefinido e impessoal. Logo, Rubem Fonseca ao lançar mão da escrita autoficcional, marca, criativamente, a sua presenga na ficção. Contudo, não se pode dizer que, em José, determinada postura ou prática autoficcional não esteja definida, ao contrário, o factual e o fictício estão fundidos, pois se constituem como marcas discursivas, evidenciadas pela escrita.

Isso posto, o fictício se dá a conhecer em José, de Rubem Fonseca, não só por meio do repertório de signos próprios do texto ficcional, mas, possivelmente, ainda pelas marcas de ficção assinaladas e reconhecidas pelas convenções determinadas pelo autor empírico, em correspondéncia com o seu leitor. A perspectiva de ficcionalidade não designa a ficção como tal, mas, sim, o pacto efetivado, o contrato vigente entre autor e leitor, cuja regulamentação certifica o texto como discurso, porém, sobretudo, como discurso encenado.

Por um lado, em José, há diversos fragmentos tomados e identificáveis com a realidade de Rubem Fonseca, mas o mundo posto entre parénteses, ou seja, o mundo criado ou representado pelo autor não é, de fato, o mundo dado, embora o leitor deva apreendê-lo como se fosse a própria realidade. O conjunto semântico "como se" estabelece equivalência entre algo existente e a sua representação no plano ficcional, ou seja, no mundo imaginado. O "como se" ou "faz de conta" expressam que o mundo representado, embora sob o aspecto de projeção de dados do mundo empírico, mostra-se através do efeito de jogo representativo análogo ao mundo real. Entretanto, muitas vezes, aótica do leitor pode interpretar o texto diferentemente daquilo que, de fato, é representado enquanto analogia à realidade empírica.

Por outro lado, esta é a questão que se tornou mais intrigante: como Rubem Fonseca explora o artifício literário, a estratégia de escrita, a ficcionalização de si próprio em seu romance de memória, ou romance, supostamente, enviesado pelos dados autobiográficos? Rubem Fonseca, pelo menos diante daquilo que abordamos, pareceu-nos que, ao tematizar a escrita conflituosa do eu, instituiu alguns percalgos no próprio fazer literário, especialmente quando se mistura na autoria de seu texto e ficcionaliza fatos vividos na realidade empírica, pois manteve, através de suas memórias, uma relação de paralelismo entre o factual e o ficcional, tornando-se a si mesmo um "constructo autoficcional" - José, José Rubem Fonseca, Rubem Fonseca ou José, de José Rubem Fonseca?


Notas

1 As pesquisas de Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico, apontam para uma definição de autobiografia como descrição de um fato retrospectivo que a pessoa real faz de si e de sua própria existência, com ênfase em sua vida individual e, em particular, na historia de sua personalidade (Cf. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, p. 49). O texto autobiográfico, pretensamente vinculado à autenticidade imposta pela assinatura do autor e entrelaçado nos fios da memória, apresenta temporalidade própria, caráter particular e privado, já que se refere à história de vida do sujeito que narra. A autobiografia abrange, por certo, as escritas íntimas de tom memorialístico, documental e confessional, nas quais o sujeito discursivo se expóe ao máximo dentro dos limites do texto, embora ainda seja recriado na perspectiva de seus leitores.


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