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Cuestiones Teológicas

Print version ISSN 0120-131X

Cuest. teol. vol.46 no.105 Bogotá Jan./June 2019

https://doi.org/10.18566/cueteo.v46n105.a03 

Artigos

A ALEGRIA DO EVANGELHO E A PASTORAL HODIERNA. ALGUNS DESLOCAMENTOS PASTORAIS À LUZ DA EXORTAÇÃO APOSTÓLICA EVANGELII GAUDIUM

La alegría del evangelio y la pastoral actual. Algunos cambios pastorales a la luz de la exhortación apostólica Evangelii Gaudium

Happiness of the Gospel and Contemporary Pastoral Practice: Some Pastoral Changes in the Light of Evangelii Gaudium

Roberto Nentwig1 

Diogo Marangon Pessotto2 

1 Doctor en Teología Sistemática Pastoral Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil) Correo electrónico: beto.catequese@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2213-9519

2 Doctor en Teología Sistemática Pastoral Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil) Correo electrónico: diogopessotto@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-8484-5067


Resumo

A pós-modernidade é, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade para a evangelização em virtude da supervalorização do individual -herança da modernidade- e o retorno do religioso -como religiosidade imanente-. O magistério do Papa Francisco é um significativo caminho para a Igreja em face da realidade pós-moderna na esteira do Concílio Vaticano II. Propriamente a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG) explicita alguns princípios que implicam um novo posicionamento pastoral da Igreja hoje. Nesse sentido, buscamos delinear alguns possíveis deslocamentos pastorais decorrentes do mote evangelizador e missionário proposto pela EG com vistas ao estabelecimento de um novo agir pastoral da Igreja na contemporaneidade. Consideramos, para tanto, os elementos teológicos e pastorais de EG pertinentes ao tema e valemo-nos de alguns comentadores que desenvolvem o pensamento de Francisco, traduzindo-os para as realidades pastorais contemporâneas. Resultado dessa análise é a indicação de alguns deslocamentos pastorais, ou seja, atitudes e posicionamentos pessoais e eclesiais que ressignificam práticas pastorais de outrora, insignificantes para o sujeito pós-moderno. Tais deslocamentos não são uma simples adaptação condicionada pelas circunstâncias históricas e sociais; são, todavia, a explicitação da riqueza do Evangelho e da mensagem cristã que é significativa para todo homem e mulher em qualquer tempo e espaço.

Palavras-chave: Evangelii Gaudium; Papa Francisco; Pastoral; Evangelização; Pós-Modernidade

Resumen

La posmodernidad es, al mismo tiempo, un desafío y una oportunidad para la evangelización en virtud de la sobrevaloración de lo individual -herencia de la modernidad- y el retorno de lo religioso -como religiosidad inmanente-. El magisterio del Papa Francisco es un significativo camino para la Iglesia frente a la realidad posmoderna en el rumbo del Concilio Vaticano II. Más precisamente, la Exhortación Apostólica Evangelii Gaudium (EG) explicita algunos principios que implican un nuevo posicionamiento pastoral de la Iglesia en nuestros días. En este sentido, buscamos delinear algunos posibles cambios pastorales derivados del motivo evangelizador y misionero propuesto por EG con miras al establecimiento de un nuevo actuar pastoral de la Iglesia en la contemporaneidad. Para esto, consideramos los elementos teológicos y pastorales de EG pertinentes al tema y nos valemos de algunos comentaristas que desarrollan el pensamiento de Francisco, al traducirlos a las realidades pastorales contemporáneas. El resultado de este análisis es la indicación de algunos cambios pastorales, es decir, actitudes y posicionamientos personales y eclesiales que re-significan prácticas pastorales de otrora, insignificantes para el sujeto posmoderno. Tales cambios no son una simple adaptación condicionada por las circunstancias históricas y sociales; sin embargo, son la explicitación de la riqueza del Evangelio y del mensaje cristiano que es significativa para todo hombre y mujer en cualquier tiempo y espacio.

Palabras clave: Evangelii Gaudium; Papa Francisco; Pastoral; Evangelización; Posmodernidad

Abstract

Postmodernity is both a challenge and an opportunity for evangelization due to the overrating of individuality -a legacy of modernity- and the return of religiosity -as immanent religiosity. The magisterium of Pope Francis is a meaningful path to answer to our postmodern reality in the ways suggested by the Second Vatican Council. More precisely, the apostolic exhortation Evangelii Gaudium (EG) clearly sets out some principles that entail a new pastoral position of the Church in our time. Bearing this in mind, the purpose of the article is to present some possible pastoral changes as a result of the evangelizer and missionary motifs of EG, which aims at establishing a new pastoral activity for the Church in accordance with contemporaneity. For this purpose, the theological and pastoral ideas regarding this issue are considered and some commentators of the thought of Pope Francis are brought forward, who translate his ideas to contemporary pastoral realities. This analysis points out some pastoral changes, that is, personal and ecclesial attitudes and positions that provide new meanings to former pastoral practices, which are meaningless to the postmodern subject. Such changes are not only simple adaptations, determined by historical and social circumstances, but also the assertion of the richness of the Gospel and Christian teachings, which are meaningful to every man and woman in every place and time.

Key Words: Evangelii Gaudium; Pope Francis; Ministry; Evangelization; Postmodernity

INTRODUÇÃO

Aos 24 de novembro do ano de 2013, o Papa Francisco entregou à Igreja a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Após a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, com o tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã, Francisco convidou toda a Igreja e todos os cristãos para uma "nova etapa evangelizadora" (EG 1), marcada pela alegria do Evangelho a partir do encontro com Jesus Cristo. Nesse contexto, o apelo de EG é claro: "não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização" (EG 83).

Em sentido estrito, a evangelização supõe uma organização, à qual denominamos pastoral. Dado que Francisco convoca toda a Igreja a uma evangelização renovada, é certo que este ideal implica determinados posicionamentos pastorais que atualizarão a alegria do Evangelho para os nossos tempos. Disso decorre a continuidade do sujeito-Igreja mas a descontinuidade de práticas pastorais que não condizem com a novidade do Evangelho. Dito de outro modo, a vocação fundamental da Igreja permanece -anunciar e testemunhar o Evangelho de Jesus- mas os modos pelos quais a Igreja o faz devem corresponder às exigências do tempo presente, não como mera adaptação, mas como imperativo evangélico, pois "a doutrina certa e imutável, à qual o fiel é chamado a aderir pela fé, deve pois ser investigada e exposta pela razão, de acordo com as exigências da atualidade" (João XXIII, 2007, p. 32).

Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo delinear alguns possíveis deslocamentos pastorais decorrentes do mote evangelizador e missionário proposto por EG com vistas ao estabelecimento de um novo agir pastoral da Igreja na contemporaneidade. Não se trata de uma análise exaustiva do tema, mas da apresentação de alguns possíveis caminhos que iluminam os cristãos e os agentes de pastoral em sua tarefa de tornar significativa a mensagem do Evangelho no século XXI.

1. Esboço do cenário contemporâneo

Uma compreensão honesta do cenário contemporâneo vem de uma análise da pós-modernidade que, por sua vez, faz referência à modernidade como movimento histórico, social, cultural e religioso. É nesse ambiente que a Igreja evangeliza, assumindo seus desafios como oportunidades de ressignificação do anúncio e atualização de suas práticas pastorais.

Modernidade: deslocamento da religião

A ideia de transformação é central para a compreensão da modernidade. Em primeiro lugar, como condição de possibilidade para novas formas de viver e representar a realidade. Em segundo lugar, como processo de transitoriedade, ruptura e como esfaCelamento do sentido de continuidade histórica. O conceito de secularização e o binômio razão-subjetividade expressam a noção moderna de transformação em termos religiosos.

Quanto à secularização temos que é o processo no qual a religião não é mais o principal critério para a compreensão do mundo: "Do ponto de vista político-institucional, a Igreja Católica Romana perde o lugar de matriz religiosa e tem seu papel político diminuído" (Sanchez, 2010, p. 30). O principal aspecto da secularização é, pois, a ruptura do monopólio de interpretação do mundo pela Igreja.

Considerando tal ruptura, Touraine indica que "não existe uma figura única da modernidade, mas duas figuras voltadas uma para a outra e cujo diálogo constitui a Modernidade: a racionalização e a subjetivação" (1997, p. 218). A fonte de sentido foi deslocada para o ser humano: não está mais em Deus, mas na razão como subjetividade.

Pós-modernidade1: o retorno do religioso

Acreditava-se que, com a modernidade, a religião desapareceria aos poucos. Contudo, a pós-modernidade se deu na contramão dessa pretensão a-religiosa.

O conceito de pós-modernidade faz referência à época presente como catastrófica. Os mitos modernos foram destruídos, pois só trouxeram o desencanto. Restam o pragmatismo cotidiano, a fragmentação social e a experiência emocional dos indivíduos. O projeto pós-moderno é a criação de um novo mundo do nada, sem princípios e fins, no qual o valor é a ausência de valores.

No âmbito religioso, a religião pós-moderna exerce no sujeito uma função terapêutica: resignação, alívio e uma gama de fantasias diante das adversidades sociais e da vida. Nesse sentido, presenciamos o retorno do religioso2, que ressignifica os princípios modernos da individualização, subjetivação e privatização da religião: "O surto do sagrado é uma outra face da secularização da sociedade moderna e pós-moderna e não sua negação" (Libânio, 1998, p. 61).

A pós-modernidade, então, é o período das novas formas religiosas: "Contrariamente ao pensamento clássico marxista que assegurava o fim da religião, as interpretações atuais afirmam a substituição de uma situação inicial de monopólio religioso por uma outra de pluralismo" (Mónico, 2015, p. 2075). A sensação é de inundação religiosa de caráter imanente. Em suma:

tanto mais forte é esse surto religioso privatizado e individualizado quanto mais a modernidade se caracteriza pelo movimento de pluralização, gerando os mais diversos pluralismos. As ofertas crescem. As possibilidades de escolha aumentam. E também as combinações religiosas possíveis são ilimitadas (Libânio, 1998, p. 62).

Logo, a pós-modernidade contempla experiências vivenciadas tanto nas grandes religiões como nas novas formas religiosas sincréticas. Individualismo e combinações religiosas constituem o cenário religioso pós-moderno.

Pastoral hodierna: contextos e desafios

A Igreja não dialogou efetivamente com a sociedade moderna. Por sua vez, a sociedade pós-moderna não oferece respostas às questões humanas fundamentais. Em contrapartida, a modernidade -com os avanços científicos e o respeito à liberdade religiosa- e a pós-modernidade- com o retorno do religioso e a valorização das diferenças - formam um contexto sociocultural de abertura para a ação pastoral da Igreja. Nesse sentido, as épocas de crise são uma oportunidade de reavaliação e criatividade:

Também o cristão, embora reconheça ter uma vocação meta-histórica, que o faz viver diferentemente neste mundo, não deixa de ser deste mundo, [...]. Desse modo é sempre a partir de uma realidade concreta que deve viver sua fé. Nessa realidade que constitui o seu mundo, [...], se encontra não só determinada sociedade, mas também determinada configuração eclesial, determinada expressão teológica, determinada ação pastoral, todas intimamente conexas e se apoiando mutuamente (Miranda, 2006, p. 193).

A marca da cristandade é um desafio para a evangelização. Naquele período, de Constantino a meados do século XX, o Estado e a Igreja detinham a palavra e a doutrina católica era a referência para a organização social: "A quase ausência de sérios desafios não estimulava seja um questionamento, seja um aprofundamento dela. Tudo era aceito [...] já que pertencia à cultura hegemônica da época" (Miranda, 2006, p. 197). Por essa influência, a pastoral, em muitos casos, apresenta-se como manutenção da comunidade eclesial exclusivamente pela moral e pela distribuição dos sacramentos.

Outro desafio premente consiste em rejeitar as expressões autênticas do cristianismo em prol de uma homogeneidade das expressões religiosas. Isso seria prescindir do testemunho vivo das comunidades animadas pelo Espírito: "[...] não se pode silenciar a particularidade das verdades e das práticas cristãs, diluindo o cristianismo no que dele foi acolhido pela cultura ocidental" (Miranda, 2006, p. 265).

Nesse sentido, "como pode a fé cristã ser acolhida numa sociedade onde reina o pluralismo de concepções de vida e de definições de realidade?" (Miranda, 2006, p. 265). A fé cristã não pode renunciar à salvação que oferece a todos. Contudo, o cenário hodierno não nos permite considerar um cristianismo monolítico e homogeneizante. Por isso, o desafio pastoral está especialmente no campo da evangelização, numa ação pastoral atenta às exigências e complexidades atuais.

Deslocamentos pastorais

Podemos afirmar que os possíveis deslocamentos pastorais a serem depreendidos de EG tem seu fundamento na reforma missionária da Igreja proposta por Francisco. A Igreja em saída é a realidade que atualiza esta reforma, que é intrínseca à natureza e à missão da Igreja, tal como expressa o Concílio Vaticano II. Antes mesmo do Concílio, Yves Congar já havia tratado do tema em questão, afirmando que a reforma perene da Igreja é uma reforma evangélica, ou seja, uma reforma que afirma o Evangelho como fonte da vida eclesial3. Para o mesmo Congar (2014, p. 211-214), um dos critérios para a reforma da Igreja -preconizada por Francisco em EG- é a primazia da caridade e da pastoralidade. Portanto, refletir teologicamente sobre possíveis e necessários deslocamentos pastorais no hoje da Igreja é, de algum modo, refletir sobre a reforma da Igreja. A pastoralidade como critério para a reforma da Igreja rechaça a adoção de modelos eclesiais de outrora sob a justificativa de que responderam positivamente às necessidades de seu tempo e igualmente o farão nos tempos hodiernos.

Nesse contexto, Francisco explicita quatro princípios que repercutem diretamente na noção de pastoralidade e que o Pontífice deseja que a Igreja assuma em seu agir, parece-nos que todo e qualquer deslocamento pastoral pertinente à Igreja atual não prescinde (ou não deve prescindir) destes princípios:

O primeiro princípio: "o tempo é superior ao espaço" (EG 222). O tempo contrasta com o espaço que diz do limite, do momento. A existência ordenada pelos valores evangélicos não está preocupada com "resultados imediatos" ou com "espaços de poder e autoafirmação" (EG 223). Prioriza-se, em contrapartida, o tempo dos processos, que comportam "situações difíceis e hostis" ou "as mudanças de planos" (EG 223). O espaço privilegia o presente, ao passo que o tempo preconiza o futuro.

O segundo princípio: "a unidade prevalece sobre o conflito [...] Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade" (EG 226). Propõe o Evangelho a aceitação dos conflitos numa atitude de suportá-los para resolvê-los e transformá-los em um novo processo. A comunhão ou a unidade nas diferenças não é o rechaço destas, mas uma atitude de busca por uma nova vida que contemple a diversidade (EG 228).

O terceiro princípio: "a realidade é mais importante do que a ideia" (EG 231). Uma polarização no campo das ideias pode ocultar a realidade. Se as ideias não estão a serviço da realidade são meros "idealismos e nominalismos" (EG 232). Para Francisco, esse princípio vincula-se ao mistério da encarnação. A centralidade de Jesus Cristo na evangelização recorda à Igreja que a Palavra encarnada é o núcleo da missão evangelizadora.

Por fim, o quarto princípio: "o todo é superior à parte" (EG 234), lembra que os limites e as particularidades reduzem a compreensão da realidade. Ainda que se trabalhe no que está próximo, a visão deve transcender o presente e o imediato. O todo, portanto, leva em conta a contribuição de cada um e possibilita o sentido integral de uma determinada realidade. Com o Evangelho não é diferente, pois a sua riqueza está na sua integridade.

Assim, lançamos as bases teológicas que EG evidencia como substrato para alguns deslocamentos pastorais, os quais passamos a apresentar.

DA TRISTEZA À FELICIDADE

Em termos teológicos e pastorais seria leviana e alienante a proposta de um Deus que não nos quer felizes ou que nos incute medo ou culpa. Francisco evidenciou a referida questão no primeiro número de EG: "A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus [...] Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria" (EG 1). Sim, o Novo Testamento é prioritariamente uma notícia alegre, explicitada já no mistério da encarnação (Lc 1,28; 2,10-11). Outrossim, a alegria é dom de Deus, dom do Espírito (EG 4-6; Gl 5,22).

Embora sua autenticidade esteja intimamente ligada ao anúncio alegre da salvação, o cristianismo, não raras vezes, é reduzido a uma ascética ou a práticas religiosas que resultam numa religião intimista. Observam-se ainda sinais de uma pregação moral reduzida a uma ética estoica ou a um catálogo de pecados e erros (EG 39). O Evangelho, em sentido contrário, é um convite para uma resposta de amor, para uma saída de si mesmo a fim de anunciar a alegria do encontro com Jesus Cristo.

Ademais, propaga-se ainda hoje a identificação do ser cristão com o sofrimento. Faz-se necessária a superação do radical afastamento entre o divino e o humano, pois isso nega a própria encarnação do Verbo de Deus e o fato de que o próprio Deus se importa conosco e quis entrar na história para nos salvar. O sofrimento é parte da existência e é verdade que advém igualmente das escolhas que fazemos em prol do Reino. Porém, o sofrimento do cristão não é sinônimo de resignação piedosa. O reposicionamento da imagem do Deus cristão é crucial para a superação desse limite, que tem condicionado em muito a relação dos cristãos com Deus ao longo da história.

Castillo (2015, p. 519-520) indica uma tríade extremamente negativa que não deixou de assediar o cristianismo ao longo da história: a união entre religião, pecado e salvação. Algumas teologias afirmam que Deus salvou o mundo pelo sofrimento, o que implica, em última análise, que Deus é o culpado pelo sofrimento, é o autor do mal, o que é certamente uma contradição. Tal associação não conduz o cristão a nenhum outro caminho senão o de deixar de lado a alegria e a felicidade para levar uma vida de renúncias e abnegações desmedidas para alcançar a sua salvação. Inadequadas cristologias e soteriologias lançaram as bases de uma teologia da cruz desprovida de uma teologia do amor de Deus. O Deus-Amor, para muitos cristãos, é o Deus sádico e cruel, que deseja o derramamento do sangue de seu Filho para a salvação do ser humano. Na esteira dessa reflexão, afirma Castillo:

Se Deus é realmente Deus, não pode suscitar em nós desejos tão fortes que ele próprio, depois, se encarrega de nos obrigar e renunciar a eles. Se isso assim fosse, de que 'deus' estaríamos falando? De um sádico? De um tirano? De um monstro? (...) A partir do momento em que Deus é infinitamente mais do que o homem, Deus é anteposto a todo humano, de tal forma que, pela causa de Deus, pode-se chegar a matar ou matar-se, a sacrificar ou sacrificarse, sem que disso advenha felicidade e vida, mas, absolutamente o contrário, sofrimento e morte (Castillo, 2010, p. 33).

Isso não significa a anulação da realidade do pecado em prol de uma permissividade absoluta. Dos indicativos paulinos4 deduzimos que "o pecado é o princípio e a força que desumaniza os seres humanos" (Castillo, 2015, p. 538). A partir daí, quando o cristianismo associa pecado e salvação exclusivamente -rechaçando a categoria do amor- torna-se contraditório, pois se fomos criados no amor e para o amor (imago Dei) e dimensionamos nossa existência apenas a partir do medo ou da culpa oriundas do pecado, desumanizamo-nos. Que o pecado gera uma desarmonia pessoal, eclesial e social não há dúvida; porém, quando entendido unicamente como culpa ou ofensa pode fomentar e cristalizar uma concepção de cristianismo altamente penalizante, na qual sofrimentos e atos morais seriam os únicos meios de remissão, justificando inclusive comportamentos desumanizadores.

A salvação não é produto do esforço humano, mas graça. Deus é gratuidade absoluta (Moingt, 2010, p. 413), por isso vem com seu amor e nos oferece a salvação de modo gratuito. O centro é o amor e não o pecado e o sofrimento, ainda que sejam inerentes à condição humana. A religião quando amartiocêntrica, quando tem o pecado no seu centro, acaba por ser uma religião desumanizadora.

A Igreja, no contexto de EG, é conclamada por Francisco a recuperar a experiência da alegria como experiência central da vida de fé e da ação pastoral. Trata-se de uma espiritualidade da alegria e da felicidade, cujo mote é a saída para comunicar a alegria que experimentamos no encontro com Jesus. Isso não se refere a uma felicidade egocêntrica ou falsa, mas aquela que provém do empenho em comunicar a alegria a outrem, alegria que advém da fé e que implica a luta contra toda dor, injustiça, angústia e tristeza. Por isso, é missão da Igreja anunciar a felicidade, uma ética de felicidade que tem suas bases no Evangelho. Assim, ressignifica-se a teologia da cruz, pois o verdadeiro sacrifício que se espera dos cristãos não é uma auto-penalização, mas a oferta de si como sacrifício vivo (cf Rm 12,1), para o bem (cf. Hb 13,16).

A ética cristã da felicidade, em síntese, é contrária ao hedonismo que reduziu a carne ao prazer, mas também é contrária à ênfase da dor e do sacrifício. O anúncio da Boa Nova implica em proclamar que nós, seres humanos, somos felizes por termos nascido e, por isso, nossa vida deve ser fonte de felicidade e bem estar, tal como afirma Parekh:

Cria toda a felicidade que puderes, suprime toda a infelicidade que puderes. Cada dia te dará oportunidade de acrescentar algo ao bem-estar do demais ou de mitigar em algo suas dores. E cada grão de felicidade que semeares no peito alheio germinará em teu próprio peito, ao passo que cada dor que arrancares dos pensamentos e dos sentimentos de teus semelhantes ficará substituído pela paz e pela alegria mais famosas no santuário de tua alma. (Parekh como es citado en Castillo, 2010, p. 140)

Da massificiação à personalização

A emergência da subjetividade exige da pastoral o caminho da personalização, superando a massificação. É certo que nossas opções pastorais, por vezes, criaram uma elite de católicos, a classe de lideranças que está mais perto do clero, o que faz necessária uma pastoral de massa com a finalidade de impactar ao maior número de pessoas (Leusbaupin, 1996, p. 10). Ações de massa têm sua relevância, mas não esperam grandes e imediatas transformações nas pessoas, salvo a penetração do Evangelho na vida do povo. Urge, então, o cuidado contra a tendência da cultura da massificação tão presente neste contexto de mudança de época.

Por conseguinte, um dos caminhos pastorais mais eficazes é o da personalização. Os interlocutores de nosso tempo têm a necessidade de horizontes de sentido a partir de uma experiência que afete o seu interior. Ora, não é suficiente a evangelização das multidões, mas a personalização: o acolhimento das individualidades com seus dons e limites (Nentwig, 2014, p. 29). As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil 20082010 (DGAE) assim apontam:

Importa valorizar o encontro pessoal, como caminho de evangelização. Nele se aprofundam laços de confiança e experiências de vida são partilhadas [...] Através da visitação, do contato pessoal, contínuo e organizado, manifesta-se a iniciativa do discípulo missionário, que não espera a chegada do irmão ou irmã, mas vai ao encontro de cada um, de cada uma e de todos (DGAE 117).

Para que a personalização seja efetiva é preciso repensar o tamanho da comunidade. Aqui é importante o resgate da experiência dos primeiros séculos, quando o lugar das reuniões das comunidades cristãs era a casa-moradia (oikia) e seu núcleo era a casa-família (oikia). As igrejas domésticas fundadas por Paulo eram pequenas comunidades compostas de algumas dezenas de pessoas, comunidades domésticas (Codina, 1993 p. 72). Este modelo comunitário do Novo Testamento é inspirador para os tempos atuais, pois a globalização impõe um horizonte de individualismo. A pastoral de pequenas comunidades é uma tarefa irrenunciável dado o ideal da personalização, pois permite a experiência de Jesus Cristo vivo na comunhão fraterna entre irmãos de fato.

A Igreja da América Latina já defende este modelo desde a Conferência de Medellín, inspirado na pastoral produzida pela Teologia da Libertação:

A vivência da comunhão a que foi chamado, o cristão deve encontrá-la na 'comunidade de base': ou seja, em uma comunidade local ou ambiental, que corresponda à realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita a convivência pessoal fraterna entre os seus membros. Por conseguinte, o esforço pastoral da Igreja, deve estar orientado à transformação dessas comunidades em 'família de Deus', começando por tornar-se presentes nelas, como fermento por meio de um núcleo, mesmo pequeno, que constitua uma comunidade de fé, esperança e caridade [...] Ela é, pois, célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização (Medellín 15, IIIa, 1a)5.

Importa que as comunidades tenham tamanho humano (Brighenti, 2009, p. 157): comunidades pequenas, afetivas, acolhedoras, concretizadas em espaços de resgate da identidade, da dignidade e da autoestima, aberta a todos. É preciso descentralizar e articular as grandes massas impessoais. O elemento fundamental deve ser o grau de pertença de seus indivíduos: "A comunidade deve ser tão grande que caibam nela todos os diferentes; por outro lado, deve ser tão aconchegante que ninguém e nenhuma realidade nela existente se sinta excluída" (Bassini, 2009, p. 107).

As comunidades de tamanho humano não são fechadas em si mesmas. Além de criar uma comunhão afetiva de seus membros, ser lugar de partilha, oração e escuta da Palavra, empenham-se na missão. Sua tarefa é cuidar da vida, aproximar-se dos pobres na luta pela justiça e trabalhar por uma sociedade mais acolhedora, vencendo as exclusões e os preconceitos.

Tais comunidades são fortemente indicadas para a renovação das paróquias diante do desafio da pastoral urbana, configurando a comunidade paroquial como uma rede de comunidades.6 As pequenas comunidades em rede não devem perder de vista a comunhão com a comunidade mais ampla pois, do contrário, transformar-se-ão em guetos. As comunidades estão vinculadas à paróquia e esta à Igreja Particular. Mesmo circunscrita a uma delimitação espacial, não é necessário que a vizinhança seja o único critério de sua composição, pois a proximidade geográfica nem sempre significa o surgimento de vínculos afetivos. Nesse sentido, podemos conceber uma paróquia cada vez mais descentralizada:

A grande comunidade, praticamente impossibilitada de manter os vínculos humanos e sociais entre todos, pode ser setorizada em grupos menores. A paróquia descentraliza seu atendimento e favorece o aumento de líderes e ministros leigos e vai ao encontro dos afastados. Não se deixa a referência territorial das comunidades maiores, mas se criam novas unidades sem tanta estrutura administrativa (CNBB, 2014, n 244).

Nesse contexto, significativa para Francisco é a categoria povo tanto em termos eclesiais -a Igreja Povo de Deus- como em termos culturais -os diversos povos da terra-. Nesse sentido, EG supõe a proximidade com as pessoas como um de seus elementos constitutivos: "Para ser evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isso se torna fonte de uma alegria superior" (EG 268). A alegria como experiência de sentir-se amado é sempre renovada quando o evangelizador partilha com o povo o amor recebido; porque se a missão é a paixão por Jesus, a paixão pelo povo decorre dela necessariamente quando reconhecemos o amor do Crucificado dirigido a todo o seu povo (EG 268). Conformada a Jesus Cristo pela ação do Espírito Santo, a Igreja é chamada a assumir a "opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo", a saber, a própria vida de Jesus: "Como nos faz bem vê-lo perto de todos!" (EG 269).

Para Francisco, o Evangelho nos atesta que Jesus sempre esteve disponível ao encontro, partilhando as alegrias e os sofrimentos daqueles que dele se aproximavam ou dos quais ele mesmo se aproximava:

Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura (EG 270).

O "prazer espiritual de ser povo" tem seu fundamento no encontro com o amor de Deus que leva a Igreja ao encontro das pessoas, não importando as situações nas quais se encontram e mesmo as consequências desse encontro, a exemplo dos apóstolos e dos primeiros cristãos que deram a vida pelo anúncio do Evangelho. Por isso,

saíamos, saíamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças [...] Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida (EG 49).

Daí que o deslocamento da massificação à personalização se exprime igualmente no que chamamos no diálogo inter-religioso de via convivial. O diálogo da vida é de pessoa a pessoa, ocasional e permanente, próximo e afetivo. Tradução atual desta via é a "cultura do encontro", sobre a qual o Papa Francisco afirmou na XXVIII Jornada Mundial da Juventude: "O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade [...] e a fraternidade são elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana. Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro" (Francisco, 2013)7. A "cultura do encontro" é expressão de um diálogo autêntico e aberto, para um enriquecimento mútuo, do qual a fraternidade e a comunhão são os efeitos visíveis. "Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou simplesmente -[...] - 'estar aberto a eles, compartilhando as suas alegrias e penas'" (EG 250). Não necessita de espaço formal/institucional; não possui agenda prévia; e não busca outros objetivos que não o próprio diálogo e a partilha de vida.

Da doutrina à mensagem

A evangelização e a pastoral da Igreja supõem um processo de aprofundamento pessoal e comunitário a partir do primeiro anúncio. Tal processo não se refere unicamente a uma formação doutrinal mas, como nos aponta Francisco (EG 161), ao crescimento no amor como resposta ao amor de Deus. Também esse caminho de amadurecimento é graça e dom que "torna possível essa santificação constante" (EG 162) pela vivência do amor. Acerca desse processo, afirma Francisco:

[...] ao designar-se como 'primeiro' este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, de uma forma ou de outra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos (EG 164).

O primeiro anúncio o é, portanto, em sentido qualitativo e não apenas em sentido cronológico. Ora, se a vocação da Igreja é evangelizar, o anúncio mais importante deve nortear todos os esforços evangelizadores e, por consequência, deve iluminar e dotar de sentido todos os demais. Pois bem, é justamente isso que Francisco afirma ao dizer que o querigma "deve ocupar o centro da atividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial" (EG 164). Francisco indica algumas consequências da centralidade no querigma na ação evangelizadora e catequética da Igreja (EG 165): o anúncio do amor salvífico de Deus como prévio às obrigações morais e religiosas; o apelo à liberdade, ou seja, à adesão livre a Jesus Cristo; a alegria e a vitalidade do anúncio; e uma pregação autenticamente evangélica.

É fato que, hodiernamente, a forma tem mais valor do que o conteúdo, o que acarreta um grande desafio para a Igreja que em muito privilegiou historicamente a elucidação exata dos conteúdos da doutrina. Porém, se o receptor não capta a mensagem, esta de nada adianta. Dizer a mesma verdade com novo material linguístico, para que a ação de Deus seja captada pelo ser humano, é o grande desafio assumido desde a Nouvelle Theologie e o Concílio Vaticano II.

Por conseguinte, não cabe mais a velha apologética enunciada como saída frente à modernidade e à reforma protestante. Os interlocutores engajados nas comunidades paroquiais preocupam-se mais com questões pastorais, demonstrando menor interesse dogmático e erudito. Ou seja, a questão posta é a relação entre fidelidade à tradição e fidelidade ao espírito do tempo.

Sobre este deslocamento da doutrina à mensagem afirmou o Papa João Paulo II em sua primeira visita ao Brasil:

Quem diz mensagem diz algo a mais que doutrina. Quantas doutrinas de fato jamais chegaram a ser mensagem. A mensagem não se limita a propor ideias: ela exige uma resposta, pois é interpelação entre pessoas, entre aquele que propõe e aquele que responde. A mensagem é vida. Cristo anunciou a Boa Nova, a salvação e a felicidade [...] (João Paulo II, 1980)8.

Nessa esteira, Francisco propõe o resgate de uma catequese querigmática e mistagógica, linhas mestras da nova evangelização no contexto de mudança de época (EG 163-168). Como estas podem trazer um novo vigor e frescor à evangelização?

Na atualidade9, definida como tempo de nova evangelização, faz-se necessário não somente o querigma, mas uma catequese querigmática, tal como afirma o Diretório Geral para a Catequese-DGC (DGC 62). O anúncio querigmático tem o objetivo de contribuir para que os interlocutores realizem o encontro com o Senhor, na adesão ao seu Reino, pois "ao início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (DCE 1). O querigma é inspirador e não é apenas o primeiro passo do itinerário formativo. Traduz-se como a força da mensagem cristã que impacta decisivamente a existência. É, portanto, o fio condutor de todo o itinerário formativo cristão, segundo o Documento de Aparecida- DAp (DAp 278). Primeiramente, o querigma inspira uma evangelização personalista e existencial. A pregação deve superar os silogismos frios e não deve ser uma prédica moralista ou doutrinadora. O discurso cristão deve encantar, falar ao coração, abrasá-lo (EG 142-144). Mais do que a razão, a mensagem deve atingir o coração e, por isso, os discursos não devem falar de teorias, mas devem partir do contexto vital da pessoa, propondo a relação entre a Palavra de Deus e as questões históricas, sobretudo, procurando responder às interrogações e angústias do sujeito pós-moderno. Daí que a mensagem deve ser personalizadora e existencial. Contudo, vale aqui uma ressalva importante: a experiência cristã não é intimista e a evangelização não visa a um sentimentalismo lacônico do empenho evangélico, uma experiência religiosa vazia sem seguimento, descomprometida com o Reino. Não há, pois, garantias: o anúncio gratuito conta com a ação do Espírito Santo e a resposta pessoal livre.

Outro aspecto inspirador do querigma é a cristocentridade e a narratividade: a catequese tem a finalidade de levar a pessoa a uma intimidade com Cristo:

Já que a vida cristã consiste em segui-lo, fica evidente que a principal finalidade da catequese é a de fazer com que alguém se ponha, não apenas em contato, mas em comunhão, em intimidade com Jesus Cristo: somente ele pode levar ao amor do Pai no Espírito e fazer-nos participar na vida da Santíssima Trindade (CT 5).

Este aspecto cristocêntrico, que não deixa de lado a dimensão trinitária, é a base da proclamação da mensagem cristã, não sendo um princípio exclusivo da catequese, mas de toda a ação evangelizadora. Não basta proclamar o Cristo da fé dissociado do Jesus da história, o que traria o risco de uma evangelização descomprometida com a história. Igualmente é relevante o resgate da linguagem narrativa, pois é nela que a história divina encontra a história humana, mesmo diante de todas as ressalvas que não nos deixam cair no historicismo bíblico.

Já a evangelização mistagógica está ligada ao resgate do catecumenato10, instituição da Igreja Antiga, como modo ordinário para a catequese de iniciação cristã de adultos. Esta retomada foi mais além, sugerindo que toda a evangelização tenha no catecumenato a sua inspiração: "Dado que a missão ad gentes é o paradigma de toda a missão evangelizadora da Igreja, o Catecumenato batismal, que lhe é inerente, é o modelo inspirador da sua ação catequizadora" (DGC 90). O que importa, neste pedido do magistério, é conhecer e aplicar a pedagogia catecumenal nos itinerários de formação na fé. Algumas características se destacam: a progressividade marcada por etapas bem definidas, o acompanhamento pessoal, a centralidade da Palavra de Deus e a multiplicidade de agentes envolvidos. Se na catequese tradicional há a ênfase no conhecimento racional orientada por um instrutor, o catecumenato propõe um itinerário amplo com a finalidade de iniciar gradativamente ao interlocutor na vida de fé e na comunidade de fé. A dimensão comunitária é fundamental, pois é a comunidade que acolhe seus novos filhos em seu seio para cuidá-los e apoiá-los.

A dimensão mistagógica preconiza uma evangelização inspirada no catecumenato que procura conduzir o interlocutor à experiência do mistério, introduzindo ao cristão na riqueza litúrgica (DAp 290). A relação entre catequese e liturgia, com toda a sua riqueza simbólica é fundamental, além da centralidade do Mistério Pascal. É interessante observar que, na dinâmica mistagógica, a clássica ordem entre compreensão e experiência é invertida. As catequeses mistagógicas na Igreja antiga eram explicitações da riqueza litúrgica, posteriores à vivência dos ritos, pois em primeiro lugar estava a experiência da graça sacramental e só depois a explanação sobre ela.

Por fim, a passagem da doutrina para a mensagem implica o abandono de uma posição legalista e moralizante pela reafirmação do sentido do discipulado. Para tanto, é necessário considerar a relação entre evangelização e humanização, dado que em grande parte a significância atual da mensagem cristã se sustenta no resgate da força humanizadora do Evangelho (EG 35). Houve um esforço demasiado do magistério católico na defesa da ortodoxia, nem sempre acompanhada da mesma força para a defesa da ortopráxis. A ortopraxia não será jamais uma imposição sobretudo porque, na atualidade, não se aceita mais qualquer sentença por autoridade ou por tradição. O cristianismo, mais do que uma doutrina, é a oferta do dom do Espírito: a pessoa que se deixa conduzir pelo Espírito torna-se livre; assume, como consequência, uma ética de fraternidade que consiste em lutar contra as opressões, contra a dominação que escraviza, vivendo a compaixão fraterna pelos pequenos e fracos e o perdão como dom e como oferta. Tudo isso não é um código de preceitos morais (Moingt, 2010, p. 395), mas uma pedagogia existencial. Não depende de uma formulação dogmática por si mesma, mas de seu sentido que se atualiza numa ética existencial fundada na antropologia cristã.

Para anunciar a Boa Nova ao mundo deste modo humanizante é preciso que se tenha rosto de redimidos, como disse Nietzsche11, ou seja, um rosto que transpareça a alegria de quem encontrou um tesouro, que dê prazer para o anúncio de uma mensagem gratuita, sem angústias e sem imposições (Queiruga, 1994, p.54). A bondade não se prega, nem se ensina, nem se impõe, mas contagia12. Nas palavras de Moingt (2012, p. 266): "a melhor prova da verdade de uma religião é sua capacidade de mudar o coração e a vida dos homens". Animado pelo Espírito de Cristo, o cristão se torna um outro Cristo: "Já não sou eu que vivo, Cristo vive em mim" (Gl 2,20). Os que assim são tocados, de um modo radical, tornam-se discursos vivos, os quais não podem ser calados. A fé é profundamente testemunhal.

Do templo ao mundo

Há um deslocamento pastoral cujos elementos nos parecem resumir ou sintetizar o programa de EG, a saber, o deslocamento do templo ao mundo.

Uma introspecção eclesial faria da Igreja refém de si mesma e infiel à sua vocação original. Este é o sentido próprio da Igreja em saída. Tratase da fidelidade à Revelação: Deus sempre enviou, sempre convidou ao deslocamento, a saída de si existencial e geograficamente: Abraão, Moisés, Jeremias, os Apóstolos, etc. O Deus humanizado que andava pelas cercanias da Galiléia, da Samaria e da Judéia, sem preconceitos com os territórios pagãos, é o mesmo que continua enviando seus discípulos para a estrada (cf. Mt 28,19-20; Mc 16,15), de modo que a Igreja seja peregrina em sua autoconversão e peregrina nos caminhos da missão. O lugar da missão eclesial é no mundo, como sinal do Reino de Deus, sacramento universal da salvação. Logo, não há qualquer identificação entre evangelização e proselitismo, pois o núcleo da mensagem cristã só se experimenta e vivencia como ato de fé, como adesão livre, consciente e pessoal à Pessoa de Jesus, que se concretiza na vivência do amor.

Rechaça-se, assim, qualquer identificação entre a Igreja e um cristianismo ocidental triunfante. O pluralismo pós-moderno reclama não a transmissão de verdades desencarnadas, mas horizontes de sentido que promovam o ser humano integral e, por conseguinte, sua relação com Deus:

Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade (EG 27).

A Igreja tem uma palavra a dizer e esta fundada no Evangelho. Outrossim, há caminho aberto para que a Igreja possa fazê-lo, de modo que sua palavra seja evangelizadora-humanizadora. Dado que nesse processo a primazia é da graça, a Igreja buscará, com isso, estar aberta à ação do Espírito que deseja nos cristificar, ou seja, fazer-nos mais parecidos com Jesus, pois só assim a mensagem do Evangelho será digna de credibilidade no mundo atual

Conclusões

Obedecendo ao mandato missionário de Jesus -Ide e fazei discípulos (Cf. Mt 28,19-20) - a Igreja encontrasse - em constante atitude de "saída" a fim de "pregar o Evangelho em todos os tempos e lugares" (EG 19). A "saída missionária" da Igreja não é outra coisa senão a "alegria missionária", "que enche a vida da comunidade dos discípulos" (EG 21) a partir do Evangelho. Este é o grande deslocamento pastoral proposto por EG: só é possível sair quando se reconhece a natureza mais profunda da Igreja num dinamismo constante e alegre.

Dizemos, portanto, com Francisco, que os deslocamentos pastorais necessários para o hoje da Igreja têm por fundamento cinco atitudes (EG 24): a) primeirear, é dizer, tomar a iniciativa, ir ao encontro; b) envolver-se, isto é, entrar na vida das pessoas; c) acompanhar com paciência; d) frutificar em meio ao trigo e ao joio; e) festejar a beleza da liturgia. Tais atitudes exprimem e possibilitam a conversão ou deslocamento pastoral de todas as comunidades evangelizadoras, que reposiciona a ação evangelizadora: de uma "simples administração" a um "estado permanente de missão" (EG 25). A conversão pastoral não é uma simples renovação das estruturas institucionais. Antes disso, põe em evidência o espírito que anima tais estruturas: a vida nova do Espírito Santo que encaminha toda a Igreja para uma vivência autêntica do Evangelho.

A pastoral missionária, então, não é uma postura eclesial unilateral, mas dialógica, amorosa, acolhedora, especialmente junto "aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos" (EG 48). A atitude de "saída" coloca a Igreja à margem de suas pretensas "seguranças", do "fez-se sempre assim" (EG 33), na direção de um anúncio de Jesus Cristo que também a ela transforma e afeta no encontro com as mais diversas, e até mesmo contraditórias, realidades.

Referências

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Cómo citar este artículo en APA: Nentwig, R. & Marangon Pessotto, D. (2019). A alegria do evangelho e a pastoral Hodierna. Alguns deslocamentos pastorais à luz da exortação apostólica Evangelii Gaudium. Cuestiones Teológicas, 46 (105), 75-99. doi: http://dx.doi.org/10.18566/cueteo.v46n105.a03

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1O termo pós-modernidade é controverso. Dada a sua natureza polissêmica, constituíram-se outros termos correlativos, mas com ênfases distintas, para designar o período posterior à modernidade: crítica da modernidade, hipermodernidade, ultramodernidade, período da pós-verdade, entre outros. Ao utilizarmos pós-modernidade no presente trabalho, salientamos a complexidade do contemporâneo em face do elemento religioso, que considera implicitamente os significados dos demais termos em questão. Ou seja, pós-modernidade aqui é um termo que inclui a complexidade de seus conceitos paralelos e não a rechaça.

2Thomas Luckmann aborda o retorno do religioso na pós-modernidade em sua obra "A religião invisível" (1967). Para o sociólogo, a atitude do bricolage, no âmbito das emoções e sentimentos do indivíduo, é o que dá sustentação ao processo religioso de constituição da visão de mundo.

3Yves Congar publicou no ano de 1950 a obra intitulada Vraie et fausse réforme.

4Paulo nos diz que o pecado é uma força que domina o ser humano (cf. Rm 3,22; Gl 3,9). Há, assim, uma espécie de luta interior que revela uma força singular (cf. Rm 5,8.12.13), uma força submete o ser humano à escravidão (cf. Rm 6,6-7.14.16.20).

5Por décadas, tais experiências foram chamadas de CEB 's na América Latina. Hoje se fala de pequenas comunidades que assumem características diversas e levam outros títulos: células de oração, pequenos grupos, grupos de família, grupos de Jesus, etc.

6O termo rede de comunidades é próprio das Conferências Episcopais LatinoAmericanas (Santo Domingo 58; Aparecida 309).

7Missa com Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Seminaristas, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013.

8João Paulo II. Homilía para os catequistas em Porto Alegre, 1980.

9Cf. Morás, F. As correntes contemporâneas da catequese. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 13-41; Nentwig, R. A catequese em tempos de nova evangelização. Revista de Catequese, ano 37, n. 143. São Paulo: Unisal, jan./jun. 2014, p. 27-30.

10Cf. Borobio, D. Catecumenado e Iniciación Cristiana: un desafío para la Iglesia hoy. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2007, p. 56-72; Morás, F. As correntes contemporâneas da catequese. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 45-71; Nentwig, R. A catequese em tempos de nova evangelização. Revista de Catequese, ano 37, n. 143. São Paulo: Unisal, jan./jun. 2014, p. 30-34; Nentwig, R.; Menon, R. F. M. A (2011). Catequese Mistagógica. Revista de Catequese, 34(135), p. 43-47.

11Cf. Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 89.

12Castillo, J. M. Elogio da bondade. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/522733-elogio-da-bondade-artigo-de-jose-m-castillo>. Acesso em: 10 mar 2019.

Recebido: 20 de Março de 2019; Aceito: 11 de Abril de 2019

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