Aspectos Introdutórios
Se Karl Barth instaura um princípio hermenêutico que se detém no logos, sobrepondo-se ao aspecto histórico da Escritura em função da necessidade de conferir clareza ao significado do texto, tornando-o evidente na mensagem enquanto transmissão da palavra de Deus, o artigo assinala que o sacrifício do caráter histórico que se impõe a tal procedimento exegético-hermenêutico implica a sua incapacidade de estabelecer um diálogo com a Escritura enquanto revelação como conjunto de verdades divinas ou mistérios manifestados por Deus aos seres humanos.
Nesta perspectiva, tendo em vista a necessidade de superar a incapacidade do princípio exegético-hermenêutico de Barth, Rudolf Bultmann institui uma correlação que envolve a pesquisa histórico-crítica da Escritura e a interpretação do logos como kerygma em uma construção que atribui ao conteúdo neotestamentário o caráter de kerygma enquanto palavra de Deus que requer a fé como decisão e obediência.
Dessa forma, o artigo assinala que, convergindo para uma pregação consistente em uma proclamação cujo sentido é o ser humano enquanto ouvinte em si mesmo, o kerygma em Bultmann se sobrepõe à razão teórica em uma construção que implica o ato salvífico de Deus como acontecimento escatológico que encerra a morte e a ressurreição de Cristo através de um movimento que constitui a ocasião para a fé enquanto decisão e obediência, tanto quanto, antes, a própria condição para a sua instauração como tal.
Nesta perspectiva, baseado na análise crítica de Paul Ricoeur, o artigo se detém na desmitologização enquanto distinção entre kerygma e mito em um movimento que converge para a interpelação do seu sentido originário, assinalando que, atribuindo ao mito a condição de uma obra que encerra a pretensão humana de dispor de Deus, a sua construção enquanto artifício mitológico se sobrepõe à noção bíblico-teológica que envolve a justificação de Deus, haja vista a oposição entre a fé e a justificação e as obras e a salvação. Tal procedimento exegético-hermenêutico, contudo, conforme destaca Ricoeur, prescinde da reflexão envolvendo a linguagem lato sensu como objeto, sobrepondo à linguagem do mito a linguagem da fé em um movimento que, embora pretenda se sobrepor ao sacrificium intellectus, converge, afinal, para uma construção que tende a exigir o sacrificium intellectus nas fronteiras da desmitologização e na linguagem da fé que está implicada em seu processo.
Da correlação envolvendo o aspecto histórico da Escritura e o seu caráter de logos em Bultmann
Contrapondo-se à abordagem de caráter histórico-filosófico, Barth instaura um princípio hermenêutico que encerra a possibilidade de compreensão através de um processo que guarda capacidade de tornar claro e evidente o significado do conteúdo do texto, preconizando uma interpretação que se sobreponha ao abismo histórico existente e possa atribuir à mensagem um caráter contemporâneo em um movimento que exclui a condição de observador do agente exegético-hermenêutico e demanda um diálogo entre este e o documento fundado no objeto, o que implica uma relação que escapa à neutralidade, haja vista o status de Deus como Deus!
Se a hermenêutica de Barth se detém no logos e nas fronteiras que encerram a possibilidade que envolve a transmissão da palavra de Deus, a contemporaneidade como princípio se sobrepõe ao conteúdo histórico neotestamentário em um processo que atribui primazia ao logos em detrimento de sua forma histórica, convergindo para uma construção exegético-hermenêutica passível de questionamento, na medida em que sacrifica a Escritura em seu aspecto histórico em função da sua condição de logos, o que implica a necessidade de correlacionar ambos, tal como empreende Bultmann por intermédio de um movimento que instaura um procedimento exegético-hermenêutico que traz como base a pesquisa histórico-crítica da Escritura e impõe a interpretação do logos como kerygma1.
O teólogo Martin Kähler , de Halle, reconheceu a impossibilidade de fundamentar a fé na ação salvífica de Deus sucedida em Jesus Cristo, sobre os resultados inseguros e mutáveis da pesquisa científica. Por isso Kähler nega com razão a legitimidade de se perguntar pelo Jesus pré-pascal de Nazaré nos relatos dos evangelhos: o verdadeiro Cristo não é o "Jesus histórico" da moderna pesquisa cientifica, mas o Cristo pregado pelos testemunhos apostólicos. Uma geração depois de Kähler, Rudolf Bultmann retomou essa tese na convicção de que só é possível sabermos muito pouco sobre o Jesus histórico, e que a fé é despertada através da proclamação (o "querigma") das testemunhas neotestamentárias. (Kümmel, 2003, p. 41-42)2
Se a investigação da Escritura encerra um movimento que demanda a correlação envolvendo a história e a teologia no processo que implica análise e compreensão, o que se caracteriza como fundamental é a correspondência entre o princípio científico da modernidade, a decomposição da construção histórico-cultural em suas partes constituintes e unidades componentes3 e o documento enquanto revelação como conjunto de verdades divinas ou mistérios manifestados por Deus aos seres humanos.
Nesta perspectiva, o pensamento teológico de Bultmann e o seu procedimento investigativo não se tornam capazes de estabelecer a cooperação entre os elementos constitutivos do esquema em referência, convergindo para sobrepor os dois primeiros componentes ao terceiro, cuja subestimação tende a comprometer a pesquisa e o seu resultado, o qual, embora carregue a pretensão de escapar às fronteiras da mitologia, ainda conserva os seus liames em um processo que deixa subentendida a distorção do "fazer-se" ou "tornar-se" carne do Logos4, assim como em face da condição do Logos que, enquanto "palavra", se mantém sob a égide de um "paradoxo sem conteúdo":
Na discussão hermenêutica, da década de 50, se evidenciou que aquilo que Bultmann deduzia do NT, o querigma, a palavra de Deus, para filósofos como Jaspers, ainda era mitologia. Para muitos teólogos, no entanto, o conteúdo era muito reduzido: Para Bultmann "o logos não se torna verdadeiramente carne, mas apenas palavra" [Heinrich Schlier], uma palavra cujo conteúdo no fundo apenas é um "paradoxo sem conteúdo"; o chamado para a decisão de fé está ameaçado de se tornar lei (§ 21,1). (Goppelt, 2002, p. 29)
Tendo como fundamento a filosofia existencial, a construção literário-teológica de Bultmann se sobrepõe aos fenômenos históricos e a sua mera descrição5, na medida em que tal processo tende a caracterizar como mito o conteúdo da mensagem neotestamentária, haja vista a incapacidade da análise histórica de possibilitar a compreensão de um anúncio como a pregação de Jesus acerca do Reino de Deus e a sua vinda iminente6. Tal compreensão implica um processo que exige o recurso ao pensamento científico e à instauração de uma interpretação existencial7, que assinala o verdadeiro sentido da mensagem que, emergindo da cosmovisão mítica8 que se impõe à Escritura, supera a noção de fim de mundo e restauração cósmica, encerrando a exposição da situação atual do ser humano e a necessidade de fé enquanto decisão e obediência.
Atribuindo ao conteúdo neotestamentário o caráter de kerygma enquanto palavra de Deus que requer a fé como decisão, a construção teológico-religiosa de Bultmann encerra Jesus como a última palavra de Deus9 em um movimento que tem como alvo os seres humanos em sua concreticidade existencial, na medida em que a mensagem e a teologia neotestamentária guardam raízes no kerygma pascal enquanto confissão apostólica do acontecimento da cruz através da fé pascal em um processo que se sobrepõe ao Jesus terreno e à interpretação que circunscreve o conteúdo neotestamentário à condição de mera expressão da religião humana.
Do kerygma e a fé enquanto decisão e obediência segundo a antropologia kerygmática de Bultmann
Sobrepondo-se à razão teórica, o kerygma enquanto pregação que consiste em uma proclamação cujo sentido é o ser humano enquanto ouvinte em si mesmo, na medida em que a pregação se torna irredutível à condição de um conteúdo doutrinal passível de assimilação intelectual em uma construção que guarda possibilidade de apreensão ou, escapando ao movimento cognitivo de incorporação lógico-racional, demanda um sacrificium intelectus, haja vista que a pregação da Palavra de Deus implica um mandato Seu em um processo que envolve o Seu nome.
Consistindo em um termo cujo significado lato sensu encerra o sentido de "palavra pronunciada e anunciada", Lógos em sua construção literário-etimológica implica a palavra em sua concreticidade em um movimento que se impõe à percepção da audição10 e implica uma interpretação que a partir do referido contexto corporifica um conteúdo de caráter teológico, na medida em que "o λόγος [lógos] que Jesus proclama é ao mesmo tempo a revelação divina eterna, que exige não só um ouvido atento, mas também a compreensão da fé" (Cullmann, 2002, p. 341).
Nesta perspectiva, encerrando o Lógos enquanto Palavra que guarda possibilidade de proporcionar vida através da escuta da fé, ao kerygma como palavra anunciada por Jesus de Nazaré se impõe a Verdade em sua acepção absoluta em uma construção teológica que caracteriza a vida de Jesus de Nazaré como a encarnação do Lógos, haja vista a interpretação que assinala que se João Batista se identifica como "a voz do que clama no deserto"11 o conteúdo do anúncio implica o próprio Lógos, que se constitui a Revelação em Si e a Verdade que se autorrevela em um processo que envolve, em última instância, a Verdade em pessoa12.
Consistindo, segundo o sentido lato sensu, no anúncio da salvação, a expressão que designa a "Palavra de Deus" (Ο λόγος του Θεού) no Novo Testamento se sobrepõe ao significado que envolve a palavra que, de acordo com a construção veterotestamentária, guarda correspondência com uma determinada situação, convergindo para a identificação da pregação do Evangelho que, enquanto "palavra da cruz"13 ou "palavra da reconciliação"14, atribui ao Lógos a condição de revelação em sua acepção definitiva.
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles. (Bíblia De Estudo De Genebra, Hb 1.1-4, 1999, p. 1463)
Nesta perspectiva, encerrando a Palavra de Deus e a revelação que implica, o Lógos emerge na correspondência entre a construção veterotestamentária e a construção neotestamentária em um movimento que assinala que a fala de Deus envolve uma manifestação que se impõe no Filho, assim como pelo Filho, culminando na identificação absoluta entre a "Palavra de Deus" e o "Filho" em um processo que torna irredutível a revelação de Deus às palavras de Jesus, visto que a mantém atrelada também aos atos de Jesus, constituindo-se a correlação entre palavras e atos, na medida em que "o que Jesus faz é o que ele mesmo é" (Cullmann, 2002, p. 343, grifos meus).
Correlacionando "palavras" e "história" através de uma construção etimológico-teológica que guarda raízes na concepção hebraica do termo que envolve "palavras" (debarim) em um processo que lhe atribui o significado de "história", a identificação de Jesus como Lógos implica a correspondência envolvendo a vida histórica de Jesus enquanto revelação de Deus e a origem de toda revelação, haja vista a condição assumida pela palavra de Deus como ação de Deus na Sua autorrevelação pela palavra criadora "no princípio".
Guardando a identificação envolvendo o Lógos de Deus e a vida de Jesus, a "Palavra", no sentido que implica a "revelação", emerge sob a acepção de denominador comum entre a criação e a vida humana de Jesus que em sua concreticidade corresponde à revelação de Deus em seu ápice através de uma construção teológico-literária assinalando que assim como houve a recusa da revelação de Deus na criação, com o povo de Israel se opondo aos profetas e à sua palavra, da mesma forma, Jesus sofre a rejeição do povo de Deus rebelde15.
Sobrepondo-se ao Lógos estóico abstrato e ao Lógos mitológico, o Lógos que se torna ser humano em Jesus de Nazaré encerra a revelação última de Deus ao mundo enquanto tal em uma construção teológico-literária que, por este motivo, como Verbo feito carne, implica um universalismo que escapa ao sincretismo e carrega a autenticidade de uma ideia que, embora seja similar em relação à terminologia, diverge em relação aos pensamentos imbricados em um processo que guarda possibilidade de manter correspondência com o Lógos enquanto hipóstase e com o Lógos personificado, caracterizando-se, contudo, como o Lógos que, fundado na pessoa histórica de Jesus de Nazaré, se impõe como irredutível à noção do helenismo sincrético e à concepção do judaísmo helenístico16.
Se o pensamento grego se detém no Lógos em uma construção etimológico-filosófica que encerra plena exatidão em seu aspecto formal, longe de caracterizar uma interpretação capaz de expressar o conhecimento da verdade tal perspectiva se limita a assinalá-lo e indicá-lo, na medida em que o Lógos feito carne se lhe escapava, caracterizando-se o Lógos bíblico-teológico neotestamentário como uma visão universalista, haja vista que guarda possibilidade de identificar Cristo através de um conteúdo mediante o qual o paganismo transmite uma verdade.
Por isso também segue ao ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο [o Logos tornou-se carne] o ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ [contemplamos a sua glória] (1.14). Esse ἐθεασάμεθα [contemplamos] não designa o "testemunho ocular" no sentido da informação histórica; pois nesse sentido também os judeus descrentes eram testemunhas oculares, e, não obstante, nada viram da δόξαν [glória]. O sujeito do θεᾶσθαι [contemplar], porém, não são apenas os contemporâneos crentes (os primeiros discípulos), e sim os crentes de todos os tempos; pois o revelador não foi apenas outrora, mas permanece sendo o Encarnado para sempre. Jamais a fé pode afastarse dele, como se a δόξαν [glória] ou a [verdade] e a ζωή [vida] pudessem tornar-se visíveis diretamente ou como se a revelação consistisse num conteúdo do pensamento, para cuja transmissão a encarnação do "Verbo" teria sido apenas um expediente, agora pertencente ao passado. Por isso o papel dos crentes contemporâneos não consiste em, através de seu testemunho ocular, oferecer às gerações subsequentes a garantia da certeza, e sim em lhes transmitir o escândalo do ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο [o Logos tornou-se carne]. (Bultmann, 2008b, p. 507)
Instaurando a fé enquanto obediência e decisão, o querigma inaugura uma existência escatológica em um processo que implica a verdadeira autocompreensão e converge para a existência autêntica, na medida em que a proclamação do ato salvífico de Deus no acontecimento escatológico da cruz encerra a possibilidade de libertar o ser humano do pecado em face da sua resposta em relação ao Cristo.
Por isso a fé não é nenhum feito humano, nenhuma "obra", mas sim "livre ato de obediência" (R. Bultmann), em virtude do qual aquele que crê se sabe "desarraigado deste éon perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai" (Gl 1.4). Por causa desse ato de obediência o que crê sabe ao mesmo tempo que foi transportado "para o senhorio de seu Filho amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados" (Cl 1.13s). (Kümmel, 2003, p. 252)
Constituindo o acontecimento escatológico em um movimento que implica a morte e a ressurreição de Cristo, o ato salvífico de Deus se impõe à proclamação que encerra o kerygma como ocasião para a fé enquanto decisão e obediência, tanto quanto, antes, a própria condição para a sua instauração como tal. Dessa forma, se a fé guarda raízes nas fronteiras do querigma enquanto proclamação pós-pascal, recorrer ao conteúdo histórico-científico como fundamento da sua certeza como tal é contraproducente, na medida em que encerra a sua própria verdade em uma construção teológico-existencial que implica decisão e obediência e converge para a autocompreensão da existência que inter-relaciona a fé e a sua condição sine qua non, o ser humano e o seu estado de pecaminosidade e Deus como "Totalmente Outro" através de um processo de caráter paradoxal que envolve uma existência que simultaneamente se impõe como escatológica e histórico-temporal.
A condição inalienável de uma disposição em relação ao Criador e à sua vontade, eis o que se impõe ao ser humano em um movimento que encerra a ideia de sujeição, submissão, domínio, rendição, comprometimento, o que implica uma inevitável correspondência que converge para as fronteiras que assinalam tendência, inclinação, propensão, desígnio, propósito, determinação, e que se sobrepõe à unilateralidade que prescinde da oposição em função de uma harmonia que tende a abolir o atrito e a ruptura do exercício da liberdade subjetiva em sua totalidade finita e afirma a dialética vital imbricada na relação entre o ser humano e Deus. (Mariano Da Rosa, 2020, p. 180)
Atribuindo simultaneamente ao ser humano a condição de justificado e a condição de pecador, o paradoxo da existência escatológica mantém correspondência com a autocompreensão da fé enquanto decisão e obediência em um movimento que implica um encontro com Jesus como ação salvífica de Deus através do kerygma como um processo que possibilita a transformação da existência e que envolve o conhecimento de Deus enquanto "Deus-que-determina-a-existência-humana", na medida em que assinala uma experiência existencial que somente se torna passível de apreensão pela fé em uma construção teológico-existencial cujo entendimento, emergindo de uma nova autocompreensão, guarda relação com a mediação da palavra enquanto tal e encerra a instauração de uma autêntica existência17.
Consistindo em um trabalho teológico fundamental, a compreensão do kerygma requer a tradução de seu conteúdo segundo as possibilidades de conhecimento imbricadas em um determinado contexto histórico-cultural e implica a necessidade de corresponder à cosmovisão da epocalidade em curso em um processo que envolve a superação de uma construção literário-teológica que se mantém sob a égide de categorias e paradigmas que escapam à inteligibilidade, na medida em que são incapazes de produzir a autocompreensão do ser humano enquanto tal na contemporaneidade.
Escapando ao significado envolvendo um construto doutrinal que se impõe à apreensão mediante um processo lógico-racional ou através de um movimento que implica um sacrificium intellectus, o kerygma consiste em uma proclamação cujo alvo é o ser humano em sua ipseidade em uma construção que encerra a palavra da Cruz como o verdadeiro escândalo, que se sobrepõe, dessa forma, ao caráter da mensagem bíblico-eclesial enquanto conteúdo destituído de sentido para a sociedade contemporânea.
Desde logo, é certo que a desmitologização adota como critério a visão moderna de mundo. Porém desmitologizar não significa recusar a escritura em sua totalidade ou a mensagem cristã, senão que eliminar de uma e de outra a visão bíblica de mundo, que é a visão de uma época passada, com demasiada frequência ainda mantida na dogmática cristã e na pregação da Igreja. Desmitologizar supõe negar que a mensagem da Escritura e da Igreja estão ineludivelmente vinculadas à uma visão de mundo antiga e obsoleta. (Bultmann, 2008a, p. 29)
Se a pureza da mensagem da revelação e a sua inteligibilidade se correlacionam como condição sine qua non para o processo de desmitologização18, a subestimação do fundamento histórico-cultural e do aspecto que se sobrepõe ao caráter natural da existência humana atribui preeminência ao acontecimento salvífico que se impõe ao kerygma e demanda fé enquanto decisão e obediência19.
O kerygma e o processo de desmitologização na construção exegético-teológica de Bultmann segundo Ricoeur
Conforme mostra a tradição sinótica, a comunidade primitiva retomou a pregação de Jesus e continuou a anunciá-la. E na medida em que o fez, Jesus tornou-se para ela o mestre e profeta. Mas ele é mais: é, ao mesmo tempo, o Messias; e assim ela passa a anunciar - e isso é o decisivo - simultaneamente a ele mesmo. Ele, antes o portador da mensagem, foi incluído na mensagem, é seu conteúdo essencial. O anunciador tornou-se o anunciado (Bultmann, 2008b, p. 74, grifos do autor).
Se Jesus Cristo consiste na fala de Deus, Kerygma encerra a condição que implica anúncio de uma pessoa em um processo que se sobrepõe ao caráter de uma interpretação de texto e demanda a sua expressão por intermédio de um testemunho, trazendo como base as narrações em um movimento que posteriormente tende à construção textual da confissão de fé da comunidade, que assinala que "o acontecimento por excelência é um evento linguístico e este evento linguístico é o querigma (kerygma), a pregação do Evangelho. O significado do evento original dá testemunho de si mesmo no acontecimento presente pelo qual o aplicamos a nós mesmos num acto de fé" (Ricoeur, 1987, p. 34).
A possibilidade de crer ao escutar e ao interpretar um texto, eis o que se impõe à comunidade, desde o período pós-apostólico até a contemporaneidade, na medida em que, escapando à condição de testemunhas oculares, aos seus integrantes cabe o papel da audição como fides ex auditu, tendo em vista o caráter hermenêutico que implica a relação envolvendo o próprio Novo Testamento em uma construção que converge para uma interpretação da interpretação.
Caracterizando-se como uma nova letra, uma nova escrita, o Kerygma consiste também em um Testamento, guardando correspondência com a condição de interpretante em uma relação que implica o Antigo Testamento, tanto quanto a vida e a realidade inteira, constituindo-se uma construção textual disposta propriamente à interpretação em seu sentido literal em um processo que o encerra como base teórico-conceitual para a produção dos significados alegórico, moral, anagógico.
Tornando-se um texto, uma letra, o Evangelho, enquanto tal, guarda tanto uma diferença como uma distância em relação ao acontecimento que emerge como objeto de sua proclamação, convergindo para a instauração de uma separação progressiva entre a primeira testemunha e os seus ouvintes que traz como fundamento o viés espaço-temporal em um processo que assinala a incorrespondência lógica envolvendo o locus originário e o locus secundário através de um movimento que interpõe um abismo histórico-cultural abrangendo o contexto apostólico e a modernidade.
Se o Novo Testamento enquanto testemunho encerra uma composição que envolve uma narração que guarda correspondência com uma comunidade confessante em uma construção que inter-relaciona culto, pregação e expressão de fé, a relação da comunidade contemporânea em seu contexto cultural histórico-científico com o objeto da sua fé demanda a interpretação da confissão da sua fé em um processo que possibilita a sua compreensão e converge, dessa forma, para a apreensão do Kerygma que traz em seu conteúdo.
Decifrar a Escritura, é decifrar o testemunho da comunidade apostólica; nós relacionamo-nos com o objecto da sua fé através da confissão da sua fé. É, pois, ao compreender o seu testemunho que eu recebo igualmente aquilo que, no seu testemunho, é interpelação, kerigma, "boa nova". (Ricoeur, 1988, p. 377)
Detendo-se no acontecimento em si, a desmitologização encerra a finalidade de concretizar a intenção do texto em um processo que implica a interpretação kerigmática, na medida em que envolve o retorno à condição originária do Evangelho através de uma mensagem que, perfazendo a verdadeira fala de Deus, não pode permanecer circunscrita às fronteiras da representação mitológica do mundo e do falso escândalo da sua estrutura literário-teológica, mas deve expor e revelar em sua totalidade a loucura de Deus por intermédio de Jesus Cristo, Deus-Filho, como o verdadeiro escândalo.
Em tudo isso manifesta-se o escândalo do ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο [o Logos tornou-se carne] - o escândalo que consiste no fato de que o revelador aparece como ser humano que não deve demonstrar perante o mundo sua afirmação de ser o Filho de Deus. Pois a revelação é o juízo sobre o mundo; ela tem que ser percebida por ele como ataque, como escândalo, enquanto o mundo não abrir mão de seus critérios. (Bultmann, 2008b, p. 477-478)
Baseado na relação envolvendo crer e compreender e compreender e crer em um processo que implica uma necessidade recíproca entre ambos, o círculo hermenêutico para o qual converge o processo de desmitologização se sobrepõe ao caráter psicológico e à primazia do objeto de fé em face da fé e à preeminência da exegese e do seu método diante da leitura pura do texto, haja vista a perspectiva metodológica, que institui um círculo cujo movimento impõe uma regulação entre objeto e fé e método e compreensão, que assinala a instauração de uma hermenêutica que traz como fundamento o anúncio do conteúdo sobre o qual o texto se detém em uma construção que torna a compreensão a sujeição à sua mensagem.
Convergindo para atribuir à essência do sentido do texto a função de regulação e controle da sua compreensão, Bultmann se contrapõe à Dilthey e à perspectiva que atrela o referido processo à capacidade de apreensão de uma expressão da vida, na medida em que confere ao objeto da fé o poder de dirigir e governar a compreensão por intermédio de um processo que encerra o primado do objeto e do sentido em relação à compreensão em um movimento que implica a própria compreensão e o trabalho exegético, pressupondo o círculo hermenêutico como condição fundamental e estabelecendo a correspondência entre objeto e compreensão do texto20.
A fé naquilo de que se trata no texto deve ser decifrada no texto que fala dela e na confissão de fé da igreja primitiva que se exprimiu no texto. É por isso que há um círculo: para compreender o texto, é preciso crer naquilo que o texto me anuncia; mas aquilo que o texto me anuncia não é dado em nenhum outro sítio senão no texto. É por isso que é preciso compreender o texto para crer. (Ricoeur, 1988, p. 379)
Se a desmitologização implica a distinção entre Kerygma e mito em um movimento que, detendo-se na letra, se sobrepõe ao artifício mitológico que caracteriza a construção textual, à função positiva da referida operação impõe-se a interpelação como o seu sentido originário através de um processo que não se sujeita à fixação em uma expressão objetiva e, dessa forma, requer a sua permanência sob o horizonte da interpretação21.
Se inicialmente a desmitologização implica a eliminação do caráter pré-científico da perspectiva cosmológico-escatológica da construção literário-teológica primitiva, posteriormente envolve o processo que encerra a relação entre as representações objetivas do mito e a compreensão de si que através do seu conteúdo transparece e expõe a intenção do mito em um movimento que pretende traduzir o sentido da condição humana em face do seu vínculo de dependência fundamental diante do que se impõe ao limite e à origem do seu mundo.
Consistindo em um processo de redução do além ao aquém, o mito se sobrepõe à condição de um negativo da ciência em um movimento que implica uma objetivação e uma mundanização que se impõe sobre a sua origem e o seu fim enquanto realidades que escapam à dimensão do cognoscível e do tangível através de uma construção que envolve uma projeção que, como um instrumento de mediação, se detém no âmbito da representação, constituindo-se uma etapa da operação que guarda correspondência com a intenção do mito e tende, em nome da sua restituição, a se sobrepor ao movimento que pretende o esgotamento do sentido da realidade por intermédio de uma construção de caráter técnico-cientifico.
Todo o empreendimento de Bultmann se joga então sobre o postulado de que o próprio kerigma quer ser desmitologizado. Já não é, por consequência, o homem moderno, educado pela ciência, que conduz o jogo; já não é o filósofo e a sua interpretação da existência aplicada ao universo dos mitos. É o núcleo kerigmátíco da pregação originária que, não só exige, mas inicia e põe em movimento o processo de desmitologização. (Ricoeur, 1988, p. 381)
Se converge para a desmitologização, o Kerygma, sob a acepção de pregação originária, encerra em si a necessidade de instaurar e desenvolver o movimento que a implica e que remete à narrativa da criação do Antigo Testamento em relação à cosmologia sagrada babilónica, como também ao "nome de Yavé" em relação às representações do divino, desde Baal até os seus ídolos, na medida em que em ambos os casos a construção converge para a desmitologização, tal qual o processo que guarda correspondência com o Novo Testamento diante das representações mitológicas que caracterizam principalmente a escatologia judaica e os cultos de mistério.
Nesta perspectiva, cabe sublinhar o trabalho do Apóstolo Paulo no processo de desmitologização em uma construção de caráter antropológico que guarda relação com a mitologia cósmica através de um movimento interpretativo que encerra conceitos como "mundo", "pecado", "carne", o que implica a redução das imagens que cumprem a função de expressar o seu conteúdo22. Correspondentemente, tal operação emerge do tratamento desenvolvido pelo Apóstolo João em face das representações escatológicas, na medida em que identifica Jesus Cristo como o começo do futuro e o agora crístico como a raiz da nova época, convergindo para uma construção que instaura uma desmitologização que guarda correspondência com a esperança cristã e traz como fundamento a relação entre o futuro de Deus e o presente.
A pregação escatológica de Jesus foi conservada e continuada pela comunidade cristã primitiva em sua forma mitológica. Porém muito rapidamente começou o processo de desmitologização, parcialmente com Paulo e radicalmente com João. O passo decisivo o deu Paulo ao declarar que o trâmite do velho mundo ao novo não era uma questão futura, senão que se havia produzido com a vinda de Jesus Cristo. "Porém ao chegar à plenitude dos tempos, enviou Deus a seu Filho" (Gl. 4.4). (Bultmann, 2008a, p. 26)
Atribuindo ao mito a condição de uma obra que encerra a pretensão humana de dispor de Deus em uma construção que se sobrepõe à relação que implica receber a justificação de Deus, Bultmann sublinha a oposição entre a fé e a justificação e as obras e a salvação em um movimento que, respectivamente, assinala a entrega de si como a renúncia à vontade de dispor de si mesmo e ao exercício da soberania da sua existência23 . Tal processo se contrapõe ao mitólogo, ao cientista e ao filósofo, na medida em que a possibilidade de se deter no acontecimento crístico e nos atos de Deus traz como fundamento a fé e a perspectiva de dependência que está imbricada em sua decisão e que guarda correspondência com um ato que dispõe dele próprio, possibilitando a instauração da desmitologização que, em sua dinâmica circular, abrange uma operação capaz de reunir todas as suas formas, a saber, ciência, filosofia e fé. Conclusão: "Toda a obra exegética e teológica de Rudolf Bultmann é o realizar desse grande círculo onde a ciência exegética, a interpretação existencial (existential) e a pregação de estilo paulino-luterano trocam os seus papéis." (Ricoeur, 1988, p. 383)
Aspectos Conclusivos
Sobrepondo-se ao caráter mitológico, a "significação" dos "enunciados mitológicos" implica a possibilidade de um discurso que encerra a finitude tanto do mundo como do ser humano em relação à transcendência de Deus e ao seu poder através de uma construção que atribui ao referido conteúdo a condição da própria significação dos mitos escatológicos em um processo que impõe um sentido que escapa ao horizonte mitológico a noção que envolve um "ato de Deus" e abrange "Deus como ato", assim como a noção que envolve a "fala de Deus" e abrange o "chamamento da fala de Deus", na medida em que Bultmann afirma a concepção de que o chamado de Deus mediante a Palavra de Deus tem como fim o chamado do ser humano ao Eu verdadeiro em um movimento que assinala o agir de Deus enquanto acontecimento do chamamento e da decisão como o elemento não mitológico da mitologia e a sua significação.
Se o transcendente enquanto o completamente outro consiste no "objeto" que se impõe ao pensamento sob a égide suprema, a sua representação implica um processo que encerra objetividade e mundaneidade, na medida em que constitui uma objetivação que envolve o que se caracteriza como limite e fundamento e como tal se mantém em uma construção que abrange "a mundanização do além no aquém" (Ricoeur, 1988, p. 380).
Atribuindo relação de correspondência entre "mito" e "ilusão transcendental", a interpretação de Ricoeur estabelece um diálogo com as similaridades envolvendo Bultmann e Kant e mantém correspondência com a palavra que designa representação (Vorstellung) em uma construção na qual tal termo identifica as "imagens do mundo" cujo conteúdo é utilizado pelo ser humano no exercício do pensamento em relação ao transcendente em um processo que se caracteriza, em suma, como "ilusório"
Caracterizando como "conteúdo" idêntico e único em relação à fé tanto o seu objeto quanto o seu fundamento24, Bultmann mantém sob o mesmo horizonte epistêmico-cognitivo aquilo que se crê, aquilo por intermédio do que se crê e aquilo que se faz crer em uma construção literário-teológica que atribui ao enunciado da justificação da fé a condição de núcleo de caráter não mitológico, constituindo-se o "Evangelho no Evangelho", segundo Ricoeur. Tal análise expõe que, detendo-se em noções como "ato de Deus", "palavra de Deus" e "futuro de Deus", Bultmann as identifica como enunciados de pura fé em um movimento que assinala o comprometimento do sentido implicado em cada uma de suas expressões, permanecendo imune tal linguagem da fé ao processo investigativo que submete o mito e a sua linguagem à desconstrução enquanto procedimento capaz de alcançar o cerne ou o âmago do Evangelho.
Criticando a desmitologização preconizada por Bultmann, Ricoeur condena sua distinção ingênua entre as expressões míticas objetivantes e as formulações não míticas da proclamação cristã. Para essas últimas, Bultmann não propõe nenhuma teoria de interpretação e chega diretamente à adesão da fé. Ora, a decisão existencial só pode ser tomada autenticamente se o processo de interpretação e os meandros explicativos exigidos pela linguagem da Escritura tiverem permitido aos textos desdobrarem fielmente sua significação. (Amherdt In: Ricoeur, 2006, p. 48)
Sobrepondo à linguagem do mito a linguagem da fé, o pensamento de Bultmann em sua construção literário-teológica converge para uma análise crítica que se circunscreve ao horizonte da "objetivação", o que implica um movimento que não se dispõe a tornar a linguagem lato sensu objeto de reflexão em um processo que impõe aos enunciados de pura fé um sentido que envolve a vontade e a sua condição de renúncia em relação a si própria, na medida em que é tal acontecimento que possibilita a experiência do significado do "ato de Deus" enquanto "ordem e dom, nascimento do imperativo e do indicativo (visto que sois conduzidos pelo espírito, caminhai segundo o espírito)." (Ricoeur, 1988, 384, grifos do autor).
Detendo-se no horizonte da "objetivação", Bultmann prescinde da reflexão envolvendo a linguagem lato sensu como objeto, sobrepondo à linguagem do mito a linguagem da fé em um movimento que implica, inclusive, a possibilidade que envolve a retomada do mito a título de símbolo ou de imagem e converge para uma construção analógica que encerra, em última instância, o personalismo teocêntrico da teologia protestante no processo de superação da teologia natural do catolicismo enquanto hipóstase da cosmologia.
A interpelação pessoal de Deus em um movimento que encerra um encontro que guarda correspondência com uma relação de amizade e implica uma autoridade que se mantém sob a égide da paternidade implica, sob a acepção de expressões "personalistas", uma construção literário-teológica que expõe um modo de falar de caráter analógico, na medida em que traz como fundamento a relação do tipo "Eu-Tu" em um processo envolvendo um personalismo teocêntrico que, sobrepondo-se à teologia católica e a sua base naturalista, torna-se um movimento que, contudo, segundo Ricoeur, tende a não escapar ao exercício de uma reflexão crítica referente à operação de transposição envolvendo o tu da esfera humana à esfera divina instaurada sob a égide da analogia.
Nesta perspectiva, se não há uma reflexão crítica e um questionamento envolvendo a relação entre a analogia e o recurso ao simbolismo do mito, a questão da "significação" das suas representações converge para o seu comprometimento enquanto objeto de pesquisa, haja vista a diluição da sua razão de ser em uma construção literário-teológica que, segundo Ricoeur, exige na linguagem da fé o sacrificium intellectus que Bultmann tem a pretensão de abolir na superação da linguagem do mito em um processo que encerra a necessidade de abordar a linguagem e a interpretação em um movimento de problematização de caráter radical, de forma correspondente à desmitologização enquanto distinção entre kerygma e mito, e interpelação do seu sentido originário, o que implica, em última instância, a sua permanência sob o horizonte da interpretação.