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Cuestiones Teológicas

Print version ISSN 0120-131X

Cuest. teol. vol.48 no.110 Bogotá July/Dec. 2021  Epub May 03, 2022

https://doi.org/10.18566/cueteo.v48n110.a04 

Artículos

O USO DE CITAÇÕES E ALUSÕES DE SALMOS NOS ESCRITOS PAULINOS

The Use of Psalms quotations and allusions in Pauline Writings

El uso de citas y alusiones de Salmos en los Escritos Paulinos

Waldecir Gonzaga1 
http://orcid.org/0000-0001-5929-382X

Rogério Goldoni-Silveira2 
http://orcid.org/0000-0003-4797-7946

1 Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Pós-doutorado sobre o Cânon Bíblico, pela FAJE, Belo Horizonte, Brasil. Diretor e Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Criador e líder do Grupo de Pesquisa de Análise Retórica Bíblica Semítica, constante no Diretório do CNPq. E-mail: waldecir@hotmail.com e waldecir@puc-rio.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9171678019364477.

2 Doutorando e mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil. Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-PR. Membro do Grupo de Pesquisa de Análise Retórica Bíblica Semítica, constante no Diretório do CNPq. E-mail: <rogerio.goldoni@pucpr.br>. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3809560422931909


Resumo

O presente artigo tem como objetivo propiciar reflexão acerca do uso de citações e alusões de salmos nos escritos paulinos. Ainda que não seja possível ter certeza sobre a fonte usada por Paulo (LXX ou BH), os autores concordam que Paulo fez no mínimo 31 referências aos salmos, entre citações e alusões, sem contar os ecos. Diante dessa constatação, este artigo apresenta os critérios para a distinção de citações, alusões e ecos de textos do AT no NT, a partir dos estudos de G. K. Beale, na obra Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, e de R. B. Hays, em Echoes of Scripture in the Letter of Paul. Em seguida, são analisadas três citações de salmos e uma alusão: duas citações seguras (Sl 14,1-3 em Rm 3,10b-12; e Sl 112,9 em 2Cor 9,9); uma citação questionada (Sl 142,1 em Gl 2,16); e uma alusão (Sl 97,2 em Rm 1,17). Essa análise ajudará a compreender a razão pela qual Paulo emprega textos do Saltério em seus escritos assim como o contexto literário, além dos critérios que o apóstolo tinha para fazer referência a tais textos. Embora não seja possível determinar, com exatidão, a fonte usada pelo apóstolo, o presente estudo constata que, como é comum para todo o NT, o uso paulino do AT foi muito mais a partir de uma versão grega da LXX que de um texto hebraico. Ademais, percebe-se que Paulo tanto citou o AT literalmente, como o usou livremente, a depender de sua intenção teológica.

Palavras-chave: Salmos; Paulo; Citação; Alusão; Ecos; Escritos Paulinos; Antigo Testamento (AT); Novo Testamento (NT); Septuaginta (LXX); Bíblia Hebraica (BH)

Abstract

This article aims to provide reflection on the use of quotations and allusions from psalms in Pauline writings. Although it is not possible to be sure about the source used by Paul (LXX or BH), the authors agree that Paul made at least 31 references to the psalms, between quotations and allusions, not counting the echoes. In light of this finding, this article presents the criteria for distinguishing citations, allusions and echoes of OT texts in the NT, based on the studies by G.K. Beale, in his work Manual of the Use of the Old Testament in the New Testament, and by R.B. Hays, in Echoes of Scripture in the Letter of Paul. Then, three quotations from psalms and one allusion are analyzed: two safe quotations (Ps 14,1-3 in Rom 3,10b-12; and Ps 112,9 in 2Cor 9,9); one questioned citation (Ps 142.1 in Gal 2.16); and one allusion (Ps 97.2 in Rom 1.17). This analysis will help to understand why Paul employs texts from the Psalter in his writings as well as the literary context, in addition to the criteria the apostle had for referring to such texts. Although it is not possible to accurately determine the source used by the apostle, the present study finds that, as is common throughout the NT, Paul's use of the OT was much more from a Greek version of the LXX than from a Hebrew text. Furthermore, it is clear that Paul both quoted the OT literally and used it freely, depending on his theological intent.

Keywords: Psalms; Paul; Quote; Allusion; Echoes; Pauline Writings; Old Testament (OT); New Testament (NT); Septuagint (LXX); Hebrew Bible (HB)

Resumen

Este artículo busca reflexionar sobre el uso de citas y alusiones de los salmos en los escritos paulinos. Aunque no es posible estar seguro de la fuente utilizada por Pablo (LXX o BH), los autores coinciden en que Pablo hizo al menos 31 referencias a los salmos, entre citas y alusiones, sin contar los ecos. A la luz de este hallazgo, este artículo presenta los criterios para distinguir las citas, las alusiones y los ecos de los textos del Antiguo Testamento en el Nuevo Testamento, a partir de los estudios de G.K. Beale, en su obra Manual de uso del Antiguo Testamento en el Nuevo Testamento, y por R.B. Hays, en Ecos de la Escritura en la Carta de Pablo. Luego, se analizan tres citas de salmos y una alusión: dos citas seguras (Sal 14,1-3 en Rom 3,10b-12; y Sal 112,9 en 2Cor 9,9); una cita cuestionada (Sal 142,1 en Gal 2,16); y una alusión (Sal 97,2 en Rom 1,17). Este análisis ayudará a comprender por qué Pablo emplea textos del Salterio en sus escritos, así como el contexto literario, además de los criterios que tenía el apóstol para referirse a tales textos. Aunque no es posible determinar con precisión la fuente utilizada por el apóstol, el presente estudio encuentra que, como es común en todo el NT, el uso del AT por parte de Pablo fue mucho más a partir de una versión griega de la LXX que de un texto hebreo. Además, está claro que Pablo citó el AT tanto de manera literal como libre, según su intención teológica.

Palabras clave: Salmos; Pablo; Cita; Alusión; Ecos; Escritos Paulinos; Antiguo Testamento (AT); Nuevo Testamento (NT); Septuaginta (LXX); Biblia Hebrea (BH)

1. Introdução

Paulo é o hagiógrafo no Novo Testamento (NT) que melhor e com muita ponderação emprega o Antigo Testamento (AT) em seus escritos, fazendo várias referências à Torah, aos Nebi’îm e aos Ketubîm (Del Páramo, 1963, p. 229). Depois de Isaías, o Saltério é o livro bíblico mais citado por Paulo: 19 vezes (Pulkkinen, 2020, p. 10). E, contando citações e alusões, o número pode ser superior a 31 referências ao AT, sem contar o que os autores afirmam ser apenas ecos (Harrisville, 1985, p. 168).

Diante de tal panorama, observa-se a importância da abordagem desse artigo que visa aprofundar a reflexão a respeito do uso dos salmos nos escritos paulinos. Tal intento revela igualmente seus limites, pois há várias citações diretas, alusões e ecos do Saltério nos escritos paulinos, o que demandaria um trabalho mais complexo e volumoso, que o espaço e escopo de um artigo não comporta. Tala tarefa demandaria um livro volumoso.

Por isso, esse artigo traça uma reflexão acerca dos textos e/ou fontes usadas por Paulo nas citações dos salmos e discute critérios para identificar e diferenciar uma citação de uma alusão e de eco de textos do AT no NT.

Depois disso, são propostos alguns exemplos de citações e alusões aos salmos nos escritos de Paulo, o que possibilita vislumbrar a razão pela qual Paulo emprega os salmos em suas cartas.

Pode ser que, na prática, todo esse trabalho gere ainda mais dúvidas que conclusões definitivas. Mas como são as dúvidas que fazem a reflexão crescer, a etapa do estudo proposto nesse artigo se revela como fundamental em vista da compreensão do uso dos salmos nos escritos paulinos e abre campo para ulteriores pesquisas e amadurecimentos.

2. Sobre os textos referenciados por Paulo

Quando se fala o uso sobre paulino dos textos do AT, surge uma pergunta pertinente: qual texto ou fonte Paulo usou? A Bíblia Hebraica (BH) ou a versão grega da Septuaginta (LXX)? Se o texto hebraico, a partir de qual manuscrito? Se o texto grego da LXX (Silva, 2008, p. 79), a partir de qual manuscrito? Foi uso a partir de uma fonte na língua original, de uma tradução ou uso livre, com possível tradução própria, tendo em vista o motivo teológico? Assim, essas questões revelam a dificuldade de apontar com exatidão alguma resposta, mas abrem portas para ulteriores estudos e pesquisas.

Uma tese doutoral recente (Pulkkinen, 2020), que tratou do uso que Paulo faz dos salmos em Romanos e Primeira Carta aos Coríntios, buscando evidenciar as citações, alusões e os grupos de salmos empregados, apresentou uma análise relevante a respeito dessa questão - embora o status questionis seja um pouco limitado, pois não considera artigos que já tinham discutido a questão nas línguas espanhola e italiana.

Mas o mérito desse status questionis foi indicar os limites das observações dos estudos de Allan M. Harmon, visto que não apresenta a evidência dos manuscritos ou a edição crítica em que se baseou suas conclusões acerca do uso paulino da LXX ou da BH, o que, segundo Pulkkinen (2020, p. 11), teria tornado a avaliação de suas descobertas uma tarefa complicada.

Na visão de Pulkkinen (2020), Harmon teria explicado bem "a pluralidade textual dos salmos em grego durante o período tardio do Segundo Templo" (p. 11). Embora não seja possível rastrear a fonte textual, percebe-se a influência do Saltério da LXX1, o que não seria um problema para Paulo, dado que era no mínimo trilíngue.

Saber que houve influência do Saltério da LXX já é um importante ganho. Mas como ele era na época do NT? De acordo com Harrisville (1985), ainda que a língua grega tenha um espaço maior na realidade das primeiras comunidades, e que Paulo também se dirija às comunidades em grego, é praticamente "impossível afirmar categoricamente qual texto do hebraico ou grego ele usou" (p. 173).

Porém, não é absurdo concordar que a LXX foi a principal fonte de Paulo. E, ainda que listas apresentadas por autores proponham a concordância e discordância entre a LXX e a BH, segundo E. E. Ellis (1981, pp. 12-13), é evidente que o texto alexandrino tenha concordado, na sua maioria, com a Bíblia Hebraica.

Ademais, é preciso ter presente que as variações entre a LXX e a BH nas citações paulinas também se devem não apenas ao uso de possíveis manuscritos que não teriam chegado até nós, mas, igualmente, ao uso livre, de memória, que para Paulo não seria um grande problema, visto que era homem conhecedor de várias línguas (Ellis, 1981, p. 14), e dos textos bíblicos, lidos desde criança, como era comum a um judeu (Sl 119,152).

E Paulo poderia ter tido os Targumim como base? Poderia, porém, parece ser difícil afirmar categoricamente esta proposta, pois a única evidência mais clara estaria em Efésios: o autor da carta cita o Sl 68,19, no qual é dito "[...] tomaste presentes do ser humano", enquanto Ef 4,8 diz "[...] concedeu dons aos homens". Ou seja, na BH é empregado o verbo “חַקָל /tomar", ou "pegar", enquanto Ef 4,8 é usado o verbo "δίδωμι/dar", no indicativo aoristo, terceira pessoa singular, o qual também tem o sentido de "conceder" (Harmon, 1969, p. 5). Esta diferença pode ter razão em uma citação feita de memória e não a partir de uma tradução já pronta.

No geral, por um lado, parece ser mais provável que Paulo tenha trabalhado "a partir de uma versão grega do AT que se aproxima do que mais tarde ficou conhecido como a LXX" (Norden, 2016, p. 76) e não que tenha citado os textos todos de memória; por outro lado, não aprece que Paulo tenha vasculhado o AT na busca de citações, mas que tenha usado anotações pessoais, conscientemente e com finalidades bem precisas, teologicamente falando (Norden, 2016, p. 85).

Este artigo, ao apontar para a dificuldade de se analisar desde a perspectiva e texto-fonte atuais as referências que Paulo faz ao AT, introduz outra questão igualmente aberta, mas que ajudará a distinguir critérios para analisar melhor o uso dos salmos em Paulo, a saber: como é possível verificar a distinção entre citação e alusão nos escritos Paulinos?

3. Critérios para distinguir citações e alusões do AT no NT

Embora a distinção entre citação e alusão seja uma questão muito debatida entre os autores, a ponto de não haver consenso, esta é uma questão importante, pois ajuda a esclarecer qual é o alcance de uma citação e/ou alusão (Silva, 2008, p. 76).

Não é tarefa simples distinguir uma citação de uma alusão, principalmente porque no contexto na literatura neotestamentária a citação não tinha o mesmo conceito de "aspas", como há na atualidade (Ellis, 1981, p. 11). No ambiente literário do NT, os autores tinham como prática entrelaçar com suas próprias palavras citações de outros escritores sem conhecimento da fonte. Mas era "esperado que os leitores as reconhecessem como citações" (Harmon, 1969, p. 2).

Afinal de contas, o que deve ser entendido por citação? A respeito dessa questão, Harmon (1969) retoma os argumentos de Swete, afirmando que o conceito era muito mais amplo no mundo antigo:

Por passagens formalmente citadas, entendemos (1) aquelas que são citadas com uma fórmula introdutória... ; (2) aquelas que, embora não anunciadas por uma fórmula, aparecem do contexto para serem entendidas como citações ou concordam literalmente com algum contexto no Antigo Testamento (p. 382).

Sinteticamente, segundo Beale (2013), a citação pode ser definida como "uma reprodução direta de uma passagem do AT facilmente identificável por seu paralelismo vocabular claro e bem característico" (p. 53). Na opinião de Beetham (2008), a citação é "o mais forte e explícito modo de referência" (p. 16). Estes e outros autores identificaram alguns critérios que evidenciariam uma citação. Entre os critérios mais compreensíveis e menos dados à crítica, destacam-se aqueles apresentados por Stanley para identificar uma citação nas cartas de Paulo:

  1. iniciar com uma fórmula introdutória de citação explícita; b) ser acompanhado por uma explicação clara, como 1Cor 15,27; c) permanecer em uma "tensão sintática demonstrável com seu ambiente paulino presente", como Rm 9,7; 10,18 (1992, p. 37).

Naturalmente, a tabulação das citações, alusões e ecos do Saltério propostos nos escritos de Paulo é de elevada importância. Contudo, compreender a razão pela qual o apóstolo cita tantas vezes os salmos exige um trabalho mais minucioso, pois pode ajudar a solucionar questões paulinas ligadas à cristologia, eclesiologia, teologia, pneumatologia, justificação, ao papel da lei e das obras, e tantos outros temas (Gonzaga, Silva Ramos e Carvalho Silva, 2020, p. 11).

A alusão a um texto do AT no NT é mais difícil de definir que a citação (Gonzaga e Filho, 2020, p. 4). A contagem varia muito entre os autores (Beale, 2013, p. 55). Sinteticamente, define-se a alusão como "uma expressão breve deliberadamente pretendida pelo autor para ser dependente de uma passagem do AT" (Beale, 2013, p. 56).

Diferentemente da citação, a alusão é indireta, "não se limita à forma de uma frase linear" (Beetham, 2008, p. 17), podendo ser mais fragmentária, espalhada ao longo do texto. E ainda que seja praticamente empregada como sinônimo de eco, é possível compreender o eco ao AT como uma "referência sutil" (Beale, 2013, p. 56), que depende do texto veterotestamentário para que sua validade e coerência sejam percebidas.

É muito importante ter presente e seguir os critérios para se discernir se um texto do AT é citado ou aludido no NT; isso não foge à regra quando se desce ao plano de cada autor do NT, como é o caso, em Paulo, e para um tema específico, ou seja, a citações e alusões dos salmos no corpus paulino. Ademais, ressalta-se que se a citações são mais facilmente identificadas, enquanto que as alusões, por abrangerem um leque mais amplo (Silva, 2008, p. 81), demandam mais tempo e trabalho, haja vista seu formato mais implícito e não tanto explícito como a citação.

Porém, como o pensamento de Paulo é, indubitavelmente, influenciado pelo AT, a presença de textos ou temas veterotestamentários é algo certo. Resta saber onde, a partir de qual fonte, em qual das três dimensões - citação, alusão ou eco - e com qual intenção teológica o "apóstolo dos gentios" (Rm 11,13) fez uso das Escrituras Sagradas de Israel. O caminho mais viável, parece ser o de analisar as ocorrências e buscar discernir se nelas há uma citação, alusão ou eco do AT e indicar alguns dados acerca de cada uma, que, possivelmente, vai se diferenciando em sua aplicação dentro de cada texto paulino.

Em se tratando do valor de um método ou de critérios, é sempre oportuno e bom ter presente dois grandes nomes nesta área: Hays (1989), por trabalhar a temática diretamente voltada para o corpus paulino, e Beale (2013), por desenvolver o Método do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento e por trabalhá-lo em todos os corpora do NT, juntamente com Carson e outros autores (Beale e Carson, 2014).

Como etapa metodológica, em sua obra Echoes of Scripture in the Letters of Paul, Hays indica sete critérios para a confirmação do emprego de citações (referência direta e explícita textualmente), alusões (referência indireta e implícita textualmente) e ecos (referência sutil, tematicamente) do AT no NT:

1) disponibilidade: o texto-fonte deveria ser acessível ao autor e aos seus leitores; 2) volume: palavras ou padrões sintáticos repetidos com alto grau no NT; 3) recorrência: alusão à passagem bíblia específica em outros momentos dos escritos do mesmo autor; 4) coerência temática: o texto aludido pelo autor se ajusta e até esclarece o argumento proposto; 5) plausibilidade histórica: o autor ter pretendido o efeito significado e o público ter compreendido; 6) história da interpretação: como a alusão foi compreendida/interpretada ao longo da história; 7) satisfação: discernir se a alusão faz sentido no contexto, iluminando-o e esclarecendo-o, e se possibilita uma explicação satisfatória ao leitor (Hays, 1989, pp. 29-32; Gonzaga e Filho, 2020, p. 5).

Beale (2013), em sua obra Manual do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, retoma os sete critérios fornecidos por Hays para a identificação do uso de citações, alusões e ecos do AT no NT, e oferece nove passos para sua análise, ampliando ainda mais os pontos da pesquisa em vista da proposta inicial de Hays:

1) Identifique a referência ao AT. É citação ou alusão?... [identificação e confirmação: neste passo são retomados os sete critérios de Hays, sendo os demais propostos pelo próprio Beale]; 2) Analise o contexto geral do NT em que ocorre a referência ao AT; 3) Analise o contexto imediato e o contexto geral do AT, interpretando atenta e minuciosamente sobretudo o parágrafo em que a citação ou alusão ocorre; 4) Pesquise o uso do texto do AT no judaísmo anterior e posterior que possa ser importante para a apropriação do texto veterotestamentário pelo NT; 5) Compare os textos (inclusive suas variantes textuais): NT, LXX, TM e os Targumim, citações judaicas antigas (MMM, Pseudoepígrafos, Josefo, Filon)...; 6) Analise o uso textual que o autor faz do AT. (Em que texto veterotestamentário o autor se apoia, ou se ele está dando sua interpretação pessoal, e como isso afeta a interpretação do texto do AT?; 7) Análise do uso interpretativo (hermenêutico) que o autor faz do AT; 8) Analise o uso teológico que o autor faz do AT; 9) Analise o uso retórico que o autor faz do AT (Beale, 2013, pp. 68-69).

3.1 As citações dos Salmos em Paulo

Como a citação do Antigo no NT é mais clara e possível de se estabelecer que uma alusão, abordam-se aqui aquelas citações diretas dos salmos em Paulo que são reconhecidas pela maioria dos autores.

Os autores são praticamente unânimes em afirmar que as citações que Paulo faz ao AT normalmente seguem a versão da LXX, e raramente são tomadas do texto da BH (Gonzaga e Filho, 2020, p. 11). E, a respeito do emprego dos salmos em Paulo e sua concordância com a LXX e/ou com a BH, além das obras, critérios discussões elencados acima, também se seguirá, neste artigo, a proposta de Ellis (1981, pp. 150-152), que é retomada por Silva (2008, pp. 77-78), com o acréscimo de outras citações, conforme a tabela abaixo.

Uma ressalva é feita: os textos do grupo 1, que concordam com a LXX e com a BH, foram acrescidos de outros textos, destacados com asterisco (*: duas citações), que, na lista de Ellis, fariam parte do grupo 2. E as três citações que não possuem fórmula introdutória, são destacadas com o sinal negativo "-".

1) Concorda com a LXX e BH 2) Concorda com a LXX, mas difere do BH
Rm 2,6 - Sl 62,13 Rm 3,14 Sl 10,7 (9,28)
Rm 3,4 Sl 51,6* Rm 4,7-8 Sl 32,1-2
Rm 3,13a Sl 5,10 Rm 10,18 Sl 19,5
Rm 3,13b Sl 140,4*
Rm 3,18 Sl 36,2 3) Concorda com o BH, mas difere da LXX
Rm 8,36 Sl 44,23
Rm 10,18 Sl 19,4 Nenhum salmo citado.
Rm 15,3 Sl 69,9
Rm 15,9 Sl 18,50 4) Difere da LXX e do TM
Rm 15,11 Sl 117,1 Rm 3,10-12 Sl 14,1-3
1Cor 10,26 - Sl 24,1 Rm 10,6-8 Sl 107,26?
1Cor 10,26 Sl 24,1 Rm 11,9-10 Sl 69,23-24
1Cor 15,27 Sl 8,7 Ef 4,8 Sl 68,19
2Cor 4,13 Sl 116,1
2Cor 9,9 Sl 112,9 5) Citações contestadas
Ef 4,26 - Sl 4,4 Rm 3,20 Sl 143,2
Rm 11,1-2 Sl 94,14
1Cor 15,25 Sl 110,1
Gl 2,16 Sl 143,2

Fonte: tabela de citações veterotestamentárias em Paulo (Silva, 2008, pp. 77-78).

No grupo 1 dos salmos citados por Paulo, estão aqueles que não apresentam dificuldades textuais importantes. São salmos traduzidos da BH para a LXX "de maneira razoavelmente 'literal' e, por sua vez, a citação paulina está de acordo com a tradução da LXX em todas as questões essenciais" (Silva, 2008, p. 77). E no grupo 2, estão aquelas citações que concordam com a LXX, mas diferem da BH.2

No que diz respeito às demais citações do AT, seria possível dizer que Paulo parece seguir a LXX com mais frequência que a BH (Silva, 2008, p. 77). Porém, dado que somente três salmos estão nesta lista, essa afirmação não é totalmente segura, a não ser que se compreenda que o processo de transmissão dos salmos que estão no grupo 1 foi totalmente seguro, e que Paulo usava somente a LXX, cujos salmos (do grupo 1) estão em conformidade com a BH.

O grupo 3 apresenta, para uso de todo o AT, as citações de Paulo que concordam com a BH, mas discordam da LXX (Silva, 2008, p. 77). É um grupo relativamente pequeno, que, embora seja acrescido de uma citação de um livro deuterocanônico (Hab 2,4: em Rm 1,17 e em Gl 3,11), seria oportuno para a reflexão sobre o uso paulino da LXX em detrimento da BH.

O grupo 4, por sua vez, é composto por uma lista muito relevante de citações do AT que são praticamente variantes, pois a citação paulina difere tanto da BH quanto da LXX. E no grupo 5 estão as citações problemáticas: ou por conta da fonte que é contestada ou pelo fato de alguns autores compreenderem como alusão (Silva, 2008, p. 77).

Uma questão levantada é: a diferença que há entre a BH e a LXX na citação de Paulo é, de fato, elemento de alta relevância? Possivelmente não, pois Paulo poderia expressar certa liberdade no momento da citação, pois o processo era diferente daquele de um estudioso de hoje. Porém, resta saber não apenas o emprego da equivalência linguística, mas a mudança em vista da questão teológica.

Além disso, o que hoje se chama de LXX possivelmente não era a mesma coleção na época de Paulo. Logo, não se sabe qual era a exata forma da "LXX" que Paulo tinha à disposição (Silva, 2008, p. 79). É praticamente normal encontrar algumas variações nas citações que Paulo fez a textos do AT, pois elas se adequam ao contexto da fala do apóstolo, sendo, portanto, "variações ocasionais" (Ellis, 1981, p. 11).

O Sl 110, que junto aos Sl 2 e 8 está entre os mais empregados por Paulo para se referir a Cristo (Del Páramo, 1963, p. 231), é um bom exemplo para refletir essa questão. O Sl 110, que também é empregado em vários textos do NT (At 2,34-35; Rm 8,34; Ef 1,20-22; Cl 3,1; Hb 1,3.13; 5,6 entre outros), é claramente citado pela primeira vez na 1Cor 15,25, "ao tratar da conexão que a ressurreição de Cristo tem com a nossa" (Del Páramo, 1963, p. 231). Contudo, em 1Cor 15,25 Paulo faz uma ligeira modificação, já que enfatiza que é o próprio Cristo quem põe os inimigos debaixo de seus pés, enquanto a BH e a LXX apresentam YHWH como sujeito. Porém, um dado importante é que Paulo atribuiu muitas vezes a Cristo o que no AT se diz de YHWH (Del Páramo, 1963, p. 232).

O que foi dito até aqui se tornará mais claro a partir da análise de alguns salmos referenciados por Paulo. Ademais, além de saber se se trata de citação ou alusão, o importante também será perceber como Paulo aplica cada texto veterotestamentário nos escritos de seu epistolário.

3.2. Análise de Salmos seletos citados ou aludidos por Paulo

Entre as epístolas paulinas, Romanos é aquela que contempla a maioria das citações diretas que Paulo faz aos salmos. A enumeração pode variar entre os autores. Por isso, segue-se a lista proposta na tabela acima. Ademais, ajuda-nos o fato de que a carta aos Romanos é uma das cartas autenticamente paulinas (Gonzaga, 2017, p. 22).

Semelhante às citações dos demais livros do AT (Gonzaga e Filho, 2020, p. 4), a citação de um salmo em Paulo geralmente é introduzida pelo verbo " γράφω/escrever" no indicativo perfeito (passivo), ressaltando, assim, a continuidade da ação divina, e não apenas a ação passada.

Em outros casos, o salmo é introduzido pelo verbo " λέγω/dizer" (Rm 4,6; 11,9) - interessante notar que nestas duas citações paulinas há uma referência a Davi. Paulo também emprega fórmulas introdutórias mais breves, tais como a partícula "μενοῦνγε/portanto/ao contrário" (Rm 10,18), a conjunção + advérbio "καὶ πάλιν/e mais/e de novo" (Rm 15,11).

Entre as citações que concordam com a LXX e com a BH, listadas acima, apenas Rm 2,6; 1Cor 10,26 e Ef 4,26 não evidenciam uma fórmula introdutória - provavelmente, por estarem na sequência da narrativa. As fórmulas empregadas por Paulo podem até variar. Porém, excetuando estes três casos, o apóstolo nunca emprega uma fórmula introdutória quando cita textos ou sentenças fora das Sagradas Escrituras. Exemplo é 1Cor 15,33, no qual Paulo cita o poeta Menandro (Lim, 2013, p. 41).

Chama a atenção a longa cadeia de citações ao AT presente em Rm 3,10-18, a mais longa nas cartas de Paulo (Beale e Carson, 2014, p. 769).3 Nela, há cinco citações dos salmos (Sl 5; 9[10]; 13[14]; 35[36]; e 139[140]), e uma de Is 59,7-8. Tomando o contexto de Rm 2,1-3,20, conclui-se que Paulo pretende revelar a pecaminosidade humana aos seus interlocutores. Assim, todos estariam submetidos à ira divina, até mesmo os judeus. A visão do ser humano proposta por Paulo em Rm 3,10-18 parece ser pessimista. Além disso, é interessante como ele não emprega salmos que falam do pecado do ser humano, mas praticamente do ser humano avesso a Deus.

Tendo esse breve panorama, passa-se ao comentário de salmos citados ou aludidos por Paulo. Serão comentadas três citações e uma alusão: uma citação que é questionada (Sl 142,1 em Gl 2,16); duas citações seguras (Sl 14,1-3 em Rm 3,10b-12; Sl 112,9 em 2Cor 9,9); e uma alusão (Sl 97,2 em Rm 1,17), que não se encontra citada na tabela acima.

3.2.1 A citação do Salmo 142,2 (LXX) em Gl 2,16

Em Gl 2,16, constituindo uma estrutura quiástica, há uma citação livre (Schlier, 1965, pp. 92-98) do Sl 142,1-2 (LXX), no sentido de que Paulo não a cita literalmente e ainda introduz algumas modificações; por isso, também vem classificada como citação contestada, pois, talvez, encaixe-se melhor na categoria de alusão e não de citação. Em negrito, encontram-se as palavras e/ou frases do Sl 142,2 (LXX) idênticas às citações feitas por Paulo, em Gálatas: em sublinhado e itálico, estão as palavras e/ou frases cuja alusão se deu com ligeiras diferenças ou ausências em relação ao texto da LXX.

Gl 2,16 Tradução Sl 142,1-2 (LXX) Tradução
16εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς Χριστὸν Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ ἔργων νόμου, ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ. Sabemos [porém] que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, também nós acreditamos em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei, porque pelas obras da lei não será justificada nenhuma carne. 1ψαλμὸς τῷ Δαυιδ ὅτε αὐτὸν ὁ υἱὸς καταδιώκει κύριε εἰσάκουσον τῆς προσευχῆς μου ἐνώτισαι τὴν δέησίν μου ἐν τῇ ἀληθείᾳ σου ἐπάκουσόν μου ἐν τῇ δικαιοσύνῃ σου 2καὶ μὴ εἰσέλθῃς εἰς κρίσιν μετὰ τοῦ δούλου σου ὅτι οὐ δικαιωθήσεται ἐνώπιόν σου πᾶς ζῶν 1Salmo de Davi, quando o filho o persegue. Senhor, escuta a minha oração, atende a minha súplica em tua fidelidade, escuta-me em tua justiça. 2Não entres em juízo com o teu servo, porque diante de ti não será justificado nenhum vivente.

A LXX (Sl 142,2: “ὅτι οὐ δικαιωθήσεται ἐνώπιόν σου πᾶς ζῶν/porque não será justificado diante de ti nenhum vívente'") e a BH (Sl 143,2: " יָח־לָכ ךיֶנָפְל קַּדְציִ־אֹל יִּכ/porque não será justificado diante de ti nenhum vívente'") se correspondem. Paulo, por sua vez, afirma: " ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ/porque pelas obras da lei não será justificado nenhuma carne". Porém, o apóstolo faz uma citação ampliada (Bruce, 2002, p. 137) e não literal desse texto, com algumas modificações intencionais, tendo em vista os pontos teológicos que ele estava defendendo.

É interessante observar que o salmista, na LXX (ὅτι οὐ δικαιωθήσεται ἐνώπιόν σου πᾶς ζῶν/porque não será justificado diante de ti nenhum vivente"), e Paulo, no NT (ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεταιπᾶσα σάρξ /porque pelas obras da lei não será justificada nenhuma carne") afirmam negativamente aquilo que Hab 2,4 diz de forma positiva: " ὅτι ὁ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται/'porque o justo viverá pela fé". É um texto importante para Paulo, usado novamente em Gl 3,11 e também em Rm 3,20.

O que Paulo tem em mente é mostrar a seus interlocutores que "as obras da lei" não justificam. Para tanto a visão negativa do Sl 142,2 é ideal e mais contundente que a forma positiva de Hab 2,4, visto seu maior impacto na compreensão humana, que muitas vezes se dá muito mais pela negação/proibição que pela afirmação. Então, Paulo encontra aqui a base escriturística que necessitava para sustentar aquilo que não é e nem pode dar a " δικαιοσύνη/justiça". Ao que parece, Paulo, quando escreveu tanto Gálatas como Romanos, tinha o Sl 142,2 em mente, pois, mesmo baseando-se no AT, esta formulação, como é feita aqui, é unicamente paulina (Pohl, 1999, p. 85). Para apóstolo, a fé cristã não justifica ninguém, mas recebe a justiça; neste sentido, ela não é ativa e sim passiva, ela não dá e sim recebe gratuitamente, sem mérito algum.

Tendo em vista seu argumento, Paulo cita o Sl 142,2, porém, com três alterações: a) acrescenta "ἐξἔργων νόμου /pelas obra da lei", e b) substitui "πᾶς ζῶν/nenhum vivente" por " πᾶσα σάρξ/nenhuma carne", e, por fim, c) omite "ἐνώπιόν σου/diante de ti". Essas variações talvez tenham entrado no texto por causa da visão de Hab 2,4, que Paulo cita e desenvolve logo depois, em 3,11 ("ὅτι ὁ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται/porque o justo viverá pela fé") e, quem sabe, até mesmo por causa da concepção negativa: "καὶ οὐκ ἐξ ἔργων νόμου/e não pelas obras da lei".

O que se percebe é que Paulo faz este acréscimo justamente para tornar o texto do AT mais compreensível, ou seja, para esclarecer melhor o seu sentido e pensamento (Gonzaga, 2015, pp. 373-375). Assim sendo, as três modificações feitas por Paulo são importantes para que o apóstolo possa melhor adaptar o texto e usá-lo para afirmar e dar base a tudo o que ele está defendendo diante dos desafios enfrentados junto às Igrejas da Galácia (Buscemi, 2004, p. 2014; Betz, 1979, pp. 118-119).

Se no início do v.16, Paulo havia dito que quem vem justificado pela fé é “ἄνθρωπος/homem”, em seguida, no final do mesmo versículo, ele afirma que tipo de “ἄνθρωπος/homem” vem justificado pela fé, a saber “πᾶσα σάρξ/toda carne”, ou seja, todo e qualquer “ἄνθρωπος/homem” sem exceção, judeu ou pagão, indistintamente, homem ou mulher, escravo ou livre, como vai frisar em Gl 3,28.

Paulo cita este texto do Sl 142,2 porque sabia muito bem que a base escriturística (Corsani, 1990, p. 170) -da Lei, dos Profetas ou dos Salmos -, que ele vai desenvolver especialmente a partir de Gl 3, era algo muito importante para que um judeu pudesse constatar e acreditar que algo realmente estava de acordo com a "revelação" de YHWH para com o seu povo. Com essa afirmação, o Salmista e Paulo testificam que "nenhum homem", por seus méritos ou esforços, pode ser " δίκαιος/justo", mas tão somente por pura graça e misericórdia de Deus. Mesmo aqueles que buscam observar a lei, na realidade não podem ser justos somente com suas próprias forças, não podem jamais apresentarem-se diante de Deus tendo como argumento as "obras da lei", enquanto ritualismo farisaico.

Enfim, o salmista, quando descobre esta realidade, invoca como princípio e fonte da salvação a bondade e a justiça do próprio Deus e não do homem, que, para tanto, é incapaz. Paulo, com isso, acaba encontrando neste salmo a base da justificação "pela fé" e a própria Teologia da Justificação (Pitta, 1996, p. 142).

3.2.2 A alusão do Salmo 97,2 (LXX) em Rm 1,17

Como caso de alusão, toma-se o conhecido versículo de Rm 1,17, no qual Paulo faz uma citação explícita de Hab 2,4, citado também em Gl 3,11. Além desta já certa citação, é possível que haja uma alusão ao Sl 97,2 (LXX), assim indicou Pulkkinen (2020, p. 211). Por motivos didáticos, são apresentados os textos do AT e do NT, com suas respectivas traduções. As expressões relevantes para a análise se encontram destacadas, e as observações relativas à BH, quando necessárias, serão apresentadas junto ao breve comentário que será tecido. A fim de facilitar encontrar a possível alusão paulina ao Sl 97,2 (LXX) em Rm 1,17, em sublinhado e itálico estão as palavras cuja alusão é perceptível, com ligeiras diferenças em relação ao texto da LXX, e que serão comentadas a seguir.

Rm 1,17 Tradução Sl 97,2 (LXX) Tradução
δικαιοσύνη γὰρ θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται ἐκ πίστεως εἰς πίστιν, καθὼς γέγραπται· ὁ δὲ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται. "Pois nele a justiça de Deus se revela da fé para a fé, conforme está escrito: 'o justo vive da fé'". ἐγνώρισεν κύριος τὸ σωτήριον αὐτοῦ ἐναντίον τῶν ἐθνῶν ἀπεκάλυψεν τὴν δικαιοσύνην αὐτοῦ. "O Senhor fez conhecer sua salvação. Diante das nações revelou a justiça dele".

É perceptível uma conexão lexical e temática entre Rm 1,17 e o Sl 97,2 (LXX). Em ambos os textos, ocorre o verbo “ἀποκαλύπτω/revelar” e o substantivo “δικαιοσύνη/justica”, cuja fonte é bem delimitada: “τοῦ θεοῦ/de Deus” (Rm 1,17), marcada pelo emprego do substantivo “θεός/Deus”, no genitivo singular masculino; “dele” (Sl 97,2), dada no pronome pessoal “αὐτοῦ/dele”, no genitivo masculino singular.

Diante dessa alusão poderia ocorrer a reação da pessoa convencida de que seria possível estabelecer com Rm 1,17 várias outras alusões semelhantes. Contudo, há mais um elemento que parece fortalecer a alusão: o Sl 97,2 (LXX) "é a única vez que δικαιοσύνη ocorre como objeto de ἀποκαλύπτω" (Pulkkinen, 2020, p. 213) na versão grega do AT.

E não é só isso: entre os salmos da realeza do Senhor (Sl 90-106 BH), o Sl 97(98) é um daqueles que formam a seção central (Sl 96-99 BH), compondo o coração do livro IV do Saltério (Wilson, 1993, pp. 49-50), e tendo os Sl 95 e 100 (BH) como moldura. E estes salmos apresentam uma perspectiva universal, em que todos os povos da terra e toda a criação são conclamados a louvar o Senhor por causa de seus feitos e, além disso, o salmista recorda a salvação oferecida a todos os povos.

Torna-se quase evidente uma conclusão: não basta apenas indicar as conexões de textos paulinos com os salmos ou com qualquer outro texto do AT. É importante compreender todo o contexto: no caso dos salmos, o contexto de toda a unidade poética, assim como o lugar do salmo em seu livro correspondente.

3.2.3 A citação do Sl 13,1-3 (LXX) em Rm 3,10b-12

Entre os salmos citados na carta de Paulo aos Romanos, que são trazidos na tabela acima, um chama a atenção: o Sl 14,1-3, utilizado pelo apóstolo em Rm 3,10b-12, seção na qual Paulo trata da rejeição de Deus por parte do ser humano. Chama a atenção o fato de que o texto da versão grega da LXX basicamente concorda com o texto da BH (Sl 14,1-3), com pequenas modificações, sem prejuízo do texto hebraico, como é possível conferir. Em negrito, estão as palavras e/ou frases do texto bíblico, a partir da LXX, que são idênticas às citações feitas por Paulo; em sublinhado e itálico, encontram-se as palavras e/ou frases em que a citação se diferencia da LXX.

Rm 3,10b-12 Sl 13,1-3 (LXX) Sl 14,1-3 (TM)
v. 10b: ὅτι οὐκ ἔστιν δίκαιος pois não há justo, οὐδὲ εἷς, nenhum. v. 11: οὐκ ἔστιν ὁ συνίων, não há quem entenda, οὐκ ἔστιν ὁ ἐκζητῶν τὸν θεόν. não há quem procure a Deus. v. 12: πάντες ἐξέκλιναν todos se transviaram, ἅμα ἠχρεώθησαν· juntos se corromperam. οὐκ ἔστιν ὁ ποιῶν χρηστότητα, Não há quem faça o bem, [οὐκ ἔστιν] ἕως ἑνός. [não há] um sequer. v. 1: εἰς τὸ τέλος ψαλμὸς τῷ Δαυιδ para o final. Salmo para Davi. εἶπεν ἄφρων ἐν καρδίᾳ αὐτοῦ Disse o insensato no coração dele: οὐκ ἔστιν θεός não existe Deus. διέφθειραν destruíram καὶ ἐβδελύχθησαν ἐν ἐπιτηδεύμασιν e foram abomináveis na conduta. οὐκ ἔστιν ποιῶν χρηστότητα não há quem faça o bem, οὐκ ἔστιν ἕως ἑνός não há um sequer. v. 2: κύριος ἐκ τοῦ οὐρανοῦ διέκυψεν ἐπὶ τοὺς υἱοὺς τῶν ἀνθρώπων Do céu o Senhor olhou para os filhos dos homens τοῦ ἰδεῖν εἰ ἔστιν συνίων para ver se há quem entenda, ἢ ἐκζητῶν τὸν θεόν ou quem procure a Deus. v. 3: πάντες ἐξέκλιναν todos se transviaram, ἅμα ἠχρεώθησαν juntos se corromperam. οὐκ ἔστιν ποιῶν χρηστότητα Não há quem faça o bem, οὐκ ἔστιν ἕως ἑνός. [...]4não há um sequer. 1 דִוָדְל חֵּצַנְמַל Para o dirigente. De Davi. וֹבִּלְּב לָבָנ רַמאָ Diz o insensato no coração dele: םיִ֑הֹלֱא ןיֵא “não existe Deus!” וּתיִחְׁשִה Destruíram! הָליִלֲע וּביִעְתִה Corromperam a conduta. ׃בוֹט־הֵׂשֹע ןיֵא não há quem faça o bem. 2 םָדאָ־יֵנְּב־לַע ףיִ֪קְׁשִה םיִַמָּׁשִמ הָוהְי Dos céus YHWH olhou para os filhos dos homens ליִּ֑כְׂשַמ שֵׁיֲה תוֹאְרִל Para ver se existe quem entenda, ׃םיִהֹלֱא־תֶא שֵׁרֹּד quem busque a Deus. 3 רָס לֹּכַה Cada qual se afastou, וּחָלֱאֶנ וָּ֪דְחַי juntos foram corrompidos. בוֹ֑ט־הֵׂשֹֽע ןיֵא Não existe quem faça o bem, ׃דָחֶא־םַּג ןיֵא não existe nenhum.

Excetuando o acréscimo que o Sl 13,3 (LXX) possui, possivelmente influenciado por Rm 3, já que no século III os vv.13-18 foram incorporados na LXX, dando origem a muitas versões (Norden, 2016, p. 74), não há diferenças consideráveis da LXX em relação à BH. Apenas no final do v.10, a BH não apresenta a ênfase "οὐκ ἔστιν ἕως ἑνός/não há um sequer", como a LXX. Outras ligeiras mudanças dizem respeito à diferença entre as línguas grega e hebraica.

Enquanto a LXX emprega o substantivo “χρηστότης/bem”, Paulo usa o adjetivo “δίκαιος/justo”, resultando em “οὐκ ἔστιν δίκαιος/nao ha justo” (Rm 3,10b). Paulo poderia ter se confundido com Ecl 7,20 -no qual também ocorre outro texto do AT (“ὅτι ἄνθρωπος οὐκ ἔστιν δίκαιος ἐν τῇ γῇ/pois nao ha um ser humano justo na terra”)- semelhante à citação sua em Rm 3,10b (Pulkkinen, 2020, p. 109). Igualmente, onde o Sl 13,1 (LXX) “diz respeito a fazer o bem a outros, Paulo muda para a relação homem-Deus para dar continuidade ao seu argumento sobre a justificação divina” (Beale e Carson, 2014, p. 770).

Que Paulo não cite a primeira parte do v.1 (LXX/BH), também não parece ser um grande problema, pois é uma parte do versículo que não se encaixaria totalmente com sua argumentação. Mas Rm 3,10b apresenta paralelismo lexical (texto negritado) e sinonímico (texto sublinhado), assim como nos demais versículos.

Porém, em Rm 3,11 há mudanças significativas, visto que: a) inicia sua citação no Sl 13,2b (LXX), desconsiderando a primeira parte “do céu o Senhor olhou para os filhos dos homens”; b) ao invés da construção com infinitivo “τοῦ ἰδεῖν/para ver”, acrescenta algo mais existencial “οὐκ ἔστιν ὁ/nao ha quem”; c) e substitui a partícula “εἰ/se” pela negativa “οὐκ/nao”, e a conjunção coordenada “ἢ/ou”, por outra afirmação negativa, com “οὐκ ἔστιν/nao ha”.

O acréscimo do artigo nominativo masculino singular "ὁ/o" não é particularmente expressivo, visto que ele está subentendido no verbo " ἐκζητῶν/aquele que procura", que corresponde ao particípio presente ativo nominativo masculino singular do Sl 13,2 (LXX).

Todavia, chama a atenção o fato de Paulo deixar de lado uma possibilidade -ideia propiciada pela primeira parte do Sl 13,2 (LXX) e omitida por Paulo- que é dada no emprego da partícula "εἰ/se" e da conjunção coordenada “ἢ/ou”, para enfatizar e afirmar, por meio de duas negativas, "οὐκ ἔστιν ὁ/não há quem", o que parece ser mais bem aplicado ao discurso de Paulo em Rm 3,9-20. Desse modo, o que seria uma informação, com Paulo se torna uma declaração (Beale e Carson, 2014, p. 770).

Enquanto o Sl 13 (LXX) enfatiza a situação do insensato que diz "não existe Deus!", Paulo destaca a situação do ser humano imerso no caos existencial, longe de Deus. Esta dimensão é evidente em Rm 3,12, que cita o Sl 13,3 (LXX) literalmente.

3.2.4 A citação do Salmo Sl 111,9 (LXX) em 2Cor 9,9

Textos do AT também são empregados por Paulo em 2Cor 9,6-10. O apóstolo cita dois textos (Pr 11,2425; Sl 112,9) e alude a um (Is 55,10) com um propósito específico: conseguir a coleta a ser levada aos irmãos mais pobres de Jerusalém. Assim, ao recordar aos coríntios a necessidade da coleta em favor santos (2Cor 9,2), ou seja, em favor da comunidade de Jerusalém (At 9,13), Paulo é enfático na argumentação, propondo que a comunidade, de fato, compartilhe do que tem com os que não têm ou têm menos: "Deus tem, pois, o poder de vos cumular de toda graça, para que, tendo em tudo o necessário, superabunde em toda boa obra" (2Cor 9,8). E, em seguida, Paulo cita o Sl 111,9 (112,9, BH). Em negrito, encontra-se frase do Sl 111,9 (LXX) idêntica à citação feita por Paulo, a qual foi introduzida pela expressão "Ka9cCç yéypannai/conforme está escrito", como é comum encontrar em várias citações do AT no NT.

2Cor 9,9 Tradução Sl 111,9 (LXX) Tradução
καθὼς γέγραπται· ἐσκόρπισεν, ἔδωκεν τοῖς πένησιν, ἡ δικαιοσύνη αὐτοῦ μένει εἰς τὸν αἰῶνα. "Conforme está escrito: distribuiu, deu aos pobres. A justiça dele permanece para sempre". ἐσκόρπισεν ἔδωκεν τοῖς πένησιν ἡ δικαιοσύνη αὐτοῦ μένει εἰς τὸν αἰῶνα. " Distribuiu, deu aos pobres. A justiça dele permanece para sempre".

O salmo citado na carta está em acordo com o texto da LXX, o qual, por sua vez, tampouco está em desacordo com o texto da BH. O texto é uma citação explícita do Sl 111,9 (LXX), proposto após a fórmula introdutória "καθὼς γέγραπται/conforme está escrito".

A única imprecisão que gera importante debate é se o sujeito da citação é Deus ou o ser humano, questão já tratada em estudos do Sl 112 da BH (Sherwood, 1989, pp. 50-64), que correspondo ao 111 da LXX, visto que o próprio salmo também deixa alguma dúvida a esse respeito.

Porém, em 2Cor 9,8.10, contexto imediato de 2Cor 9,9, Deus é apresentado como sujeito. Por isso, pensa-se que em 2Cor 9,9 Deus também seja o sujeito da citação "Distribuiu, deu aos pobres. A justiça dele permanece para sempre" (Starling, 2012, p. 244).

O Sl 111 (LXX), tomado a partir de seu contexto no livro V do Saltério (Sl 107-145), aponta para a situação do israelita generoso, que reparte seus bens. É como se o Sl 111 (LXX) apresentasse o ideal do ser humano -o sujeito explícito desse salmo- que deve agir como um espelho de YHWH.

Lido desse modo, o 111,9 (LXX) faria todo sentido dentro da perspectiva geral de 2Cor 9, momento em que Paulo esforça-se em convencer a comunidade a respeito da coleta em favor dos santos de Jerusalém. Mas, tomado no contexto de 2Cor 9,8.10, que apresenta Deus como sujeito, o 111,9 (LXX), citado na 2Cor 9,9, testemunharia a “δικαιοσύνη τοῦ θεοῦ/justica de Deus” - “a sua fidelidade à aliança” (Barbaglio, 1989, p. 467).

Entretanto, caso Paulo tenha percebido essa ambiguidade na citação do 111,9 (LXX) (2Cor 9,9), é possível que ele tenha citado com um propósito retórico, que seria propiciado a partir da noção de "χάρις/ graça", substantivo que emoldura 2Cor 8-9, dada sua ocorrência em 2Cor 8,1; 9,14-15, além das várias ocorrências ao longo desses dois capítulos (Starling, 2012, p. 247).

Assim, a comunidade de Corinto seria convidada a imitar a superabundante " χάρις/graça" de Deus com sua "participação na e experiência da generosidade abundante de Deus" (Starling, 2012, p. 249), não como meros imitadores da dinâmica da graça divina, mas incorporando-a e manifestando-a por meio de sua contribuição à comunidade de Jerusalém. Agindo desse modo, o próprio Deus seria glorificado (2Cor 9,13) (Moyise e Menken, 2004, pp. 178-179).

Mas em que consiste a “δικαιοσύνη/justica”, aqui citada? Consiste na “δικαιοσύνη τοῦ θεοῦ/justica de Deus” que se torna “justiça humana”, na vida cotidiana do ser humano, agindo por pura gratuidade divina, pois “aqueles que temem ao Senhor, deleitando-se em suas obras e em seus mandamentos, experimentam a “δικαιοσύνη τοῦ θεοῦ/justica de Deus” como seus beneficiários e participam de seu transbordamento para os outros, ao imitá-la e aplicá-la em sua própria conduta” (Starling, 2012, pp. 251-252).

4. Considerações Finais

As reflexões propostas nesse artigo colaboram na percepção da liberdade com a qual Paulo cita alguns salmos em seus escritos. Liberdade que não reflete apenas um modo de uso do texto do AT, mas a sua convicção de que em Jesus Cristo todas as promessas se cumprem, situação perceptível para um homem que conhecia e havia estudado muito o texto sagrado (Harrisville, 1985, p. 179).

Paulo conecta os salmos a seus argumentos, com o intuito de favorecer a melhor compreensão acerca do Evangelho anunciado por ele. Um bom exemplo disso, no qual Paulo, entre outros textos do AT, cita o Sl 19,5, encontra-se em Rm 10,18: "εἰς πᾶσαν τὴν γῆν ἐξῆλθεν ὁ φθόγγος αὐτῶν καὶ εἰς τὰ πέρατα τῆς οἰκουμένης τὰ ῥήματα αὐτῶν/para toda a terra saiu o som deles e para os limites do mundo as palavras deles".

De modo específico, em Rm 10,8 Paulo se refere à Lei dizendo: " ἐγγύς σου τὸ ῥῆμά ἐστιν ἐν τῷ στόματί σου καὶ ἐν τῇ καρδίᾳ σου/perto de ti está a palavra, em tua boca e em teu coração"'. Essa é a citação de Dt 30,14, que corresponde ao texto da versão grega da LXX, como do texto da língua original, da BH. Embora diga respeito à Lei, Paulo compreende a ação de Deus que "plantou" sua palavra no íntimo do ser humano. Desse modo, o apóstolo pretende enfatizar, a partir de Dt 30,14, "a via da fé ou da graça" (Barbaglio, 1991, p. 279).

Diante da possibilidade de um israelita dizer que não escutou a pregação do Evangelho - " τὸ ῥῆμα τῆς πίστεως ὃ κηρύσσομεν /a palavra da fé que nós pregamos"' (Rm 10,8) - e, por isso, não acredita, " ἄρα ἡ πίστις ἐξ ἀκοῆς, ἡ δὲ ἀκοὴ διὰ ῥήματος Χριστοῦ/pois a fé surge da pregação, e a pregação surge por meio da palavra de Cristo" (Rm 10,17), Paulo emprega o Sl 19,5, como forma de dizer que seria impossível argumentar que não escutou, pois a palavra de Deus ressoou pelo mundo inteiro. Resumindo: o israelita que não escutou a palavra de Deus é "ánei9oúvna Kai ávTiléyovna/desobediente e rebelde" (Rm 10,21) (Moyise, 2010, p. 98).

Paulo recorria aos textos no AT "para esclarecer e defender o evangelho" (Silva, 2008, p. 76). E se havia algum tipo de exegese forçada, feita pelos intérpretes judeus, essa marca não está no texto Paulo, pois "a compreensão de Paulo das citações do Saltério é marcada por uma avaliação de cada passagem dentro de seu contexto imediato e à luz da revelação progressiva" (Harmon, 1969, p. 15).

Uma palavra também deve ser dita sobre o gênero dos salmos e sobre quais livros do Saltério são mais citados por Paulo. Quanto ao gênero, observa-se que o apóstolo emprega praticamente todos eles nos seus escritos. Contudo, não há equilíbrio proporcional, pois o gênero sálmico mais empregado é o lamento individual, com cerca de onze citações ou alusões, e seis vezes o agradecimento individual.5

A partir da identificação dos vários gêneros de salmos empregados por Paulo, observa-se que o apóstolo não empregou um gênero específico, tampouco recorre ao mesmo tema apresentado no salmo em questão. Paulo parece se fundamentar mais nos critérios lexicais, e "às vezes, temáticos" (Pulkkinen, 2020, p. 231).

A respeito dos livros do Saltério, é interessante notar que Paulo não cita nenhum salmo do livro III (Sl 73-89). Porém, em doze vezes, faz referência aos salmos do livro V (Sl 107-150); em dez vezes, ao livro I (Sl 1-41); em cinco vezes, ao livro IV (Sl 90-106); em quatro vezes, ao livro II (Sl 42-72) (Harrisville, 1985, p. 170).

A pergunta que sobressai é: há alguma razão para Paulo não ter feito referências aos salmos do livro III do Saltério? Possivelmente há, e poderia ser por razões formais, visto que a maioria dos Sl 73-89 é de lamentos comunitários, cujas características principais são: invocação e queixa, apelo à honra de YHWH e pedido de ajuda que tem como base as angústias vividas pelo povo, como tempos também nos Salmos dos Degraus ou das Subidas (Serra Viegas e Gonzaga, 2019, pp. 196-222). Além disso, nesses salmos, o salmista promete fazer sacrifícios quando for atendido por YHWH, e há referências ao Templo e ao serviço dos sacerdotes. Esses aspectos, portanto, ajudam a compreender a razão pela qual Paulo não faz referências aos salmos do livro III do Saltério.

Essa questão também gera uma outra interpolação que ainda não foi respondida pelos autores consultados: seria mesmo possível fazer esta leitura do "pentateuco da oração" a partir do Saltério da LXX? Ou seja, ainda que testemunhos antigos como o Midrash Tehillim6 e Orígenes (Torquato, 2009, p. 438) já apontem a existência dos cinco livros do Saltério, Paulo já tinha essa visão? E se tinha, teria empregado os salmos de acordo com ela? São inquietações que as pesquisas (ou a falta delas) apresentam!

Outro trabalho a ser feito é a busca por motivos pelos quais Paulo não cita os apelos para que Deus ouça ou os pedidos de ajuda nos salmos de lamentação citados. Outrossim, valeria situar a lamentação citada por Paulo no contexto literário de Romanos para buscar compreender por que o apóstolo não cita nada sobre o motivo da inocência ou integridade do salmista, nem a fala de Deus atestando ter ouvido a queixa de quem lamenta.

Quanto às diferenças textuais no emprego dos salmos nos escritos paulinos, observa-se a inexistência de um padrão simples, pois Paulo "não sente em todas as ocasiões nenhuma compulsão de reproduzir exatamente os textos" (Silva, 2008, p. 79).

Todos esses aspectos concorrerão para a melhor compreensão do uso paulino dos salmos. Até aqui, ressalta-se a validade do trabalho de Paulo em vista da defesa do conteúdo de sua pregação, do seu evangelho. Isto significa que, para Paulo, os salmos não são apenas adereços decorativos em suas cartas, mas cumprem bem a função de clarear ou enfatizar o seu evangelho: estão conectados com seus argumentos, de tal modo que Paulo "reivindica os textos novamente como evidência do evangelho" (Koch, 1986, p. 352).

Referências

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Barbaglio, G. (1991). As cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola . [ Links ]

Beale, G. K. (2013). Manual do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: exegese e interpretação. São Paulo: Vida Nova. [ Links ]

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1 O texto grego (a Septuaginta) usado no cotejo é o de Alfred Rahlfs, revisado e alterado por Robert Hanhart. Neste artigo, será citado apenas como LXX.

2Na lista de Ellis, estariam os outros dois salmos que, nesta nossa lista, foram inseridos no grupo 1, e estão marcados com asterisco (*) - (Ellis, 1981, p. 150).

3Segundo Gonzaga et al (2020), "no que tange a referências do AT, Romanos computa cerca de 60, o que representa mais da metade das que são feitas em todo o epistolário paulino" (p. 15).

4Não foram inseridos neste artigo o restante do v.3 presente na LXX e em dois manuscritos hebraicos. Também não será trabalhada a crítica textual referente a este versículo.

5Harrisville (1985, p. 168) aponta todos os gêneros dos salmos e o número de vezes em que são empregados por Paulo.

6Braude (1957) apresenta o comentário do Midrash que diz: "como Moisés deixou os cinco livros da lei para Israel, também Davi deixou cinco livros dos Salmos para Israel, o livro do Salmos com o título 'abençoado é o homem' (Sl 1,1), o livro intitulado 'para o mestre do canto' (Sl 42,1), o livro 'Salmo de Asaph' (Sl 73,1), o livro 'uma oração de Moisés' (Sl 90,1), e o livro 'que o digam os redimidos do Senhor' (Sl 107,2)" (p. 5).

Cómo citar en APA: Gonzaga. Waldecir & Goldoni Silveira, Rogério. (2021). O uso de citações e alusões de Salmos nos escritos paulinos

Recebido: 04 de Outubro de 2021; Aceito: 17 de Outubro de 2021

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