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Franciscanum. Revista de las Ciencias del Espíritu

Print version ISSN 0120-1468

Franciscanum vol.56 no.161 Bogotá Jan./June 2014

 

Entre Fichte e Sartre: por uma dialética da liberdade

Between Fichte and Sartre: toward a dialectic of freedom

Aníbal Pineda Canabal*

* Filósofo. Máster en filosofía francesa y alemana por las universidades Carolina de Praga (República Checa) y Coímbra (Portugal). Doctorando del Fondo Nacional de Investigación Científica (FSR-FNRS) en la Universidad Católica de Lovaina (Bélgica). Contacto: leninpinedac@gmail.com.

Enviado: 2 de noviembre de 2012 Aceptado: 5 de junio de 2013


O eterno estar no bifurcar dos caminhos¡1

Resumen

Ante la escasez de investigaciones sobre el asunto en lengua romance, el autor se plantea la posibilidad de encontrar un punto de encuentro entre las filosofías de Fichte y Sartre con el fin de comprender mejor sus singulares aportes. Tras descartar la posibilidad de un acercamiento a estos dos pensadores a través de una crítica textual de la recepción del primero en la obra del segundo, identifica posibles cruces y coincidencias entre ellos. Se concentra luego el escrito, primero a partir de La Trascendencia del ego y El ser y la nada y luego de las dos primeras exposiciones de la Doctrina de la Ciencia, en el tema de la libertad como piedra angular de los dos pensamientos y como puente que permite salvar la distancia entre el yo y el no-yo fichteano y el ser-en-sí y el ser-para-sí sartreano.

Palabras clave: Libertad, intersubjetividad, Fichte, Sartre, existencialismo.


Abstract:

Given the lack of research on this subject produced in Romance Languages, the author Given the lack of research on this subject produced in Romance Languages, the author tries to find a possible meeting point between the philosophical systems of Fichte and Sartre in order to understand better their contributions to this theme. Disregarding a possible approach to these two authors through a receptive textual criticism of the former in the work of the latter, it is possible to identify points of convergence and coincidence between them. Subsequently, the paper focuses on the subject of freedom, firstly, from the Transcendence of the Ego and Being and Nothingness, and secondly, from the Foundations of the Entire Science of Knowledge and Nova Method. In this way, freedom is perceived as the cornerstone for both systems of thought and the bridge that shortens the distance between the Fichtean self and nonself and the Sartrean being-in-itself and being-for-itself.

Keywords: Freedom, intersubjectivity, Fichte, Sartre, existentialism.


Normalmente, as pessoas ouvem falar de Fichte antes de lê-lo. Mas, quando alguém se submerge na leitura do filósofo alemão, pode surpreender-se. Parece à primeira vista difícil encontrar, por detrás da linguagem alambicada da Wissenschaftlehre2, as indicações precisas para identificar o que o leitor já tinha muito seguramente ouvido antes: que Fichte é por antonomásia o filósofo da liberdade.

«Il sistema della libertà» é efetivamente o título do longo ensaio que L. Pareyson dedica ao estudo do nosso filósofo3; e poderíamos continuar a fazer citações de muitos outros que concordam neste mesmo ponto.

Contudo, a corajosa defesa e exposição da ideia da liberdade, que nos resulta hoje tão cara e tão importante no universo da reflexão filosófica, não foi assim reconhecida pela história. Durante longos anos, pesou sobre Fichte a dura interpretação que dele fizeram Schelling e Hegel. Na compreensão posterior do pensamento fichteano, ficou gravada a ideia de que Fichte significava ora um filosofia de transição que nos levava de Kant até Hegel, ora um precursor idealista subjetivo do idealismo absoluto consumado em Hegel.

Mas tal compreensão não é tão descabida se tivermos em conta que Hegel encerra um período filosófico excepcional, zênite da reflexão idealista. Depois da sua morte, toda a filosofia do século XIX pode ser entendida, grosso modo, como uma filosofia de reacção contra as pretensões modernas de racionalidade, suspeitas de terem adulterado a genuína especificidade do pensamento4.

Assim, a filosofia do século XX herda o carácter dramático da história pós-hegeliana das ideias e, nas palavras de E. Mounier, tornase «uma reação da filosofia do homem contra os excessos das filosofias das ideias e das coisas5». Por isso Karl-Otto Apel considera que no século passado foram três as linhas fundamentais que organizaram o acontecer do pensamento: o marxismo, a filosofia analítica e a corrente fenomenológico-existencial-hermenêutica6.

Percebe-se, pelo título do presente texto, de qual destes três caminhos deveremos agora falar: do existencialismo.

Trata-se primeiro de tudo de uma filosofia acadêmica e universitária, mas também de uma tendência social e cultural da época. Bernard Henry-Lévy fala mesmo em termos da maior revolução moral jamais vista desde a época romântica dos séculos XVIII e XIX7. A sua primeira fase, mais alemã, esteve dominada certamente pelas obras filosóficas de Jaspers e pela leitura em chave existencialista da fenomenologia de Heidegger. Mas, pelos anos da Segunda Guerra Mundial, o existencialismo adquire o seu definitivo selo francês. Além de Camus e Simone de Beauvoir, o primeiro nome que nos pode chegar ao espírito é o de Jean-Paul Sartre.

1. Fichte-Sartre

Visto que intentamos fazer o que à primeira vista é um esforço de ligação entre estes dois pensadores, conviria levantar uma pergunta semelhante à que se fazia C. Descamps: «o que têm em comum o declaradamente cristão Gabriel Marcel, signatário de um manifesto a favor da Argélia francesa, e Sartre?8». O que podemos encontrar entre Fichte e Sartre? O que nos pode revelar um trabalho que os ponha frente a frente? Desde que ponto de vista deveremos fazer a nossa abordagem?

Aqui, a questão não é descobrir as influências que Fichte exerceu em Sartre nem como a visão do primeiro pode encontrar fortes ressonâncias no segundo. Também não pretendemos fazer uma análise da visão que Sartre possa ter da obra de Fichte. Mas o que queremos, na verdade, fazer é uma comparação, melhor dizendo, uma acareação entre ambos os filósofos, para melhor os compreender. Certamente, trataremos de encontrar ex profeso algumas coincidências –locus communis– e contudo, fazê-lo-emos a fim de facilitar a nossa exposição.

Apesar disso, os recursos de que dispomos são limitados. Como reconhecia Tom Rockmore9, a relação Fichte-Sartre até agora não tem suscitado suficiente interesse ou ao menos não o que poderia ser capaz de produzir. Ainda que nos últimos anos a investigação sobre o assunto se tenha multiplicado (em parte por forçado boom dos estudos fichteanos), esta tem-se circunscrito ao âmbito cultural anglo-germânico enquanto que a produção filosófica em língua portuguesa, espanhola, italiana ou mesmo francesa é muito reduzida e em alguns casos, não há mesmo nada sobre o assunto.

Três trabalhos merecem a nossa menção especial visto que deles se serviu o presente ensaio como de fonte matricial. O primeiro, de 1997, é a série de estudos que sob o nome de Fichte et la France agrupa uma série de textos no qual aparece Fichte et sartre ou sartre fichtéen?, já citado acima. O segundo, de 2003, é a extensa mas assaz completa dissertação de Dorothea Wildenburg, professora da universidade de Marburgo, ist der Existentialismus ein idealismus? com o evocador subtítulo: Transzendentalphilosophische analyse der selbsbewußtseinstheorie des frühen sartre aus der Perspektive der Wissenschaftlehre Fichtes10. O terceiro e mais recente é o texto de Daniel Breazeale, How to make an Existentialist? in search of a shortcut form Fichte to sartre, incluído no livro Fichte and the Phenomenological Tradition. Por último, poderíamos invocar como prova do interesse crescente que o tema suscita hoje, o encontro internacional que teve lugar na Universidade de Viena no ano 2011, que reuniu contudo quase apenas autores germanófonos e norte-americanos, confirmando de novo as nossas suspeitas. Ich und der andere –Fichte und sartre über die Freiheit (Eu e o outro – Fichte e sartre sobre a liberdade), é a nosso entender o primeiro congresso de relevância mundial que se faz sobre o problema ao qual pretendemos agora aportar a partir da realidade ibérica.

Mas ainda queremos insistir: os trabalhos precedentes, embora sejam brilhantes, desconhecem totalmente, e talvez seja essa a única grande miséria deles, toda a produção científica dos estudos fichteanos ou sartreanos em língua romance. Hispanicum et lusitanicum sunt, non legitur¡

2. O Fichte de Sartre

Contra Tom Rockmore11, Dorothea Wildenburg e Daniel Breazeale, com informática exactidão, recordam de passagem as três vezes em que Sartre refere Fichte nos seus escritos.

A primeira menção aparece em L'imaginaire, obra de 1940, escrita por Sartre a pedido de um professor e que tem por objeto um estudo fenomenológico da imagem.

O nosso autor chega a Fichte a partir dos estudos da Gestaltpsycologie e sobretudo da leitura que faz do artigo de A. Flach, ueber symbolische schemata in produktiven Denkprozess, exposto longamente e com viva admiração. Flach pretendia fazer um trabalho sobre as imagens que se podem se formar na mente de uma pessoa quando esta ouve pronunciar uma palavra qualquer. Chega a ser engraçado o que Sartre escreve: «Alguém, a quem Flach pede uma breve caracterização da filosofia de Fichte, representa "o eu a criar o não-eu para o ultrapassar" como um pedreiro que bate com um martelo num muro»12.

Não se trata sequer de uma citação direta, mas do relato de um pesquisador com o qual concorda. Voltaremos sobre isto mais adiante.

A segunda vez que Sartre fala de Fichte é em Question de méthode publicado em 1960 juntamente com a Critique de la raison dialectique. Neste texto de velhice, pretendendo conciliar o marxismo com o existencialismo, Sartre vê o cartesianismo como uma filosofia da classe ascendente da época do mercantilismo, e a filosofia kantiana como a segunda etapa deste mesmo capitalismo numa versão industrial posterior. A filosofia do kantianismo teria feito do espírito objetivo a Ideia reguladora de um pensamento cuja tarefa é infinita. Nas palavras de Sarte: «Fala-se assim hoje, em França, da ideia kantiana; entre os alemães, da Weltanschuung de Fichte»13.

Além da sua recordação da ideia de Weltanschauung, o mais interessante é o que segue: as filosofias de Kant e Fichte, ainda que produtos de uma classe e de uma ordem sócio-histórica concreta, apresentam-se para Sartre não como coisas inertes, mas como um pensamento que «morde o futuro»: toda filosofia é, por isso mesmo, prática e abrangente. Poderíamos dizer que, de alguma maneira, Sartre reconhece na figura intelectual de Fichte um intelectual comprometido e, por certo, não distante da sua concepção do que é um pensador.

Mais duas vezes na sua obra póstuma, Cahiers pour une morale, Sartre mencionará Fichte. A primeira, em um texto dos anos quarenta sobre Jean Hyppolite, com quem pretende interpretar Kojève:

    a dialéctica que Hegel apresenta na primeira parte da sua obra sobre a consciência não é assim tão diferente da dialéctica de Fichteou de Schelling. Trata-se de partir da consciência ingénua, que sabe imediatamente o seu objecto, ou antes, que crê sabê-lo, e de mostrar que ela, de facto, no saber do seu objecto é consiência de si, saber de si mesmo14.

Em seguida, tentará levar a dialética de Hegel (e de Fichte, já que segundo ele é práticamente a mesma) em direção ao marxismo. As conclusões que tira disto não têm interesse para nós. Entretanto, não podemos dizer o mesmo da segunda referência a Fichte nos Cahiers: «o mundo é o eu na dimensão do não-eu. Porém, a negatividade não pode ser ultrapassada, e não se trata aqui de sonhar que assimilaremos esse nao-eu, como em Hegel ou Fichte. Não há digestão: é o eu, mas para sempre numa outra dimensão do ser, para sempre o outro do eu»15.

É tudo. Nestas três frases se esgotam as referências fichteanas na obra de Sartre.

Duas conclusões parecem-nos óbvias: a primeira, podemos formulá-la em termos da nossa impossibilidade de saber com exactidão se Sartre leu Fichte ou a que textos teve acesso. É assaz fácil supor que o leu. Wildenburg revela uma referência de Philonenko que assegurava que ele o tinha feito deveras. Para saber que textos de Fichte Sartre terá lido, podemos confiar-nos na opinião de Wildenburg. A professora alemã, com a minúcia que aprecia, desce até ao pormenor e garante que Sartre fez vários empréstimos das obras de Fichte no semestre do outono 1926-1927 na biblioteca da École normale supérieur de Paris e da Biblioteca Nacional de França16. No fundo, todavia, embora estas anedotas sejam curiosas, a sua importância é praticamente irrelevante para o nosso estudo.

Teremos, por conseguinte, de nos conformar com o fato de saber que o que Sartre fez, na verdade, foi ler filósofos que leram Fichte, e que o conheciam muito bem: Husserl sobretudo, mas também Heidegger e Hegel.

A segunda conclusão é decisiva para o rumo do nosso trabalho: agora sabemos que não é através de uma crítica textual que o caminho de Fichte a Sartre se nos pode abrir.

Podemos agora retomar o que tínhamos posto de lado alguns parágrafos mais acima: aquela anedota do homem com o martelo a pensar no Eu e no Não-Eu reflecte, de modo eminente, a leitura sartreana da obra de Fichte, leitura que fica certamente dentro do «cliché» clássico que consiste em ver a obra do filósofo de Rammenau como um exemplo do idealismo subjetivo preparatória do advento, da versão consumada do idealismo, em Hegel. Que não estamos então diante do renovador dos estudos fichteanos modernos é claro. Mas podemos de certa forma desculpar Sartre, afirmando que a sua crítica segue a tendência francesa da época; o que quer dizer que ela é fruto da sua educação e das leituras que fez de Fichte durante os seus estudos.

A única leitura possível para nós terá de consistir numa busca dos pontos de contato entre as duas filosofias para melhor as compreender.

O estudo de Wildenburg pretendia «interpretar a teoria da consciência de Sartre à luz da Doutrina da Ciência de Fichte»17.

D. Breazeale, por sua vez, declara que «menos do que compreender Sartre "à luz" de Fichte do que compreender a Doutrina da Ciência "à luz do existencialismo", (...) procuro neste estudo, por isso, avaliar a plausibilidade de qualquer proposto "atalho de Fichte até Sartre"»18.

O mesmo Breazeale oferece mais de dez possibilidades para a nossa investigação. Mais de dez caminhos que poderiam ser aprofundados e trabalhados pelos interessados no tema. Pela nossa parte, ficaremos apenas com a primeira das possibilidades aventadas por Breazeale: apresentar Fichte e Sartre como teóricos da liberdade, a fim de compreender as suas filosofias como uma dialética da liberdade e da facticidade. Tentaremos descobrir o que ambos disseram sobre o assunto e trataremos então de tirar algumas conclusões. Mas visto que, para esgotar o tema da liberdade nestas duas filosofias, seria preciso fazer um trabalho maior, a nossa pesquisa limitar-se-á principalmente aos textos do «primeiro» Fichte e do «primeiro» Sartre: quer dizer, às duas primeiras exposições da Doutrina da Ciência, a a Transcendência do Ego e a O ser e o nada.

3. À procura da liberdade

Tanto a filosofia de Fichte quanto a de Sartre têm como ponto de partida o sujeito. Para o primeiro, o princípio da filosofia teórica é o pôrse do eu, enquanto que o princípio da filosofia prática é o mesmo pôr-se do eu como determinante do não-eu. O esforço do segundo consiste em uma desubstancialiçazão do sujeito para, por esta via negativa, poder encontrá-lo de novo, salvando assim a própria subjectividade. Fichte e Sartre crêem em um sujeito que se faz, que é ação per se. Mas sigamos mais além a evolução do pensamento sartreano.

O primeiro livro de Sartre é propriamente La transcendence de l'ego. Neste texto de juventude, publicado em 1936, Sartre desenvolve já as intuições principais que depois encontraremos em L'être et le néant, talvez a sua obra mais importante.

Nesta ocasião, a sua tese central é a demonstração, a partir da leitura de Husserl, de que é impossível reduzir a consciência a uma coisa. Ela é, pelo contrário, certamente um ato, e por isso irredutível a conceitos. A vida da consciência –segundo o seu conhecido exemplo: o pôr da caneta no caderno para escrever– não se dissolve em categoremas e sincategoremas talhados conforme as regras da gramática e ligados segundo uma certa sintaxe, de modo a formarem proposições.

Para o Sartre da Transcendence, o eu não é, não se dá como momento algum da subjectividade. Mas temos de ir com cautela. Jean-Marc Mouillie tem razão de dizer que,

    uma filosofia da consciência não é necessariamente assimilável a uma filosofia do sujeito. Sartre pretende mesmo mostrar a sua rigorosa oposição. O que chama 'consciência', no seu emprego mais estrito não poderia identificar-se com o eu. (...) Irredutível a uma realidade física ou psíquica, a consciência designa a estrutura originariamente constitutiva daquilo a que se refere o nosso vivido: objectos perceptivos, objectos ideais, imagens, concepções, sentimentos, afectos19.

Mas Sartre vai para além destas ideias e vê na não-substancialidade da consciência a origem da angústia. A relação entre o eu e aconsciência constitui um problema de ordem existencial, e não teórica.

É importante dizer que a crítica que Sartre dirige então contra seu mestre intelectual, Husserl, põe-no involuntariamente perto de Fichte. Neste sentido, Sartre não entende a problemática do eu (Je) existencial no sentido empírico da segunda crítica kantiana. Mas também não como fato «mundano» (Weltlichkeit des Bewußtseins) ao estilo de Husserl. A irredutibilidade da consciência do eu em Sartre consiste na afirmação segundo a qual ela é um fato em primeira pessoa.

O eu não pode ser para Sartre um princípio que sobrevoa as vivências para lhes dar uma unidade a partir de fora, mas é a coerência entre as próprias vivências. Assim, Husserl teria caído na sua própria armadilha: visto que a consciência é uma, Husserl concluiu daí que era preciso admitir um principio, algo que unisse as vivências diferentes entre si. A esse «algo», chamou-o «eu».

Sartre entretanto considera que o eu é também uma vivência como as outras, com a diferença que esta aparece sempre acompanhada das outras.

O paradoxo no qual Husserl nos submerge é então o seguinte: a consciência é sempre consciência de alguma coisa e, ao mesmo tempo, consciência de si própria. Mas se a consciência é sempre consciência do que ela não é, como pode então ser consciência de si própria? Noutras palavras: como pode o Je, pronome pessoal, ser Moi, pronome reflexivo?

Sartre responde:«gostaríamos de mostrar aqui que o ego não está nem formal nem materialmente na consciência; ele é um ser do mundo tal como o ego de outrém (...). Esta consciência da consciência não é posicional, ou seja, a consciência não é o seu objecto para si mesma. O seu objecto está fora dela por natureza e é por isso que, com um mesmo acto, ela o põe e o apreende»20.

A consciência é então o principio pelo qual o mundo é posto (Je) e, ao mesmo tempo, integrado por nós em nós mesmos (Moi). As ideias do ato e do duplo movimento de pôr (poser) e apreender (saisir) repetem mutatis mutandis os três princípios fundamentais de Fichte.

Fichte escreve na primeira introdução à Doutrina da Ciência Nova Methodo, de 1796/1798:

    O idealismo explica, conforme já se disse acima, as determinações da consciência a partir do agir da inteligência. Para ele, esta é unicamente activa e absoluta, e não passiva; e não é passiva porque, em consequência do seu postulado, é algo de primeiro e supremo, a que nada antecede a partir do qual se pudesse explicar uma passividade da consciência. Pela mesma razão não lhe cabe nenhum ser propriamente dito, nenhuma subsistência, visto que este é um resultado de uma acção recíproca, e nada existe nem é assumido com o que a inteligência pudesse ser posta em acção recíproca. A inteligência é, para o idealismo, um agir e nada mais; não deve sequer ser denominada um agente21.

Também neste ponto Fichte distanciava-se do seu mestre Kant. Salvi Turró nota bem como a experiência para Fichte não será mais considerada em sentido cognoscitivo, mas ela virá a designar «a facticidade da existência num mundo de dimensões plurais e interconexas, que é vivido como uma totalidade. Assim, em contraste com o que se passa com Kant, para Fichte "experiência" é "vida"»22.

E também Fichte optou por uma desubstancializão da consciência. O que está na sua base é um ato: Thathandlung23. Assim, o princípio da percepção de Kant parece passar à retaguarda e a consciência, a grande ideia do idealismo alemão, abre seu caminho.

O problema com que Fichte se depara é o do princípio do filosofar. É a preocupação herdada de Kant:o lugar do início tem de ser indicado e legitimado. A filosofia de Fichte começa, portanto, como uma «geografia do princípio»24. Mas o ponto de partida para Fichte e Sartre é o mesmo: o eu que nós somos.

Este eu depende de um acto que o funda. Quer dizer, ele é uma ação que tem um objeto. Não é só um intercâmbio de realidade com o Não-eu mas uma chamada a ultrapassar, a sair de si próprio e, ao mesmo tempo uma exigência de unidade. A consciência é certamente a relação entre o eu e o não-eu mas é também, simultaneamente, o todo dessa relação.

4. O nada da liberdade em Sartre

O mérito do trabalho de Sartre en La transcendence de l'ego é ter expulsado o eu da consciência.

A consciência será então, para Sartre, um nada revestido de intencionalidade: «a consciência nada tem de substancial, é uma pura aparência, (...) um total vazio»25. O mundo para Sartre está então rodeado do nada: «o ser é isso, e fora isso, nada»26.

O não-ser é apresentado como uma presença perpétua, abrangente, avassaladora, que infesta o ser e cuja existência é «emprestada» visto que recebe o seu ser do ser e, fora dele, é inconcebível.

Mas não é sempre assim. Às vezes o nada não fica numa esfera exterior da realidade. Às vezes, encontramo-lo, percebemo-lo e vemo-lo entrar, clandestino, na realidade. Não obstante, se nos perguntarmos de onde vem o nada, não poderíamos dizer que ele vem do ser das coisas, cheio de si próprio por todos os lados, como acabamos de ver. O nada não pode ser. Consequentemente, o nada tem de «ser sido». Isto quer dizer que tem de existir um ser que não pode estar nas coisas, pelo qual o nada venha às coisas.

Mas se o nada não vem do ser, então de onde vem? Teremos de admitir no ser duas esferas: um ser cheio de si mesmo e um ser pelo qual, em seu ser, seu ser está em questão, um ser fissurado, maltrapilho. O nada advém por intermédio da consciência, onde o ser se pöe à distancia: esta é a realidade humana.

Isto não significa que no homem nada tenha ser, mas que o verdadeiramente humano, o conhecimento e a liberdade, é nada. Estamos já situados no terreno das intuições do ensaio de ontologia fenomenológica que é O ser e o nada.

Mas, a consciência de Sartre é sujeito e, de certa forma, consciência espontânea que pré-existe a todo conhecimento; por isso ela é «cogito pré-reflexivo» ou «consciência não tética de si».

Pela realidade humana, o nada pousa sobre as coisas. Só no mundo humano pode haver carências. O exemplo de Sartre é célebre: «um círculo inacabado não apela à sua completação a não ser enquanto é ultrapassado pela transcendência humana. Em si, ele é completo e perfeitamente positivo como uma curva aberta»27.

Pela consciência, então, o nada introduz-se num mundo cheio de si, que não admite a menor fissura. Frente a isto, o homem aparece-nos como um transcender constante na direção duma frustração. Pela realidade humana, a nuvem deixa de ser simplesmente nuvem e passa a ser chuva em potência. A meia-lua e a linha curva incompleta não se tornam quarto-minguante em relação à lua cheia nem ao círculo senão pela consciência humana que os transcende e espera sempre do ser um acabamento: o que não é ainda.

Mas a consciência, na sua relação ao tempo tem um duplo aspecto. Pelo passado, ela é facticidade, circunstâncias concretas que a rodeiam, condicionam-na e limitam-na. Transcendência, porque pode chegar até as coisas e embeber-se de sentido. A consciência é uma «enfermidade do ser», que consiste numa incessante luta pela identidade que jamais se alcança.

A síntese do ser em-si que exclui o nada, com o ser para-si que existe sob a forma de nada do ser, é impossível, utópica e absurda. O homem é, portanto, uma «paixão inútil»: o projeto nunca logrado de fazer do seu para-si um ser em-si-para-si, o que, em definitivo, coincide com a ideia de Deus.

Contudo, a experiência de uma humanidade absurda e contingente torna necessária a procura de uma significação. Esta experiência leva o homem a assumir-se como liberdade.

A liberdade é assim o valor absoluto, intrínseco e constitutivo da realidade. Ser homem é ser livre. Estamos condenados à liberdade.

5. O todo da determinação em Fichte

A Doutrina da Ciência nova methodo pode oferecer-nos uma chave para a compreensão da ideia de liberdade de Fichte. No § 2 o nosso autor define a consciência como a passagem do determinável ao determinado: é isso justamente o que podemos chamar liberdade.

E Fichte acrescenta:

    Neste acto da liberdade o eu torna-se objecto para si mesmo. Surge uma consciência efectiva, que é o ponto a que, a partir de agora, tem de ser ligado tudo o que deva ser objecto seu; a liberdade é, nestes termos, o fundamento primeiro e a primeira condição de todo o ser e de toda a consciência28.

Se a consciência é tal graças ao ato pelo qual o eu se faz objeto para si próprio, a primeira conclusão de Fichte é então que pela liberdade o eu passa da indeterminação à determinação. A liberdade é o fundamento do ato primeiro da autoposição do eu.

O padre Xavier Tilliette, no seu comentário ao texto de Pareyson acima referido, tem razão em dizer que a liberdade é o impulso que permite a Fichte a passagem da crítica à filosofia especulativa29.

O eu funda-se a si próprio a partir do nada e sem nenhuma outra explicação; «uma actividade que está vinculada a modelos, "prática"; para designá-la Fichte adopta com frequência o termo "Übergang" que, em alguns locais, significa "passagem", mas noutros, mais energicamente, significa "ir além"»30.

Na verdade, o problema que Fichte está a elucidar é a possibilidade da consciência no mundo material. Como é possível que da realidade física, constituída por um conjunto de relações de causaefeito, surja a liberdade que se põe além de tais dinâmicas?

Fichte diz então que o objeto primeiro e imediato da consciência é precisamente a liberdade. O que significa que o sujeito não é simplesmente sujeito, mas também objeto de si próprio.

Pela liberdade, o eu que estava decerto modo partilhado em duas atividades (ideal e real) alcança finalmente o caminho da sua unificação pela via da liberdade que produz a consciência efetiva.

Em Das system der sittenlehre, Fichte afirma:

    A independência, nosso objetivo último, consiste, como tem sido frequentemente lembrado, em que tudo dependa de mim, mas que eu não dependa de nada; que no meu mundo sensível se produza o que eu quero, só e simplesmente porque eu o quero, como se fosse no meu corpo, ponto de partida da minha causalidade absoluta. Portanto, é preciso que o mundo se torne aquilo que meu corpo é para mim. Isso, no entanto, é sem dúvida impossível, mas eu tenho que tentar sempre, através de todos os meios, alcançar esse fim último. Aproximar-me dele é o meu objetivo final31.

Esta unificação é o verdadeiro horizonte do humano. Também a consciência segundo Fichte, em geral como em Sartre, quer constituir uma unidade impossível, porque divina, entre o eu e o não-eu ou entre o em-si e o para-si.

6. Duas filosofias da liberdade

Tom Rockmore afirma que o principal elemento comum entre as filosofias de Sartre e Fichte é a maneira como ambos fundam a consciência de si na liberdade. Tal imbricação (chevauchement, recoupement nas palavras de Rockmore) tem sido desconhecida em grande medida por ser sempre lida sob os rótulos de «idealismo alemão» e «fenomenologia». Fichte e Sartre são vistos por Rockmore como operários a trabalhar na abertura do caminho trilhado pela modernidade cartesiana. Sartre seria, para Rockmore, mas também para Wildenburg, um idealista malgré soi, de mau grado.

Diz Wildenburg: «a teoria da consciência de si, tal como Sartre a desenvolve em O ser e o nada pode ser interpretada em pontos essenciais, e a sua argumentação tornada clara, como abordagem filosófico-transcendental no sentido da Doutrina da Ciência do jovem Fichte»32.

Nesse sentido, recorda também Daniel Brezeale que Sartre gostava de dizer que o «dogma» da sua filosofia era a «afirmação da liberdade humana»33. Também Brezeale relembra que Fichte apresenta sempre o seu pensamento como o primeiro sistema da liberdade.

A formulação de Jean-Christophe Goddard sobre o pensamento de Fichte parece-nos feliz, por assim dizer. De acordo com as palavras de Goddard, que aplicamos agora também a Sartre, estamos diante de duas filosofias da liberdade por um duplo motivo: primeiro, porque ambas apresentam-se como metafísicas da liberdade, ao mesmo tempo que como uma solicitação à liberdade34. Podemos mesmo dizer que se a «metafísica da liberdade» foi fundamentada nas primeiras exposições da Doutrina da Ciência e nos primeiros ensaios de Sartre, uma explicação mais detalhada da «solicitação à liberdade» terá de ser buscada nos escritos políticos de Fichte, na Fundamentação do Direito natural, na iniciação à Vida Feliz e, do lado de Sartre, no seu san Genet, no idiota da Família e na sua produção literária.

No entanto, é preciso dizer que, se para Fichte, como para Kant, a liberdade reside no fundo da consciência como dever moral, para Sartre em contrapartida, ela se encontra, como para Heidegger, na angústia.

De qualquer modo, ambos insistem na liberdade como o mais interior e primigénio ato. O que quer que sejamos, isso consiste em um não-ser que se põe em movimento. «A frase "eu sou eu" tem, contudo, um significado inteiramente diverso da frase "A é A"»35.

«Eu sou eu» tem de ter um significado diferente de «A é A». Mas não é isto afinal o que Sartre está a dizer quando afirma que eu não sou eu como a mesa é mesa?

Aqui não queremos cair na tese, até ridícula, segundo a qual Fichte seria um proto-existencialista. Reconhecemos entre ele e Sartre grandes diferenças das quais só falaremos brevemente.

A primeira coisa que podemos dizer é que a filosofia de Sartre não é propriamente uma filosofia do eu, mas uma filosofia da consciência que, enquanto tal, partilha as preocupações minimalistas pequenoburguesas de toda a fenomenologia. Diante disso, o eu fichteano não é só sujeito que percebe o mundo (percipiens segundo a latinice de que gosta Sartre), mas ele é sobretudo sujeito-objecto36 (Nova Methodo), uma unidade originária que antecede qualquer divisão categorial entre em-si e em-si-para-si.

A nossa ideia está plenamente atestada na Destinação do homem, texto de 1799, onde Fichte se pergunta o que quer dizer «eu». Eis a sua resposta:

    Como uma consciência da coisa pode surgir em mim? Qual é o vínculo entre o sujeito, o eu, e a coisa, o objecto do conhecimento? (...) Não é preciso vínculo nenhum entre o sujeito e o objecto; a minha essência própria é esse vínculo. Eu sou sujeto e objecto; e é precisamente a referida sujeito-objectividade, o retorno do saber sobre si próprio que eu designo com o conceito de eu37.

O eu, enquanto princípio de unidade, não pode ser o equivalente do para-si sartreano, com o qual o filósofo francês nomeia a realidade humana. É verdade que, desde a primera frase de O ser e o nada, Sartre fala do «monismo do fenômeno» como um progresso considéravel da modernidade o qual supõe a eliminação dos dualismos graças à redução do existente à serie de aparições que o manifestam38. No entanto, o nosso autor fala em termos de duas regiões do ser (o ser em-si e o ser para-si) não somente distintas, mas radicalmente opostas. A sua preocupação será de encontrar um princípio que possa as unir: a consciência, dirá mais tarde39.

Através da consciência enquanto consciência de alguma coisa que não é ela, e da sua atitude interrogativa diante da realidade do mundo, o nada flutua sobre o mundo e penetra-o. A liberdade segrega o nada do mundo. Pela liberdade, indeterminação e possibilidade, o eu não é união do sujeito e do objecto como em Fichte, distinguíveis graças ao trabalho da imaginação, mas aspiração, desejo de unidade como único caminho possível de vitória sobre a angústia.

A liberdade segundo Sartre é a «condição primeira da ação»40, «não uma qualidade sobreagregada nem uma propriedade da minha natureza, mas o estofo do meu ser41». Ela é ponto de partida, não de chegada;pura possibilidade de eleição. Por isso, «o homem, enquanto condenado à liberdade, leva o peso do mundo inteiro sobre os seus ombros: ele é responsável pelo mundo e por si próprio como maneira de ser42».

A ideia de Fichte vai por outro lado. Deixando entrever uma certa matriz cristã, o autor alemão crê que não é possível perceber o que é a liberdade sem lhe opor algo. A liberdade aqui não é a possibilidade de eleição, mas o jogo entre o possível e o real. Também no cristianismo, a liberdade não é só livre-arbítrio, mas conquista, objetivo, que se consegue na luta contra o oposto dela: a carne.

Sartre, que bascula entre a tradição filosófica francesa e alemã, como bom francês, aprofunda, contra si mesmo, o caminho de Descartes, segundo o consenso da maioria dos seus intérpretes43. Fichte por sua vez, entra voluntariamente na vereda aberta por Kant. Mas, o cogito cartesiano, cogito ergo sum, torna-se, no seu sistema, um sum ergo sum.

Sartre, apesar da sua proximidade com Fichte, não lhe reconhece a mais pequena influência.Sartre também não nos aporta uma leitura original do idealismo alemão, e fica-se por ventura pelos preconceitos da crítica da época e mesmo da fenomenologia husserliana. No entanto, se retomarmos de novo as palavras de Wildenburg, «a constituição do "mundo" assenta o pensamento fundamental da intencionalidade da consciência, que foi já apresentada na teoria de Fichte, e não foi desenvolvida pela primeira vez por Brentano ou Husserl»44.

Pela nossa parte, vemos Sartre e Fichte como duas tentativas poderosas de compreensão da realidade do homem, do mundo, da vida e do conhecimento que, por terem os mesmos objetivos e por terem actuado da mesma forma, encontram-se em diversas encruzilhadas; intersecções que são frequentes na vida e nos empreendimentos humanos.

Por isso, na linguagem abstrusa da Wissenchaftslehre podemos ver um eco distante, certamente, da filosofia do primeiro Sartre, de La transcendence de l'Ego e de L'être et le néant.

Assim, se Philonenko dizia que todos os problemas da filosofia de Fichte desembocam numa certa concepção da liberdade45, sentimonos mais uma vez autorizados a dizer o mesmo de Sartre.

Acrescentemos ainda mais, e vamos lá fantasiar: se Fichte tivesse estado na recém-libertada Paris de 1945, na Salle des Centraux, a escutar aquele homenzinho estrábico, que dizia que o existencialismo é um humanismo, temos sérias suspeitas que, se não teria aceitado completa a conferência e juntado-se aos gritos de histeria do público que se amontoava para ouvir Sartre, pelo menos, ter-lhe-iam caído bem estas palavras:

    Há ao menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer outro conceito, e este ser é o homem. (...) O homem começa por existir, encontra-se, surge no mundo, e depois se define.

    Tal como o concebe o existencialista, se o homem não é definível é porque no começo ele não é nada. Só o será em seguida, e será tal como se fizer. Não há, assim, natureza humana, porquanto não há Deus para o conceber.

    O homem não é somente como se concebe, mas somente tal como ele se quer, segundo esse impulso para a existência; o homem não é senão o que ele se faz. Tal é o primeiro pincípio do existencialismo. É também o que denominamos a subjectividade, e que nos é criticado sob esse mesmo título. Mas que queremos dizer com isso, a não ser que o homem tem uma dignidade maior do que a pedra ou a mesa?

    Pois queremos dizer que o homem começa por existir, ou seja, que o homem é em primeiro lugar o que se lança em direcção a um futruro, e que é consciente de se projectar no futuro. O homem é em primeiro lugar um projecto que se vive subjectivamente, em lugar de ser uma espuma, uma podridão ou uma couve-flor; nada existe previamente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que ele projectará ser46.

Pecaríamos por crassa inexactitude se disséssemos que o anterior texto de Sartre é um parente em linha direta de consaguinidade com o Sistema da Ética (§10, II)? Ao tentar a dedução do princípio incondicionado dos actos humanos, Fichte, com efeito, expresa-se como segue: «eu sou livre, mas eu não me ponho como livre; eu sou livre talvez para uma inteligência fora de mim, mas não por mim mesmo. Portanto, eu não sou algo senão na medida em que eu me ponho assim47».

7. Uma consideração final

Como o recorda Ortega48, o eu não foi uma invenção do «desmesurado» Fichte. As suas origens remontam aos primeiros séculos do pensamento cristão. O «eu» (ἐγώ), pronome pessoal evitado no grego clásico em proveito do «nós» ἡµεῖς, aparece com profusão no koiné do Novo Testamento49.

Como Arendt50, nós acreditamos que foi com o «factus sum enim mihi magna quaestio» (Confessioni X, 33, 50) de Agostinho que o eu –o homem interior– entrou definitivamente no pensamento ocidental. A história que o santo de Hipona inaugurou no século iv conhece na época moderna o seu período de máximo explendor.

Depois do cogito de Descartes, a filosofia moderna inteira parece uma história do eu. O mérito de Fichte consiste a fazer dele não só o centro da sua reflexão, mas da realidade toda.

As duas filosofias que temos estudado começam pela fundação do eu, e chegam a esta de um modo tãoradical que estão permanentemente assediadas pelo solipsismo.

Em O Ser e o Nada, Sartre está bem consciente disso. Com uma linguagem que evoca o próprio Fichte, Sartre pergunta-se porque, para o realismo, a alteridade nunca foi um verdadeiro problema. Pergunta-se, assim, porque parece evidente a presença do próximo sendo que, «a alma do outro está separada da minha por toda a distância que separa, em primeiro lugar, a minha alma do meu corpo, em seguida, o meu corpo do corpo do outro e, finalmente, o corpo do outro da sua alma»51.

Conservar esta distância é conservar o outro porque o próximo é, antes de tudo, não-eu, um eu que é não-eu para mim. A crítica de Sartre não se dirige, contudo, somente aos realistas, mas também a Kant que, «preocupado, com efeito, em estabelecer as leis universais da subjectividade, que são as mesmas para todos, não abordou a questão das pessoas»52.

Para demonstrar a existência do outro, Sartre empreende talvez a mais genial fenomenologia do pudor e do olhar escritas até hoje. Basta-nos recordar como o problema do outro é fundamental.

Será essa a mesma maneira de proceder de Fichte. De fato, a primeira tese de Philonenko no seu longo estudo sobre Fichte apoia o que estamos a dizer: «consideramos que o problema da intersubjetividade é a questão capital da primeira filosofia de Fichte»53.

A mesma preocupação com a longa distância que é preciso percorrer para encontrar o outro, distância de que falava Sartre na citação acima, atravessa também o pensamento do filósofo de Rammenau.

Com efeito, para poder sustentar o nascimento do não-eu a partir do ato de auto-posição do eu, Fichte deverá estabelecer a sua filosofia prática começando por introduzir os princípios da determinação recíproca, da causalidade e da substancialidade.

E Fichte dirá, na Doutrina da Ciência Nova Methodo, que o que falta à filosofia de Kant é precisamente uma justificação da existência do outro.

O ponto de partida é o mesmo, o caminho, porém, diferente. Um mesmo desafio se perfila perante os pensadores: um segue o caminho da crítica kantiana, o outro, a senda da fenomenologia. Sempre com um ou com o outro caminho, é certo, mas sempre também contra eles.

Appetitus naturae non potest esse frustra, porque jamais se poderia entender como impossível aquilo para que o homem radicalmente tende.

Sartre e Fichte deixam-nos dito que experimentamos no mais profundo de nós mesmos um desnível radical entre o que aspiramos e o que somos. A superação desta ferida é o horizonte escatológico do humano.

Embora as preocupações de Fichte sobre o eu sejam inicialmente de natureza teórica, ambas as filosofías, a de Sartre e a de Fichte, saem logo do âmbito em que se movem para se converterem em uma teoria moral:no caso do alemão, como princípio de organização da realidade fáctica; para o francês, como teoria do compromisso político e da resistência como posibilidade de re-significação do mundo.

O que em Kant e em Fichte pode ser entendido como factum da razão, quer dizer, o facto moral; em Sartre é razão da não-razão. No primeiro caso, isto se percebe como possibilidade de sentido e de vida feliz, no outro, como consciência do absurdo e da contingência das coisas no seu estar demais para nós e nós para elas. Os dois desembocam na chamada, na ânsia de encher o infinito.

Sartre disse-nos que o homem anseia realizar-se como Deus. Por isso, a nosso entender, se os sistemas estão unidos pelo princípio da liberdade, estão separados pelo final. Assim, a questão da origem, a mesma num e noutro, se torna numa radical oposição quando se fala do horizonte.

A identidade não lograda quer em Fichte quer em Sartre não termina segundo o primeiro por um naufrágio do sentido da vida, como se passa com o segundo, mas torna-se a razão da vida, e da vida ética. Para uma melhor compreensão desta questão em particular, precisaríamos de fazer ainda um estudo que nos levaria a outros textos de Fichte, sobretudo o sistema da Ética (System der Sittenlehre54), de 1797, e mesmo a Destinação do Homem (Die Bestimmung des menschen55) ou a iniciação à Vida Feliz (anweisung zum seeligen Leben56).

Baste-nos por ora revisitar as vidas dos dois filósofos para descobrir o caráter profundamente comprometido com a sua geração. Ambos não podem senão inspirar o respeito que produzem os testemunhos atentos do seu tempo, os leitores perspicazes da história.

Também os dois granjearam para si, como poucos outros filósofos, a inimizadede muitos e mesmo a perseguição. Quantas dificuldades não experimentou Fichte na época da famosa polémica do ateísmo, quantas não teve Sartre na França da época pelo seu apoio incondicional ao comunismo¡

Contudo, as suas palavras continuam a interpelar-nos e a abrir caminhos de sentido para o leitor interessado, e de investigação para o profissional da filosofia. «Ah mistério desses livros que todos conhecem mas ninguém leu ainda¡»57... E, se leram, muitos talvez não compreenderam; mas por quê? Por serem covardes bastardos («lâches salauds58»: Sartre) que são «mais facilmente levados a tomar-se por um pedaço de lava na lua» ("ein Stück Lava im Monde59": Fichte) do que pelo que verdadeiramente são, sem condições, nem vergonhas.


Notas

1Cf. Fernando Pessoa, O eu profundo e os outros eus (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980), 108.
2«Wissenschaftslehre», i.e., Doutrina da Ciência, é o título de Fichte para a sua filosofia.
3Na verdade, Pareyson só reproduz uma frase do próprio Fichte. Em carta a Baggesen (abril- maio de 1795), o nosso filósofo afirma na sua correspondência: «mein System ist vom anfang bis zu Ende eine analyse des Begriffs der Freiheit». «O meu sistéma é desde o início até o fim uma análise do conceito da liberdade» J. G. Fichte, Gesamtausgabe der Bayerischen akademie der Wissenschaften, III,4 (Sç: Frommann-Holzboog, 1973), 182. Doravante GA seguido do número da série em romanos e do volume em arábigos. A tradução dos textos em outras línguas é nossa.
4Antonio Pintor-Ramos, Historiade la filosofía contemporánea (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002), Introducción.
5Emmanuel Mounier, Introduction aux existentialismes (Paris: Gallimard, 1962), 8s.
6K. O. Apel, «Einführung zu C. S. Pierce», em Schriften zur Entstehung des Pragmatismus, Vol I, (Francfort: Suhrkamp, 1967), 13, citado por: Jean Grondin, introducción a la hermenéutica filosófica (Barcelona: Herder, 1999), 29.
7Bernard-Henry Lévy, El siglo de Sartre (Barcelona: Ediciones B, 2002), 27.
8Christian Descamps, «Los existencialismos», em Francois Chatelêt, Historia de la filosofía, Tomo IV, El siglo XX (Madrid: Espasa- Calpe, 1983), 497.
9Tom Rockmore, «Fichte et Sartre ou Sartre fichtéen?», em Ives Radrizzani, Fichte et la France (Paris: Beauchesne, 1997), 221.
10Alfred Dandyk ensaiou mais recentemente uma audaz contestação a algumas teses de Dorothea Wildenburg num ensaio publicado na web: Für-sich-sein oder Warum der Existentialismus kein idealismus ist, Alfred Dandyk, consultada no 1 septembro, 2011, http://www.sartreonline.com/Fuer-sich-sein42.pdf.
11Rockmore escreve no seu livro: «autant que je sache, il [Sartre] n'évoque jamais le nom du philosophe allemand dans ses textes ». Ibid., 224.
12«Un sujet auquel il [Flach] demande de lui fournir une brève caractéristique de la philosophie de Fichte se représente "le moi créant le non moi pour le dépasser" par un ouvrier frappant du marteau sur un mur» Jean-Paul Sartre, L'imaginaire, Psychologie phénoménologique de l'imagination (Paris: Gallimard, 1940), 142.
13«Ainsi l'on parle aujourd'hui de l'Idée kantienne chez nous ou, chez les Allemands, de la Weltanschauung de Fichte ». Jean-Paul Sartre, Critique de la raison dialectique (précédé de Question de méthode), Tome I, Théorie des ensembles pratiques (Paris: Gallimard, 1960), 16.
14«La dialectique que Hegel présente dans la première partie de son ouvrage sur la conscience n'est pas tellement différente de la dialectique de Fichte ou de Schelling. Il s'agit de partir de la conscience naïve qui sait immédiatement son objet, ou plutôt qui croit le savoir, et de montrer qu'elle est en fait dans le savoir de son objet conscience de soi, savoir de soi-même». Jean-Paul Sartre, Cahiers pour une morale (Paris: Gallimard, 1983), 69. A citação de Jean Hyppolite corresponde à obra Genèse et structure de la Phénoménologie de l'Esprit (Paris: Aubier-Montagne, 1946).
15«Le monde c'est moi dans la dimension du Non-moi. Mais la négativité ne peut être surmontée et il ne s'agit pas ici de rêver qu'on assimilera ce Non-moi comme chez Hegel ou Fichte. Pas de digestion: c'est moi mais pour toujours dans une autre dimension d'Être, pour toujours autre que moi». Ibid., 514.
16Dorothea Wildenburg, ist der Existentialismus ein Idealismus? Transzendentalphilosophische analyse der selbsbewußtseinstheorie des frühen sartre aus der Perspektive der Wissenschaftlehre Fichtes (Amsterdão: Rodopi, 2003), 3.
17«Sartres Selbstbewusstseinstheorie im Lichte der Wissenschaftslehre zu interpretieren». Ibid., 7.
18«Less in understanding Sartre "in the light" of Fichte than in understanding the Wissenschaftslehre "in the light of existentialism"... Inasmuch I am trying to do in this paper is to assess the plausibility of any proposed 'shortcut from Fichte to Sartre». Daniel breazeale, «How to make an Existentialist? In search of a Shortcut from Fichte to Sartre», em Daniel breazeale et al., Fichte and the phenomenological tradition (Berlim: De Gruyter, 2010), 278.
19«Une philosophie de la conscience n'est pas nécessairement assimilable à une philosophie du sujet. Sartre entend même montrer leur opposition rigoureuse. Ce qu'il appelle «conscience», dans son emploi le plus strict ne saurait s'identifier au moi (...) Irréductible à une réalité physique ou psychique, elle désigne la structure originairement constitutive de ce à quoi notre vécu se rapporte: objets perceptifs, objets idéaux, images, conceptions, sentiments, affects». Jean-Marc Mouillie, sartre: conscience, ego et psychè (Paris: Presses Universitaires de France, 2000), 5s.
20«Nous voudrions montrer ici que l'Ego n'est ni formellement ni matériellement dans la conscience ; c'est un être du monde comme l'Ego d'autrui (...) Cette conscience de conscience n'est pas positionnelle, c'est-à-dire que la conscience n'est pas à elle-même son objet. Son objet est hors d'elle par nature et c'est pour cela que d'un même acte elle le pose et le saisit.» Jean Paul Sartre, La transcendence de l'ego (Paris: Vrin, 1978), 24.
21«Der Idealismus erklärt, wie schon oben gesagt worden, die Bestimmungen des Bewusstseins aus dem Handeln der Intelligenz. Diese ist ihm nur thätig, und absolut, nicht leidend; das letzte nicht, weil sie seinem Postulate zufolge Erstes, und Höchtes ist, dem nichts vorhergeht, aus welchem ein Leiden desselben sich erklären ließe. Es kommt aus dem gleichen Grunde ihr auch kein eigentliches Sein, kein Bestehen zu, weil dies das Resultat einer Wechsel Wirkung ist, und nichts da ist, noch angenommen wird, womit die Intelligenz in Wechsel-Wirkung gesetzt werden könnte. Die Intelligenz ist dem Idealismus ein Thun, und absolut nichts weiter; nicht einmal ein Thätiges soll man sie nennen (...)». J. G. Fichte, «Wissenschaftslehre Nova Methodo», em Ga, I/4, 199s.
22«La facticitat de l'existencia en un món de dimensions plurals i interconnectades que és vicut com una totalidad. A diferència del que passa amb Kant, doncs, per Fichte 'experiència' és 'vida'». Salvi Turró, Fichte, De la consciencia al absolut (Barcelona: Omicron, 2012), 48.
23J. G. Fichte, «Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre, Als Handschrift für seine Zuhörer», em Ga I,2, 255.
24Cf. Federico Ferraguto, Filosofare prima della filosofía. Il problema dell'introduzione alla dottrina della scienza di J. G. Fichte (Hildesheim: Olms, 2010), 2.
25«[Elle] n'a rien de substantiel, c'est une pure apparence... un vide totale», Jean-Paul Sartre, L'être et le néant, Essai d'ontologie phénoménologique (Paris: Gallimard, 1976), 21.
26«L'être est cela et en dehors de cela, rien», Ibíd., 40.
27«Un cercle inachevé n'appelle l'achèvement en qu'en tant qu'il est dépassé par la transcendance humaine. En soi il est complet et parfaitement positif comme une courbe ouverte». Ibíd., 125.
28«In dieser Acte der Freiheit wird das Ich sich selbst object. Es entsteht ein würkliches bewusstsein, an dessen ersten punkt von nun an alles angeknüpft werden muss, was object desselben sein soll; die freiheit ist sonach der erste grund und die erste bedingung alles seins und alles bewusstseins». J. G. Fichte, «Wissenschaftslehre nova methodo», em Ga, IV, 3, 360.
29Xavier Tilliette, Fichte, La science de la liberté (Paris: Vrin, 2003), 32.
30«Una 'attività reale' cioè svincolata da modelli, 'prattica'; Fichte adopera spesso, per designarlo, il termine 'Uebergang', che in qualche luogo significa 'passaggio', ma in altri, più energicamente, 'andar oltre'». Claudio Cesa, «Libertà e libertà politica nella filosofia classica tedesca», em Giuseppe Duso e Gaetano Rametta, La libertà nella filosofia clasica tedesca, Politica e filosofia tra Kant, Fichte, schelling e Hegel (Milão: Franco Angeli, 2000), 20.
31«Die Selbstständigkeit, unser letztes Ziel, besteht, wie oft erinnert worden, darin, daß alles abhängig ist von mir, und ich nicht abhängig von irgend etwas; daß in meiner ganzen Sinnenwelt geschieht, was ich will, schlechthin und bloß dadurch, daß ich es will, gleichwie es in meinem Leibe, dem Anfangspunkte meiner absoluten Kausalität geschieht. Die Welt muß mir werden, was mir mein Leib ist. Nun ist dieses Ziel zwar unerreichbar, aber ich soll mich ihm doch stets annähern, also alles in der Sinnenwelt bearbeiten, daß es Mittel werde zur Erreichung dieses Endzwecks. Diese Annäherung ist mein endlicher Zweck». J. G. Fichte, «Das System der Sittenlehre», em GA I,5, 208.
32«Die Theorie des Selbsbewusstseins, wie Sartre sie in Das Sein und das Nichts entwickelt, kann in wesentlichen Punkten als transzendentalphilosophischer Ansatz im Sinne der frühen Wissenschaftslhere Fichte interpretiert und in ihrer Argumentation einsichtig gemacht werden». Dorothea, Wildenburg, op. cit., 427.
33Jean-Paul Sartre, «Le processus historique», La Gazette de Lausanne 8 février 1947, citado por Daniel Breazeale, How to make an Existentialist ? in search of a Shortcut from Fichte to Sartre, op. cit., 281.
34Jean-Christophe Goddard, Fichte: le moi et la liberté (Paris: Presses universitaires de France, 2000), 4.
35«Aber der Satz Ich bin Ich hat ganz andere Bedeutung als der Satz A ist A», J. G. Fichte, «Grundlage der Gessammten Wissenschaftslehre», GA, I, 2, 258.
36J. G. Fichte, «Wissenschaftslehre Nova Methodo», em GA, IV, 2, 70.
37«Wie kommt das Ding herein in mich? Welches ist das Band zwischen dem Subjecte, Mir, und dem Objecte meines Wissens, dem Dinge? Es bedarf hier keines Bandes zwischen Subjekt und Objekt; mein eignes Wesen ist dieses Band. Ich bin Subjekt und Objekt: und diese Subjekt=Objektivität, dieses Zurückkehren des Wissen in sich selbst, ist es, die ich durch den Begriff Ich bezeichne, wenn ich dabei überhaupt etwas bestimmtes denke», J. G. Fichte, «Die Bestimmung des Menschen», em GA I, 6
39Ibíd., 33., 235s.
38Jean Paul Sartre, L'être et le néant, essai d'ontologie phénoménologique (Paris: Gallimard, 1976), 11.
40Ibíd., 477.
41«Elle n'est pas une qualité de surajoutée de mon être ou une propriété de ma nature ; elle est très exactement l'étoffe de mon être». Ibíd., 483.
42«L'homme étant condamné à être libre, porte le poids du monde tout entier sur ses épaules: il est responsable du monde et de lui-même en tant que manière d'être». Ibíd., 598.
43Ver o trabalho de: Luciano Donizetti Da Silva, «Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre», Revista Princípios 24, v. 15, (2008): 225-248.
44«die Konstitution der "Welt" beruht grundlegend aus dem Gedanken der Intentionalität des Bewusstseins, der bereits in Fichtes Theorie ausgeführt, und nicht erst durch Brentano oder Husserl entwicklelt worden ist», Dorothea Wildenburg, op. cit., 428.
45Alexis Philonenko, La liberté humaine dans la philosophie de Fichte (Paris: J. Vrin, 1980), 3.
46«Il y a au moins un être chez qui l'existence précède l'essence, un être qui existe avant de pouvoir être défini par aucun concept et que cet être c'est l'homme (...) l'homme existe d'abord, se rencontre, surgit dans le monde, et il se définit après.
L'homme, tel que le conçoit l'existentialiste, s'il n'est pas définissable, c'est qu'il n'est d'abord rien. Il ne sera qu'ensuite, et il sera tel qu'il se sera fait. Ainsi, il n'y a pas de nature humaine, puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir.
L'homme est seulement, non seulement tel qu'il se conçoit, mais tel qu'il se veut, et comme il se conçoit après l'existence, comme il se veut après cet élan vers l'existence; l'homme n'est rien d'autre que ce qu'il se fait. Tel est le premier principe de l'existentialisme. C'est aussi ce qu'on appelle la subjectivité, et que l'on nous reproche sous ce nom même. Mais que voulons-nous dire par là, sinon que l'homme a une plus grande dignité que la pierre ou que la table?
Car nous voulons dire que l'homme existe d'abord, c'est-à-dire que l'homme est d'abord ce qui se jette vers un avenir, et ce qui est conscient de se projeter dans l'avenir. L'homme est d'abord un projet qui se vit subjectivement, au lieu d'être une mousse, une pourriture ou un chou-fleur; rien n'existe préalablement à ce projet; rien n'est au ciel intelligible, et l'homme sera d'abord ce qu'il aura projeté d'être». Jean-Paul Sartre, L'existentialisme est un humanisme (Paris: Nagel, 1960), 21s.
47«Nach allem bisherigen bin ich frei, aber setze mich nicht als frei; bin ich frei, etwa für eine Intelligenz außer mich, nicht aber für mich selbst. Aber ich bin etwas, nur in wiefern ich mich so setze», J. G. Fichte, «Das System der Sittenlehre», em Ga, I, 5, 130.
48José Ortega y Gasset, «Las dos metáforas», em Obras completas, Tomo II, El Espectador (1916-1934) (Madrid: Revista de Occidente, 1966), 399s.
49Cf. Mt 5,22; Lc 24, 39; Jn 6,20; Mc 13,6; Lc 21,8; Jn 6,20, etc.
50Hannah Arendt, La vie de l'esprit (Paris: Presses Universitaires de France, 2005), 341ss.
51«L'âme d'autrui est séparée de la mienne par toute la distance qui sépare tout d'abord mon âme de mon corps, puis mon corps du corps d'autrui, enfin le corps d'autrui de son âme» Jean-Paul Sartre, L'être et le néant, Essai d'ontologie phénoménologique (Paris: Gallimard, 1976), 277.
52«Préoccupé, en effet, d'établir les lois universelles de la subjectivité, qui sont les mêmes pour tous, il n'a pas abordé la question des personnes», Ibíd., 279.
53«Nous estimons que le problème de l'inter-subjectivité est la question capitale de la première philosophie de Fichte». Alexis Philonenko, op. cit., 21.
54J. G. Fichte, "Das System der Sittenlehre", em Ga, I, 5 (Sç: Friedrich Frommann, 1977).
55J. G. Fichte, «Die Bestimmung des Menschen», em Ga I, 6 (Sç: Friedrich Frommann, 1964ff).
56J. G. Fichte, «Anweisung zum seligen Leben oder auch die Religionslehre», em Ga I, 9 (Sç, Frommann-Holzboog, 1962ff).
57Bernard-Henry Lévy, El siglo de sartre (Barcelona: Ediciones B, 2002), 45.
58Jean Paul Sartre, L'existentialisme est un humanisme, op. cit.
59J. G. Fichte, «Grundlage der gesammten Wissenschaftlehre, Als Handschrift für seine Zuhörer», em Ga i, 2 (Sç: Frommann-Holzboog, 1965), 326.

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