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Franciscanum. Revista de las Ciencias del Espíritu

Print version ISSN 0120-1468

Franciscanum vol.61 no.171 Bogotá Jan./June 2019  Epub Jan 06, 2021

https://doi.org/10.21500/01201468.4105 

Teología

Moisés e os discípulos de Jesus não falam por si (Ex 4,12; Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26)

Moses and the disciples of Jesus do not speak for themselves

Matthias Grenzer1  *
http://orcid.org/0000-0003-3490-3112

José Ancelmo Santos Dantas1  **
http://orcid.org/0000-0002-7693-5764

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo

Existem intertextualidades surpreendentes entre as tradições vétero e neotestamentárias. Os autores do Novo Testamento, pois, fizeram questão de ou citar literalmente algo das Sagradas Escrituras de Israel ou, de forma mais livre, fazer alusões a tais tradições. Nesse sentido, a personagem de Moisés e pormenores ligados à sua trajetória e/ou biografia, presentes nas narrativas de Êxodo a Deuteronômio, ganha maior destaque na segunda parte da Bíblia cristã. Justamente isso vale também para um discurso que, segundo a narrativa em Ex 3,1-4,17, o Senhor, Deus de Israel, dirigiu a Moisés, visando à necessidade de o líder profético precisar convencer outros através de suas palavras: «Eu, pois, estarei com tua boca e te instruirei sobre o que deverás falar» (Ex 4,12b-c). Conforme os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João, Jesus acolheu tal tradição e esperança religiosa ao instruir seus discípulos (Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26). A investigação dos pormenores da intertextualidade aquí indicada constitui a tarefa da pesquisa apresentada neste artigo.

Palavras-chave: literatura bíblica; intertextualidade; profetas; discípulos; discursos

Abstract

There are surprising intertextualities between the Old and New Testament traditions. The authors of the New Testament have therefore made it a matter of either quoting literally something from the Holy Scriptures of Israel or, more freely, making allusions to such traditions. In this sense, the character of Moses and details related to his trajectory and/or biography, present in the narratives of Exodus to Deuteronomy, gain greater prominence in the second part of the Christian Bible. This also applies to a discourse which, according to the account in Exodus 3: 1 - 4: 17, the LORD and God of Israel directed to Moses, in view of the need that the prophetic leader has to convince others by his words: «I will therefore be with your mouth, and will instruct you in what thou shall speak» (Ex 4: 12b-c). According to the Gospels according to Mark, Matthew, Luke and John, Jesus welcomed this tradition and religious hope in instructing his disciples (Mk 13: 11, Mt 10: 19, Lk 12: 12, Jn 14: 26). The investigation of the details of the intertextuality indicated here is the task of the research presented in this article.

Keywords: biblical literature; intertextualities; prophets; disciples; speeches

Introdução

Diante da possibilidade e/ou probabilidade de os discípulos serem perseguidos, seja no âmbito da comunidade religiosa, seja no âmbito da sociedade e do poder público, Jesus, de acordo com as narrativas nos Evangelhos, chegou a fazer uma surpreendente afirmação. Disse a seus discípulos que, no momento de eventuais interrogatórios, não lhes seria necessário preocuparem-se com seus discursos de defesa. Pelo contrário, seriam instruídos do alto. Em princípio, os quatro Evangelhos narram esse ensinamento promovido por Jesus. No caso, será preciso ouvir ou ler o que é apresentado em Mc 13,11; Mt 10,17-20; Lc 12,11-12; Jo 14,26.

Contudo, parece ser provável que Jesus, em seu ensino, tenha acolhido e atualizado um elemento pertencente às tradições veterotestamentárias, ou seja, às Sagradas Escrituras de seu povo, os judeus. Consultando, pois, a primeira narrativa exodal sobre a vocação de Moisés apresentada em Ex 3,1-4,17, descobre-se uma reflexão teológica semelhante. Ou seja, no momento de insistir na vocação de Moisés, no sentido de este voltar ao Egito e conduzir os hebreus para fora da sociedade que os oprimia, o Senhor, Deus de Israel lhe afirma o seguinte: «Eu estarei com tua boca e te instruirei sobre o que deverás falar» (Ex 4,12b-c).

De certo, os Evangelhos, como as demais tradições neotestamentárias, originalmente foram compostos na língua grega, de acordó com o uso dela no decorrer do primeiro século depois de Cristo. A edição crítica do texto grego do Novo Testamento comumente usada no mundo acadêmico é a vigésima oitava edição do Novum Testamentum Graece, a qual consta também na quinta edição do The Greek New Testament1. Contudo, no momento de essas edições apresentarem seus índices de citações, alusões e paralelismos verbais, o The Greek New Testament não menciona Ex 4,12c-d como referência para nenhum texto nos Evangelhos. O Novum Testamentum Graece, por sua vez, menciona Ex 4,12 em vista de Mt 10,19, mas sem mencionar Mc 13,11; Lc 12,12; Jo 14,26. Em vista de Mc 13,11, no entanto, indica Ex 4,15 como paralelismo.

Diante disso, o estudo aqui apresentado insiste novamente na investigação das proximidades e/ou intertextualidades que as narrativas neotestamentárias em Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26 guardam com a tradição exodal em Ex 4,12. No caso, o termo intertextualidade indica que «existem relações entre textos e que tais relações são de interesse para a interpretação do texto».2 Para isso, será necessário consultar, de forma pormenorizada, o que se escuta ou se lê nos textos bíblicos acima citados, ora em hebraico, ora em grego, verificando, por excelência, citações, alusões e/ou ecos temáticos, sendo que as relações intertextuais nascem, sobretudo, desses elementos.

1. Deus instruirá Moisés sobre o que este deve falar (Ex 4,12)

A narrativa em Ex 3,1-4,17 apresenta a seus ouvintes-leitores uma ampla reflexão sobre a vocação de Moisés. A partir de um encontro pessoal com o Senhor, Deus de Israel, Moisés é chamado a «ir ao faraó e fazer saírem do Egito os filhos de Israel» (Ex 3,10). Diante dessa tarefa, Moisés, por sua vez, formula uma série de objeções. Uma delas se refere à sua suposta incapacidade de falar. Eis uma tradução do texto hebraico em questão (Ex 4,10-12):

10 Então Moisés disse ao Senhor: «Por favor, meu Senhor, eu não sou um homem de palavras, nem de ontem nem de anteontem, nem depois de tu teres falado a teu servo, porque eu tenho boca pesada, e pesada é a língua». 11 O Senhor lhe disse: «Quem colocou uma boca para o ser humano? E quem torna mudo ou surdo, clarividente ou cego? Por acaso, não sou eu, o Senhor? 12 Vai agora! Eu, pois, estarei com tua boca e te instruirei sobre o que deverás falar».

Interessa à investigação intertextual aqui realizada justamente o final desse discurso divino. Por isso, vale a pena verificar de perto como se dá, mais exatamente, a formulação em Ex 4,12b-c no texto hebraico3.

Quem discursa é o Senhor, Deus de Israel. Visando ao futuro, ele opõe ao discurso de Moisés - «Eu não sou um homem de palavras!» (Ex 4,10) - uma fala que assume características de promessa. Trata-se, sintaticamente, de duas frases paralelas que, duplamente, insistem em uma só reflexão teológica. Em primeiro lugar, a formulação trabalha com uma imagem, valorizando a linguagem metonímica. Visa-se à «boca» de Moisés (Ex 4,12b), sendo que ela representa a pessoa enquanto fala e/ou até precisa pronunciar-se. Aliás, a boca é o único instrumento de trabalho à disposição do profeta, sendo que este tem a tarefa de transmitir a palavra de Deus aos demais. Enfim, acolhendo a imagem aqui descrita, a narrativa transmite a seguinte promessa divina: «Eu estarei com tua boca!» (Ex 4,12b). No segundo momento, ocorre uma formulação abstrata, formada por uma frase (Ex 4,12c) que tem o objeto direto introduzido pela palavra aqui traduzida como «que» (אֲשֶׁד). Ou seja, a expressão «sobre o que deverás falar» se torna complemento para o que se ouve ou se lê como sujeito e predicado: «te instruirei» (Ex 4,12c).4

Todavia, a reflexão teológica promovida por Ex 4,12b-c favorece a ideia de que o Senhor, Deus de Israel, «instrua» ou «ensine» constantemente o profeta que escolheu. Moisés não falará mais por conta própria, mas «instruído» pelo Senhor. Nem estará mais sozinho com sua «boca», mas a «boca» dele terá a companhia do Senhor. Talvez possa se ir ainda mais longe ao interpretar Ex 4,12b-c, pois a formulação permite também a seguinte compreensão: a partir da vocação dele, a «boca» de Moisés pertence a Deus, no sentido de ser agora o Senhor quem atua «com a boca» de seu profeta. Quer dizer, Deus faz uso dela, sem que por isso precisasse arrancá-la do corpo de Moisés.

Por causa da intertextualidade visada nessa pesquisa, também é de interesse saber como, na Septuaginta, o texto hebraico foi traduzido para o grego5. Eis o trecho em questão:

Observa-se, primeiramente, em relação a Ex 4,12b que a expressão verbal no hebraico - «eu estarei com tua boca» - sofreu uma pequena alteração, quando foi traduzida como «eu abrirei tua boca». No mais, vale mencionar que a raiz verbal hebraica «instruir» ou «ensinar» (ידﬣ III) encontra diversas traduções no grego. Verificando as quarenta e seis presenças do vocábulo na Bíblia Hebraica, os tradutores da Septuaginta usaram os seguintes verbos gregos para traduzi-lo: «encontrar, reunir-se» (ver συναντάω em Gn 46,28), «reunir, unir, unificar, demonstrar, provar, instruir, ensinar, advertir» (ver συμβιβάζω em Ex 4,12.15; Lv 10,11; Sl 32,8), «mostrar, apontar, indicar, tornar conhecido, explicar, explanar, provar» (ver δείκνυμι em Ex 15,25; 1Sm 12,23; Jó 34,32; Mq 4,2), «legislar» (ver νομοθετέω em Ex 24,12; Dt 17,10; Sl 25,8.12; 27,11; 119,33.102), «fazer acontecer, antecipar, conduzir» (ver προβιβάζω em Ex 35,34), «explicitar, interpretar, contar, descrever, relatar» (ver ἐξηγέομαι em Lv 14,57), «relatar, reportar, dar a conhecer, proclamar, pregar» (ver ἀναγγέλλω em Dt 24,8; Jó 27,11; Is 2,3; 28,9), «tornar claro, mostrar, revelar, indicar» (ver δηλόω em Dt 33,10; 1Rs 8,36; 2Cr 6,27), «iluminar, esclarecer, trazer à luz, revelar» (ver φωτίζω em Jz 13,8; 2Rs 12,3; 17,27.28), «mostrar, provar, demonstrar» (ver ὑποδείκνυμι em 2Cr 15,3), «instruir, ensinar» (ver διδάσκω em Jó 6,24; 8,10; Pr 4,4.11; 6,13; Is 9,14; Ez 44,23), «falar, dizer» (ver λέγω em Jó 12,7), «explicar, interpretar» (ver φράζω em Jó 12,8), «liderar, guiar, instruir» (ver ὁδηγέω em Sl 45,5; 86,11), «alegrar, animar» (ver εὐφραίνω em Is 28,26) e «responder, replicar» (ver ἀποκρίνομαι em Mq 3,11)6. Em alguns casos, os tradutores da Septuaginta não traduziram o verbo hebraico em questão (Dt 17,11) ou não o traduziram por um verbo (Hab 2,18-19).

Enfim, dezesseis verbos gregos foram aproveitados pelos tradutores da Septuaginta para traduzir a raiz verbal hebraica aquí traduzida como «instruir» (ידﬣ III no grau do hifil), sendo que a primeira ocorrência dela no cânon da Bíblia Hebraica se dá justamente em Ex 4,12. Aliás, os dezesseis verbos gregos presentes na Septuaginta também foram utilizados pelos autores neotestamentários. Todavia, com sete presenças, a tradução de «instruir» (ידﬣ III) com διδάσκω (ver Jó 6,24; 8,10; Pr 4,4.11; 6,13; Is 9,14; Ez 44,23) se tornou a mais comum. Como verificável logo a seguir, os Evangelhos segundo Lucas e João insistem justamente nesse verbo grego, quando favorecem a intertextualidade com Ex 4,12c.

2. Em vez de os discípulos, o Espírito Santo falará (Mc 13,11)

O Evangelho segundo Marcos parece guardar certo paralelismo com Ex 4,12b-c, quando visa aos «discípulos» (Mc 13,1), que, «entregues aos sinédrios e às sinagogas» e até «conduzidos perante governadores e reis por causa de Jesus, hão de dar testemunho» (Mc 13,9), a fim de que, dessa forma, «proclamem o Evangelho a todas as nações» (Mc 13,10). Garante-lhes, Jesus, para tais situações de perseguições, um apoio divino. Eis o texto grego e uma tradução literal do discurso jesuânico que interessa à investigação aquí apresentada:

Prevê-se, para os discípulos, que eles sejam testemunhas favoráveis ao anúncio de Jesus como Cristo. Com isso, por sua vez, não será possível evitar acusações e processos por parte dos detentores de poder, seja na comunidade religiosa, seja na sociedade. No entanto, por intermédio de seu discurso, Jesus indica uma postura de despreocupação (Mc 13,11b). Por mais que fosse necessário os discípulos, ao serem interrogados, «falarem» (Mc 13,11c-d) nos tribunais, «em vista de sua defesa não seriam decisivas as suas capacidades retóricas», mas, naquela hora, «se tornariam profetas, sendo que, através da boca deles, se pronunciaria o Espírito Santo».7 Prevê-se, dessa forma, o cumprimento da profecia de João Batista, segundo a qual Jesus «batizaria os seus com o Espírito Santo» (Mc 1,8), sendo que existe também a possibilidade contrária no sentido de o discípulo, junto aos escribas (Mc 3,22), «blasfemar contra o Espírito Santo» (Mc 3,29)8.

No que se refere à intertextualidade entre o que Deus diz a Moisés (Ex 4,12) e o que Jesus transmite aos seus (Mc 13,11), percebe-se que tanto o maior profeta do antigo Israel (Dt 34,6) como o discípulo precisam falar, e isso, por excelência, naqueles momentos críticos em que irão enfrentar oposição, resistência e perseguição. Justamente o verbo aqui traduzido como «falar», presente já no discurso dirigido pelo Senhor a Moisés (ver λαλέω em Ex 4,12c), ganha também centralidade no discurso parenético que Jesus oferece a seus discípulos, e isso de forma destacada através de sua tripla menção (Mc 13,11c.e-f).

A mesma intertextualidade se repete também em relação a Ex 4,15, sendo que, neste caso, o Novum Testamentum Graece faz o registro de Mc 13,11 guardar uma alusão à tal tradição veterotestamentária. Em Ex 4,15, o Senhor dirige outro discurso a Moisés, visando, desta vez, à relação entre este último e o irmão dele, que é Aarão: «Falar-lhe-ás e colocarás as palavras em sua boca. Eu estarei com tua boca e com a boca dele. E vos instruirei sobre o que deveis fazer» (Ex 4,15). Além do paralelismo referente à presença do verbo «falar» (Ex 4,15a; Mc 13,11c.e-f), talvez exista também uma alusão no nível do pensamento que norteia a reflexão teológica: como «será dado» aos discípulos «o que devem falar» (Mc 13,11d-e; ver também Mt 10,19d), Moisés é apresentado como quem «coloca as palavras na boca» de Aarão (Ex 4,15b), a fim de que este último fale.

3. O Espírito do Pai falará nos discípulos (Mt 10,19-20)

No Evangelho segundo Mateus, de forma semelhante, a mesma ideia parece estar presente. Em seu discurso dirigido aos «doze discípulos» (Mt 10,1), Jesus avisa estes últimos sobre futuras perseguições (Mt 10,16-20). Por serem «enviados como ovelhas em meio a lobos», hão de «ser prudentes como as serpentes e simples como as pombas» (Mt 10,16). Mesmo assim, serão «entregues aos tribunais, flagelados nas sinagogas e levados diante de gobernadores e reis» (Mt 10,17-18). Enfim, é de maior interesse para esta pesquisa o que irá acontecer com os discípulos quando precisarão falar em tais situações. Eis uma tradução literal do que se ouve ou se lê em Mt 10,19-20:

A ordem dada por Jesus aos discípulos insiste em que estes «devem confiar em Deus, sem partir para a vingança ou sucumbir à intimidação»9. Pelo contrário, será preciso que deem «testemunho aos governadores e reis», assim como «às nações» (Mt 10,18). «Entregues» a seus carrascos (Mt 10,19a), eles realmente lhes devem falar. Mais ainda, justamente pela presença quadrupla do verbo «falar» (ver λαλέω em Mt 10,19b.c.20a.b), essa atitude indicada gana maior realce no discurso promovido por Jesus. Focando, por sua vez, no que Deus disse em seu discurso a Moisés, estudado anteriormente, observa-se que também ali há o verbo «falar» (Ex 4,12c). Moisés, pois, «deve falar» palavras de acordo com «a instrução» do Senhor (Ex 4,12c). Semelhantemente, também os discípulos de Jesus devem falar palavras cuja origem não está neles.

Contudo, pode surgir a questão a respeito da intensidade do paralelismo, sobretudo em vista da reflexão teológica promovida pelos dois discursos diretos em questão, sendo que o primeiro deles pertence ao Senhor, Deus de Israel, e o segundo a Jesus. No caso, a «fala» de Moisés é pensada como «instruída» ou «ensinada» por Deus (Ex 4,12c). O Senhor «estaria com a boca» de seu profeta (Ex 4,12b). Ouvindo essas formulações, é possível chegar à ideia de instrumentalidade. Também parece haver uma comunhão específica entre Deus e Moisés.

No Evangelho, o discurso de Jesus aparentemente ganhe uma radicalidade ainda maior. Os discípulos «irão falar» o que «lhes será dado» (Mt 10,19c). E «não serão eles que falarão», mas «será o Espírito do Pai deles que neles falará» (Mt 10,20). Através dessa formulação, parece que as ideias de instrumentalização e comunhão chegam a seu auge, no sentido de ocorrer uma atualização nova do antigo mistério. No caso, pois, o «Espírito do Pai» (Mt 10,20b) - que é o Espírito do Filho - é pensado como quem «falará nos» discípulos (Mt 10,20b), apropriando-se deles de forma definitiva. No caso de Moisés, no entanto, o Senhor é apresentado como quem «está com a boca» de Moisés, «instruindo» Moisés «sobre o que deve falar» (Ex 4,12b-c). Contudo, tratando-se de uma experiência mística, não é possível pensar em um «mais ou menos». Tanto Moisés como os discípulos de Jesus são contemplados não como quem fala por si, mas sim como quem expõe a palavra de Deus, «instruído» por Deus (Ex 4,12c) e/ou acolhendo «o Espírito do Pai» (Mt 10,20b). E as palabras faladas por ambos sempre terão qualidade divina.10

4. O Espírito Santo instruirá os discípulos sobre o que dizer (Lc 12,11-12)

Também o Evangelho segundo Lucas acolhe a tradição referente aos «discípulos» (Lc 12,1) e «amigos» (Lc 12,4) que, ao «se declararem» por Jesus (Lc 12,8), em vez de «negá-lo» (Lc 12,9), irão precisar defender-se diante das autoridades religiosas que, nos espaços reservados a julgamentos, irão interrogá-los a respeito de sua postura favorável ao «Filho do Homem» (Lc 12,8.10). Eis uma tradução literal dos dois versículos em questão (Lc 12,11-12):

Enquanto o trecho correspondente no Evangelho segundo Mateus insiste na presença quádrupla do verbo «falar» (ver λαλέω em Mt 10,19b.c.20a.b), o Evangelho segundo Lucas traz duplamente o verbo aqui traduzido como «dizer» (ver λέγω em Lc 12,11d.12a), além de apresentar o verbo «defender-se» (ver ἀπολογέομαι em Lc 12,11c), sendo que este último também faz imaginar que está sendo proferido um discurso. Portanto, o terceiro Evangelho valoriza, assim como o Evangelho segundo Mateus, o paralelismo veterotestamentário observado no parágrafo anterior, mesmo que o faça através de outros vocábulos. Como Moisés «falaria» por causa de o Senhor «estar na boca dele» (Ex 4,12), os discípulos também «dirão» o que há de ser «dito» (Lc 12,11b.12a) e «se defenderão» diante das autoridades religiosas e/ou «autoridades romanas» por causa da ação do «Espírito Santo» (Lc 12,11b)11.

Contudo, observando o que é narrado em Ex 4,12, o Evangelho segundo Lucas guarda um paralelismo duplo. Além de insistir no falar, traz o verbo aqui traduzido como «instruir» (ver διδάσκω em Lc 12,12a e a raiz verbal ידﬣ III em Ex 4,12c). Vale lembrar que dessa raiz verbal nasce o substantivo Torá (תּוֹדׇﬣ), o qual, na Bíblia Hebraica, dá nome ao Pentateuco. Enfim, como, na narrativa do Êxodo, o Senhor «instrui» Moisés a respeito do que «deverá falar» (Ex 4,12c), na narrativa do terceiro Evangelho, o «Espírito Santo instruirá» os discípulos de Jesus sobre «o que será preciso dizer» (Lc 12,12a).

Com isso, cabe a seguinte observação: verificada a edição do The Greek New Testament, falta no índice de alusões ou paralelismos verbais a menção de Ex 4,12 como referência para Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12. No Novum Testamentum Graece, por sua vez, falta a menção de Ex 4,12 como referência para Mc 13,11 e, especialmente, para Lc 12,12, sendo que essa edição crítica do texto grego do Novo Testamento traz a menção de Mt 10,19. Todavia, a ausência de Lc 12,12 no índice de alusões ou paralelismos verbais surpreende mais pela circunstância de, justamente no terceiro Evangelho, ocorrer um paralelismo duplo em relação ao que é narrado em Ex 4,12.

6. O Espírito Santo instruirá os discípulos sobre tudo o que Jesus disse (Jo 14,26)

Em vista do que é narrado em Ex 4,12b-c, há ainda outra intertextualidade a ser observada nas tradições do Novo Testamento. Fazendo parte de seu discurso de despedida (Jo 14-17), ouvem-se ou leem-se as seguintes palavras de Jesus em Jo 14,26:

Semelhante ao Evangelho segundo Lucas, também o quarto Evangelho apresenta «o Espírito Santo» como quem «instrui» os discípulos (Jo 14,26a-b; Lc 12,12a), sendo que, dessa forma, o Espírito será experimentado como «Paráclito» (Jo 14,26a), ou seja, como quem é «convocado para o auxílio e a defesa», no sentido de atuar como «um advogado ou assistente de defesa»12. Contudo, segundo a compreensão joanina, o Espírito Santo será «mestre dos discípulos» não «de forma autônoma ou como transmissor de novas revelações, mas somente para lembrar os discípulos das palavras de Jesus»13. Nessa perspectiva, é sublinhada a importância do que Jesus «disse» (Jo 14,26c), e não daquilo que os discípulos poderiam dizer por conta própria (ver também Jo 15,26-27).

Todavia, por mais que Jesus enuncie aqui «o sentido novo do Espírito Santo conforme a experiência da comunidade joanina», em vista da intertextualidade aqui investigada percebe-se novamente a presença dos vocábulos «instruir» e «falar/dizer» (Ex 4,12c; Jo 14,26bc)14. Com isso, outra vez, ganha destaque a experiência religiosa de o profeta e/ou discípulo ser misteriosamente assistido por Deus, sobretudo nos momentos marcados pela perseguição e/ou solidão.

Considerações finais

«O Jesus dos quatro Evangelhos promete o apoio do Espírito Santo», sendo que este último também é chamado de «Espírito do Pai» ou «Paráclito» (Mc 13,11g; Mt 10,20b; Lc 12,12a; Jo 14,26a)15. Assim como Moisés, profeta maior de Israel (Dt 34,10), devia ter a convicção de que poderia «falar» na qualidade de profeta «instruído» pelo Senhor, Deus de Israel (Ex 4,12b-c), também os discípulos «falariam» e, com isso, anunciariam o Evangelho. Contudo, cada Evangelho se expressa de sua maneira ao veicular a reflexão religiosa já presente nas tradições exodais. Ora é dito que será o «Espírito Santo» que «falará» no lugar dos discípulos (Mc 13,11f-g) ou «neles» (Mt 10,20b), ora o «Espírito Santo instruirá» os discípulos para que estes saibam «o que é preciso dizer» (Lc 12,12a) ou sejam «recordados de tudo aquilo que Jesus lhes disse» (Jo 14,26b-d).

Por excelência, a intertextualidade dessa reflexão religiosa ganha visibilidade através dos paralelismos verbais acima descritos. Nesse sentido, ganha destaque, de um lado, o «falar» (Ex 4,12c; Mc 13,11c.e-f; Mt 10,19c.e.20a-b) e/ou «dizer» (Lc 12,11d.12a; Jo 14,26d). De outro lado, é o vocábulo «instruir» (Ex 4,12c; Lc 12,12a; Jo 14,26b) que cria conexões. Assim, como já afirmado, o Evangelho segundo Lucas parece guardar a maior proximidade ao que faz parte das tradições exodais, contrariamente ao que é afirmado no índice de alusões ou paralelismos verbais na edição do Novum Testamentum Graece. Nele, os «dizeres» dos discípulos são imaginados como «instruídos» pelo Espírito Santo (Lc 12,12a), assim como o «falar» de Moisés se encontrava «instruído» pelo Senhor (Ex 4,12c).

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1 Barbara Aaland; Kurt Aaland; Johannes Karavidopoulos; Carlo M. Martini; Bruce M. Metzger, eds., Novum Testamentum Graece (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 28. Edição, 2012); Barbara Aaland; Kurt Aaland; Johannes Karavidopoulos; Carlo M. Martini; Bruce M. Metzger, eds., The Greek New Testament (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2014).

2Susanne Gillmayr-Bucher, «Intertextualität», Das wissenschaftliche Bibellexikon im Internet, consultado em septiembre 15, 2018. https://www.bibelwissenschaft.de/stichwort/21850/. No que se refere às intertextualidades entre Antigo e Novo Testamento, ver também Gregory K. Beale e Donald A. Carson, Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2013), e Gregory K. Beale, Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2013).

3O texto hebraico é apresentado de acordo com Karl Elliger e Wilhelm Rudolph, eds., Biblia Hebraica Stuttgartensia (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997).

4Existe a possibilidade de que uma «oração apresentada pelo marcador relativo» -isto é, a palabra אֲשֶׁד- «funcione como uma parte da oração verbal principal, como sujeito, objeto, ou genitivo, ou em uma oração sem verbo». Bruce K. Waltke e Michael P. O’Connor, Introdução à Sintaxe do Hebraico Bíblico (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 331. No caso de Ex 4,12d, se trata do objeto.

5Citado conforme Alfred Rahlfs, ed., Septuaginta (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979).

6Os significados dos vocábulos gregos são apresentados de acordo com os dicionários de Friedrich Rehkopf, Septuaginta-Vokabular (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989), Walter Bauer, Wörterbuch zum Neuen Testament (Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1988) e F. Wilbur Gingrich; Frederick W. Danker, Léxico do Novo Testamento Grego/Português (São Paulo: Vida Nova, 1993).

7Ludger Schenke, Das Markusevangelium. Literarische Eigenart - Text und Kommentierung (Stuttgart: Kohlhammer, 2005), 294.

8Ched Myers, O Evangelho de São Marcos (São Paulo: Edições Paulinas, 1992), 398.

9Warren Carter, O Evangelho de São Mateus. Comentário sociopolítico e religioso a partir das margens (São Paulo: Paulus, 2002), 310.

10Em relação à pessoa de Jesus, de acordo com os Evangelhos, pode se pensar em uma diferença, sendo que ele é contemplado como palavra de Deus encarnada. Ou seja, a palavra de Deus sempre é a palavra de Deus, mas somente em Jesus ela se encarnou.

11 Rainer Dillmann e César A. Mora Paz, Comentario al Evangelio de Lucas. Un comentario para la actividad pastoral (Navarra: Verbo Divino, 2006), 320.

12Felix Porsch, «Das Johannesevangelium», em Stuttgarter Kleiner Kommentar zu den Evangelien, Meinrad Limbeck; Paul-Gerhard Müller; Felix Porsch (Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 2009), 688.

13Johannes Beutler, Das Johannesevangelium. Kommentar (Freiburg: Herder, 2013), 411.

14Johan Konings, Evangelho segundo João. Amor e fidelidade (Petrópolis; São Leopoldo: Vozes; Sinodal, 2000), 320.

15François Bovon, El Evangelho según San Lucas ii (Salamanca: Sígueme, 2002), 325.

*Matthias Grenzer é doutor em Teologia pela Faculdade de Filosofia e Teologia St. Georgen em Frankfurt, Alemanha, e mestre em História pela puc-sp. Fez seu estágio de pós-doutorado em Teologia na puc-rio. É professor na Faculdade de Teologia da puc-sp e líder do Grupo de Pesquisa tiat. orcid: http://orcid.org/0000-0003-3490-3112. Contato: mgrenzer@pucsp.br

**José Ancelmo Santos Dantas é mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da puc-sp e membro do Grupo de Pesquisa tiat. Contato: ancelmodantas@gmail.com

Para citar este artículo: Grenzer, Matthias y Santos Dantas, José Ancelmo. «Moisés e os discípulos de Jesus não falam por si (Ex 4,12; Mc 13,11; Mt 10,19; Lc 12,12; Jo 14,26)». Franciscanum 171, Vol. LXI (2019): 175-191

Recebido: 12 de Junho de 2018; Aceito: 23 de Agosto de 2018

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