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Franciscanum. Revista de las Ciencias del Espíritu

Print version ISSN 0120-1468

Franciscanum vol.64 no.177 Bogotá Jan./June 2022  Epub Oct 12, 2022

https://doi.org/10.21500/01201468.5347 

Teología

Espiritualidade Martirial: uma experiência de fé latino-americana*

Martirial Spirituality: A Latin American Faith Experience

Espiritualidad Martirial: una experiencia de fe latinoamericana.

Daniel Carvalho da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-8700-4113

1 Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Goiânia-GO; Brasil


Resumo

O presente artigo traz à baila uma reflexão teórico-narrativa acerca daquela que tem sido chamada «Espiritualidade Martirial». A conceituação sobre espiritualidade e martírio deu-se por meio de pesquisa exploratório-bibliográfica. A discussão central foi tecida em diálogo, sobretudo, com os estudos teológicos de Casaldáliga, Sobrino e Gutierrez. As conclusões apontam no sentido de que a Espiritualidade Martirial não está relacionada ao desejo de ser mártir. Tampouco o martírio relaciona-se à concepção de sacrifício cruento como redentor de pecado. A Espiritualidade Martirial diz respeito à fidelidade ao Evangelho do perseguido e mártir, Jesus de Nazaré. De igual modo, diz respeito à fidelidade à realidade histórica atual e concreta na qual o cristão deve anunciar boas notícias aos pobres e denunciar a injustiça estrutural. Por fim, diz respeito à memória da morte dos inocentes e à fileira dos seguidores de Jesus que foram martirizados.

Palavras-chave: Espiritualidade; Martírio; Espírito de Jesus; Perseguição; Memória

Abstract

This article brings up a theoretical-narrative reflection on what has been called «Martyrial Spirituality». The conceptualization of spirituality and martyrdom took place through exploratory-bibliographic research. The central discussion was woven in dialogue, above all, with the theological studies of Casaldáliga, Sobrino and Gutierrez. The conclusions point in the sense that Martyrdom Spirituality is not related to the desire to be a martyr. Nor is martyrdom related to the conception of the bloody sacrifice as the redeemer of sin. Martyrdom Spirituality concerns fidelity to the Gospel of the persecuted and martyr, Jesus of Nazareth. Likewise, it concerns fidelity to the current and concrete historical reality in which the Christian must announce good news to the poor and denounce structural injustice. Finally, it concerns the memory of the death of the innocent and the line of followers of Jesus who were martyred.

Keywords: Spirituality; Martyrdom; Spirit of Jesus; Persecution; Memory

Resumen

Este artículo plantea una reflexión teórico-narrativa sobre lo que se ha denominado «Espiritualidad martirial». La conceptualización de la espiritualidad y el martirio se realizó a través de una investigación exploratorio-bibliográfica. La discusión central se tejió en diálogo, sobre todo, con los estudios teológicos de Casaldáliga, Sobrino y Gutiérrez. Las conclusiones apuntan en el sentido de que la espiritualidad del martirio no está relacionada con el deseo de ser mártir. El martirio tampoco está relacionado con la concepción del sacrificio sangriento como redentor del pecado. La espiritualidad del martirio se refiere a la fidelidad al Evangelio del perseguido y mártir, Jesús de Nazaret. Asimismo, se trata de la fidelidad a la realidad histórica actual y concreta en la que el cristiano debe anunciar la buena nueva a los pobres y denunciar la injusticia estructural. Finalmente, se trata del recuerdo de la muerte de los inocentes y de la línea de seguidores de Jesús que fueron martirizados.

Palabras clave: Espiritualidad; Martirio; Espíritu de Jesús; Persecución; Memoria.

Introdução

No dia 11 de outubro de 1976 foi assassinado, pela polícia militar, em Ribeirão Bonito, um pequeno vilarejo que surgia no interior do Estado de Mato Grosso, dentro do território eclesial da Prelazia de São Félix do Araguaia, o missionário jesuíta João Bosco Penido Burnier. O fato se deu quando ele e o bispo Pedro Casaldáliga tentavam libertar duas camponesas da tortura cometida pelos policiais em razão de conflitos fundiários na região. Em memória daquele martírio construiu-se no vilarejo, atualmente sede do município de Ribeirão Cascalheira, o Santuário dos Mártires da Caminhada Latino-Americana ao qual acorrem pessoas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) de todo o Brasil por ocasião das romarias celebradas lá. Para comemorar os vinte e cinco anos do martírio do padre João Bosco, nos dias 17 e 18 de junho de 2001, realizou-se uma grande romaria. Durante a preparação que a antecedeu, levou-se a termo a ideia de criar a Irmandade dos Mártires da Caminhada: uma fraternidade comprometida a manter vivas as memórias dos mortos na luta por justiça social e em defesa dos direitos humanos na América Latina. Composta por alguns familiares dos mártires, comunidades cristãs, grupos ligados às causas sociais e pessoas que acreditam na possibilidade de um mundo mais justo e fraterno, a Irmandade busca iluminar suas práticas com o Evangelho do primeiro mártir do cristianismo, Jesus de Nazaré.

Nas liturgias, encontros e subsídios da Irmandade é comum serem feitas menções à dita «Espiritualidade Martirial». Por um lado, parece tratar-se de algo muito concreto. O próprio Jesus em seu discurso de despedida ordenou que seus discípulos amassem-se uns aos outros como Ele mesmo havia amado e afirmou que o amor maior é dar a vida pelos amigos (Cf. Jo 15,12-13). Mas, por outro lado, o conceito «espiritualidade» é, para empregar as palavras de Oliveira1 bastante «multifacetado e polissêmico» e, ademais, pensar o martírio como paradigma orientador da existência pessoal, nem sempre é uma coisa simples de ser entendida. Inclusive, entre os próprios membros da Irmandade há disparidade na compreensão. Enquanto uns afirmam que esquecer os mártires seria o mesmo que encerrar o Evangelho2, outros asseveram ser preciso dizer «adeus» aos mártires3.

Conclui-se, portanto, que se faz necessária uma reflexão mais sistemática acerca da tal Espiritualidade Martirial. Aqui, propomo-nos a fazê-la, colocando-nos em diálogo com a produção de teólogos como o bispo catalão que foi prelado de São Félix do Araguaia - MT, Pedro Casaldáliga (1928-2020); o jesuíta espanhol e radicado em El Salvador, Jon Sobrino (1938-) e; por fim, o dominicano peruano, considerado como o pai da Teologia da Libertação, Gustavo Gutierrez (1928-). O estudo é apresentado não somente no âmbito teórico. Por isso, empregamos na exposição o estilo narrativo com o qual estão recheados os famosos textos dos místicos clássicos, como João da Cruz e Tereza d’Ávila, e a própria Bíblia. Mas fazemo- lo, de modo especial, a exemplo da obra pontualmente narrativa de Gutierrez - Beber no próprio poço - na qual aponta, entre tantos outros elementos, o sangue dos mártires, como fonte da espiritualidade própria do cristianismo de libertação4 na América Latina.

Os teólogos evocados anteriormente, em diversos escritos tergiversam de algum modo a Espiritualidade Martirial. E o fazem sempre sob o guarda-chuva da espiritualidade vivida na América Latina, sobretudo nos âmbitos eclesiais onde a Teologia da Libertação era nota característica. Consequentemente, suas reflexões teológicas também partem da epistemologia produzida pela corrente de teólogos da libertação à qual pertencem. Ademais, as experiências dolorosas dos assassinatos de pessoas próximas a Casaldáliga (o padre João Bosco) e a Sobrino (tanto Romero quanto os jesuítas de sua comunidade em El Salvador) marcaram profundamente suas vidas e suas compreensões acerca do martírio cristão contemporâneo a eles. Outros autores ajudarão a compreender os conceitos espiritualidade e martírio, bem como o contexto antropológico, sociológico e teológico latino-americano e, de maneira especial, brasileiro, no qual atualmente a Espiritualidade Martirial encontra razão de ser. Nosso estudo traz à baila questões relacionadas à dimensão sacrificial do martírio e sua contraposição ao desejo pessoal da morte. Por fim, apresentamos uma síntese do constructo teórico disponível acerca da teologia e da Espiritualidade Martirial a partir de Sobrino que, parece-nos, é quem mais se aprofundou na questão.

1. Espiritualidade enquanto conceito

O tema «espiritualidade» não é novo, nem pertence a uma única cultura ou religião. No entanto, os estudos acerca da espiritualidade têm aumentado nas últimas décadas de forma bastante significativa. De acordo com M. N. C. Catré e seus pares5, o surgimento da ideia de espiritualidade está vinculado à gênese das religiões; nomeadamente: o confucionismo, o zoroastrismo, a tradição védica e o budismo. Ainda conforme os autores, a filosofia grega e a revelação judaica também são tributárias desta mesma raiz e foram, no medievo ocidental, justapostos pela escolástica e a patrística cristãs. No Ocidente, marcada pela cultura judaico- cristã, a espiritualidade passou a ser compreendida como um modo de aperfeiçoar a vida de acordo com a vontade divina.

A compreensão hodierna sobre espiritualidade, no entanto, é bastante mais plural e nem sempre tem conotações religiosas6. Nesse estudo, todavia, deter-nos-emos sobre aquilo que diz respeito à espiritualidade cristã e, mais especificamente, sobre a martirial, entendida como herdeira ou irmã da espiritualidade libertadora. Concordamos com Bingemer quando afirma que nas décadas de 1970 e 1980 «a Teologia da Libertação marcou fortemente o mundo eclesial latino-americano e brasileiro» e que «houve toda uma produção sobre espiritualidade na linha da libertação que procurava integrar experiência e práxis da justiça», mas, que «hoje a situação do mundo, e também da Igreja, é diferente» e ainda que «por toda parte, se respira uma sede de comunicação com a transcendência, tenha ela o nome que tiver»7. Ao passo que situamos a Espiritualidade Martirial no cabedal da espiritualidade da libertação, a afirmação de Bingemer poderia parecer afirmar que tal experiência de fé ou referência teológica tenha caducado. De fato, atualmente diminui o número de cristãos que se identificam com a Teologia da Libertação no Brasil. Contudo, a Irmandade dos Mártires da Caminhada tem crescido quantitativamente nos últimos anos. Além disso, acreditamos ainda que uma experiência de fé, por menor que seja o grupo que a professe, merece ser refletida pelos teólogos e cientistas da religião.

Para levar adiante tal empreita, retomamos uma definição de C. Boff que distingue o conceito de espiritualidade desde os prismas da antropologia e da teologia. Diz o autor:

Antropologicamente, [espiritualidade] trata-se do espírito humano: as atitudes de fundo com que se milita, as causas e motivações que sustentam o próprio compromisso. É o que empolga, entusiasma. É a paixão que sustenta e move a ação. Mas teologicamente e mais radicalmente, refere-se ao Espírito de Deus, às inspirações, luzes e energias que infunde no cristão comprometimento na política. É a paixão de Deus em nossa vida, o entusiasmo que infunde o Espírito de Deus em nossas ações8.

Essa pesquisa seguirá, obviamente, em primeiro nível de proximidade, o segundo aspecto teológico destacado por C. Boff. Por isso, parece coerente revisitar a teologia católica para aprofundar, também em caráter histórico, como foi e é compreendida a espiritualidade cristã no catolicismo. O primeiro passo, certamente, tange a relação nem sempre clara entre espírito e espiritualidade. Sobre tal, a indagação de Daniélou é imperiosa. Ei-la:

Quando falamos de ‘espírito’, quando dizemos que ‘Deus é espírito’, o que queremos dizer? Falamos grego ou hebraico? Se falamos grego dizemos que Deus é imaterial, etc. Se falamos hebraico dizemos que Deus é um vento forte, uma tempestade, uma força irresistível. Daqui provêm todas as ambiguidades quando se fala de espiritualidade. A espiritualidade consiste em se tornar imaterial ou em ser animado pelo Espírito Santo? 9

Costa afirma que a tradição bíblica aponta para segunda opção e, nesse sentido, o espiritual está mesmo ligado à presença ativa de Deus. Apesar disso, o autor afirma:

No século XII, o termo spiritualitas (o qual, traduzido do grego pneumáticos é o precursor do nosso termo espiritualidade) começa a ser usado não só no seu sentido primitivo, como poder de Deus que anima a vida cristã, mas como «algo que diz respeito à alma enquanto em contraste com o corpo», com uma visão muito negativa da corporeidade10.

O resultado foi que a espiritualidade passou a ser um empreendimento pessoal em busca da perfeição. Assim, a categoria «teologia mística», cunhada pelo Areopagita para designar o conhecimento revelado aos cristãos quando eles se deixavam transformar por Deus, passou a ser empregado para traduzir certas técnicas de santificação da alma. A mística, nesse sentido, passou a ser compreendida não mais como a dimensão mais profunda da espiritualidade, mas como uma espécie de «recompensa da graça após a luta ascética, ou ainda, como um conjunto suspeito de experiências paranormais e de comportamentos estranhos»11. Tratava-se de uma distorção daquilo que era central nos primórdios do cristianismo: a introdução da vida humana no mistério de Cristo de modo a promover um crescente envolvimento comunitário e litúrgico que possibilitava uma abertura ao conhecimento revelado por Deus. Essa distorção, na compreensão de Costa, era o princípio da separação entre a teologia espiritual característica dos santos padres e uma nascente ciência da alma que resultaria, na contemporaneidade, como possibilidade de se falar em espiritualidades que independem da revelação de Deus e baseiam-se na progressão humana em direção a sua essência, seu autoconhecimento, sua felicidade.

De fato, hoje, fala-se sobre espiritualidades laicas, sem crenças, sem deuses12, sem igrejas13, sem religiões14, baseadas na meditação ou em outras técnicas de integração humana15. No âmbito do cristianismo, contudo, a espiritualidade continuou balizada entre a condução da vida pelo Espírito de Deus e as experiências místicas. No segundo caso, sempre ligada a experiências da alma como algo desvinculado do corpo. Não obstante, muitas outras ramificações identificadas como espiritualidade surgiram no contexto cristão. De modo geral, espiritualidade traduz a busca por uma existência alimentada ou preenchida de sentido pela relação com Deus. Daí provém os diversos adjetivos justapostos à palavra espiritualidade. As pessoas que alimentam sua fé na liturgia nomearão ao que experimentam por Espiritualidade Litúrgica16; os que buscam nutrir-se na Bíblia, Espiritualidade Bíblica17; os que perscrutam os desígnios divinos na luta por justiça social, Espiritualidade Militante18; os que vão pela via da oração, Espiritualidade Contemplativa; os que se integram a missões entre povos diferentes, Espiritualidade da Encarnação, e assim por diante. Até que se possa falar de espiritualidade matrimonial, laical, dos ministros ordenados, catequética, ativa, histórica, do trabalho, da pregação e outras19.

Nesse contexto eclesial em que «espiritualidade» designa um modo de viver os valores do Evangelho e alimentar a relação pessoal com Deus, os teólogos da libertação apontaram à necessidade de se refletir sistematicamente e publicar estudos acerca da Espiritualidade da Libertação. Os primeiros a ensaiarem tal tessitura foram Gutierrez20, Casaldáliga e Vigil21, e Sobrino22. Todos nas décadas de 1970 e 1980. Sobrino, sendo jesuíta e professor de teologia na Universidade Centro-Americana (UCA), em El Salvador, ficou profundamente marcado pelo assassinato de Romero, de quem era assessor, em 198023, e dos seis jesuítas com quem morava, em 198924. A partir de então sua teologia acerca da Espiritualidade da Libertação25 começou a apontar sempre mais na direção daquela que temos chamado Espiritualidade Martirial. Gutierrez também não temeu afirmar que «em toda espiritualidade sempre há uma dimensão de martírio»26.

2. O Espírito de Jesus e o Martírio

Se espiritualidade tem a ver com os impulsos do Espírito de Deus sobre nossas ações, ficamos tendidos a crer que, para refletir sobre uma Espiritualidade Martirial, é necessário buscar compreender que relação há entre o Espírito e o Martírio. E buscamos fazê-lo, suscintamente, aos moldes de uma pneumatologia bíblica com foco na espiritualidade martirial. C. Boff considera as seguintes questões acerca do Espírito no Antigo Testamento (doravante, AT):

É uma força psíquica e moral que investe de modo particular os dirigentes do povo. Derrama sobre eles as qualidades adequadas para bem conduzir o Povo de Deus, especialmente a força e a sabedoria. Numa concepção ainda primitiva, as primeiras intervenções do Espírito se manifestam de um modo bastante exterior através do transe, a possessão, o delírio, como se vê em Saul (cf. 1Sm 10,9-13; 19,20-24). Aí a «Ruah» se manifesta como uma força física ou mesmo cósmica, como um vento que pode arrebatar o profeta e transpô-lo para longe (assim com Elias: 1Rs 18,12; 2Rs 2,16; e com Habacuc: Dn 14,36-39). Posteriormente, o Espírito adquire conotação mais espiritual ou interior. Então ele aparece como princípio de vida nova, divina, sobrenatural (cf. Ez 36,25-28; Jl 3,1-5; Sl 51,12-14)27.

Ainda em conformidade a C. Boff28 recordamos os modos pelos quais a Ruah - palavra hebraica que significa vento, sopro, hálito divino, e que foi traduzida ao português por Espírito - atua no Antigo Testamento. Ela age nos libertadores Moisés (cf. Nm 11,17-25) e Josué (cf. Nm 27,18); nos juízes Otoniel (cf. jz 3,10) e Sansão (cf. Jz 13,25; 14,6); nos reis Saul (cf. 1Sm 10,5-6.10-12) e Davi (cf. 1Sm 16,10) e, por fim, agirá no messias esperado, que será pleno dos dons do Espírito (cf. Is 11,1-9) e ungido para redimir os sofredores (cf. Is 42, 1-4; 61,1-2). O Espírito, portanto, atua como força motriz que impulsiona para o bem coletivo.

No Novo Testamento, especialmente nos escritos lucanos, Jesus e seus discípulos são apresentados como aqueles que só agem movidos pelo Espírito (cf. Lc 3,16.21-23; 4,18; 10,21; 11,20; 12,12; At 2,1-4, 8,14-24; 11,12-16; 16,6-7; 19,1-7; 20,22-23). De fato, o Espírito de Deus, na compreensão bíblica, não pode ser equacionado isoladamente da vida e da prática de Jesus de Nazaré. Nessa perspectiva Congar afirma que «do ponto de vista do conteúdo, não há autonomia e muito menos disparidade de uma obra do Espírito em relação à de Cristo»29. Se for fato que a espiritualidade esteja vinculada aos impulsos do Espírito de Deus sobre o agir humano, e que também Jesus tenha agido sob tais impulsos, a tese de Aquino-Júnior se confirma:

A espiritualidade cristã tem a ver, fundamentalmente, com a experiência do Espírito de Jesus Cristo: viver segundo o seu Espírito, o que significa viver como ele viveu e do que ele viveu. Trata-se, portanto, de um modo concreto de viver e dinamizar a própria vida, conformando-a ou configurando-a a Jesus de Nazaré30.

Em Jesus, o Espírito e o Martírio se encontram. Não é por nada que Moltmann discorre sobre Jesus como o Deus crucificado, expressão da Trindade que sofre a paixão de cruz31. Sobrino apresenta uma chave de leitura possível para compreendermos a vida/práxis de Jesus em sua dimensão martirial: a perseguição. Diz o teólogo: «Consideramos a perseguição e o martírio uma unidade. O martírio não é visto como algo pontual, mas como culminação da perseguição, e a perseguição é vista como preparação e modo incipiente de martírio» e conclui: «Daqui em diante falaremos da Espiritualidade da Perseguição»32. Os evangelhos, no que lhes respeitam, apresentam a perseguição como bem-aventurança (cf. Mt 5,11; Lc 6,22) e Jesus como um perseguido: ainda criança, por Herodes (cf. Mt 2,13) e, depois, para ser morto sob os poderes do Templo e do império (cf. Mt 26,4-5; 27,11; Jo 10,39). Além disso, em cada um dos evangelhos sinóticos o próprio Jesus prenuncia três vezes sua morte (cf. Mt 16,21; 17,22-23; 20,18-19; Mc 8,31; 9,31; 10,33-34; Lc 9,22; 9,44; 18,31-33) que se efetiva na cruz romana (cf. Mc 15,25).

O termo mártir (do grego μάρτυς, mártys) significa testemunha. E o próprio Jesus é considerado a «testemunha fiel» (cf. Ap 1,5; 3,14), o mártir por excelência. Ele mesmo afirmou aos discípulos «Vocês serão minhas testemunhas» (At 1,8; Lc 24,48). Em decorrência disso, em certo sentido, todos os cristãos são mártires, isto é, testemunhas. De acordo com o registro de Eusébio, alguns bispos dos primeiros séculos assinavam suas cartas assim: «Aurélio Cirinio, mártir»33. O Catecismo da Igreja Católica assevera a respeito do testemunho da verdade para o qual Cristo veio ao mundo (cf. Jo 18,37) e para o qual também os cristãos somos conclamados (cf. 2 Tm 1,8): «O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao qual está unido pela caridade»34.

É importante destacar que o Espírito não induz Jesus ao martírio, mas consagra-o com a unção para «evangelizar os pobres (...) proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar o ano de graça do Senhor» (Lc 4,18-19). O Evangelho é boa notícia. Acontece que boas notícias para os pobres significam, indiscutivelmente, más notícias para os ricos. É o que afirma Lucas: «Bem aventurados os pobres» e ainda «Ai de vós, ricos» (cf. Lc 6,20-26). E o abismo entre os que acolhem o Evangelho como boa notícia e os que acolhem como má notícia é intransponível - essa é a afirmação da parábola de Lázaro e o rico (cf. Lc 16,19-31).

O fato é que levar boas notícias aos pobres incomoda aos poderes instituídos e aos poderosos da terra. Herodes, por meio dos fariseus, ameaçou Jesus de morte (cf. Lc 13,31). E Jesus mesmo advertiu aos discípulos que se protegessem dos homens que os entregariam ao sinédrio e os flagelariam nas sinagogas, e que os conduziriam à presença de governadores e reis para dar testemunho diante deles e das nações (cf. Mt 10,17-80). Mas, animou-lhes ao afirmar que, apesar disso, não deveriam calar-se (cf. Mt 10,27). Que não se amedrontassem diante dos que matam o corpo, mas, não matam a alma (cf. Mt 10,28). E ainda, que aquele que doasse a vida por causa dele, encontraria a Vida (cf. Mt 10, 39). O resultado é conhecido: quem não se cala é calado à força - quer seja na cruz, quer seja à bala.

O Espírito, portanto, impulsiona a evangelizar, recuperar visão, libertar presos e anunciar o tempo da graça. No mesmo sentido, Jesus foi ainda mais sintético acerca de sua missão: «Vim para que todos tenham vida e vida em abundância» (Jo 10,10). O Espírito de Jesus sustenta a fidelidade (cf. 1 Ts 5,25) dos discípulos e os encoraja para que não temam a morte e, assim, possam ir até as últimas consequências no anúncio da vida em plenitude para todos. Tal anúncio significa, concomitantemente, denúncia das situações em que a vida é violentada. Por sua vez, a violação da vida se dá sempre em decorrência da idolatria dos que buscam enriquecer-se35. Por isso, o confronto com aqueles que violentam a vida ou com quem estão coligados os violadores, sejam os poderes políticos, sejam os religiosos, é sempre iminente.

Tais implicações são lidas por Barros acerca do martírio de Romero:

Se a teologia latino-americana tentou reler a cristologia da paixão de Jesus, a partir de suas raízes históricas, a memória dos nossos mártires, como a de monsenhor Romero, nos ajuda a compreender o fundamental. Assim como Jesus, também Romero viu-se isolado e teve de defrontar-se com o poder político, assim como com o poder religioso. Muitos atestam que foi depois que Romero voltou de Roma em janeiro de 1980, sem que o Papa o tivesse recebido, nem dado nenhum sinal de apoio, que os paramilitares puderam discernir que já podiam matá-lo, sem provocar um incidente sério com Roma. E, de fato, não o provocou36.

Romero, arcebispo em San Salvador, colocou-se claramente contra a violação dos direitos fundamentais de garantia da dignidade humana exercida pela ditadura militar salvadorenha. Durante a ditadura (1979-1992), cerca de setenta e cinco mil pessoas foram mortas pelos militares. O arcebispo e sua igreja colocaram-se na contramão denunciando a barbárie e defendendo a justiça e a vida. Em decorrência disso, sua arquidiocese foi fortemente perseguida. Ele próprio chegou a afirmar que a perseguição que sofrera era o resultado de uma igreja que se converteu em conflitiva por fidelidade à evangelização37. Ela se tornou perseguida por causa da prática e da exigência da justiça38. Em suas palavras: «Porque não quer ser indiferente nem cumplice da situação de pecado e de violência estrutural»39. Por fim, recordou que a «A Igreja sofre o destino dos pobres: a perseguição»40 e ainda, que «A perseguição é uma nota característica da autenticidade da Igreja. Uma Igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta dos privilégios e do apoio da terra, essa Igreja deve ter medo! Não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo»41. Nenhuma novidade em relação ao Evangelho: o verdadeiro discípulo é aquele que abraça sua cruz e caminha na mesma estrada que Jesus caminhou (cf. Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23), movido pelo Espírito que quer renovar a vida e sustentar com dignidade aos povos (cf. Sl 104,30.16).

3. Martírio não é desejo de morte

O martírio de Romero - assim como o de Dorothy Stang42 (1931-2005), Josimo Tavares43 (1953-1986), Santo Dias44 (1942-1979), Nativo da Natividade45 (1953-1985) e tantos outros46 - é paradigmático. Eles sabiam que iriam morrer. Estavam sendo perseguidos. Sabiam que deveriam calar-se para não serem assassinados. Mas não se calaram. As irmãs Madalena e Beatrice47, no primeiro encontro da Irmandade dos Mártires, ocorrido em 2019, no Mosteiro da Anunciação da Cidade de Goiás - GO, lembraram que muitas acusações contra Josimo, vindas inclusive dos círculos eclesiásticos, diziam que ele estava «caçando a morte com as mãos». Ao que elas respondem: «Ninguém está procurando morte. É vida o que buscamos».

Josimo, poucos dias antes de ser morto, afirmou na assembleia diocesana de Tocantinópolis que:

«O discípulo não é maior do que o Mestre. Se perseguirem a mim, hão de perseguir vocês também». Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os defenderá? Quem lutará a seu favor? (...) É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora quero que vocês entendam o seguinte: tudo isso que está acontecendo é uma consequência lógica resultante do meu trabalho na luta e defesa pelos pobres, em prol do Evangelho que me levou a assumir até as últimas consequências48.

De igual modo, a grande maioria dos mártires, livres e conscientes, continuaram suas lutas, não por desejo de morrer, mas por comprometimento com as causas que defendiam e que, pela fé, compreendiam fazer em obediência ao mandamento (cf. Jo 15,13 e Lc 22,19) de Jesus de Nazaré, o Cristo; isto é: dar a vida, como ele fez e, em memória dele. Dar a vida é mais que morrer por uma causa, é também viver cada dia por ela.

Em antagonismo a esta compreensão do morrer em martírio, pensemos em Tereza d’Ávila (1515-1582) - a primeira mulher a ser declarada doutora da Igreja e «mãe da espiritualidade»49 - quando expressava seu desejo de encontrar a Cristo através da morte. Tomamos aqui seu poema «Versos nascidos do fogo do amor de Deus que tinha em Si»:

Não vive em mim meu viver, / e em tão alta vida espero / que morro de não morrer. / Esta divina união / com o amor por quem eu vivo / faz de Deus o meu cativo / e livre meu coração; / mas causa em mim tal paixão / ver a Deus em meu poder / que morro de não morrer. / Ai! como é longa esta vida! / Que duros estes desterros, / este cárcere e estes ferros / em que a alma está metida! / Só esperar a saída / me causa tanto sofrer / que morro de não morrer. / Ai! Que vida tão amarga / se não se goza o Senhor! / E, se tão doce é o amor, / não o é a esperança larga; / tire-me Deus esta carga / tão dura de padecer, / que morro de não morrer. / Somente com a confiança / vivo de que hei de morrer; / porque, morrendo, o viver / assegura-me a esperança: / morte em que o viver se alcança, / bem cedo te quero ver, / que morro de não morrer. / Olha quanto o amor é forte; / vida, não sejas molesta; / vê que em te perderes resta / de te ganhares a sorte; / venha já a doce morte, / venha-me a morte a correr, / que morro de não morrer. / Essa que no alto deriva / é a vida verdadeira: / até que torne a vida à poeira, / não se goza estando viva; / morte, não sejas esquiva; / morrendo estou em viver, / que morro de não morrer. / Vida, como obsequiá-lo, / a meu Deus, que vive em mi, / senão perdendo-te a ti, / por melhor poder gozá-lo? / Quero morrendo alcançá-lo, / pois só Ele é o meu querer, / que morro de não morrer. / Estando ausente de ti, / que vida pudera ter, / senão morte padecer / a maior que jamais vi? / Lástima tenho de mim, / por tamanho mal sofrer, / que morro de não morrer50.

Desde os primórdios do cristianismo a fé na ressurreição da carne fez com que os cristãos não temessem a morte. O próprio Paulo afirmou que morrer é um ganho, uma vez que significa estar com Cristo (Fl 1,21-23). Mas afirmou também que a perseguição (At 9,16; 16,19-24; 2 Cor 11,23) dá-se no corpo físico, por meio de açoites, prisões, angústias e abatimentos. Desse modo, conclui o apóstolo: «embora vivamos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus seja manifestada em nossa carne mortal» (2 Cor 4,11). Tanto Paulo quanto Jesus, religiosa e culturalmente judeus, compreendem o corpo como uma unidade - corpo, alma e espírito (cf. 1 Ts 5,23), um campo onde atuam as forças da carne e do espírito51 - sem que haja uma dicotomia ontológica entre as dimensões corpo e alma. Portanto, a morte, tanto nesse caso como em todos aqueles dos cristãos perseguidos pelo Império Romano, nos primeiros séculos da era cristã, é consequência da pregação e do testemunho do Evangelho e não de busca pela morte como libertação da alma cativa no corpo.

A experiência religiosa e espiritual de Teresa d’Ávila situa-se noutro contexto, fortemente marcado pela compreensão grega de espírito e pelo maniqueísmo que contrapunha alma e corpo hierarquizando a relação entre ambos de modo a superestimar a primeira em detrimento do segundo. Enquanto para Teresa o encontro com o Cristo se daria na ressurreição, quando a alma se libertaria do corpo, para os mártires do terceiro mundo, o encontro com Cristo dar-se-á, em primeiro lugar, no trato com os sedentos, famintos, migrantes, descamisados, doentes e detentos e no bem-fazer a eles (cf. Mt 25,31-46). A história real e concreta vivida cotidianamente no mundo não é assumida por Teresa. O que está diante de seus olhos são as realidades interiores, as disposições da alma. Para os mártires latino-americanos, no entanto, em primeiro lugar está a realidade histórica; aquela mesma na qual o verbo quis encarnar-se, tornar-se corporeidade, para, além de fazer o bem e curar os males, apontar a falência religiosa e a corrupção do Templo, bem como para chamar a Herodes de raposa velha (Lc 13,31-32). Tudo isso aponta na direção de que a relação entre a humanidade assumida por Jesus e a divindade apresentada por ele como Pai, não se dá de modo desvinculado da realidade histórica. Dentro do prisma do cristianismo de libertação, é interessante recordar Mo Sung:

Os próprios teólogos da libertação insistiram muito no fato de que a TL era o momento segundo e que o momento primeiro não era a análise da sociedade através das ciências sociais, mas sim as práticas de libertação e o momento «zero» seriam a experiência espiritual de encontrar a pessoa de Jesus no rosto do pobre52.

Nesse sentido, fica evidente que a Espiritualidade Martirial está diretamente ligada à assunção da conflitualidade presente no mundo. Aliás, significa tomar o partido dos perdedores. A Teologia da Libertação é, portanto, a reflexão que se faz a partir de tal prática. Mas, a práxis, a atuação dos cristãos juntos aos últimos da sociedade é que é o primordial.

Diante de todo o exposto, podemos concordar com o que afirmou Hartog «O verdadeiro mártir não busca o martírio, mas espera a vontade de Deus ir se revelando»53. A vontade do Deus revelado em Jesus é vida em abundância, não morte como desejava Teresa. Há que se recordar ainda que o montanismo - movimento cristão descrito por Eusébio de Cesareia54 em sua História Eclesiástica e retomado pelas pesquisas de Tabbernee e Schepelern55, afirmava como atitudes centrais à vivência da fé: 1) a profecia; 2) o ascetismo e 3) o martírio voluntário e - foi fortemente rechaçado pelos padres apologetas56, de um modo tal que o martírio voluntário ficou, com razão, expressamente condenado como contrário à fé cristã. Do mesmo modo, o suicídio, a eutanásia e o aborto sempre foram concebidos como avessos à fé católica. Nesse sentido, buscar a morte através do martírio jamais seria uma atitude louvável, uma vez que não valoriza a vida sobre a qual Jesus afirmou ter vindo para que todos a tivessem em plenitude.

4. A lógica do sacrifício subjacente ao martírio

Ao martírio sempre subjaz uma força transformadora. É difícil ficar indiferente à morte de alguém indefeso que se entrega em nome de uma causa. Aliás, ainda que lhes faltem causas é comum no catolicismo popular brasileiro que os mortos de forma trágica ou violenta sejam, de certo modo, sacralizados pelo povo. São os casos, por exemplo, de Jandira «a prostituta milagreira» em Campinas, interior de São Paulo; de Maria Degolada, em Porto Alegre; ou ainda, das «treze almas benditas», em referência às vítimas carbonizadas no elevador do Edifício Joelma, em 1974, na cidade de São Paulo57. Desde o prisma cristão é também impossível desvincular aquele que doa totalmente a vida da figura do Servo de Javé em seu quarto canto:

eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava (...) foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que havia de trazer-nos paz, caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados. (...) Foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu a boca. Porém ele se oferece a sua vida como sacrifício expiatório. (...) o justo, meu Servo, justificará a muitos e levará sobre si as suas transgressões (...) visto que entregou a si mesmo à morte e foi contado entre os criminosos, mas na verdade levou sobre si o pecado de muitos e pelos criminosos fez intercessão. (Is 53,4-12 - com supressões).

Ellacuría58, ao escrever sobre a presença histórica de Cristo crucificado nos povos da América Latina - e especialmente de El Salvador, onde viveu até ser assassinado - sublinhou o duplo aspecto que o Servo desempenha. Por um lado, ele toma o pecado sobre si para ser destruído com ele, por outro, será luz e salvação para os povos. Essa profecia acerca do Servo, desde muito cedo, foi aplicada ao martírio de Jesus. O evangelista João (1,29) narra que João Batista, ao indicar Jesus aos seus discípulos, utiliza o vocábulo aramaico talya, comumente traduzido por «cordeiro». No entanto, conforme Dautzenberg59, talya pode significar também «servo» ou «menino». Na sequência do mesmo texto (Jo 1,34), o batista afirma: «ele é o Eleito de Deus», numa clara alusão ao primeiro canto do Servo de Javé em Is 42,1+, para reafirmar que Jesus é o servidor sobre o qual Deus colocou seu Espírito. De igual modo, Lucas, ao registrar seu evangelho, retoma o quarto canto do Servo, citado diretamente acima, para dar a compreender o suplício do mestre galileu: «Ele foi contado entre os iníquos» (Lc 22,37) e ainda «Eram conduzidos também dois malfeitores para serem executados com ele» (Lc 23,32).

O judaísmo, por sua vez, esteve ligado ao sacrifício cruento, como prescrevia a lei de Moisés (cf. Es 3,2), especialmente depois do retorno do exílio na Babilônia e da reconstrução do Templo de Jerusalém. Dito de modo muito sucinto, o sacrifício de animais no Templo tinha a função de sanar o pecado do povo e reaproximá-lo de Deus (cf. Lv 16,1-30). Mas ateologia bíblica compreende que todo o sacrifício previsto na primeira aliança foi levado a termo na crucificação de Jesus (cf. Hb 9,1-14) e que, portanto, entre os cristãos não haveria mais necessidade de sacrifícios. O «Cordeiro que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29) suplantou todos os demais cordeiros sacrificados no Templo. Jesus mesmo disse: «misericórdia quero, e não o sacrifício» (Mt 9,13). Ademais, desde o Antigo Testamento se sabe que os sacrifícios humanos são abomináveis a Javé (Dt 12,31; 18,10; Jr 7,31; 19,5; 32,35; Ez 16,20s).

Todo modo, é inegável a força simbólica do martírio, capaz de mobilizar e motivar cada pessoa desde a sua interioridade60. Taborda fala dessa capacidade que o simbólico tem de influir nas ações sociais práticas e dá como exemplo a destruição da cadeia de Ribeirão Bonito (atualmente Ribeirão Cascalheira), depois do assassinato do padre João Bosco.

Nessa prisão haviam estado presas as duas mulheres em cuja defesa Pe. Burnier e Dom Pedro Casaldáliga haviam saído. Nessa prisão, pe. Burnier recebeu o tiro fatal. No dia seguinte, o povo se dirigiu para lá, destruiu a cadeia e implantou uma cruz em seu lugar. Na sua dimensão prática, o gesto foi insignificante, pois uma cadeiazinha como aquela se constrói num dia sem demasiados gastos. Mas, depois desse gesto, o povo já não era o mesmo. Tinha um compromisso maior de luta em comum pela justiça e pelo direito61.

De fato o martírio tem um aspecto libertador, mas ele se dá em vista da fidelidade do testemunho que provoca os demais à ação, e não em decorrência do sacrifício. Além do mais, como bem disse Mo Sung, não teria muito sentido elogiar ou desejar sacrifícios cruentos «em nome da luta por uma sociedade sem sacrifícios»62.

Retomamos a resposta de José M. Vigil quando questionado acerca do sacrifício em geral relacionado ao martírio. Sua fala partiu da metáfora bíblica:

Abraão se pôs obediente no caminho, sem meta fixa, sabendo somente que deveria encaminhar-se à «terra que Eu te mostrarei». Essa Terra Prometida, que está aí adiante, mas não precisamente ao alcance da mão, senão um horizonte desde o qual se dá força para caminhar, é também a Utopia «absoluta» pela qual os caminhantes são capazes de deixar e de postergar (sacrificar) tudo, até o próprio filho Isaque. Fazer possível a realização da Promessa, viver e lutar pela Terra Nova prometida... se constitui na tarefa da vida humana, na sua missão sobre a Terra63.

No fundo a afirmação é de que quando se tem um ideal profundo, não se medem esforços para atingi-lo. Nesse sentido, é possível afirmar que o sacrifício é sempre consequência, coroação no final de uma caminhada, mas, jamais causa da caminhada ou ponto de partida.

A palavra Sacrifício vem do latim sacrum-facere que significa fazer, tornar sagrado64. O ato de tornar sagrado depende do oferecimento, da entrega daquilo que se quer oferecer, doar, sacrificar a Deus. E o martírio foi sempre entendido exatamente como doação da vida. Aldazábal65 afirma ainda que oferecimento «supõe sempre uma renúncia (imolação) de si ou das próprias posses». Nesse sentido, quando o padre João Bosco, na agonia da morte, oferecia seu sofrimento pelos indígenas, pelo povo...66 ele estava afirmando que aquela morte era resultado da entrega de sua vida, da doação cotidiana que fazia desde tempos anteriores e que agora oferecia, entregava, doava inteira e plenamente, uma vez que se desprendia de si mesmo completamente.

Uma analogia que pode ajudar a compreender a acepção acerca do sacrifício que destacamos aqui pode ser feita em referência à primeira frase da Introdução Geral do Ritual de Benção da Igreja Católica. A saber: «Fonte e origem de toda benção é Deus, bendito acima de tudo»67. Para compreendê-la, busquemos a estrutura dos textos de benção. Será sempre um bendizer a Deus pelo elemento ou pessoa que se quer abençoar68. Ademais, o conteúdo central das bênçãos maiores - como a da água na vigília pascal ou aquelas das preces de ordenação - é a memória das ações de Deus realizadas na história da salvação. No caso da benção da água, o texto recorda e bendiz pela água da criação, pela do dilúvio, pela do mar vermelho e pela do peito aberto de Jesus na cruz para, somente depois disso, invocar «desça sobre toda esta água a força do Espírito Santo»69. O central não é a invocação da benção, mas a ação de graças a Deus pela água. Abençoar requer bendizer a Deus. Sacrificar requer oferecer a Deus. Aquilo sobre o qual se bendiz a Deus torna-se bento, abençoado. Aquilo que se oferece a Deus torna-se sacro, sacrificado.

Em latim há duas palavras para designar o ato de tornar uma coisa sagrada, a saber, consacrare (consagrar) e sacrificium (sacrifício). No geral, as coisas e pessoas - como os religiosos e os altares - são «consagradas» e não «sacrificadas» para o serviço de Deus ou o uso litúrgico. Não é o que ocorre com a Eucaristia. No diálogo introdutório à anáfora, aquele que preside convida: «Orai, irmãos, para que o nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo- poderoso»70. O que é sacrificado esteve sempre mais relacionado ao alimento apresentado a Deus e, no contexto judaico, aos animais usados para a expiação. Todo modo, a relação que expusemos anteriormente não está excluída. Pensemos, por exemplo, em Inácio de Antioquia em sua carta aos romanos escrita a caminho de sua execução: «Deixai-me ser alimento das feras; por elas pode-se alcançar a Deus. Sou o trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o pão puro de Cristo»71.

De outro modo, Dussel72 afirma:

Martírio, profecia e eucaristia são uma e a mesma coisa. Por isso a comunidade de base primitiva era um grupo de crentes que testemunhavam a sua fé, na comunidade de bens onde todos tinham o necessário, e por isso, «‘rompiam o pão» fruto de seu trabalho, na justiça e na alegria (At 2,46 e 4,32). Na Eucaristia se oferece o «pão da vida», pão que é fruto do trabalho na justiça oferecido pela comunidade. No martírio o corpo do mártir é o pão do sacrifício («Este é o meu corpo»), pão da vida que se imola pela denúncia de que o pão não é comido pelo pobre («... e me destes de comer!») [em referência a Eclo 34,25: «escasso alimento é o sustento do pobre»], mas desapropriado, e por isso causa de sua pobreza, de seu sofrimento, de sua morte.

Nesse sentido (e somente nesse) o martírio pode ser identificado ao sacrifício, mas em clara contraposição à teologia que apregoava a necessidade do holocausto como via de perdão dos pecados. O sangue debaixo do altar grita a Deus por justiça (Ap 6,9-10), mas não justifica o pecado. O martírio é, então, o último ato de uma vida inteira doada em nome da justiça e da fé no Deus de Jesus de Nazaré. Tão doada que chega à morte.

Nesse âmbito, Gutierrez73 é categórico: 1) a admiração e o respeito pelo martírio não fazem esquecer a crueldade que o envolve e a repulsa às condições que permitem tal feita; 2) o martírio é algo que encontramos, não que buscamos; 3) queremos nossas testemunhas vivas para que continuem a ajudar o povo; 4) não desejamos e nem prestamos culto à morte; 5) o martírio será vivido, caso um dia ele seja imposto a nós, com a simplicidade de quem cumpre mais uma tarefa74; 6) a esperança da ressurreição não significa subterfúgio para a história concreta.

De fato, testemunhar a páscoa é anunciar que a vida vence a morte, mas, sobretudo, é dizer que não aceitamos que morra um pobre condenado à cruz. No fundo, isso implica aquilo que Barros afirma sobre a própria paixão de Jesus:

A espiritualidade da caminhada e, a partir dela, as teologias da libertação (teologias cristãs negras, indígenas, feministas e outras) têm nos ensinado a descontruir a teologia sacrificial e a compreender a paixão e ressurreição de Jesus nessa dimensão martirial, como testemunho do projeto divino no mundo e proposta de nova vida no Espírito75.

Desse modo, a constante acusação de que uma espiritualidade que tenha o martírio como ponto de referência reforça a teologia do sacrifício cruento - mesmo aqueles promovidos pelo deus-mercado - cai por terra. O Que há é luta para que o pobre viva - já que, como afirmara Romero76, esta é a glória de Deus. O que há é a assunção solidária das cruzes das vítimas, a fim de descer delas os povos crucificados77. O que há é fidelidade ao Espírito de Jesus78. Parafraseando L. Boff, citado por Sobrino, não pode haver uma teologia do martírio, mas, sim, deve haver uma teologia que se faz a partir do martírio79. O mesmo se pode afirmar sobre a espiritualidade. Em seu aspecto libertador, a espiritualidade martirial é aquela feita, assumida e vivida sob o signo do martírio, mas não em vista dele.

5. A síntese teórica de Sobrino

Interessante e recordado por Bombonatto80 é o fato de que foi Romero quem pediu a Sobrino que se aprofundasse nos estudos teológicos a partir do martírio. A velha Europa pensava a dimensão martirial como um dado do cristianismo primitivo, mas não com uma realidade contemporânea81. Em face da perseguição à ala da Igreja de El Salvador que denunciava a repressão e o extermínio da população por parte do governo militar, Sobrino desenvolveu em sua teologia questões como: «O que é um mártir?» «O que fazer com nossos mártires?» e «O que exatamente confere sentido ao martírio?»82. Nessa seção debruçamo- nos sobre duas sínteses apresentadas pelo próprio autor que tendem a responder tais indagações. Uma foi publicada, em 2008, numa coletânea de textos sobre Casaldáliga. Outra, de 2014, cumpre o papel de prefácio no livro de Aquino-Júnior Viver segundo o espírito de Jesus Cristo.

Mártir, conforme Sobrino, não é somente quem morre em decorrência do ódio à fé cristã - como se entendia desde o Coliseu -, mas também aquele que tomba em decorrência do ódio à justiça. Seu sentido está relacionado à cruz de Jesus, como clímax do seguimento dele, e aponta à ressurreição. Por isso, é importante celebrar as memórias dos mártires, carregadas com a força do anúncio do Reinado de Deus e da denúncia das estruturas de pecado e morte às quais ele chama «antirreino». Porque então, nesse sentido, existem mártires? Dirá Sobrino: porque houve defensores das vítimas83. Alguém viu a miséria do povo, escutou seu clamor contra os opressores, teve compaixão e foi em seu auxílio (Ex 3,7).

Sobrino destaca ainda que o martírio primordial é aquele das vítimas e cita, como uma das fontes de afirmação desta tese, um artigo de Casaldáliga publicado na Revista Concilium, em 1983, intitulado: «Os índios ‘crucificados’, um caso anônimo de martírio coletivo». Com tal assertiva, Sobrino salienta que, assim como Romero e Ellacuría teriam asseverado acerca dos pobres exterminados em El Salvador, Casaldáliga estaria proclamando sobre os indígenas brasileiros: «Vocês são o servo sofredor de Javé. Vocês são Cristo crucificado»84. De certo modo, pode-se assegurar a partir daí que, para Sobrino existem três categorias de martírio: 1) pela afirmação ou defesa da fé em Jesus Cristo; 2) pela luta por justiça, como Jesus de Nazaré, aos quais ele intitula «mártires jesuânicos», e 3) pela vitimização indefesa, tais quais aquelas a que foram submetidos o Servo de Javé e o crucificado.

Os primeiros são mais conhecidos, posto que são canonizados como santos pela Igreja Católica. Os segundos são, pelo menos na América Latina, reconhecidos como Mártires da Caminhada. Os terceiros, no entanto, são desconhecidos, ou, para sermos mais precisos, «des-reconhecidos». Comumente, para que um assassinado seja assumido como mártir, supõe-se que ele cultivasse uma santidade subjetiva ou que uma causa justa o tenha conduzido à morte. Contudo, de acordo com Sobrino85, são as vítimas indefesas aquelas que realmente «completam em sua carne o que falta à paixão de Cristo» (cf. Cl 1,24). As vítimas mais preclaras do mistério da iniquidade - o pecado - são aquelas vitimadas pela fome, pelas guerras, pelos genocídios, pelas chacinas, pelas necropolíticas, pelos terrorismos ou quaisquer tipos de barbárie. É o caso único dos Santos Inocentes, de cujo massacre relatado por Mateus (2,16-18) no evangelho da infância de Jesus, a Igreja assumiu em seu cânon, celebrando-os em vinte e oito de dezembro.

Sobrino86, ao expor o que entendia como pressupostos fundamentais para uma espiritualidade da libertação, destacou três aspectos concretos: 1) a lealdade / honradez com o real; 2) a fidelidade ao real; e, por fim, 3) a correspondência e o deixar-se conduzir pelo «mais» da realidade. Em síntese, trata-se de afirmar que é somente a partir da história concreta e marcada pela conflitualidade, sem escamoteações, que a prática da libertação pode ser assumida. Aliás, conforme a exegese de Schokel na Bíblia do Peregrino87, o pecado contra o Espírito Santo - a blasfêmia (cf. Mc 3,28-29) -, diz respeito ao fato de afirmar uma falsidade em desacordo com o real. Este é o primeiro passo. O seguinte refere-se à possibilidade, depois de haver abstraído a realidade, de optar pelo caminho mais fácil e não ser coerente com o que a realidade histórica e o Evangelho exigem como ação ética e profética adequadas. Há que se posicionar com clareza frente à realidade, em compromisso fiel. Por fim, a espiritualidade consiste em viver na esperança e no amor, ainda que muitas vezes não se enxergue os motivos, mas, confiante de que o próprio confronto com a realidade apontará os caminhos de libertação.

Esses pressupostos, no entanto, só encontram sentido ao passo que sejam vividos como experiência de Deus. Isto é, a fidelidade ao real tem que ser vivida como um modo de corresponder à revelação e à comunicação de Deus. Essa é a questão central para a espiritualidade: a correlação entre a revelação de Deus e a história real. Isso pressupõe um olhar que não considere a revelação concluída em Cristo, mas que entenda que Deus não está à margem da história e, ao contrário, continua manifestando-se nela88. Essa mudança de olhar sobre a realidade é também uma das concepções que aventamos quando falamos sobre espiritualidade martirial. Sobrino a chamou «espiritualidade teologal de Jesus».

Dito sistematicamente, em Jesus aparecem unidas a fidelidade ao Reino de Deus e ao Deus do Reino, sua prática histórica e sua experiência do Pai. Na prática de humanizar a outros, Jesus aparece como o homem ante Deus; na prática de irmanar a outros, aparece como o Filho ante o Pai. Ele é o homem espiritual. Chama a Deus «Pai» e nisso mostra sua explícita relação com ele de obediência e confiança; mas o «invoca como Pai em uma ação histórico-libertadora». E esse Pai para Jesus continua sendo Deus, maior, «imanipulável». E Jesus o deixa ser Deus89.

Conforme Sobrino, foi a vida em El Salvador que o despertou ao fato central da história para o qual a teologia, muitas vezes, fecha os olhos: «não basta dizer que Jesus morreu; há que acrescentar que foi morto. E há que insistir em que essa morte foi assassinato. Assim, a cruz do calvário recobra vigor e rigor histórico»90. A teologia de Sobrino, feita a partir do martírio, recorda que Jesus foi mártir, recorda os milhares que foram mártires depois de Jesus e ainda os que hoje são martirizados. O fundamento sólido de tal experiência de fé e elaboração teológica são os fatos de que o cristianismo tenha nascido de um mártir e não de «um Jesus qualquer», bem como de que o melhor da história cristã tenha raízes em mártires.

Considerações finais

Cipriano, ao instituir o jovem Aurélio como leitor da comunidade de Cartago, exortava a todos dizendo que é da leitura do Evangelho que os mártires são feitos91. De fato, como expusemos anteriormente, é o Evangelho vivido e anunciado por Jesus de Nazaré que dá sentido ao martírio. Ele provoca o comprometimento do cristão com a realidade. Ele aponta a necessidade de denunciar a injustiça e anunciar boas notícias aos pobres. Ele não promete vida fácil, mas perseguições e sofrimentos, inclusive na carne. Ele assegura a permanência de Jesus no cotidiano (cf. Mt 28,20) e o banquete na mesa do reino do Pai aos que forem fiéis até o fim (cf. Lc 22,28-30 e Mt 10,22). Mas, sobretudo, ele deixa o exemplo de Jesus (Jo 13,14), seu mandamento explícito «amar e dar a vida» (Jo 15,12-13) e simbólico «fazei isto em minha memória» (Lc 22,19), para que nós, seguidores, o imitemos.

A espiritualidade martirial, nesse sentido, diz respeito ao seguimento fiel a Jesus de Nazaré, que enfrentou os poderes de seu tempo até ser morto. Diz respeito também à fidelidade à realidade histórica atual e concreta na qual o anúncio do Evangelho deve se dar. Trata-se de viver a fé em um Deus92 que não promete e nem garante sucesso, como o definiu Bonhoeffer, em meio à tragédia que foi a Segunda Guerra Mundial: «Deus cravado na cruz, permite que o lancem do mundo. Deus é impotente e débil no mundo, e só assim Deus está conosco e nos ajuda»93. No mesmo sentido, a mensagem final do 9º encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em São Luís do Maranhão, em 2008, afirmou: «vida vivida como Jesus é vitoriosa, mesmo se crucificada»94. Trata-se daquilo que o padre Júlio Lancelotti afirmou numa live em julho de 2020, acerca de seu trabalho pastoral com a população de rua, em São Paulo - SP, em meio à pandemia da Covid-19: «A minha perspectiva é o fracasso. Se eu tiver perspectiva de vencer é porque eu aderi a esse sistema» 95.

Como o apóstolo Paulo afirmou, a cruz de Cristo - instrumento e símbolo do fracasso - é motivo de orgulho para nós (cf. Gl 6,14). E, com ela, as tantas cruzes nas quais foram crucificados tantos dos seguidores de Jesus, também são motivo de orgulho, uma vez que a força de seus testemunhos desencadeia vida, provoca ressurreição. Mas não sem dor. Nesse sentido Casaldáliga escreveu:

Cantamos o sangue dos nossos melhores, a prova maior. Cobramos as flores de suas feridas, vivemos a vida que a morte ceifou. (...) No altar e nos braços erguemos, remidos, seus corpos caídos, seus sonhos, seus passos, serão caminhada! Memória seremos! Mais altas faremos as vozes caladas!96.

A Espiritualidade Martirial carrega em si a memória dos tantos que doaram a vida a exemplo de Jesus. Esquecer seus nomes, suas histórias e suas lutas, seria, em primeira instância, não honrar o real e, em última, maquiar o martírio de Jesus. A memória mantém viva toda a história do martírio cristão97. A memória e o martírio são fontes de comprometimento com o Evangelho e com o real. Ademais, a memória viva dos mártires está carregada com a força da ressurreição de Jesus. Afinal, a um homem vivo os poderosos podem matar, mas a um morto não se mata mais.

Não é por nada que os guardas foram subornados para afirmar que o corpo de Jesus tinha sido roubado do túmulo (cf. Mt 28,11-15). Um morto que continua vivo causa mais problemas que um vivo só: afinal de contas é impossível detê-lo (cf. Mt 27,64). É disso que tratava Casaldáliga quando afirmava que suas causas valiam mais que sua vida98: elas não morrem. É essa a força que emergiu nos brasileiros, resultando em inúmeras manifestações de protesto pelo país99, quando Marielle Franco, vereadora na cidade do Rio de Janeiro, foi assassinada, em março de 2018. A vida de Marielle - comprometida com a justiça social - e não sua morte, é a causa para que não deixemos de perguntar quem a matou. Martírio não é questão de morrer, mas de dar a vida. A Espiritualidade Martirial resume, então, essas posições em face do mundo: o comprometimento com o Evangelho do mártir Jesus e a manutenção da memória daqueles e daquelas que doaram suas vidas como Ele - seja na luta por justiça, seja como vítima indefesa.

O fato é que, quem se depara com a força do martírio, em qualquer nível que seja, não fica isento de marcas profundas. Como lembra Mo Sung «A experiência espiritual não pede coerência em relação a uma determinada teoria ou teologia, mas sim a coerência em relação à experiência fundante, ‘o primeiro Amor’, à opção fundamental que marcou e modificou a sua vida»100. Concluímos com as palavras da comunidade de Esmirna, depois de recolher os restos mortais de seu bispo, Policarpo: «Aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com seu rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos101.

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1 Davison Schaeffer de Oliveira, «O conceito de espiritualidade a partir de uma abordagem filosófica da subjetividade», Revista Brasileira de Filosofia da Religião 1, Vol. 3, (2016): 113, consultada em março 31, 2019, https://periodicos.unb.br/index.php/rbfr/article/view/14252/12571.

2Pedro Casaldáliga no final da Romaria dos Mártires de 2011 disse: «Eu peço também para vocês que não esqueçam do sangue dos mártires. Tem gente na própria Igreja que acha que chega de falar de mártires. O dia que chegar de falar de mártires deveríamos apagar o Novo Testamento, fechar o rosto de Jesus». Disponível em: https://irmandadedosmartires.com.br/es/4172-2/.

3Em 2019, aconteceu o primeiro encontro nacional da Irmandade dos Mártires. Na ocasião o teólogo anglicano e cientista da religião Daniel Santos Souza publicizou uma carta na qual afirma que: «dizer adeus aos mártires é assumir a coragem para a insegurança e a incerteza de um mistério que não se deixa nomear, não se deixa reduzir, não se deixa enclausurar» e ainda «Quero dizer adeus a Josimo. Dizer diante dele. Dizer adeus a Dorothy (...) Sem o triunfalismo das mortes ‘pelas vidas’ ou das mortes ‘pelo reino’. Adeus ao outro, a esse rosto, diante de mim, adeus como uma ‘questão-oração’».

4 Michel Löwy, A guerra dos deuses: Religião e política na América Latina (Petrópolis: Vozes, 2000), 53-54 e 57, chama de cristianismo de libertação a experiência social e religiosa que antecedeu e possibilitou a reflexão posterior dos teólogos da libertação.

5 Maria Nazarete Costa Catré, Joaquim Armando Ferreira, Tereza Pessoa, Acácio Catré, Maria Costa Catré, «Espiritualidade: contributos para uma clarificação dos conceitos», Análise Psicológica 1 (2016), consultada em março 31, 2021, https://doi.org/10.14417/ap.877.

6 José Reinaldo Felipe Martins Filho, Clóvis Ecco, Marià Corbi. «Por uma espiritualidade profunda: uma entrevista a Marià Corbi», Caminhos 1, Vol. 15 (2017), consultada em março 30, 2021, http://dx.doi.org/10.18224/cam.v15i1.5973.

7 Maria Clara Bingemer, «Teologia e espiritualidade. Uma leitura teológico-espiritual a partir da realidade do movimento ecológico e feminista», Cadernos de Teologia Pública 2 (2004): 4-5, consultado em março 31, 2021, http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/teopublica/002cadernosteologiapublica.pdf.

8 Clodovis Maria Boff, «Espiritualidade do militante (com enfoque pneumatológico)», em Fé e política: fundamentos, ed. Pedro Ribeiro de Oliveira (Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004), 191.

9Citado por: Alfredo Sampaio Costa, «Teologia e espiritualidade: em busca de uma colaboração recíproca», Perspectiva Teológica Vol. 38 (2006): 327, consultado em janeiro 02, 2021, http://faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/21/50.

10Alfredo Sampaio Costa, «Teologia e espiritualidade: em busca de uma colaboração recíproca»: 329.

11Alfredo Sampaio Costa, «Teologia e espiritualidade: em busca de uma colaboração recíproca»: 329.

12 Marià Corbí, Para uma espiritualidade leiga: sem crenças, sem religiões, sem deuses (São Paulo: Paulus, 2010).

13 Alonso S. Gonçalves, «Uma espiritualidade sem Igreja: a emancipação institucional e o surgimento de novas experiências religiosas», Protestantismo em Revista 32 (2013), consultada em janeiro, 02, 2021, http://periodicos.est.edu.br/index.php/nepp/article/view/1088/1068.

14 Alberto Moreira, «Religiosidade laica: uma introdução ao pensamento de Marià Corbí», Horizonte - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião 19 (2011), consultada em janeiro 03, 2021, http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2010v8n19p21.

15 Marià Corbí, Silencio desde la mente: prácticas de meditación (Barcelona: Bubok, 2011).

16 Burkhard Neunheuser, «Espiritualidade litúrgica», em Dicionário de Liturgia, ed. Domenico Sartore e Achille Triacca (São Paulo: Paulinas, 1992).

17 Tereza Cavalcanti, Espiritualidade Bíblica (São Leopoldo: CEBI, 1996).

18Clodovis Maria Boff, «Espiritualidade do militante (com enfoque pneumatológico)», 191-214.

19 Victor Manuel Fernández, Teologia espiritual encarnada: profundidade espiritual em ação (São Paulo: Paulus, 2007).

20 Gustavo Gutierrez, Beber em seu próprio poço: Itinerário Espiritual de um Povo (São Paulo: Loyola, 1984).

21 Pedro Casaldáliga, José Maria Vigil, Espiritualidade da libertação (São Paulo: Vozes, 1993).

22 Jon Sobrino, Espiritualidade da Libertação: estrutura e conteúdos (São Paulo: Loyola, 1992).

23 Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação (São Paulo: Loyola, 1988).

24 Jon Sobrino, Os seis jesuítas mártires de El Salvador (São Paulo: Loyola, 1990).

25 Jon Sobrino, «De una teología sólo de la liberación a una teología del martirio», Revista Latinoamericana de Teología 28, (1993): 27-48, consultada em janeiro 04, 2021, http://www.redicces.org.sv/jspui/bitstream/10972/1201/1/RLT-1993-028-B.pdf.

26Gustavo Gutierrez, Beber em seu próprio poço: Itinerário Espiritual de um Povo, 129.

27Clodovis Maria Boff, «Espiritualidade do militante (com enfoque pneumatológico)», 191-192.

28Clodovis Maria Boff, «Espiritualidade do militante (com enfoque pneumatológico)», 192

29Citado por Francisco de Aquino Júnior, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento (São Paulo: Paulinas, 2014), 27.

30 Francisco de Aquino Júnior, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 36.

31 Jürgen Moltmann, O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã (Santo André: Academia Cristã, 2011).

32Jon Sobrino, Espiritualidade da Libertação: estrutura e conteúdos, 108.

33 Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica. Vol. 1. (Itabaina/SE: Clube de autores, 2016), 362.

34 Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999) n. 2473.

35Gustavo Gutierrez, Beber em seu próprio poço: Itinerário Espiritual de um Povo, 69.

36 Marcelo Barros, «Pedro, místico», em Pedro Casaldáliga: as causas que imprimem sentido à sua vida - retrato de uma personalidade, ed. Benjamin Forcano (São Paulo: Ave Maria, 2008), 356.

37Homilia de Romero (11/03/79) citada por: Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação, 61.

38Homilia de Romero (09/12/79) citada por: Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação, 62.

39Homilia de Romero (24/06/79) citada por: Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação, 62.

40Homilia de Romero (17/02/80) citada por: Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação, 63.

41Homilia de Romero (11/03/79) citada por: Jon Sobrino, Oscar Romero: profeta e mártir da libertação, 63.

42Missionária estadunidense assassinada em meio aos conflitos por terra, em Anapu - PA.

43Padre de Tocantinópolis (hoje Estado do Tocantins), assassinado em São Luiz - MA, em decorrência de sua atuação na Comissão Pastoral da Terra (CPT).

44Metalúrgico, sindicalista, membro da Pastoral operária de São Paulo, assassinado pela polícia militar enquanto liderava uma greve por condições justas de trabalho, em São Paulo - SP.

45Lavrador, sindicalista, membro das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Diocese de Goiás - GO, assassinado a mando do prefeito, em Carmo do Rio Verde - GO.

46Para informações sobre, consulte a página da Irmandade dos Mártires da Caminhada: https://irmandadedosmartires.com.br/martiriologio-lationamericano/

47Mada e Bia são duas missionárias francesas que atuaram como agentes de pastoral e enfermeiras no pequeno ambulatório da Prelazia de São Félix do Araguaia, em Ribeirão Cascalheira - MT. Na ocasião em que o padre João Bosco Penido Burnier foi baleado, foram elas quem prestaram os primeiros socorros. Depois, vivendo já na Prelazia de Tocantinópolis - TO, acompanharam de perto a perseguição ao padre Josimo Tavares, no Bico do Papagaio - TO.

48 Josimo Morais Tavares, Testamento espiritual de padre Josimo. (folha avulsa). (1986), consultada em janeiro 25, 2021, 1, http://cajui.uft.edu.br/proide-pn/acervo-da-mitra/242-acervo-da-mitra-diocesana-227.html.

49 Paulo VI, Proclamazione di santa Teresa d’Avila dottore della chiesa: Omelia del santo padre (1970), consultado em janeiro 05, 2021, http://www.vatican.va/content/paul-vi/it/homilies/1970/documents/hf_p-vi_hom_19700927.html.

50 Teresa d’Ávila, «Versos nascidos do fogo do amor de Deus que tinha em Si», em Breve antologia da poesia cristã universal (São Gonçalo - RJ: S. Reachers, 2012), 45-46, consultado em janeiro 05, 2021, https://www.passeidireto.com/arquivo/79027069/poesia-crista-universal-breve-antologia

51Gustavo Gutierrez, Beber em seu próprio poço: Itinerário Espiritual de um Povo, 76.

52 Jung Mo Sung, «Cristianismo de libertação: fracasso de uma utopia?», Estudos Teológicos 1, ano 48 (2008): 39-63, consultada em janeiro 08, 2021, http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/vol4801_2008/et2008-1c_jsung.pdf.

53 Paul Hartog, «The Christology of the martyrdom of Polycarp: Martyrdom as both imitation of Christ and election by Christ», Perichoresis 2, Vol. 12, (2014): 147, consultada em janeiro 06, 2021, https://content.sciendo.com/view/journals/perc/12/2/article-p137.xml?language=en (Tradução nossa).

54Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica. Vol. 1, 344-365.

55 Willian Tabbernee, «Early Montanism and voluntary martyrdom», Colloquium 17 (1985): 33-44, consultado em janeiro 19, 2021, https://www.academia.edu/27317663/Early_Montanism_and_Voluntary_Martyrdom. e Willen Schepelern, Der Montanismus und die phrygischen Kulte: Eine religionschichtlich untersuchung (Tubinga: Mohr Siebeck, 1929).

56Com a exceção de Tertuliano (160-220 d.C.), que se converteu ao montanismo no fim da vida. Cf. Rex D. Butler, The New Prophecy and «New Visions»: Evidence of Montanism in the «Passion of Perpetua and Felicitas» (Washington: Catholic University of America Press, 2006), 25.

57 José Reinaldo Felipe Martins Filho, Música e identidade no catolicismo popular: um estudo sobre a Folia de Reis e a Romaria ao Divino Pai Eterno em Goiás (São Paulo: Terceira Via, 2020), 146-147.

58 Ignácio Ellacuría, «El pueblo crucificado: ensayo de soteriología histórica», Revista Latinoamerica de Teología 18 (1989): 305-333.

59 Gehard Dautzenberg, «Amnós-Cordero», em Diccionário exegético del Nuevo Testamento, ed., Horst Balz (Salamanca: Sigueme, 1996), 211.

60 Victor Turner, Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana (Niterói: EdUFF, 2008), 55-90.

61 Francisco Taborda, Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos (São Paulo: Paulus, 2019), 87.

62Jung Mo Sung, «Cristianismo de libertação: fracasso de uma utopia?»: 53.

63Citado por Jung Mo Sung, «Cristianismo de libertação: fracasso de uma utopia?»: 53.

64 José Aldazábal, Vocabulário básico de liturgia (São Paulo: Paulinas, 2013), 333.

65José Aldazábal, Vocabulário básico de liturgia, 334.

66 Pedro Casaldáliga, Martírio do Pe. João Bosco Penido Burnier (São Paulo: Loyola, 2006), 17.

67 Ritual de bênçãos. Em Presbiteral. Ed. Alberto Beckauser (Petrópolis: Vozes, 2008), 619

68Veja por exemplo a oração de apresentação das oferendas na missa: «Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho humano, que agora vos apresentamos e para nós se vai tornar pão da vida» Missal Romano, Promulgado por Paulo VI (São Paulo: Vozes/Paulinas, 1992), 402.

69Missal Romano, Promulgado por Paulo VI, 286-287.

70Missal Romano, Promulgado por Paulo VI, 403.

71 Inácio de Antioquia, «Carta aos Romanos», em Cartas de Santo Inácio de Antioquia (Petropólis: Vozes, 1970), 66.

72 Enrique Dussel, «Palavras preliminares», em O martírio na América Latina. Ed. Ferrari (São Paulo: Loyola, 1984), 7-10.

73Gustavo Gutierrez, Gustavo Gutierrez, Beber em seu próprio poço: Itinerário Espiritual de um Povo, 130- 132.

74Gutierrez faz referência ao mártir jesuíta Luis Espinal, para afirmar que o povo não tem vocação de mártir. Confira: Luis Espinal, Oraciones a quemarropa (Barcelona: Rondas, 2020), consultado em janeiro 20, 2021, https://www.cristianismeijusticia.net/sites/default/files/pdf/eies92.pdf.

75 Marcelo Barros, «Pedro Casaldáliga: o mártir que não conseguiram matar», Vida pastoral 337 (2021): 31- 37, consultada em janeiro 14, 2021, https://www.vidapastoral.com.br/edicao/pedro-casaldaliga-o-martir-que-nao-conseguiram-matar/

76 Oscar Romero, La dimensión política de la fe desde la opción por los pobres. Una experiencia eclesial en El Salvador, Centroamérica [Discurso em Lovaina] (1980), 8. Consultado em janeiro 01, 2021. http://servicioskoinonia.org/relat/135.htm

77 Jon Sobrino, O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados (Petrópolis: Vozes, 1994).

78 Jon Sobrino, Jesus, o libertador: a história de Jesus de Nazaré (Petrópolis: Vozes, 1996).

79Jon Sobrino, «Prefácio», em Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 8.

80 Ivanise Bombonatto, Seguimento de Jesus na cristologia de Jon Sobrino. Dissertação (Mestrado em Teologia Sistemática). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo (2012), 15.

81Salvas algumas exceções como quando o Papa João Paulo II afirmou, inclusive em âmbito ecumênico, que no final do segundo milênio a Igreja voltou a ser Igreja de mártires, em sua Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, de 10/11/94. Ou como quando o Papa Francisco afirmou no Angelus, de 23/06/13, que hoje há mais mártires que nos primeiros séculos. Ou quando disse que todos os cristãos somos convidados ao «martírio branco», a doação da vida sem derramamento de sangue, na audiência geral de 25/09/19. Mas, de modo geral, não existem grandes estudos teológicos sobre o martírio atual.

82 Jon Sobrino, «A causa dos mártires», em Pedro Casaldáliga: as causas que imprimem sentido à sua vida - retrato de uma personalidade, 129-150.

83Jon Sobrino, «A causa dos mártires», 140.

84Jon Sobrino, «A causa dos mártires», 141.

85 Jon Sobrino, Terremoto, terrorismo, barbárie y utopia: El Salvador, Nueva York, Afganistán (San Salvador: UCA, 2005).

86Jon Sobrino, Espiritualidade da Libertação: estrutura e conteúdos.

87 Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino (São Paulo: Paulus, 2002), 2402.

88Jon Sobrino, «Prefácio», em Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 8- 9.

89Jon Sobrino, «Prefácio», em Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 9.

90Jon Sobrino, «Prefácio», em Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 10.

91 Cipriano de Cartago, Cartas (Madrid: Gredos, 1998) 172. Tradução nossa.

92Na perspectiva de: Jürgen Moltmann, O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã.

93 Dietrich Bonhoeffer, Resistencia y sumision: cartas y apuntes desde el cautiverio (Barcelona: Ariel, 1969), 110. Tradução nossa.

94Carta do Intereclesial das CEB’s, 2008, citada por: Francisco de Aquino Júnior, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo: espiritualidade como seguimento, 43.

96 Pedro Casaldáliga, «Hino da caminhada dos Mártires», em Caminhada dos Mártires. Ed. Cireneu Kuhn. Intérprete: Luiz Augusto Passos (São Paulo: Verbo Filmes, 1997). 1 CD, faixa 1.

97 T. Bernardo, «Memória como resistência: o migrante», Travessia Vol. 32 (1998), 49.

98 Ana Helena Tavares, Um bispo contra todas as cercas: a vida e as causas de Pedro Casaldáliga (Rio de Janeiro: Gramma, 2019), 57.

100Jung Mo Sung, «Cristianismo de libertação: fracasso de uma utopia?»: 41.

101 Padres Apostólicos, Martírio de São Policarpo, bispo de Esmirna (São Paulo: Paulus, 1997), 93.

Para citar este artículo: Carvalho da Silva, Daniel. «Espiritualidade Martirial: uma experiência de fé latino-americana». Franciscanum 177, Vol. 64 (2022): 1-26.

*O presente artigo é resultado das discussões empenhadas pela disciplina «Espiritualidade, holismo e consciência planetária» do Programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás durante o segundo semestre de 2020. O autor é discente, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

**Licenciado em Filosofia (IFITEG) e em Letras-Libras (UFG). Mestrando em Ciências da Religião (PUC Goiás / CAPES). Atualmente também realiza pós-graduação - em nível de especialização - em Liturgia Cristã (FAJE/Rede Celebra). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8700-4113. Contacto: dancarvalho90@gmail.com.

Recebido: 11 de Abril de 2021; Aceito: 08 de Junho de 2021

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