Introdução
Nos últimos decénios, as discussões sobre religião têm sido caracterizadas por um confronto teórico entre duas narrativas sobrepostas, embora aparentemente opostas. Por um lado, a conceção de uma perda de relevância social da religião, preconizada pelos defensores das teorias da secularização, na maioria cientistas sociais europeus. Por outro lado, a ideia do regresso (do significado social) das religiões, maioritariamente defendido por teóricos estadunidenses.
No entanto, segundo Casanova (2007, p. 3), chegou-se a um "ponto morto neste debate", pois a teoria tradicional da secularização adequa-se, relativamente bem, à realidade europeia, mas não à norte-americana; enquanto a narrativa da vitalidade dos mercados religiosos (desregulados) é relativamente eficaz para explicar a realidade dos Estados Unidos da América, mas não a da Europa. Os teóricos afirmam ser necessária uma mudança de rumo das pesquisas sobre esse fenómeno (Halikiopoulou, 2011), porque, chegados a este "beco sem saída para o estudo sociocientífico da religião" (Wohlrab-Sahr e Burchardt, 2017, p. 144), o debate sobre a secularização tem-se tornado "infrutuoso" (Casanova, 2007, pp. 1, 3).
No geral, concordamos com essas proposições. Contudo, relembramos que, com a integração, aplicação e desenvolvimento da ideia das múltiplas modernidades de Eisenstadt (2000) no debate sobre a secularização, surgiram inovações conceptuais e epistemológicas sobre o lugar do religioso no mundo. Em especial, as ideias de dessecularização (Berger, 1999), pós-secularização (Habermas, 2008), múltiplas secularizações (Norris e Inglehart, 2004; Martin, 2005; Demerath, 2007; Casanova, 2011) ou secularidades (Wohlrab-Sahr e Burchardt, 2012) e secularização contextual (Casanova, 2007; Pickel, 2011; Ben-Porat e Feniger, 2013; Moniz, 2017a). O problema dessa miríade de inovações ou renovações teóricas e conceptuais é que, segundo Pickel (2017), mantém em suspenso uma questão que ainda não foi decidida definitivamente. Isto é, que processos da modernidade, se é que algum, conseguem descrever as atuais mutações ou deslocações do religioso nas sociedades contemporâneas? Efetivamente, a maioria dessas conceptualizações mais recentes é sustentada cientificamente pela análise de fatores históricos, pelas reflexões de cariz sociológico e/ou filosófico ou pela descrição de fenómenos sociotemporais, e adpolíticos. Raros têm sido os estudos que associam a dimensão teórica a uma dimensão mais empírica - estatística - que analise com rigor os desenvolvimentos (positivos ou negativos) dos fenómenos religiosos. Mesmo nos casos em que isso sucedeu (Norris e Inglehart, 2004; Pickel, 2017) os estudos foram baseados, não raras vezes, em variáveis uni ou bidimensionais, negligenciando a sistematização das várias teorias da secularização e das suas alternativas teóricas para compreender e interpretar os fenómenos de deslocação, revitalização ou declínio do religioso nas sociedades contemporâneas.
Esses exames avulsos, ainda que longitudinais, de inquéritos de bancos de dados internacionais - por exemplo, a crença em Deus ou afrequência a serviços religiosos - não só não captam as dimensões da religiosidade (individual e difusa) contemporânea, como não examinam a fundo os argumentos dos teóricos da secularização. Por conta dessa incúria, desconhecemos a existência de algum estudo que tenha procurado e que tenha logrado (como nós tentaremos) condensar esses argumentos teóricos em variáveis empíricas mensuráveis e que, além disso, as tenha correlacionado a níveis multidimensionais e abrangentes de religiosidade1. Consideramos que só através de tal metodologia poderemos responder à supracitada interrogação de Pickel e, assim, compreender se as teorias da secularização ou as suas alternativas teóricas são válidas para justificar as mutações do religioso, sobretudo, ao nível micro (individual).
Nesse sentido, o nosso trabalho foca-se na teoria da societalização, não só porque a consideramos uma das teorias nucleares da secularização (Moniz, 2017b) - concomitantemente com as suas subteorias clássicas da racionalização e da diferenciação funcional e com a sua versão mais moderna da segurança existencial2 -, mas também porque é apontada como um dos fatores-chave mais consensuais da modernização que explica a diminuição do significado microssocial da religião.
Sobre a teoria da societalização
A teoria da societalização, como qualquer subteoria da secularização, afirma que o processo de modernização e os seus subprocessos, transformadores da totalidade da estrutura social, não podem decorrer sem consequências para as tradições e instituições religiosas. Isto é, as propriedades estruturais da modernização - como a racionalização (Bryan Wilson ou Peter Berger), a diferenciação funcional (Niklas Luhmann, Talcott Parsons ou Thomas Luckmann) ou a societalização (Bryan Wilson ou Danièle Hervieu-Léger) - colocam problemas à religião, pelo menos no seu sentido tradicional, e reduzem ou, no limite, extinguem a sua relevância e/ou plausibilidade social. Desde o final da ii Grande Guerra (pós-1945) e os inícios da década de 1960, essa narrativa da secularização foi integrada na teoria da modernização, tornando-se num dos seus axiomas centrais.
A societalização é, nesse contexto, um dos elementos clássicos das teorias da secularização, descrevendo a passagem de um sistema de base comunitária para outro de base social (Vergesellschaftung). A sua versão original remonta a Tönnies (2002) e à ideia de que a transição da comunidade para a sociedade reflete a perda do domínio das instituições religiosas sobre o indivíduo. Essa tese foi, de forma implícita ou explícita, ecoada na literatura, sobretudo, por Wilson e Hervieu-Léger.
Wilson (1976, pp. 265-266) argumenta que a secularização corresponde ao declínio da comunidade, ou seja, ela é concomitante com a societalização. Ao elaborar a sua teoria, o autor explica que, tradicionalmente, a religião se celebrava e legitimava na vida local (comunitária). Contudo, com a passagem da comunidade à sociedade e com a sua organização, agora, à escala nacional, a plausibilidade global dos sistemas moral e religioso diminui; a religião enfraquece-se e distancia-se (Wilson, 1982, p. 153). Com efeito, Wilson (1976, p. 246) associa a societalização à modernização e aos seus inerentes processos de industrialização e racionalização. Para o autor, isso deve-se ao facto de as formas de comunidade, sobre as quais a religião exercia anteriormente um controlo social significativo, tenderem a dissolver-se no processo de modernização, sendo substituídas, tal como nas camadas da diferenciação funcional e da racionalização, por organizações e relações pessoais mais amplas e impessoais.
Também em Hervieu-Léger (1999, 2000) o processo de societalização traz consequências para a religião. Segundo a sua tese, com a transição dum sistema de base comunitário para outro de base social, os indivíduos deixam de encontrar as suas ligações sociais num lugar permanente, algo que reduz a possibilidade de controlo social e o sentimento de partilha duma consciência coletiva (religiosa) institucionalizada num território específico. Para a autora, que entende a religião como memória ou como uma corrente de memória (chain of memory), isso sucede porque as sociedades hodiernas (urbanas) são incapazes de manter uma memória coletiva que fundamente a sua existência religiosa (Hervieu-Léger, 1999, pp. 66-67, 2000, pp. 121-129). Ou seja, com a erosão da civilização paroquial - a passagem de uma sociedade rural (que moldou a cristandade) para uma industrial (que tende a causar problemas à cultura religiosa) -, surgem fenómenos de desmembramento e atomização da memória coletiva que culminam numa amnésia social. As sociedades tornam-se menos capazes, do que no passado, de produzir uma memória coletiva que lhes faça sentido no presente e que lhes possa servir de orientação futura (Hervieu-Léger, 1999, pp. 62-63).
Em traços gerais, a teoria da societalização diz que a modernização conduz à mudança duma organização de base comunitária para outra de base social. Alguns fenómenos sociais, como a industrialização ou a urbanização, fazem diminuir os laços comunitários (tradicionais), o que leva à perda de plausibilidade dos sistemas moral e religioso, normalmente associados às experiências de vida comunitária.
Os elementos mais sistematicamente citados pelos teóricos da societalização são quatro: a urbanização e a preponderância da cidade (anónima e distante) sobre a comunidade (dos laços e das solidariedades locais) (Tönnies, 2002; Wilson, 1976; Hervieu-Léger, 1999, 2000); a industrialização e o consequente desmembramento dos laços sociais, a atomização dos indivíduos e o declínio das formas de comunidade sobre as quais a religião exercia anteriormente controlo (Wilson, 1976; Hervieu-Léger, 1999); a proliferação dos meios de comunicação móvel e digital de massas e a mudança do paradigma de comunicação - de comunal e pessoal para universal e impessoal (Wilson, 1969, 1982) -; e, por fim, a mobilidade geográfica que, pela fragmentação de um eu social permanente, vinculado a uma comunidade de crentes específica, dificulta a manutenção dos fiéis e enfraquece as consciências religiosas coletivas enraizadas numa determinada região (Wilson, 1969, 1982; Hervieu-Léger, 1999, 2000). Assim, podemos dizer que a societalização tem quatro dimensões internas, a saber: a urbanização, a industrialização, a comunicação digital de massas e a mobilidade geográfica.
Estabelecidas as dimensões internas da societalização, pudemos proceder à recolha de dados (itens/indicadores) que integrassem e dessem corpo a cada uma das quatro dimensões. Desse modo, recorremos a dados de quatro fontes: o World Bank Open Data, o United Nations Development Programme (UNDP), o Eurostat e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). O primeiro disponibiliza, desde a segunda década do século XX, de forma mais sistemática, dados de 189 países. O trabalho estatístico é gerido por um grupo de desenvolvimento de dados que, em colaboração com a comunidade estatística internacional, coleciona, compila e atualiza bancos de dados financeiros, macroeconómicos e sectoriais. O UNDP é um programa da Organização das Nações Unidas (ONU) que, desde o início da década de 1990, estuda os índices de desenvolvimento humano em cerca de 170 países e territórios. Os seus dados compreendem, no essencial, dados estatísticos sobre educação, rendimentos, pobreza ou desigualdade. Por seu turno, o Eurostat, fundado em 1953, é a divisão estatística da União Europeia (UE). O seu estudo longitudinal existe desde meados do século XX, mas tem-se solidificado e sistematizado desde o final dessa mesma centúria, focando-se, entre outros, em estatísticas sobre economia e finanças, população e condições sociais, indústria, comércio e serviços e ciência e tecnologia, essencialmente, nos 28 Estados-membros da ue. Por fim, a OCDE (iniciada em 1948, mas oficialmente fundada em 1961) recolhe e trata, longitudinalmente (desde a década de 1950), os dados de mais de 30 países. Os dados estatísticos aí recolhidos cobrem diversas áreas, nomeadamente desenvolvimento, educação e formação, ciência e tecnologia, finanças ou produtividade. Pela sua experiência, qualidade e rigor e pelo extenso número de investigações científicas (mas também de decisões governamentais) que baseiam os seus trabalhos nesses bancos de dados, consideramos que são fidedignos e úteis para a criação de um índice de societalização que, ulteriormente, venha a ser contraposto a um de religiosidade.
Considerando as fontes supramencionadas, o nosso período de análise é de 1999 a 20153. A escolha dessas datas não é casual. Com efeito, ela deve-se ao facto de as formas mais modernas (individualizadas e indeterminadas) de religião e a diversidade das suas expressões só terem sido estudadas pelas ciências sociais, mais sistematicamente, nas últimas décadas do século XX. Ou seja, se só a partir desse período os investigadores mostraram maior sensibilidade para a difusão e diversidade das expressões religiosas modernas. Isso significa que, até então, os dados estatísticos disponíveis dificilmente contemplariam dimensões da religiosidade individual que se pudessem contrapor a variáveis independentes como a societalização.
Posto isto, explicadas as questões teóricas, fontais e temporais, e adaptando-as às fontes disponíveis nos bancos de dados, foram selecionados os itens a seguir descritos para medir cada uma das dimensões teóricas da societalização.
1. Urbanização:
população urbana (% do total) (fonte: World Bank);
proporção da população nacional em regiões predominantemente urbanas (fonte: OCDE);
população na maior cidade (% da população urbana) (fonte: World Bank).
2. Industrialização:
total da produção da indústria (fonte: OCDE);
produção na fabricação total (fonte: OCDE);
total na produção da construção (fonte: OCDE);
total do comércio de retalho (fonte: OCDE);
registo de viaturas particulares (fonte: OCDE);
atividade interna das multinacionais por país investidor (atividade total) (fonte: OCDE);
compras por comércio eletrónico - empresas que compraram através de redes mediadas por computador (fonte: Eurostat).
3. Comunicação digital de massas:
subscrições de telemóvel (fonte: OCDE);
utilizadores de internet (% da população) (fonte: UNDP);
indivíduos que possuem proficiência digital geral acima do nível básico (fonte: Eurostat);
famílias - aparelhos para aceder a internet: computador desktop ou portátil (% das famílias) (fonte: Eurostat);
indivíduos - acesso à internet móvel: telemóvel ou smartphone para aceder a internet (% dos indivíduos) (fonte: Eurostat);
utilização de computadores e internet por empregados (fonte: Eurostat).
4. Mobilidade geográfica:
mobilidade internacional dos estudantes (% do total das inscrições no ensino superior) (fonte: UNDP);
entrada de turistas internacionais (milhares) (fonte: UNDP);
taxa líquida de migração (por 1 000 habitantes) (fonte: UNDP);
caminhos de ferro, passageiros transportados (milhões de passageiros/km, por 1 000 habitantes) (fonte: World Bank);
transporte aéreo, passageiros transportados (por 1 000 habitantes) (fonte: World Bank);
taxa de motorização (por 1000 habitantes) (fonte: World Bank).
Assim, oferecemos um índice com 22 itens4. Consideramos que o vasto número de indicadores ajuda-nos a maximizar a fiabilidade de cada dimensão e, por conseguinte, da própria variável societalização. No ver de Wilkes, Burnett e Howell (1986), em princípio, quanto maior o número de itens para medir as diferentes dimensões da societalização, maior a sua consistência interna5e6.
Proposta de composição e medição do índice de societalização
Determinadas as dimensões e os 22 itens que medirão o nível societalização nos nossos países selecionados, passamos à construção de um índice de societalização (variável independente) que nos possibilitará correlacionar a sua intensidade em face da nossa variável dependente religiosidade. Isso permitirá testar, mais empiricamente, essa teoria da secularização.
Vimos estudando há uns anos o fenómeno religioso num grupo de países europeus. Temos investigado os fenómenos da secularização na Áustria, na Eslováquia, na Espanha, na Itália, na Polónia e em Portugal7. No entanto, houve sempre dificuldades com o conceito de religião e, sobretudo, com as formas de medir a sua centralidade na vida dos indivíduos. Por conta disso, propusemos, no passado recente, a criação teórica e empírica de um índice de religiosidade8 que servisse de variável dependente e que fosse correlacionável com variáveis independentes como a societalização9.
Por esse motivo, na construção deste índice, seguiremos a estratégia metodológica aplicada no índice de religiosidade. Isso permitirá comparar com os mesmos instrumentos os dois índices e desenvolver um referencial teórico e empírico sobre a construção de um índice de societalização, algo sem precedentes no debate da secularização.
Com efeito, tanto quanto sabemos, este desiderato não teve qualquer tipo de desenvolvimento teórico ou prático. A nossa pesquisa na literatura especializada anglófona, lusófona, hispanófona, francófona ou mesmo na germanófona, em que o termo " Vergesellschaftung" foi inicialmente introduzido na sociologia por Weber, a partir do conceito de " Gesellschaft" de Tönnies, foi infrutífera na tentativa de encontrar linhas guiadoras para a construção dum índice de societalização.
E por esse motivo que consideramos necessária a criação de origem de um índice de societalização que nos permita validar ou eventualmente refutar, com base empírica, os argumentos dos teóricos da secularização. Para cumprir esse propósito, cada variável de cada dimensão do nosso índice foi redimensionada para um intervalo de 1 a 10 (correspondentes ao valor mínimo e máximo de societalização, respetivamente) e codificada consoante a escala criada para cada item. A opção por uma escala de 10 valores prende-se, principalmente, com a nossa preocupação com a maximização das diferenças entre os casos de estudo. De facto, eles foram selecionados com base no desenho de investigação dos sistemas mais similares, em que se comparam casos com características semelhantes. Se, de um lado, isso confere coerência à escolha dos nossos casos, favorecendo a constância das nossas variáveis, de outro lado, pode levar a variações de religiosidade e societalização impercetíveis entre eles. Para se evitar uma excessiva homogeneização desses cenários e para se encontrar alguma variação, será útil o recurso a uma escala de 10 pontos, tal como Grim e Finke (2006) sugerem.
Cada um dos 22 itens do nosso modelo foi calculado através de um processo bastante simples, mas fiável. Primeiro, multiplicamos por 100 o valor mínimo de cada item e depois dividimolo pelo valor máximo. Vejamos a tabela 1, relativamente ao indicador taxa de motorização (por 1 000 habitantes).
Na tabela 1, o vb (valor médio bruto mais baixo) dos países selecionados é 278 e o va (valor médio bruto mais alto) é 601. Seguindo o nosso cálculo, 278 x 100 é igual a 27 800, que, divididos por 601, dá o resultado aproximado de 46. A diferença entre 100 e esse valor (46) equivale à percentagem aproximada de 54 %, que difere entre o vb e o va. A fórmula é, como frisámos, bastante simples:
Para se comprovar que o valor de X (54 %) corresponde precisamente à diferença do valor médio bruto entre os va e vb, procedemos a outro cálculo elementar [(x ÷ 100) x va]. Assim, a diferença entre ambos é 323, valor que corresponde exatamente à distância do valor médio bruto que aparta o va e o vb. Com o valor de X, pudemos começar a codificação das diferenças entre países por meio da nossa escala de 1 a 10. Com o valor de X descoberto, iniciamos a codificação das diferenças entre os valores considerados por meio da nossa escala de 1-10. A premissa básica da nossa codificação é fazer corresponder às diferenças entre os valores médio brutos a mesma diferença percentual da nossa escala de normalização. Desse modo, os valores médios brutos dos nossos itens foram reduzidos, mas a proporção das suas diferenças foi mantida.
Salvaguardamos que nem todos os indicadores da societalização cobrem todo o nosso período temporal de análise. Por falta de dados disponíveis, nem todos os itens coligidos cobrem a totalidade do período de análise. Na tabela 1, conseguimos abranger a quase totalidade do nosso período. Todavia, em itens como, por exemplo, a mobilidade internacional dos estudantes, só encontrámos dados para o período 2000-2013. Outra particularidade deste índice é a existência de alguns valores negativos, em alguns países, em dois itens, a saber: mobilidade internacional dos estudantes e taxa líquida de migração. Pelas dificuldades inerentes ao tratamento de dados com valores negativos, aquando da codificação desses indicadores, visto que neles nem todos os valores são positivos ou negativos, optámos por colocar os valores negativos sempre com a pontuação mínima (1 ponto). Isso significa que os itens que englobam valores negativos e positivos não têm, nos valores codificados, a mesma proporcionalidade daqueles cujos valores são apenas positivos. Todavia, sublinhamos que a proporcionalidade das diferenças entre valores brutos positivos e valores codificados positivos foi totalmente respeitada. Isso é relevante, porque, mesmo nesses indicadores com valores negativos, os valores positivos representam a esmagadora maioria dos valores aí presentes10.
Os valores que surgem na tabela 1, bem como em todos os outros itens da societalização, são o resultado da média aritmética simples do indicador taxa de motorização (por 1 000 habitantes) para os anos disponíveis (neste caso, 1999-2014). Nesta ocasião, para o valor da Áustria, o número 518 foi encontrado por meio da média dos 16 valores anuais11. Esse valor final foi posteriormente codificado através da escala de normalização visível na tabela 2.
A tabela 2 codifica com a pontuação 9 o va e com a pontuação 4 o vb. Entre eles, existe uma diferença de 5 pontos que, se convertida para valores percentuais (neste caso, 50 %), se aproxima da diferença percentual real que os separa e que, neste indicador da societalização, corresponde ao nosso valor de X (54 %). As demais diferenças percentuais entre os valores intermédios da tabela, ou seja, os valores que não são nem o vb nem o va, foram respeitados, sempre que possível. Por exemplo, a diferença percentual entre o caso italiano e o português é de aproximadamente 22 %. Na tabela 2, podemos reparar que o primeiro está codificado com a pontuação 9 e o segundo com a pontuação 7. A diferença de 2 pontos (correspondentes a 20 %, se convertermos a nossa escala de normalização) corresponde aproximadamente à proporção da diferença entre ambos. No entanto, importa notar que esse modelo tem as suas limitações. Nem todos os valores médios brutos correspondem, precisamente, à diferença percentual dos valores codificados. Não obstante isso, os valores têm na maioria dos casos uma diferença máxima de um ponto (10 % da diferença proporcional). Paradigmático é, por exemplo, a comparação entre a codificação dos casos eslovaco e austríaco. Na tabela 2, a diferença pontual entre ambos é de 4 pontos (em percentagem, 40 %), mas, percentualmente, a diferença real entre ambos é de aproximadamente 46 %. As diferenças pontuais são, por isso, sempre mínimas, podendo estar um ponto para cima ou, como neste caso, um ponto para baixo, comparativamente às diferenças percentuais reais.
Assim, encontrado o valor de X para cada país em cada indicador, passámos à etapa de codificação dos itens da societalização, visível na tabela 3.
A maior pontuação possível para o agregado dos nossos 22 itens é de 220, lembrando que, quanto mais perto desse valor, maior será o índice de societalização dos países. Na tabela 3, Áustria, Espanha e Itália surgem destacados, apresentando as taxas brutas de societalização mais elevadas. O primeiro é o mais societalizado (168 pontos em 220 possíveis), o segundo acumula 158 pontos e o terceiro 142. Não muito atrás surge Portugal, com 123 pontos. Os outros dois destaques, mas pelo índice de societalização relativamente mais baixo, são a Eslováquia (96 pontos) e a Polónia (94 pontos), cujas taxas de societalização são quase metade da austríaca e menos da metade do valor máximo disponível para o conjunto dos nossos 22 indicadores, sendo, portanto, os países menos societalizados.
Os valores brutos dão-nos já uma perspetiva das diferenças entre os países selecionados. No entanto, algumas das dimensões da societalização têm mais peso nesses valores brutos, por causa do número mais elevado de itens que as compõem. Por exemplo, a dimensão urbanização tem apenas três itens, enquanto a dimensão industrialização tem sete. Para diminuirmos uma eventual discrepância de peso na pontuação final da societalização, procedemos ao cálculo da média aritmética simples de ambas, tal como é visível na tabela 4.
Com a tabela 4, cada uma das quatro dimensões da societalização tem um peso idêntico de 25 % na média final. Com este passo metodológico, não houve alterações na classificação entre os países mais ou menos societalizados. No entanto, a diferença entre países não aumentou. Pelo contrário, em alguns casos diminuiu (mas com percentagens pouco significativas, entre 2 % a 6 %), enquanto noutros não se alterou12. Apesar de isso não ter contribuído para o acentuar das diferenças entre países e para definir e distinguir os níveis de classificação, as diferenças mantêm-se significativas para efeitos do nosso estudo. Desse modo, estabelecemos cinco níveis de societalização: entre 1,0 e 2,9 - muito baixa; entre 3,0 e 4,9 - baixa (casos da Polónia e Eslováquia); entre 5,0 e 6,9 - média (casos de Portugal e Itália); entre 7,0 e 8,9 - alta (casos da Espanha e Áustria); e entre 9,0 e 10 - muito alta.
No índice de societalização, podemos notar que os países se organizam em pares. Dois altamente societalizados (Áustria e Espanha) dois intermediamente societalizados (Itália e Portugal) e dois baixamente societalizados (Eslováquia e Polónia). Com efeito, a conversão dos valores brutos (que podiam ir até 220 pontos) em médias (que podem ir até dez pontos) manteve diferenças classificatórias relevantes entre os países. Outro elemento relevante a citar é o facto de nenhum dos países se encontrar num dos extremos dos níveis de classificação. Em especial, enfatizamos que nenhum deles se aproxima do intervalo da societalização muito alta. Aliás, se analisarmos individualmente a média de cada dimensão da societalização, verificamos que a mais próxima do intervalo societalização muito alta é a Áustria, na dimensão comunicação digital de massas. De resto, o caso austríaco é o mais societalizado em todas as dimensões, à exceção da urbanização, em que se destacam Portugal e Espanha. Sublinhamos ainda que Eslováquia e Polónia, os países menos societalizados, se destacam negativamente na dimensão mobilidade geográfica onde apresentam, segundo a nossa classificação, taxas de societalização muito baixas. Para isso, muito contribuem as baixíssimas pontuações nos itens mobilidade internacional de estudantes e entrada de turistas internacionais. De igual modo, na dimensão urbanização, ambos se encontram muito distantes dos níveis de societalização dos seus homólogos, apresentando níveis de societalização baixos, nomeadamente se lembrarmos que todos os outros países apresentam níveis médios ou altos. Isso deve-se, sobretudo, às suas pontuações nos indicadores proporção da população nacional e população na maior cidade.
Em suma, a Áustria e a Espanha são os países mais societalizados, agregando, entre si, 15 itens que estão no intervalo de societalização muito alta e que se concentram, especialmente, nas dimensões comunicação digital de massas e mobilidade geográfica. Isso representa o triplo de itens no nível de societalização muito alta dos outros quatro países. Desse conjunto dos quatro menos societalizados, a Itália é isoladamente responsável por quatro desses cinco itens, nomeadamente pelas suas pontuações nas dimensões industrialização e comunicação digital de massas. Inversamente, a Polónia e a Eslováquia são os países menos societalizados, possuindo 10 (cinco para cada um) dos 14 itens no nível de societalização muito baixa, estando concentrados na já citada dimensão mobilidade geográfica.
Correlação entre societalização e religiosidade
Alcançados os índices de societalização para cada país, avançamos para a sua comparação com a nossa variável dependente, o índice de religiosidade. Testaremos o argumento dos teóricos da secularização que asseveram que a societalização exerce uma pressão negativa na evolução dos fenómenos religiosos. De acordo com a sua conceção, a uma maior taxa de societalização deve corresponder uma menor taxa de religiosidade. Para começarmos a testar empiricamente essa proposição, vejamos a figura 1.
Como podemos verificar, a Polónia destaca-se por ser o país com maior taxa de religiosidade e, simultaneamente, o com menor taxa de societalização, ex aequo com a Eslováquia. Outra questão assinalável é o facto de a Áustria e a Espanha, os dois países com taxa de religiosidade de nível médio (a mais baixa do conjunto) serem, igualmente, os únicos com taxa de societalização alta. Apesar de estas conclusões parecerem prometedoras e parecerem corroborar a teoria da secularização que diz que mais societalização conduz a menos religiosidade, o mesmo não pode ser dito dos outros três casos de estudo ainda não citados neste parágrafo. Com efeito, sobretudo no caso da Eslováquia, esta tese não parece ficar satisfeita, visto que apresenta o nível mais baixo de societalização, mas tem níveis de religiosidade mais baixos do que os de Portugal e Itália. No entanto, estes dois últimos países parecem corresponder, em certa medida, à expectativa dos teóricos da secularização, pois têm níveis de religiosidade relativamente altos e níveis de societalização médios. Ou seja, parece haver uma correlação negativa entre os índices de religiosidade e societalização. Mas, para entendermos mais precisamente esta relação, vejamos a figura 2.
Na figura 2, observamos a relação entre os valores da série de y (o índice de religiosidade) e os de x (o índice de societalização). A observação da posição relativa dos casos de estudo, prova mais claramente o que a figura 1 já demonstrava: existe uma correlação negativa moderada forte entre societalização e religiosidade13, ainda que, muito tangencialmente, não seja significativa ao nível estatístico (r(6)= -0,722; p >0,10)14. Aqui, verifica-se que Polónia e Portugal, os países com maiores índices de religiosidade (Portugal está ex aequo com Itália), são os únicos que se situam no quadrante 1; ou seja, são, simultaneamente, mais religiosos e menos societalizados. Inversamente, os dois países com menor taxa de religiosidade são os únicos situados no quadrante 4; isto é, são simultaneamente os menos religiosos e os mais societalizados. A Itália, o único país do conjunto que se situa no quadrante 2 (mais societalização e mais religiosidade), e a Eslováquia (claramente o caso mais desviante), o único no 3 (menos religiosidade e menos societalização), são desvios ao modelo da secularização. Contudo, não deixa de ser interessante sublinhar que ambos se encontram bastante próximos do quadrante 1, algo que aumenta a correlação negativa moderada forte entre a variável dependente e a independente.
A figura 2 fica mais inteligível se recordarmos a nossa grelha classificativa de 1-10, porque nos permite descortinar que os países com níveis de religiosidade média (o nível relativo mais baixo do conjunto) são os únicos com taxas de societalização alta. Todavia, quando analisamos os outros países à luz da mesma grelha classificativa, é mais difícil detetar um padrão. Isso deve-se, em especial, ao caso eslovaco. Se excluíssemos a Eslováquia, teríamos uma correlação negativa muito forte, quase perfeita, entre societalização e religiosidade que seria estatisticamente significativa (r(5)= -0,959; p <0,01)15. Efetivamente, à exceção da Eslováquia, verifica-se que os países com índices de religiosidade semelhantes também têm taxas de societalização similares e encontram-se em pontos muito próximos da figura 2: Portugal e Itália - religiosidade 8,1 para ambos e societalização 5,8 e 6,4, respetivamente - e Espanha e Áustria - religiosidade 5,8 e 6,0 e societalização 7,3 e 7,5, respetivamente. A análise desses quatro casos mostra que os países com níveis de societalização semelhantes têm índices de religiosidade aproximados. Contudo, issojá não poderia ser dito para os casos eslovaco e polaco, pois têm exatamente a mesma taxa de societalização, mas níveis de religiosidade muito diferentes.
O exame da correlação individual entre as dimensões da societalização e a religiosidade permitenos, tal como vemos na tabela 5, entender qual delas tem uma correlação negativa mais forte com a variável dependente e, assim, compreender qual a dimensão que mais fortemente a influencia.
Na observação da tabela 5, destaca-se o facto de a dimensão comunicação digital de massas ser a única que tem uma correlação negativa forte com a religiosidade, sendo estatisticamente significativa (r(6) = -.855; p <0,05). Por seu turno, a dimensão mobilidade geográfica tem uma correlação negativa moderada forte com a variável dependente, não sendo, de forma tangencial, estatisticamente significativa (r(6) = -.699; p >0,10). As outras duas dimensões apenas têm correlações negativas moderadas (industrialização) e fracas (urbanização) com a religiosidade, não sendo qualquer uma delas significativa estatisticamente. Se retirássemos a dimensão urbanização, aquela que menos correlação parece ter com a variável dependente, a correlação negativa entre societalização e religiosidade melhoraria um pouco, mas seria suficiente para passar de moderada forte a forte, sendo estatisticamente significativa (r(6) = -.755; p <0,1016).
Alguns estudos empíricos já foram feitos, embora não exclusivamente, sobre algumas dessas dimensões da societalização. Neste parágrafo, analisaremos as nossas conclusões à luz das descobertas desses estudos, corroborando-as ou refutando-as. Na maioria dos casos, os estudos empíricos que foram feitos analisam a influência da urbanização nas práticas religiosas dos indivíduos. Isso pode ser justificado pelo facto de a passagem duma sociedade rural/agrária para uma urbana/industrial ser o argumento central da tese da societalização. Embora os estudos disponíveis avaliem, não raras vezes, a influência da urbanização ou industrialização apenas por relação a um item de religiosidade, o que está bem distante da multidimensionalidade e profundidade do nosso conceito de religiosidade, ainda assim será interessante fazer esse esforço comparativo. Por exemplo, nos estudos de Billiet e Meuleman (2011), Billiet et ál. (2003) ou Dobbelaere (2002), a urbanização é sempre considerada como um fator que está relacionado negativamente com o envolvimento religioso (associado, por exemplo, a uma menor frequência aos serviços religiosos). Nos nossos casos de estudo, se analisada individualmente a dimensão urbanização, reparamos que essa dimensão é a que menos se correlaciona com os níveis de religiosidade, sendo, aliás, a única com uma correlação negativa fraca. Pela análise dos nossos dados, tendemos a concordar com Billiet e Meuleman (2011) quando dizem que a urbanização pode estar correlacionada com a religiosidade das pessoas, mas que este peso não é tão significativo quando comparado com outras dimensões. Noutro campo dimensional, Billiet et ál. (2003) alegam que a mobilidade geográfica não tem impacto no comparecimento aos cultos religiosos. Como frisámos, ainda que o nosso conceito de religiosidade seja bem mais amplo do que o mero comparecimento aos serviços religiosos, a dimensão mobilidade geográfica, no nosso estudo, apresenta-se como um importante fator para explicar a variação negativa da religiosidade. A quase correlação negativa média/forte dessa dimensão mostra-nos que, até certo ponto, os teóricos da secularização podem continuar a defender que maior mobilidade geográfica - e o seu consequente menor controlo social comunitário e a sua maior abertura à diversidade cultural - está associada a menos religiosidade. Por fim, importa notar que não encontrámos resultados empíricos comparativos para a dimensão da societalização que maior correlação apresenta com a religiosidade: a comunicação digital de massas. Não obstante a análise individual de alguns dos seus itens em alguns estudos, acreditamos que possa haver ganhos epistemológicos relevantes se os cientistas sociais incorporarem essa dimensão nas suas reflexões sobre a secularização, procurando entender mais aprofundada e sistematicamente qual a influência dos meios de comunicação de massas modernos na religiosidade das pessoas e as mudanças de paradigma por si criadas e que vão muito além das questões comunicacionais: da familiaridade ao anonimato, do controlo social à liberdade digital, do saber local ao conhecimento universal ou dos ritmos rotinizados ao imediatismo.
No geral, a ênfase que os nossos resultados dão à correlação negativa entre a societalização, sobretudo, nas dimensões comunicação digital de massas e mobilidade geográfica, e a religiosidade parece reveladora de um aspeto da modernização que nos parece essencial. A rutura na forma de comunicar e de se estar e mover no território tende a afastar as pessoas dos locais onde a religião tradicionalmente se celebrava e legitimava:a vida comunitária, baseada em estilos de vida espacialmente mais sedentários e em relações de vizinhança com comunicação face a face (Wilson, 1976, 1982). A perda das conexões sociais (territoriais e comunicacionais) num lugar permanente dificulta o controlo social e a sensação de partilha duma consciência religiosa coletiva, ritualizada e institucionalizada num determinado espaço.
A erosão da civilização paroquial (Hervieu-Léger, 1999, 2000) provocou aquilo que Taylor (2007) designa de "great disembedding", isto é, uma desintegração temporal e espacial das vidas social e política, associada ao declínio dos laços sociais tradicionais. Segundo o autor, isso levou à possibilidade de o mundo ser compreendido em termos puramente imanentes (não religiosos ou não transcendentes). O desenvolvimento dessa possibilidade (imanente) levou a uma nova condição existencial na qual a crença em Deus ou em qualquer doutrina religiosa é considerada apenas uma opção entre outras. Com efeito, a maior circulação de pessoas e ideias, típicas de sociedades de base social e não comunitária, leva, para Berger (2014), quase inevitavelmente a uma situação em que nenhuma cosmovisão é inquestionável, de modo que os indivíduos têm de escolher entre as diferentes cosmovisões oferecidas. Isso provoca uma situação em que a relativização se torna "numa experiência perene" e as certezas inquestionáveis passam a ser uma "mercadoria escassa" (Berger, 2014, p. 9). Como consequência, dá-se uma fragmentação das certezas absolutas, nomeada, mas não exclusivamente, na religião, aumentando a probabilidade dos indivíduos escolherem opções seculares no seu quotidiano e diminuindo a relevância individual e social da religião.
Embora a experiência da societalização aumente a multiplicidade de escolhas cognitivas e normativas, muitas dessas opções continuam a ser religiosas. A societalização traz, sobretudo, uma contaminação cognitiva através da qual as pessoas, com diferentes cosmovisões, se falam e influenciam de forma permanente. As certezas tornam-se mais difíceis de alcançar, ficando mais vulneráveis. Contudo, como Berger (2014) insiste, muitas dessas escolhas podem ser religiosas, e, de facto, são-no na maioria do mundo contemporâneo. É precisamente essa condição partilhada entre crença e descrença que marca a nossa era, apelidada de secular por Taylor (2007).
Assim, a fragmentação das certezas absolutas que a societalização provoca na religião, aumenta a probabilidade dos indivíduos escolherem opções seculares no seu quotidiano, aprofundando, consequentemente, os níveis de iliteracia religiosa e afetando, derradeiramente, a relevância individual e social da religião. Não há, porém, razões para acreditarmos que iremos assistir, mesmo com a disseminação e o aprofundamento dos fenómenos da societalização, a um processo linear de declínio ou a uma perda arrasadora de relevância da religião, nas palavras proféticas de Pickel (2017). Todavia, neste contexto, e considerando os resultados obtidos no nosso estudo, a ideia de um reavivar religioso parece ainda mais improvável.
Comentário final
Através dos dados recolhidos e da metodologia usada, podemos dizer que a teoria da secularização sobre a societalização ainda parece adequada. No grosso das suas quatro dimensões, podemos dizer que a societalização tem um elevado poder preditivo a respeito da evolução (negativa) da religiosidade. Ou seja, mais societalização está correlacionada com menos religiosidade. No entanto, a premissa básica da societalização - a transição rural-urbano ou a urbanização - não parece ser, per se, suficiente para destruir os laços de amizade e solidariedade comunitária (religiosa). Tal como Putnam (2000, p. 96) já havia demonstrado, ao estudar a sociedade norte-americana, as formas comunitárias de conexão social resistiram ao "transplante para a cidade anónima, [pois, mesmo aí,] os filamentos de relação entre os indivíduos foram sendo gradualmente regenerados". Assim, deve haver "seguramente, algo mais do que a urbanização" (Putnam, 2000, p. 208) para explicar a evolução da religiosidade das pessoas. Foi isso mesmo que detetámos no nosso estudo, nomeadamente quando nos debruçámos sobre as dimensões da mobilidade geográfica e, sobretudo, da comunicação digital de massas. Como vimos, o seu poder preditivo (mais societalização, menos religiosidade) para o conjunto dos países selecionados, é bastante elevado. Não pretendemos, com as nossas conclusões, dizer simplificadamente que este é um processo evolutivo trifaseado: rural (sociedades muito religiosas), urbano (sociedades religiosas) e digital/em rede (sociedades pouco religiosas). Hampton (2004, p. 217) já mostrou que essas fases de transição são sempre acompanhadas de "preocupações" sobre a mudança na estrutura das relações interpessoais. Não pretendemos alimentar esse estado de preocupação sobre as mutações intrínsecas de qualquer fase de transição. No entanto, não podemos camuflar o facto de essas mudanças provocarem ou poderem provocar reações (positivas ou negativas) na nossa variável dependente religiosidade. Tal como na transição rural-urbano, a transição para a sociedade digital/em rede parece ajudar o indivíduo a libertar-se daquilo que Simmel (1950) designou de mesquinhez e preconceito das relações orgânicas tradicionais de cariz religioso. A comunicação digital, em rede, reduz a "fricção do espaço" (Hampton, 2004, p. 225), permitindo-lhe, através da população digital disponível, formar relações que anteriormente lhe eram inacessíveis. A identificação e os laços sociais que se estabelecem deixam de se basear, exclusivamente, no local partilhado, mas nos interesses partilhados. Isso não fada necessariamente a religião ao desaparecimento. Os indivíduos podem recorrer à comunicação em rede para reforçar laços comunitários e/ou religiosos, superando obstáculos de interação social existentes em determinados padrões e contextos relacionais. Contudo, nos nossos casos de estudo, isso não parece ter sucedido. Pelo contrário, a comunicação digital parece ter afastado as pessoas dos laços comunitários religiosos tradicionais, promovendo esferas privadas e móveis de interação social que, por conseguinte, tendem a contribuir para a corroboração da teoria da secularização/societalização.
Por fim, o nosso trabalho provou que é mais recompensador repensar, rever ou atualizar as teorias da secularização, à luz da realidade social contemporânea, do que abandoná-las. Ou seja, por oposição aos críticos da secularização que admitem largar totalmente o modelo da secularização ou mudar a direção das suas pesquisas, por conta do acúmulo de críticas aos seus pressupostos teóricos e empíricos, consideramos que a secularização ainda nos oferece um quadro útil para a perceção da situação religiosa nas sociedades modernas, nomeadamente nas europeias, e, por isso, as suas proposições não devem ser descartadas levemente. A (re)teorização, operacionalização e mensuração da societalização e a sua correlação com uma medida composta de religiosidade tem, no nosso ver, tanto de desafiante (pelo modo como os resultados desafiam e atestam, em simultâneo, os pressupostos da secularização) como de urgente, de modo a que se entenda que consequências (revitalização, mutação ou declínio?) os processos da modernidade (que são tão não deterministas como direcionados por diferentes agentes) têm na religiosidade.
Todavia, este estudo é apenas um primeiro passo nesse sentido. Será ainda necessário aumentar as bases de dados disponíveis e, por consequência, refinar os modelos de construção de índices. Será preciso estudar outras variáveis independentes relevantes, como as teorias clássicas (racionalização e diferenciação funcional) da secularização ou as suas atualizações teóricas (segurança existencial e pluralismo). Será fundamental explorar novas grelhas analíticas, como as migrações internacionais, a diversidade cultural ou o terrorismo. Será inevitável examinar diferentes contextos regionais que englobem mais países (cuja comparação se justifique e seja epistemologicamente pertinente) nas análises empíricas. No fundo, como nos disse profeticamente Berger (2014), será necessário estudar os vários altares da modernidade, religiosos ou não religiosos, e entender o paradigma (mutável e que tanto pode significar revitalização, declínio ou transformação) da religião nas sociedades hodiernas. Deixamos, portanto, esses reptos aos cientistas sociais que estejam tão engajados quanto nós em entender os efeitos (positivos ou negativos) dos processos da modernidade na religiosidade.