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Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura

Print version ISSN 0120-2456

Anu. colomb. hist. soc. cult. vol.49 no.1 Bogotá Jan./June 2022  Epub Dec 15, 2021

https://doi.org/10.15446/achsc.v49n1.92642 

Artículos historiográficos

Memorialistica e historiografia: a narrativa de um médico judeu-húngaro sobrevivente de Auschwitz

Memorialistics and Historiography: The Narrative of a Jewish-Hungarian Doctor who Survived Auschwitz

Memorialística e historiografía: la narrativa de un médico judío-húngaro que sobrevivió a Auschwitz

* Universidade Federal Fluminense, Brasil deniserollemberg@uol.com.br

** Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil rvainfas@terra.com.br


RESUMO

Objetivo:

O artigo discute a potencialidade da memorialistica como produtora de textos historiográficos, embora a distinga do conceito de memória utilizado por historiadores. Como fonte especifica do trabalho, escolhemos o livro do húngaro Miklós Nyiszli sobre a sua experiência como membro do corpo médico de Auschwitz em 1944.

Metodologia:

Definimos memorialistica a partir de uma abordagem de critica literária, entendendo o texto como narrativa testemunhal escrita por quem participou diretamente dos eventos relatados. O método empregado foi, em primeiro lugar, a critica interna de fontes proposta pelo historicismo e aprimorada por Marc Bloch em Apologia da História e, em segundo lugar, o método proposto por Lawrence Bardin em Análise de Conteúdo, que permite a segmentação do texto a partir de ideias-chave a critério do investigador.

Originalidade:

Reside, em primeiro lugar, na discussão do status da memorialistica no campo da historiografia e, em segundo lugar, na escolha de autor pouco trabalhado pelos estudiosos do Holocausto, como Primo Levi ou Elias Wiesel (embora tenhamos buscado a opinião de Levi sobre Nyiszli).

Conclusões:

Submetemos o livro a uma critica interna, considerando o papel desempenhado pelo memorialista no serviço médico de Birkenau em 1944. Demonstramos a ambiguidade do texto, espelho de um homem ambivalente, prisioneiro do Nazis e também assistente da ss. Concluimos, enfim, que apesar de prevalecer a descrição de procedimentos, bem como do tom por vezes moralizante, o livro comprova o valor da memorialistica, não necessariamente como texto histórico explicativo, senão como manancial riquissimo de informações sobre o Holocausto, em geral ausentes da documentação do III Reich, que a burocracia estatal destruiu antes da derrota final na guerra.

Palavras-chave: Auschwitz; deportação; historiografia; holocausto; memorialistica; memórias

ABSTRACT

Objective:

The article discusses the potential of memorialistics as a producer of historiographical texts, although distinguishing it from the concept of memory used by historians.

Methodology:

We define memorialistics from a literary criticism approach, understanding the text as a testimonial narrative written by those who participated directly in the reported events. The method employed was, firstly, the internal criticism of sources proposed by Historicism and refined by Marc Bloch in Apologia da História and, secondly, the method proposed by Lawrence Bardin in Content Analysis, which allows the segmentation of the text from key ideas at the discretion of the investigator.

Originality:

It lies, firstly, in the discussion of the status of memorialistics in the field of historiography and, secondly, in the choice of an author who has been little worked on by Holocaust scholars, such as Primo Levi or Elias Wiesel (although we have sought the opinion of Levi about Nyiszli).

Conclusions:

We submitted the book to internal criticism, considering the role played by the memorialist in the medical service of Birkenau in 1944. We demonstrate the ambiguity of the text, mirror of an ambivalent man, prisoner of the Nazis and also an ss' assistant. We conclude, finally, that although the description of procedures prevails, as well as the tone, sometimes moralizing, the book proves the value of memorialistics, not as an explanatory historical text, necessarily, but as a very rich source of information about the Holocaust, generally absent from the documentation of the III Reich, which the state bureaucracy destroyed before the final defeat.

Keywords: Auschwitz; deportation; historiography; holocaust; memorialistics; memoirs

RESUMEN

Objetivo:

En el artículo discutimos el potencial de la memorialística como productora de textos historiográficos, aunque distinguiéndola del concepto de memoria utilizado por los historiadores.

Metodología:

Definimos memorialística desde un enfoque de la crítica literaria, entendiendo el texto como una narración testimonial escrita por quienes participaron directamente en los hechos relatados. El método que empleamos fue, en primer lugar, la crítica interna de las fuentes propuestas por el historicismo y profundizadas por Marc Bloch en Apología de la Historia y, en segundo lugar, el método propuesto por Lawrence Bardin, en su Análisis de Contenido, que nos permite segmentar el texto a partir de ideas-clave en la discreción del investigador.

Originalidad:

En el artículo, en primer lugar, discutimos sobre el estatus de la memorialística en el campo de la historiografía y, en segundo lugar, la elección de un autor menos analizado por los estudiosos del Holocausto, como Primo Levi o Elias Wiesel (aunque hemos buscado la opinión de Levi sobre Nyiszli).

Conclusiones:

Sometimos el libro a la crítica interna, considerando el papel desempeñado por el memorialista en el servicio médico de Birkenau en 1944. Demostramos la ambigüedad del texto, espejo de un hombre ambivalente, prisionero de los nazis y también asistente de las Schutzstaffel (ss). Concluimos, finalmente que, a pesar de predominar la descripción de los procedimientos, así como del tono a veces moralizante, el libro demuestra el valor de la memorialística, no necesariamente como un texto histórico explicativo, sino como una fuente muy rica de información sobre el Holocausto, en general ausente de la documentación del III Reich, que la burocracia estatal destruyó antes de la derrota final en la guerra.

Palabras clave: Auschwitz; deportación; historiografía; holocausto; memorialística; memorias

Introdução

Este artigo versa sobre o relato de um sobrevivente do Holocausto, Miklós Nyiszli, médico húngaro de origem judaica que sobreviveu ao Holocausto de Auschwitz, cujo título original, em tradução literal portuguesa, seria: Fui médico anatomista do doutor Mengele no Crematório de Auschwitz. A obra integra a vasta bibliografia de testemunhos sobre a experiência do Holocausto narrada por judeus sobreviventes, com destaque para Simon Wiesenthal, Elias Wiesel e Primo Levi.1 Alguns deles, como sabem os especialistas, oferecem testemunhos ressentidos e, compreensivelmente acusadores do nazismo. Outros, apesar de externar o mal-estar que o tema provoca, esforçam-se por explicá-lo. O livro de Nyiszli, como veremos, oscila entre as duas perspectivas.

Em todo o caso, integra o gênero memorialístico, cujo valor historiográfico, seja como fonte, seja como texto de história têm ensejado, há décadas, intensos debates acadêmicos. No decorrer do artigo, embora dedicado a uma questão específica (um relato testemunhal do Holocausto) com base em apenas uma obra, o objeto do trabalho a ser aqui desenvolvido se refere a um problema teórico fundamental nas Ciências Humanas: as tensões entre memória e história enquanto tipo de conhecimento e de gênero narrativo.

É certo que não pretendemos inovar em termos conceituais, pois muito já se escreveu sobre as relações entre os conceitos de história e memória. A primeira geralmente apresentada com um status de credibilidade científica mais sustentável, como narrativa do passado; a segunda, desde que muito apegada a ideologias, considerada como conhecimento do passado à luz do Tempo Presente. Para não alongar em demasia uma discussão sobejamente conhecida, recorremos ao texto fácil e clássico de Pierre Nora, que admite as confluências, mas sublinha as diferenças entre os dois tipos de conhecimento.

Glosando o autor, diríamos que a história, como objeto, refere-se a um passado "definitivamente morto", no campo dos fatos e dos significados deles no momento específico em que ocorreram. A ressurreição desse objeto morto começa com as narrativas sobre ele: quem atuou, por que, contra quem, onde e como. Dessa plêiade de questões emerge o conflito entre história e memória. A história ressurge, então, não mais como um objeto a conhecer, senão como um conhecimento veraz do passado, preocupada em contá-lo, compreendê-lo e explicá-lo. O que pressupõe algum apego à imparcialidade, sob o risco de que, sem este cuidado, a história se transforme em ideologia. Mas sabemos como tal imparcialidade é difícil ou sequer desejável, como já dizia Febvre quanto ao historiador ser um homem do seu próprio tempo.2 Pode-se assim dizer que o historiador, nas lides de seu ofício, se engaja em um combate quixotesco: enfrenta destemido o anacronismo, mas é portador de vários juízos anacrónicos que o seu tempo -do historiador- marca, indelevelmente, em sua consciência.

A memória, sempre traiçoeira, penetra neste dilema típico da reconstrução do passado e, ao longo dos tempos, fez o que quis com a história. Celebrou tiranos dizendo-se história; louvou vítimas de opressões sem compreendê-las; cunhou para si mesma o slogan de "politicamente correta", fórmula descaradamente ideológica de sujeitar o passado às prioridades do presente, seja no campo dos governantes, seja no dos opositores ao governo. A memória não necessariamente é mentirosa, mas dilapida intencionalmente a história conforme as conveniências de quem a produz, social e politicamente. Por vezes inventa fatos, pecado mortal do historiador, que também não está livre disso. Lembra-nos Nora de que, em francês, Histoire significa tanto a história vivida como a "operação intelectual que a torna inteligível",3 ao passo que os alemães distinguem a Geschichte da Historie. A primeira é a História que aconteceu, foi narrada e explicada; a segunda é qualquer história, pode ser uma versão da Geschichte, mas pode ser memória, cortando ali, acrescentando aqui, do mesmo modo que a língua inglesa outrora distinguia history de story.

Concordamos com Nora quando diz que história e memória se opõem uma à outra. A memória é viva, mutante e vulnerável a manipulações. A história é a tentativa de reconstrução, quase sempre incompleta, do que não existe mais. A memória é atual, vive no presente até este mudar, enquanto a história reconstrói o passado. A história, como operação intelectual e laica, demanda análise e crítica; a memória tende a sacralizar o passado, mitificá-lo.

No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é a deslegitimação do passado vivido. No horizonte das sociedades de história, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralização última e definitiva. O movimento da história, a ambição histórica não são a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulação.4

Memorialística como gênero

Mas nosso propósito não é retomar as discussões clássicas, senão discutir o potencial teórico-metodológico de um gênero narrativo específico: a memorialística, também chamada de memorialismo. Deriva do latim memora, que designa recordação, narração, com destaque para memoria rerum, recordação dos fatos. Em castelhano também se usa memorialística, de modo que optaremos por esta expressão ibérica no artigo. Mas ela aparece também em outras línguas neolatinas ou germânicas. Em italiano se utiliza memorialística ou narrazione memorialistica. Em francês se utiliza a palavra memorialisme, estudo das mémoires, com "s" no final. O mesmo vale para o inglês, que usa memorialistics para tratar das memoirs, também com "s" (como no francês).

Tampouco é o caso de aqui fazer uma exegese lexicográfica da memorialística, sobre o que há farta bibliografia, senão de sublinhar que o conceito se refere a uma produção escrita. Não é, portanto, sinónimo do conceito de memória, como o de Pierre Nora acima exposto, pois este exprime um tipo de conhecimento que se pretende histórico ou historicamente inspirado, e abrange diversos objetos culturais, além dos textos escritos, a exemplo de monumentos e museus. Interessa-nos examinar um gênero que inclui autobiografias de testemunhas em certos contextos ou períodos, escritos na primeira pessoa. Textos que podem oferecer a visão singular de uma experiência coletiva de determinado grupo social.

Mas é preciso cuidado, sempre, com estas e todas as fontes históricas. Marc Bloch já alertava para o valor da crítica externa e interna do documento, retomando neste ponto, as lições do mestre do historicismo, Leopold von Ranke. Entre os cuidados necessários: assegurar-se da autenticidade do documento e da validez da edição utilizada, no caso de fontes impressas; examinar a biografia do autor ou da agência produtora do texto; contextualizar o entorno histórico que justifica a escritura daquela memória, comparada a outras do mesmo tipo.5

O texto memorialístico, enquanto narrativa, é um gênero historicamente incerto, muito vulnerável às subjetividades; não raro estimula o autor a assumir uma posição privilegiada na explicação da realidade, baseado na sua condição de testemunha ocular. Outras vezes, as memórias são dotadas de forte ânimo ideológico, seja para justificar fatos e processos passados seja para condená-los sem complacência. Oscilantes entre subjetivismos emocionais ou engajamentos ideológicos, até que ponto são credíveis como texto histórico ou mesmo como documento verossímil? Tudo depende do autor, do texto e do contexto.

Um judeu húngaro

Dedicaremos este artigo à análise de uma memória sobre um tema exclusivo: o Holocausto dos judeus em Auschwitz em 1944. Evitaremos fazer mais um, dentre vários comentários de textos auto-vitimizadores produzidos pelos sobreviventes, comentários compreensíveis como informe dos sofrimentos que flagelaram esta população. Tampouco vamos debater com autores negacionistas, ainda hoje em voga, que recusam a intenção genocida do nazismo contra os judeus e outras minorias.6

Nosso foco recairá sobre um autor, sobrevivente de Auschwitz, mas não um sobrevivente qualquer que o acaso poupou da morte, na libertação de janeiro de 1945, mas um judeu de formação médica, afamado legista e patologista, que logrou sobreviver e ainda salvar sua esposa e filha. Prestou serviços valiosos ao serviço médico do 12o Barracão daquela indústria de trabalho forçado, morte massiva e experimentos médicos coordenados por Josef Mengele, médico-chefe da ss no campo. Seu nome: Miklós Niyszly, judeu que embarcou com a família para Auschwitz entre maio e junho de 1944. Integrou uma das últimas levas de judeus deportados aos campos de extermínio alemães e/ou a um último trabalho no esforço de guerra, cujo fim era próximo.

Nascido em 1901, era natural da Transilvânia, na parte húngara do império austríaco, fronteiriça à Roménia. Estudou na Alemanha, formou-se em 1929, especializou-se em medicina forense e ganhou fama na Europa como legista por seus métodos inovadores de dissecação de cadáveres nas autópsias. Foi estrela de congressos especializados em vários países e reconhecido por sua tese doutoral sobre a causa mortis dos suicidas.

Durante a guerra, se não chegou a ser um refúgio de judeus, a Hungria, tornado Estado nacional desde o esfacelamento do império austro-húngaro (1921), foi dos últimos países do leste europeu a adotar uma política antissemita rigorosa. Isto apesar de o chefe de Estado húngaro, Almirante Miklós Horthy, ter firmado uma aliança com o Reich e enviado as divisões húngaras para combater na Iugoslávia, na Tchecoslováquia e, mais tarde, na União Soviética. A aliança com a Alemanha, porém, sempre foi tensa. Horthy exerceu a regência buscando manter a soberania húngara em uma Europa à beira do abismo e, se possível, reconquistar territórios perdidos no Tratado de Trianon (1920). Hitler quase sempre o incentivou exigindo, em troca, cooperação militar e implantação de uma política antissemita.

O governo húngaro agiu com ambiguidade, mas cedeu em vários pontos. Apoiou a política externa da Alemanha e aderiu ao pacto anti-Komintern, em 1939, além de retirar-se da Liga das Nações. Também adotou algumas medidas contra os judeus, como a lei de maio de 1938, que estabeleceu que apenas 20 % de judeus do país poderiam exercer a advocacia, o jornalismo e a engenharia. Uma lei que, segundo Yehuda Don, teve grande impacto na comunidade judaica e na própria população húngara, pois 60 % dos médicos e 50 % dos advogados do país eram judeus.7 Outra lei, um ano depois, excluiu os judeus do serviço público e de empresas comerciais. Em agosto de 1941, enfim, definiu-se uma nova lei racial (sinal de que as leis anteriores podiam ser facilmente burladas) estabelecendo que qualquer indivíduo que tivesse mais de um avó judeu era tido por judeu, proibindo as relações sexuais e os casamentos entre judeus e não judeus. A política antissemita de Horthy foi, nesses anos, muito frouxa para as ambições de Hitler, assim como a de Mussolini, na Itália, que só baixou decretos similares a partir de 1938, nem sempre aplicados.

No campo militar, apesar do apoio nos primeiros anos, Horthy temeu que a URSS vencesse o conflito e entabulou negociações secretas com os Aliados. Internamente combateu comunistas, mas também os fascistas da Cruz Flechada. Seu próprio líder, Ferenc Szálasi, foi quatro vezes preso pelo governo húngaro. Tratava-se de um governo conservador, mas pouco adepto a políticas antissemitas, já que havia muito tempo mantinha uma aliança com a burguesia húngara e dependia de profissionais liberais judeus para o funcionamento da sociedade. Horthy retardou o quanto póde a deportação de judeus para os campos de morte, que só teve início em 15 de julho de 1944. Só então deflagrou-se o Holocausto dos judeus húngaros, com 100 mil deportados nas primeiras semanas.

As relações germano-magiares estavam por um fio e a Alemanha optou por invadir a Hungria, em março de 1944, buscando transformar Horthy em um governante fantoche. Este continuou resistindo e sabotando as deportações, além de iniciar contatos com a URSS para uma rendição, seguro de que os comunistas eram "um mal menor". Horthy foi derrubado em outubro e o poder transferido ao líder da Cruz Flechada, Ferenc Szálasi, governante do país até a invasão soviética.

Miklós Nyiszli passou praticamente incólume durante a guerra, assim como tantos burgueses e profissionais judeus do país, inclusive exercendo cargos estatais. Casado com uma judia, Margareta, tinha uma filha, Susana, então com quatorze anos, conseguindo manter a família unida até maio de 1944. Só então eles foram deportados para Auschwitz II-Birkenau, em comboio de dezenas de milhares de judeus húngaros, onde prestou serviço médico no campo. Ali começou o drama de Miklós, dissecando cadáveres judeus de várias idades, flagelo que durou cerca de seis meses, em tempo cronológico, quiçá um século em tempo emocional. Miklós descreve em detalhe o que fez, a mando de Mengele, com ênfase em necrópsias de gê-meos e anões, que parecem ter sido a especialidade da divisão médica de Birkenau. Muitas experiências atrozes que biografias de Mengele atribuem ao médico-chefe do campo (a exemplo de injetar cores nos olhos de cobaias humanas ou abrir ventres de grávidas) Miklós não menciona. Ou bem ele omitiu tais experiências, porque era o braço direito de Mengele nas lides laboratoriais, ou bem as informações são falsas, fabricadas pelos interessados em carregar nas tintas as crueldades nazistas, como se o nazismo, neste ponto, precisasse de tormentos imaginosos.

Em todo caso, Miklós Nyiszli progrediu no corpo médico de Auschwitz. Começou fazendo dissecações rotineiras, evoluiu para dissecações públicas, como palestrante dos médicos do campo, judeus ou SS, avançou para atuar em um dos crematórios, examinando cadáveres selecionados e formulando relatórios de grande precisão científica para as autoridades médicas de Berlim. Miklós se aproveitou muito do posto para sobreviver em boas condições, sob a batuta de Mengele, e este também aumentou seu prestígio no círculo médico alemão graças à perícia do húngaro. Tornaram-se parceiros, camaradas.

As memórias de Nyiszli

O livro em causa resume, em detalhe, o que aconteceu em Auschwitz, desde que chegavam os trens de gado abarrotados de gente -até cem pessoas por vagão- até o processamento final da operação, na linguagem codificada do regime, isto é, a cremação dos corpos e a eliminação das cinzas. O livro é curto, escrito e publicado em 1946, composto de 39 capítulos, alguns com pouco mais de uma página, e um posfácio. Trata-se de um livro predominantemente descritivo, entremeado, aqui e ali, de opiniões do autor, seja condenando as atrocidades do regime, seja reconhecendo o valor de alguns camaradas, inclusive da SS. Pode ter sido em parte escrito ao longo de 1945, quando Miklós andou percorrendo campos de refugiados na Alemanha após escapar de uma das "marchas da morte" que os nazistas, buscando fugir do avanço soviético, impuseram aos judeus ainda capazes de caminhar. Os últimos capítulos são, inclusive, mais contundentes na crítica ao nazismo e à pseudociência de Mengele, quando o autor abandonou o espírito, por assim dizer, conciliatório da obra. A certa altura do livro, Miklós diz não ser medroso, mas a palavra medo é das mais recorrentes na obra. Antes de tudo, medo da própria morte; medo de enlouquecer; medo de que seus parentes tivessem morrido no campo, sobretudo a mulher e a filha, as quais jamais identifica no livro; medo de ser descoberto em alguma irregularidade inaceitável para as regras do campo. Medo, medo, medo.

Foi sem dúvida por medo e busca frenética da própria sobrevivência (sentimentos humanos) que Miklós Nyiszli serviu à equipe médica de Auschwitz. Dizemos isto porque há quem sugira que ele se apegou a Mengele, oferecendo seus serviços, para salvar sua esposa e filha, além dele mesmo. Isto é inexato. Ao logo do livro, Miklós devaneia, por vezes, sobre qual teria sido o destino das duas, bem como a de seu pai e outros parentes deportados, apesar de ter visto, in loco, a mulher e a filha serem perfiladas à direita por Mengele, o que significava que fariam trabalho no campo e não gaseadas. Além disso, Miklós já atuava com grande empenho para Mengele três meses antes de saber que a esposa e a filha estavam vivas. Só então ele apelou para Mengele permitir que as visitasse em um campo feminino do complexo e, pouco depois, subornando com cem cigarros um oficial do campo C, conseguiu que as duas fossem retiradas dessa seção, então programada para ser eliminada por completo.

Miklós viveu cerca de seis meses no campo desviando-se da morte e atuando na indústria da morte, sobretudo no exame de cadáveres, talvez em outras tarefas. O livro é, por assim dizer, totalmente autocentrado, descreve a sobrevida e a morte em Auschwitz a partir não só do olhar, senão das expectativas do narrador que, sendo judeu, esperava que não tardaria a "solução final" para o seu caso. Ele esteve muito perto de morrer a tiros quando a SS descobriu que membros do Sonderkommando (Esquadrão Especial)8 tinham resgatado uma jovem judia da câmara de gás ainda com vida, embora em estado de choque. É claro que a moça foi fuzilada, depois de sobreviver ao gás Zyklon B, assim como outros prisioneiros responsáveis pelo resgate. Também escapou de punição pela morte de um oficial russo, alvejado por andar perto da cerca eletrificada, embora ele nada tenha feito nesse caso. Nyiszli escapou de tudo, graças à interveniência do famoso doutor Josef Mengele, pois o húngaro era um de seus assistentes preferidos, senão o principal.

O risco de analisar o texto de Nyiszli como exemplo de memorialismo de valor histórico é alto. Antes de tudo por razões teórico-metodológicas, pois se trata de uma testemunha que foi, ao mesmo tempo, vítima e colaborador dos algozes em um enredo trágico da história universal. É por vezes difícil concentrar-se na linguagem do texto, e na forma de sua narrativa, sem evocar as atrocidades expostas nua e cruamente. A ambivalência do narrador também traz, ao menos em princípio, suspeitas sobre os juízos por ele emitidos. Escreveu o livro para absolver-se do que fez? Para omitir o que fez além do escreveu no livro? Para acusar o genocídio nazista?9

Por outro lado, esta mesma ambivalência traz uma paradoxal vantagem para uma reflexão histórica, pois Nyiszli não esconde a sua condição de potencial vítima, tampouco seu esforço de fazer o melhor possível para os nazistas em busca da sobrevivência. É um texto focado na motivação do que ele relata, mas tangencia uma certa imparcialidade, tenta compreender o sofrimento das vítimas e o ânimo dos algozes. Conhecia-os bem. Os judeus, ele os conhecia desde a comunidade judaica húngara, embora fosse um homem laico. Os alemães, Miklós conheceu durante os anos de convivência acadêmica em universidades alemães e congressos científicos.

Passemos, assim, ao texto. Foi publicado em 1946 na língua húngara com título que, traduzido ao português, resultaria em Fui médico anatomista do doutor Mengele no Crematório de Auschwitz A obra foi traduzida em várias línguas postumamente. Jean-Paul Sartre fez traduzir para o francês somente alguns trechos na revista Les Temps Modernes, em 1951. Não teve grande impacto, considerando que a "revolução paxtonienne" estava longe de eclodir, ela que pôs em xeque o ânimo resistente dos franceses em face da ocupação alemã.10 Em 1960, porém, a revista inglesa Merlin traduziu o texto completo com o título Auschwitz: A Doctor's Eyewitness Account, reeditada no Reino Unido em 1986 com título bem diferente: Auschwitz: An Eyewitness Account of Mengele's Infamous Death Camp.

A mudança de títulos ao longo das décadas não é casual. Nos anos 1950 e 1960 ainda vigorava o mito da Resistência francesa, abraçado em outros países, certamente acompanhado da execração dos colaboradores e colaboracionistas,11 tidos como minoria sórdida. A partir da década de 1970, esta visão foi posta em xeque, como vimos, e o próprio corpo de Mengele já tinha sido localizado no Brasil, morto por afogamento na praia de Bertioga, sem falar no mundialmente discutido julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, nos anos 1960, depois de sequestrado pelo serviço secreto israelense (MOSSAD) em solo argentino. O assunto da Resistência / Colaboração na Europa ocupada pelo nazismo ganhou, adiante, uma nova e ruidosa repercussão com a extradição, nos anos 1980, de Klaus Barbie, chefe da GESTAPO em Lyon, verdadeiro flagelo para os judeus e resistentes da região durante o ano de 1940.

De todo modo, um problema liminar se coloca para discutir a questão de fundo deste artigo, ou seja, a inacessibilidade da edição húngara de 1946 -bem como nosso desconhecimento dessa língua-. Nossa experiência em estudos historiográficos sugere, porém, que não é incomum modificações drásticas entre diferentes edições, até mesmo em questões de interpretação, sem falar na tradução do húngaro para o francês, em 1961. Foi obra do renomado Tibère Kremer, mas seus créditos constam como "tradução e adaptação do húngaro para o francês". Se o adágio latino traduttore traditore (tradutor traidor) vale para todas as línguas, o que será de uma tradução da língua húngara, principal grupo do tronco fino-ugriano, que não encontra qualquer equivalência nas línguas indo-europeias, inclusive o latim e seus derivados, a exemplo do francês? Problema insolúvel.

A primeira edição francesa integral do livro de Miklós veio à luz em 1961, intitulada Médecin à Auschwitz: souvenirs d'un médicin deporte. Título mais ou menos neutro que, no entanto, omite a cumplicidade de Nyiszli do título em favor de sua condição de deportado. Seguiram-se várias traduções em polonês, romeno, alemão, italiano, a maioria baseada na versão francesa, inclusive essa com que trabalho, brasileira, traduzida pela Otto Pierre Editores, em 1980. Seu título é anòdino: Médico em Auschwitz, traduzido pela conceituada Valentina Leite Bastos. O uso da tradução brasileira, já de segunda mão -pois se baseou na francesa- de início nos pareceu um obstáculo intransponível. Mas a primeira tradução do original húngaro (a francesa) se encontra totalmente inacessível, e a tradução inglesa (1960) também se baseou em outra tradução, no caso a alemã. Em todo caso, o autor já era falecio (1956) quando seu livro recebeu a primeira tradução.

Além disso, fosse este artigo voltado para uma análise morfológica do texto, na linha da meta-história proposta por Hayden White,12 talvez o trabalho em causa ficasse mesmo inviável. Mas o artigo se ancora, metodologicamente, na análise de conteúdo, de Lawrence Bardin,13 que privilegia o fluxo da narrativa, admitindo a segmentação do texto examinado. Neste sentido, o impedimento de usar uma versão traduzida se desfaz, embora não deixe de nos incomodar, como autores.

Outra ordem de considerações valiosa provém do artigo de Marius Turda, "The Ambiguous Victim". Turda busca se afastar dos que destacam o testemunho de Nyiszli como exemplo inequívoco das atrocidades do nazismo, a exemplo do livro de Saul Friedlànder, que realçou o valor dos testemunhos singulares do Holocausto para a compreensão do processo, a força de "uma voz individual, subitamente emergente no curso de uma ordinária narrativa histórica dos fatos". A obra de Nyiszli preenche este requisito, mas Friedlànder atenua a face colaboradora do médico.14

Por outro lado, Turda se afasta dos que destroem Miklós, como o famoso psicanalista, Bruno Bettelheim, também judeu, no prefácio a uma das edições inglesas da obra de Nyiszli (2012). Bettelheim acusa-o de submeter-se ao nazismo, de ter se convertido em "um instrumento da SS para manter-se vivo". Afirma que tais homens, e Nyiszli não foi o único, "agiram de forma nefanda", mesmo quando se limitaram a dar assistência aos médicos da SS.15 Ao afastar-se das posições polares quanto ao significado das memórias de Nyiszli, Turda pretende lê-la simplesmente como um texto de um prisioneiro judeu, médico e patologista, que trabalhou para os oficiais médicos da SS, em especial Joseph Mengele, nada além disso. A imparcialidade do historiador é difícil de alcançar, sobretudo em tema deste jaez.

Voltemos, porém, à questão do valor historiográfico da narrativa memo-rialística, nosso foco central. Pode causar estranheza que, embora muitas vezes reeditado e traduzido em diversas línguas, as memórias de Miklós não frequentem com o devido peso os debates sobre o Holocausto. A obra é mais citada para tratar das crueldades ordenadas por Mengele do que para tratar de seu autor e texto. Para os negacionistas que duvidam do Holocausto dos judeus, a memória do médico húngaro é totalmente desqualificada, vista como uma farsa produzida pela indústria cultural judaica. Um negacionis-mo explícito, mas peculiar, partiu do historiador israelense Greif Gideon, que caracterizou a obra de Nyiszli entre os "mitos e outros relatos erróneos e difamatórios do Sonderkommando, os quais floresceram por causa da ausência de testemunhos de primeira-mão dos que sobreviveram, entre os prisioneiros executores".16 Trata-se aqui de um negacionismo sui generis, pois não nega o Holocausto, longe disso, mas alivia a cooperação interesseira dos judeus que aderiram e/ou se submeteram ao Sonderkommando.

Em todo caso, para os que denunciam o Holocausto em nome dos judeus exterminados, o livro em foco não ajuda, pois nele é um judeu que se assume como cúmplice do Holocausto para salvar sua vida. Muitos o fizeram, como nos mostra Hannah Arendt, a começar pelos conselhos judaicos dos guetos instalados pelos alemães na Polónia ocupada.17 É farta, aliás, a bibliografia sobre as cumplicidades de prisioneiros judeus ou não com a ss no interior dos lageren, a começar pelos kapi de barracões, os artesãos especializados, os encarregados de separar roupas e classificá-las, cuidando para arrancar jóias e dinheiro escondidos na costura dos tecidos e, certamente, os membros dos Sonderkommandos.

Já os citamos uma vez e agora cabe explicá-los. Eram prisioneiros, por vezes centenas em cada crematório, encarregados de acompanhar os condenados para os vestiários, onde eram desnudados, último pouso antes das câmaras de gás; eram também responsáveis por limpar as câmaras após a chacina, arrancar os dentes de ouro das vítimas, meter os cadáveres nos crematórios, encher os caminhões com as cinzas e, por fim, despejá-las no rio próximo, o Vístula, no caso de Auschwitz. Em contrapartida, viviam em condições muito melhores que o comum dos presos; não trabalhavam em pedreiras; usavam casacos; comiam e bebiam à farta, por vezes alimentos sofisticados trazidos pelos condenados nos trens; circulavam entre os campos do complexo; contrabandeavam de tudo um pouco; tinham licença para fazer sexo com prisioneiras e recebiam a garantia de três ou quatro meses de vida. Após esse período eram eliminados por fuzilamento e substituídos por outro grupo similar. É incontável o número de vezes que Miklós se refere a este prazo fatal, tanto mais quanto se aproximava o deadline do seu grupo.

Nosso autor não era exclusivamente um membro do Sonderkommando do barracão número 12 de Auschwitz-Birkenau, senão um colaborador especial. Além dos privilégios gozados pelos colegas de Kommando, recebia a atenção dos parceiros médicos da ss e seus assistentes judeus (um deles se chamava Gros, outro Levy e outro Epstein). Miklós conta, motu próprio, como se esmerou em falar com alemães da ss sobre a cultura e a língua alemã -que apreciava e dominava- certamente porque ela lhe era familiar e para bajular os poderosos do lugar, dublês de camaradas, conforme a tarefa ou situação.

Miklós não se escusa de dizer que, ao chegar a Auschwitz, logo que ouviu a pergunta sobre quais eram médicos, dentre os homens de seu grupo, foi o primeiro a se voluntariar, ninguém o obrigou, só pensava em salvar sua vida. Ele admite sem o mínimo constrangimento que, para lograr tais objetivos, tinha que caprichar no trabalho, dar o máximo de si na dissecação de cadáveres, mormente nos gêmeos, pois esta era uma tópica de pesquisa especial na agenda de Mengele. Afinal, dizia o mestre, como lembra Miklós, era uma oportunidade única e excepcional examinar o corpo de indivíduos nascidos e mortos no mesmo dia, ao mesmo tempo. Nisto podia residir o segredo da vida. Uma enormidade de médicos da época, alemães e outros, também acreditava no valor de tais experiências, em especial as praticadas em cobaias humanas.

Ao narrar sua participação nesses atos, Miklós falava como médico, poucas vezes denunciou a atrocidade desumanizadora, como se ele mesmo compartilhasse daquelas convicções. Também os médicos alemães, segundo o relato de Miklós, tratavam-no como um dos seus, parecendo esquecer que ele era judeu, membro de uma "raça inferior" passível de ser usada como cobaia. Miklós notou este paradoxo, mas preferiu registrar que tal confraternização era um indício de que poderia se salvar. Particularmente enfatiza, quase em êxtase, que Mengele o elogiava, colocando-o acima dos demais na arte da necropsia e do exame patológico. Os colegas de Sonderkommando, registra Miklós, não lhe queriam bem por vê-lo mais aquinhoado de privilégios e tratado com deferência, o que os demais sequer sonhavam em alcançar.

Tais fatos têm grande importância para se estudar e compreender o cotidiano do Holocausto: as hierarquias entre cativos, o entrelaçamento entre carcereiros e prisioneiros, as tratativas no mercado negro, a complexidade, enfim, de um sistema concentracionário, como o definiu David Rousset.18 Um sistema que longe de ser uma "instituição total" (considerando o paradigma de Goffman,19 calcada em regras e hierarquias inquebrantáveis) funcionava com capilaridade extraordinária entre carcereiros e prisioneiros; entre os próprios prisioneiros de mesma nacionalidade; entre prisioneiros de campos distintos; entre cativos de diversas procedências, húngaros, poloneses, tchecos, ciganos, comunistas, homossexuais e ladrões. Aliás, conta-nos Miklós que a SS dava clara preferência por criminosos comuns para kapi de barracões, talvez para eliminar identidades culturais em cada nicho desses condenados.

Mas afora os fatos chocantes, a maior parte deles conhecida dos especialistas, salta à vista o estilo da narrativa. Seleciono ao acaso a descrição do laboratório que seguia a sala da dissecação dos mortos: [341]

É a sala de trabalho. Ali se encontram móveis de estilo e quadros; no meio da sala uma grande mesa coberta de tecido verde; à volta, poltronas confortáveis. Diviso três microscópios em cima da mesa. Num canto, uma grande biblioteca cheia de livros de medicina, entre as quais as edições mais recentes. Um outro armário guarda jalecos brancos, aventais, toalhinhas e luvas de borracha. Em resumo, é a cópia exata do instituto de anatomia patológica de qualquer grande cidade moderna.20

O trecho acima bem poderia integrar o relatório favorável de um oficial auditor da SS sobre as condições laboratoriais do serviço médico de Auschwitz. Instrumentos e roupas adequadas, conforto e uma biblioteca atualizada e bem fornida. Mas é Miklós, um médico-prisioneiro judeu, quem está a descrever a "sala de trabalho". Trechos deste tipo prevalecem nas memórias do médico, o que justifica a indignação de autores como Bettelheim em face de Miklós.

Em alguns trechos, Miklós ensaia elogios aos algozes. Depois de criticar um deles, emenda:

Mesmo o doutor Mengele tem, de tempos em tempos, algo de humano. Por ocasiões da seleção da rampa, se vê uma jovem sã que quer a todo o custo partir com a mãe no grupo da esquerda (câmara de gás), ralha com ela grosseiramente e ordena-lhe reunir-se ao grupo da direita (trabalhos forçados). Mesmo o primeiro atirador do crematório n. 1, Oberscharfúhrer Mussfeld, dispara uma segunda bala naquele que não morreu imediatamente com a primeira.21

São comentários extraordinários, quase inacreditáveis, em especial vindos de um prisioneiro judeu de Auschwitz. Nas palavras de Miklós, Mengele cresce humanamente por "poupar" a jovem da câmara de gás em troca de trabalho escravo. Quantas outras e outros Mengele teriam "poupado", reservando-lhes trabalho extenuante em condições de saúde péssimas? O próprio Nyiszli, noutra passagem, afirmara que o trabalho forçado causava morte pior, porque lenta, do que os rápidos minutos aspirando gás na câmara. Quanto ao oficial Mussfeld, afamado por sua perícia no uso da pistola contra os indefesos, Miklós reconhece, por um único episódio, que alguma complacência ele tinha com as vítimas. O tal tiro de misericórdia.

Vale também registar a identificação frágil de Miklós com o povo judeu, pois há trechos em que os judeus são tratados como outros. Tratados como vítimas do nazismo, mas também dele, que servia ao regime. Na maioria das vezes, o autor se concentra em descrever as tarefas ligadas ao extermínio e às experiências médicas, quase desumanizando as vítimas em favor dos métodos empregados e da eficácia dos procedimentos. Há, porém exceções, que merecem citação exatamente pela sua excepcionalidade no conjunto da obra:

Que drama terrível nossa existência de judeus. Sou eu, médico judeu, que devo examiná-los por métodos clínicos precisos antes que eles morram e, devo, em seguida, eu próprio, dissecar seus corpos ainda quentes. Estou de tal modo perturbado por essa terrível ironia de nossa sorte de judeus que sinto meus nervos esgotados... Por vontade de quem tantas desgraças e tal sucessão de horrores se abateram sobre o nosso desgraçado povo? É Deus que assim o deseja?22

Eis o que parece ser um desabafo de Miklós com sua desdita, embora aqui sobressaia um sentimento de pertença aos judeus e ao judaísmo. Ele aqui se vê como um judeu que atua no extermínio de judeus, revelando um drama de consciência que, porém, se atenua pela insinuação de que isto pode ser um desígnio divino. Há outro trecho em que Miklós externa indignação, como no posfácio, no qual Miklós Nyiszli conta o reencontro com a esposa e filha, resgatadas de Bergen-Belsen, aproveitando para fazer profunda autocrítica:

Meus olhos acompanharam dois milhões de inocentes até as câmaras de gás e fui testemunha dos horrores das fogueiras. Abri centenas de cadáveres por ordem de um médico ao mesmo tempo genial e demente, a fim de que uma ciência construída sobre teorias falsas aproveitasse do campo de investigações ilimitado [...]: vítimas enviadas à morte [...]. Cortei a carne de cadáveres de jovens sãs e preparei com ela alimento para as culturas de bactérias do doutor Mengele. Mergulhei cadáveres de estropiados e de anões em cloro ou fi-los ferver durante dias a fim de que esqueletos bem preparados chegassem aos museus do III Reich para justificar, diante das futuras gerações, a necessidade que havia de destruir um povo.23

Trata-se, provavelmente, de trecho acrescentado na revisão final do livro, lavando sua alma, depois de atuar com tanta eficácia no genocídio de Auschwitz. Mas isto não passa de especulação, unicamente baseada na ausência de senso crítico do autor quanto à presumida ciência embutida naquelas experiências de Mengele. No dia a dia do genocídio, Nyiszli se esmerava, segundo ele mesmo conta, em cumprir as ordens de Mengele com máxima competência. Tudo para proteger a si e aos seus do extermínio reservado à comunidade judaica confinada em Auschwitz. Enfim, não pode passar sem comentário, no trecho citado, a qualificação de Mengele como médico "genial e demente", ao mesmo tempo. Genial por qual razão, se Mengele fazia experiências com cobaias humanas baseado em preconceitos raciais de elevado potencial genocida? Demente por que, se ao longo de todo o livro, Miklós reconhece o prestígio de Mengele na comunidade científica germânica, além de jactar-se várias vezes por ser tratado com deferência pelo renomado chefe? Uma conclusão possível para este caso é a de que o senso crítico de Nyiszli era muito débil. Ou que ele o dosava na escrita, enxertando alguns trechos, aqui e ali, para atenuar a culpa por ele mesmo assumida.

Outro desabafo foi proferido em relação a setembro de 1944, quando se aproximava o fim dos quatro meses de vida do Sonderkommando em que atu-ava (o duodécimo do campo): "dentro de duas semanas, o Sonderkommando terá terminado. Morreremos todos aqui e bem o sabemos".24 É nesta altura que o autor menciona a redação de uma mensagem, assinada pelos duzentos homens condenados da sua turma. O documento, redigido em três vias, uma delas destinada à divulgação por meios clandestinos, as demais enterradas em lugares diferentes do complexo, descrevia os horrores cotidianos do lugar, o número aproximado de exterminados (não diz quantos, mais tarde fala em dois milhões), os modos de matar e os instrumentos utilizados. Não nos espantaria que algum historiador venha a descobrir que a mensagem redigida em três cópias fora escrita por Miklós, ao menos nas partes descritivas sobre o modus operandi de Auschwitz nas práticas de extermínio. Ele conhecia todo o campo, inclusive as áreas de execução nos bosques, embora concentrasse sua ação no eixo crematório-dissecação-exame laboratorial.

Em todo caso, como a guerra estava perdida pela Alemanha e os soviéticos avançavam já na Polónia, a SS acabou não executando todos os Son-derkommandos. Matou centenas de homens de vários deles, sem substituí-los, mas deixou alguns vivos para executar os serviços necessários para apagar as provas do que houve ali, como explodir os crematórios. Entrementes, uma parte dos poupados organizou um levante, que estourou em 7 de outubro de 1944, deflagrado no crematório número um. A repressão foi atroz, mas a resistência também o foi. Dezenas de SS, no mínimo, morreram sob o fogo dos rebeldes, sobretudo poloneses (judeus e políticos). Havia tempos vinham armazenando pólvora, montando explosivos e roubando armas, inclusive granadas.

Miklós dedica um capítulo ao levante, passando ao leitor a ideia de que participou da conspiração. Mas comparados aos detalhes que conta de seu trabalho como assistente de Mengele, os da revolta são modestos. Menciona o plano geral, a rota de fuga e fatos da batalha de que não participou, escondendo-se no prédio do crematório com sete outros médicos.25 O medo da morte sempre presente, a exemplo do trago de um só gole de uma aguardente polonesa horas antes do levante: "não é com certeza um elixir de longa vida, mas é um excelente remédio contra o medo da morte". Ou avaliando a possível derrota dos insurretos: "mesmo que a empresa não seja bem-sucedida, é escapando que prefiro morrer".26

Nossa impressão, como historiadores, é a de que Miklós Nyiszli se sentiu na obrigação moral de condenar o que ocorria em Auschwitz em curtas passagens, inclusive enumerando os tipos de execução perpetrados no campo, além das câmaras de gás: injeções de clorofórmio no miocárdio e tiros na nuca com arma de baixo calibre, balas de chumbo, por vezes, seguidas da incineração dos cadáveres na floresta contígua. Isto ocorria, diz o autor, quando o aparato dos crematórios não abrigava os milhares transportados nos trens, sendo necessário eliminar as vítimas por outros métodos, a modo de manter ativa a produção de cadáveres.

Mas o que prevalece na obra? Informações exaustivas, eruditas e técnicas sobre os trabalhos que realizava no serviço médico do campo, seja no crematório seja na sala de dissecação, seja ainda no laboratório. Miklós exibe à farta seus conhecimentos e experiência médica, o porquê de como fazia as dissecações, de como preenchia os relatórios, de como informava sobre a causa mortis, cuidando para não dizer mais do que convinha informar ao Reich. Não faltam ao livro considerações sobre o ângulo da penetração das balas que matavam as vítimas, detalhes sobre a estropiação dos crânios, o estado dos intestinos nos acometidos por tifo e a situação do coração dos que, na sua opinião, morriam pela ação de injeções fatais. As descrições são frias, e delas a mais exemplar se refere ao "quadro horrível" da câmara de gás após o extermínio das vítimas:

Os cadáveres não estão deitados por toda a parte ao longo e ao largo da sala; estão apertados num montão da altura do compartimento. A explicação reside no fato de que o gás inunda primeiro as camadas inferiores do ar e só se eleva lentamente até o teto. Obriga os desgraçados a se pisotearem subindo uns em cima dos outros. Uns metros acima, o gás os alcança um pouco depois. Que luta desesperada pela vida! Entretanto, trata-se de um prazo de dois ou três minutos. Se tivessem podido refletir, teriam percebido que pisoteavam seus filhos, seus pais, suas mulheres. Mas não podiam refletir.

Os seus gestos não passam de reflexos automáticos do instinto de conservação. Observo que embaixo do monte de cadáveres acham-se os bebês, as crianças, as mulheres e os velhos; no cume os mais fortes. Os corpos com numerosas arranhaduras ocasionadas pela luta em que se engalfinharam estão muitas vezes enlaçados. Nariz e boca sanguinolentos, rosto inchado e azulado, deformado, os tornam irreconhecíveis. Entretanto, os do Sonderkommando reconhecem muitas vezes seus parentes. É um duro encontro e eu o temo. Nada tenho que fazer aqui e, entretanto, desci entre os mortos. Sinto que é meu dever para com meu povo e o mundo inteiro poder dar a conhecer o que vi se, por milagroso acaso, escapo. O grupo do Sonderkommando calçado de grandes botas de borracha, põe-se em linha à volta da montanha de cadáveres e a inunda com possantes jatos de água. É indispensável, pois o último ato da morte provocada por afogamento ou por gás é a defecação involuntária. Todos os mortos estão sujos.27

Este trecho é um primor de reportagem que transporta o leitor para dentro da câmara. O autor transforma letras em imagens como poucos livros de história são capazes de fazer. A escala de observação é microscópica, sem trocadilho, e por vezes parece descrever etnologicamente um rito. Mas, convenhamos, há um quê de chocante na frieza excessivamente científica da descrição de tão hedionda tragédia. Há originalidade nisto, pois Miklós evita o tom lamurioso ou ressentido que prevalece em obras sobre o Holocausto escritas por "caçadores de nazistas" como o respeitado Simon Wiesenthal. Mas não alcançamos nesta descrição de cena-chave do Holocausto uma palavra sequer indicativa de solidariedade. Chamá-los de "desgraçados" indicá-lo-ia? Não é o que pensamos. O trecho parece extraído de um relatório científico-administrativo. Acaso reproduz o tom dos relatórios que Nyiszli entregava a Mengele para enviar a Berlim? Exprime o seu modo de sentir e pensar a tarefa que lhe era confiada? Exibe a vaidade intelectual pela própria perícia médica?

O fato é que o testemunho de Miklós permite ao historiador conhecer a máquina mortífera de Auschwitz por dentro, bem como a adesão do depoente às exigências técnicas de seu cargo. Fica-nos, porém, uma sensação de baixo humanismo, talvez resultado de seu medo, e consequente empenho em demonstrar eficiência profissional. Mas por que, afinal, Miklós escreveu um livro em que externava seu comprometimento com a matança de Auschwitz quando a Alemanha estava já derrotada? Eis problemas da memorialística que os historiadores de ofício não conseguem explicar pela falta de outras fontes confiáveis.

Memorialística e historiografia

Em algumas passagens já analisadas, Miklós Nyiszli justifica o seu livro como um alerta ao mundo, uma denúncia dos horrores perpetrados nos campos de extermínio. Já vimos que a maior experiência dele foi em Auschwitz, mas ele, em meio à "marcha da morte", passou por Treblinka, Mathausen, Bergen-Belsen e outros. Foi um dos primeiríssimos a testemunhar por escrito o cotidiano dos campos de extermínio e as práticas genocidas do III Reich, lembrando que a edição húngara da obra data de 1946.

Isto posto, passemos a discutir o conteúdo da obra em foco à luz da questão proposta no início do artigo: pode a memorialística produzir textos de valor historiográfico? Responder a questão pressupõe definir historiografia e, para encurtar as considerações, vamos nos apoiar em uma resenha que o grande historiador norte-americano Carl Becker publicou na American Historical Review, em 1938, "What is Historiography?", comentando a obra A History of Historical Writtings de Henry Barnes. Trata-se de texto seminal pois, como lembra o tradutor da resenha em sua apresentação, Fábio Iachtechen, tais discussões ainda eram muito incipientes nos Estados Unidos dos anos 1930. Em poucas palavras, Carl Becker sugeriu que a historiografia:

Deveria ser, como tem sido até recentemente, algo mais do que a enumeração de trabalhos históricos desde os gregos, com alguma indicação sobre os propósitos e pontos de vista dos autores, as fontes utilizadas e a precisão e legibilidade dos trabalhos em si. O objeto principal destas iniciativas historiográficas é a avaliação, a partir de padrões modernos, do valor destes trabalhos históricos para nós. Neste nível, a historiografia nos oferece um manual com informações sobre histórias e historiadores, nos provendo, por assim dizer, com um claro balanço das "contribuições" de cada historiador para a soma total do conhecimento histórico verificado e disponível.28

A partir dessa definição, se a historiografia, digna desse nome, pressupõe informações confiáveis sobre a história estudada, a consistência das fontes e, além de tudo isto (o que não é pouco) a avaliação das contribuições do historiador, comparado a outros, para o conhecimento histórico verificado e disponível sobre determinado objeto, a memorialística não preencheria as exigências para alcançar o status historiográfico.

A memorialística por vezes usa fontes confiáveis, outras vezes não se baseia senão na experiência pessoal do autor da memória. A subjetivida-de, até certo ponto inerente ao trabalho do historiador, pode transbordar a razoabilidade, pode distorcer os fatos e pode mentir. Por outro lado, há textos memorialísticos abundantemente baseados em documentos autênticos e pertinentes. Há textos memorialísticos em que, à falta de documentos escritos, o próprio autor, como testemunha idónea, é ele mesmo o grande corpus documental. Há textos memorialísticos, enfim, que além da erudição indispensável ao ofício do historiador, são dotados de elevado espírito crítico, como sugere Becker no seu artigo, escrito às vésperas da Segunda Guerra Mundial e no mesmo ano em que os nazistas perpetraram a Kristallnacht29 na Alemanha.

Nyiszli na obra de Primo Levi

Não resistimos a fazer este cotejo, no mínimo porque ambos foram companheiros de infortúnio em Auschwitz, cada qual na sua posição. No máximo, porque os livros de Levi sobre o Holocausto, embora também pertençam à memorialística, procura ir além, propondo conceitos operativos para a análise de sociedades onde prevalece o aspecto prisional ou militarmente opressivo. Levi contou sua experiência dramática em Auschwitz pouco depois da guerra: É isto um homem? Foi publicado por uma pequena editora italiana, em 1947, após ter sido recusado pela Einaudi, considerada uma "editora de comunistas". Mas a Einaudi mudou de ideia em 1958 e reeditou a obra, traduzida em várias línguas, o que abriu caminho para Primo Levi ser reconhecido como um dos maiores intelectuais do século xx.

Levi não tinha lido Nyiszli quando publicou seu primeiro livro e nem poderia, porque desconhecia a língua húngara.30 Mas o livro de Miklós não lhe fez falta. Há, inclusive, várias coincidências factuais entre os dois relatos quanto às violências e humilhações de prisioneiros no campo. Mas enquanto o médico as relata com frieza, temperando-as com lamúrias eventuais, Levi as narra em perspectiva histórico-antropológica (que adquiriu como autodidata), sem ocultar, como já disse, o mal-estar daqueles fatos. Além do mais, o fundamental reside em que Levi teoriza sobre as relações volúveis do cotidiano de Auschwitz, propondo, em 1986, o conceito de "zona cinzenta". Uma zona de relações em princípio indecifrável, pois algozes e cativos tanto se odiavam como, circunstancial ou estruturalmente, colaboravam uns com os outros. Uma zona onde os SS competiam entre si, faziam negociatas em prejuízo do III Reich, do mesmo modo que os prisioneiros se digladiavam: poloneses contra russos; políticos contra ciganos ou judeus; judeus contra judeus.

É exatamente nisto que reside a pertinência de incluir Levi em contraste com Nyiszli: o fato de o primeiro basear-se em sua experiência pessoal para propor categorias capazes de interpretar relações humanas individuais e coletivas para além da simples descrição de gestos e fatos. Inspirado em Primo Levi, Pierre Laborie demonstrou, entre outros, a amplitude do conceito de zona cinzenta, ao afirmar que a maioria dos franceses viven ciou os tempos da ocupação alemã de maneira ambivalente, entre apoio e rejeição, conforme as circunstâncias e a conjuntura. Uma atitude que o autor chamou de "pensar-duplo", típica da zona cinzenta, capaz de abrigar escolhas opostas, seja em uma sociedade concentracionária, seja em uma sociedade militarmente dominada.31 Também por causa desta elaboração teórica, rascunhei esta comparação com assumida verticalidade, colocando Levi como parâmetro, considerando-o mais como hermeneuta do complexo prisional do que como vítima. Em todo caso, Miklós Nyiszli não alcançou a complexidade das relações socioculturais de um regime concentracionário cujo objetivo final era o extermínio dos presos. Quando muito a tangenciou, ao descrever suas inúmeras etapas e procedimentos. Mas sua obra se concentra no dilema maniqueísta entre o bem e o mal, envolvendo dramas de consciência explícitos, tudo agravado pelo fato de Miklós não diferenciar, com nitidez, o bem do mal, a ponto de elogiar, em certas passagens, a competência de doktor Mengele.

Em É isto um homem? Levi não menciona Miklós como médico de campo, mas faz considerações sobre o que designa como "judeus proeminentes", os que tinham cargos de destaque por diversas razões, a principal delas a proximidade com oficiais importantes da SS. Eram obviamente uma pequena minoria que, no entanto, comia melhor, usava casacos no inverno, por vezes morava em barracões mais espaçosos ou até em pequenas casas. Levi inclui os "proeminentes" na zona cinzenta, enquanto prisioneiros que, apesar disso, colaboravam com o regime, atuando no massacre da maioria cativa. Mas tende a considerá-los como fracos de caráter, a partir de um juízo moral:

São o típico produto do campo de concentração alemão: basta oferecer a alguns indivíduos em estado de escravidão uma situação privilegiada, certo conforto e uma boa probabilidade de sobrevivência, exigindo em troca a traição da natural solidariedade com os companheiros, e haverá por certo quem aceite.32

Os proeminentes são, nas palavras de Levi, majoritariamente "monstros de insociabilidade e insensibilidade". Mas ele não inclui os judeus do Sonderkommando entre os proeminentes no livro de 1947, apesar de suas condições de vida razoáveis, por vezes ótimas. Talvez porque a probabilidade de sobrevivência deles só valia por quatro meses, talvez porque supunha que eram obrigados a integrar o Esquadrão.

Seria lícito especular se Levi se incluía entre os proeminentes? Claro que sim porque, como especialista em química, trabalhava em um laboratório que prestava serviços a uma das fábricas do campo, comia melhor, vestia-se melhor. Mas seu relato, em várias memórias, mostra também que passou necessidades, frio e sede, pois não ofereciam aos sobreviventes sequer água potável. Longe estava de ter privilégios acessíveis a um simples kapo de barracão. Também há muitas passagens em que o autor se autoflagela por usufruir de algum benefício enquanto a imensa maioria se esfolava, carregando pedras e madeiras pesadíssimas. Levi fala de si como se fosse a encarnação de um personagem da zona cinzenta, dentre vários. Ávido por benefícios mínimos, porém sofredor como a maioria dos prisioneiros. Nunca foi proeminente, tampouco foi "muçulmano", nome dado à imensa maioria dos presos explorados até a morte no trabalho escravo, a vida por um fio nas próprias lides ou levados à câmara de gás quando não prestavam mais para coisa alguma.

No livro de 1986, Os afogados e os sobreviventes, Levi cita explicitamente nosso médico judeu do campo:

Miklós Nyiszli, médico húngaro, esteve entre os pouquíssimos sobreviventes do último Esquadrão Especial de Auschwitz. Era um conhecido anatomatologista, especializado em autópsias, e o médico-chefe dos ss de Birkenau, aquele Mengele que morreu há poucos anos fugindo da justiça, se valia de seus serviços; reservava-lhe um tratamento de favor e o considerava quase como um colega. Nyiszli devia dedicar-se especialmente ao estudo de gêmeos: com efeito, Birkenau era o único lugar no mundo em que existia a possibilidade de examinar cadáveres de gêmeos assassinados no mesmo momento. Ao lado desta tarefa particular, à qual, diga-se de passagem, não parece que ele se tenha oposto com muita determinação, Nyiszli era o médico do Esquadrão (Sonderkommando), com o qual vivia em estreito contato.33

Por que Levi não menciona Miklós no livro de 1947, se ali citou nominalmente vários proeminentes, deixando para incluí-lo entre os colaboradores quase quarenta anos depois? Provavelmente porque nunca o conheceu. Viviam e trabalhavam em áreas muito distantes no complexo de Auchwitz-Birkenau. Miklós deixou o campo na "marcha da morte", à qual sobreviveu, inclusive levou comida para a viagem. Levi só foi liberado com a chegada dos soviéticos. Por pouco não se tornou um "afogado" no lugar de "sobrevivente".

Seja como for, ficamos com a forte impressão de que Levi fala de Miklós a partir do relato do próprio médico e não por experiências vividas. Percebe que ele era um proeminente -assistente de Mengele- e sugere mesmo que tenha participado das experiências médicas da SS com interesse. Mas fá-lo quase como um aposto, diferentemente do modo como escreve sobre muitos que conheceu no campo, acompanhando de perto seus atos. Levi tentou poupar Miklós por ter, também ele, escrito um relato que pôs luz na zona cinzenta, embora sem teorizá-la? Poupou-o por não ter sido ele, Levi, testemunha ocular dos atos de Nyiszli, tampouco de Mengele? Adotou a prudência de um historiador por vocação? Ou, pelo contrário, denunciou abertamente Miklós por meio de palavras elegantes. Perguntas sem resposta. A última hipótese, se válida, deixaria em aberto um intrigante por quê.

Conclusão

Ao discutir a validez historiográfica da memorialística nosso artigo enveredou, também ele, em uma "zona cinzenta da escrita da história". Tema fartamente discutido por historiadores em um âmbito planetário. É sabidamente difícil avaliar a credibilidade de um texto histórico escrito por testemunha ocular que, queira-se ou não, envolve um facciosismo assumido, seja ele moralmente aceitável ou não do ponto de vista do tempo presente. Isto vale igualmente para Levi, exceto pela sua sensibilidade histórico-antro-pológica, para não dizer sociológica e psicológica, dos fatos sociais descritos, desde o seu primeiro livro de 1947.

O livro de Nyiszli, porém, apesar do tom mais descritivo, por vezes moralizante, comprova o valor da memorialística, não como texto histórico explicativo (ele chega a insinuar que toda aquela desgraça poderia derivar da vontade de Deus), senão como manancial riquíssimo de informações sobre o Holocausto. Informações ausentes da documentação do III Reich, que a burocracia estatal destruiu, em sua grande maioria, tanto mais credíveis quanto o próprio autor não se exime de culpa por perpetrar, como adjunto, diversas atrocidades.

É certo, porém, que o relato de Nyiszli, deixa muitas perguntas sem resposta. Por exemplo, quem aplicava injeções letais nas vítimas (que ele detalha com precisão)? Como pôde descrever tão bem as execuções ocorridas no bosque contíguo a Birkenau? Nyiszli participou de muitos atos que descreveu sem dizer qual era o seu papel neles. Mas Levi há de ter omitido muitos fatos também, sabe-se lá por quais razões, a menos que se queira canonizá-lo pela sua contribuição maiúscula às Ciências Humanas. O mesmo ocorre, aliás, com a historiografia profissional, a mais isenta que seja; a mais empenhada em contar o que aconteceu para tentar explicá-lo. Como se sabe, o historiador ou historiadora sempre seleciona, também, o que vai contar e o que não vai; como vai contar ou omitir.

Trabalhos citados

I. FONTES PRIMÁRIAS

Documentos impressos y manuscritos

Nyiszli, Miklós. Médico em Auschwitz. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1980. [ Links ]

Levi, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. [ Links ]

Levi, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. [ Links ]

Wiesel, Elias. A noite. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. [ Links ]

Wiesenthal, Simon. O caçador de nazistas. Rio de Janeiro: Bloch, 1967. [ Links ]

II. FONTES SECUNDÁRIAS

Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [ Links ]

Bardin, Lawrence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. [ Links ]

Becker, Carl. "What is Historiography?". The American Historical Review 44.1 (1938): 20-28. [ Links ]

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1 Estes são apenas alguns exemplos, não obstante, célebres. Ver bibliografia ao final do artigo.

2Lucien Febvre, Combates pela História (Lisboa: Biblioteca de Ciências Humanas, 1977).

3Pierre Nora, "Entre memória e história", Projeto História 10 (1993): 8.

4Nora 9.

5 Marc Bloch, Apologia da História: ou 0 oftcio do historiador (Rio de Janeiro: Zahar, 2001).

6Henry Rousso propós o conceito a propósito dos que negavam o Holocausto. O negacionismo prima por negar fatos amplamente documentados, quase sempre para ocultar, distorcer ou minorar tremendos massacres perpetrados em várias épocas. Henry Rousso, Le syndrome de Vichy de 1944 à nosjours (Paris: Seuil, 1987).

7 Yehuda Don, "The Economic Effect of Antisemitic Discrimination, 1938-1944: Hungarian Anti-Jewish Legislation", Jewish Social Studies 48.1 (1986): 63-82.

8Esquadrão especial de prisioneiros encarregados de conduzir as vítimas às câmaras de gás, limpá-las depois da execução, retirar os cadáveres, extrair os dentes de ouro e cremá-los. Este esquadrão possuía um serviço médico onde atuou Nyiszli.

9Atribui-se ao jurista polonês de origem judaica, Raphael Lemkin, a proposição da palavra "genocídio" como crime de massa praticado contra determinada nação ou grupo étnico. Inspirada pelo extermínio de milhões de judeus, a onu aprovou, em 1946, uma resolução definindo o genocídio como "negação do direito à vida de grupos humanos", particularizando os grupos étnico, religioso ou político. Para aprofundar o assunto: Philippe Sands, East West Street: On the Origins of the Concept of "Genocide" and "Crimes Against Humanity" (New York: Knopf, 2017).

10O xeque-mate na memória da França resistente veio com o livro do historiador norte-americano Robert Paxton, Vichy France (New York: Knopf, 1972), traduzido para o francês em 1973. Paxton sustentou que Vichy não foi mero fantoche da Alemanha nazista, senão o próprio Estado francês reformulado. Demonstrou que o regime pretendeu associar seu projeto de Revolução Nacional à nova ordem nazista na Europa, apoiado por elites sobretudo agrárias, valorizadoras de tradições regionais, da hierarquia e do catolicismo. O impacto provocado pelo livro ficou conhecido como "revolução paxtoniana", e inspirou diversos estudos.

11Entre os franceses, "colaboracionista" é o indivíduo que aderiu aos nazistas por convicção ideológica, enquanto "colaborador" é o que prestou serviços ao ocupante por diversas razões, inclusive por medo.

12Hayden White, A meta-história (São Paulo: edusp, 1992).

13Lawrence Bardin, Análise de conteúdo (Lisboa: Edições 70, 1979).

14Saul Friedlànder, Nazy Germany and the Jews (New York: Harper Collins, 2002).

15Marius Turda, "The Ambiguous Victim: Miklós Nyiszli's Narrative of Medical Experimentation in Auschwitz-Birkenau", Historien 14.1 (2014): 43.

16Gideon Greif e Andreas Kilian, "Significance, Responsability, Challenge: Interviewing the Sonderkommando Survivors", Sonderkommando-Studien, abr. 7, 2004. https://web.archive.org/web/20110905053041/http://www.sonderkommando-studien.de/artikel.php?c=forschung%2Fsignificance.

17 Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

18David Rousset, L'univers concentrationnaire (Paris: Pavois, 1946).

19Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos (São Paulo: Perspectiva, 1974).

20Miklós Nyiszli, Médico em Auschwitz (Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1980) 42.

21Nyiszli lol.

22Nyiszli 216 -217.

23Nyiszli 272.

24Nyiszli 145.

25Acerca do filme The Grey Zone [A zona cinzenta] (2001), dirigido pelo norte americano Tom Blake Nelson, as páginas de cinema da web informam ter sido baseado no livro de Nyiszli, apesar de "zona cinzenta" ser conceito criado por Primo Levi, como veremos adiante. O foco recai, porém, na tentativa do Sonderkommando de salvar a menina húngara que sobreviveu ao gás e na revolta de outubro de 1944. O médico Miklós Nyiszli é personagem relevante, mas não protagonista. Historicamente, foi a custo que ajudou na tentativa de salvar a moça, além de hesitar em apoiar o levante.

26Nyiszli 189-191.

27Nyiszli 58-59.

28Fabio Iachtechen, "O que é historiografia?", Revista de Teoria da História 2 (2020): 334. Original: Carl Becker, "What is Historiography?", The American Historical Review 44.1 (1938): 20-28.

29Depredação de lojas de judeus, destruição de sinagogas e prisões e assassinatos deles (estima-se em quase cem) promovido pelo regime, na noite de 9 de novembro de 1938, em represália ao assassinato de um diplomata alemão em Paris por um judeu polonês.

30Porém, após a libertação de 1945, Levi escreveu, em parceria com o médico Leonardo de Benedetti, um relatório publicado em 1946: Assim foi Auschwitz. Uma encomenda dos soviéticos. Levi pode tê-lo aproveitado em É isto um homem (1947).

31Pierre Laborie, "1940-1944. Os franceses do pensar-duplo", A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX, vol. 1, orgs. Denise Rollemberg e Samantha Quadrat (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010) 31-44.

32Primo Levi, É isto um homem? (Rio de Janeiro: Rocco, 1988) 133.

33 Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990) 28. Grifo nosso.

Cómo citar este artículo Denise Rollemberg y Ronaldo Vainfas, "Memorialística e historiografia: a narrativa de um médico judeu-húngaro sobrevivente de Auschwitz", Anuário Colombiano de Historia Socialy de la Cultura 49.1 (2022): 325-354.

Recebido: 06 de Junho de 2021; Aceito: 26 de Abril de 2021

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