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Forma y Función

Print version ISSN 0120-338X

Forma funcion, Santaf, de Bogot, D.C. vol.23 no.2 Bogotá July/Dec. 2010

 

INTERATIVIDADE NA CORRESPONDÊNCIA
PUBLICADA EM JORNAIS PAULISTAS
*

INTERACTIVITY IN THE CORRESPONDENCE
PUBLISHED IN THE NEWSPAPERS OF SAO PAULO

Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
Universidade de São Paulo, Brasil
maluvictorio@uol.com.br

Artículo de investigación, recibido 07-04-2008, aceptado 06-06-2011


Resumo

O objetivo deste trabalho é focalizar, numa perspectiva textual-interativa, como o gênero discursivo carta do leitor foi se constituindo e se modificando a partir das necessidades interacionais, isto é, o dialogismo estabelecido entre o escrevente e seu interlocutor, evidenciado por meio das marcas lingüísticas encontras nas Cartas publicadas em jornais paulistas do século XIX. Nesses jornais, havia uma seção de cartas enviadas pelos leitores da época, cujo propósito era, em certos casos, pedir ajuda para resolver algum problema ou contar um episódio particular que precisava de uma solução. Podemos dizer que essa seção seria uma espécie de consultório de reclamações, pedidos ou mesmo para estabelecimento de contato com parentes ou amigos. O corpus é constituído de 14 cartas publicadas entre os anos de 1828 e 1893, nos seguintes jornais paulistas: Farol Paulistano, Diário de São Paulo, A Província de São Paulo, Correio Paulistano.

Palavras chave: carta do leitor, dialogismo, gênero discursivo, interatividade.


Abstract

The objective of this paper is to analyze, from a textual-interactive perspective, how the discursive genre of letters from the readers was constituted and modified due to interactive needs, that is, the dialogism established between writers and their interlocutors, as evidenced in the linguistic markers found in the letters published in the Sao Paulo press in the 19th century. Those newspapers had a section dedicated to letters sent by the readers, many of which asked for help in solving a problem or told about a specific episode that needed a solution. Thus, it could be said that this section was an advice and requests column, as well as a way of establishing contact with relatives or friends. The object of study is made up of 14 letters published between 1828 and 1893 in the following newspapers: Farol Paulistano, Diário de São Paulo, A Província de São Paulo, Correio Paulistano.

Key words: dialogism, discursive genre, interactive markers, letters from the readers.


[...] a palavra, esse dom divino que fez do homem simples matéria organizada, um
ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma [...], esculpida no jornal, é
prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão.

CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS, PUBLICADA EM O ESPELHO,
EM 23 DE OUTUBRO DE 1859

Considerações iniciais

Pretende-se focalizar, neste trabalho, como o gênero discursivo carta do leitor foi se constituindo e se modificando a partir das necessidades interacionais, isto é, o dialogismo estabelecido entre o escrevente e seu leitor, evidenciado por meio de marcas linguísticas encontradas nas Cartas publicadas em jornais paulistas do século XIX. Nesse material, havia uma seção de cartas de leitores, cujo propósito era, em determinados casos, pedir ajuda para resolver algum problema ou contar um episódio particular que precisava de uma solução. Podemos dizer que essa seção seria uma espécie de consultório de reclamações, pedidos ou mesmo para estabelecimento de contato com parentes ou amigos. Cabe observar que algumas cartas são enviadas ao Redator, já outras são diretamente endereçadas a amigos ou parentes.

O material analisado é composto por 14 cartas publicadas entre os anos de 1828 e 1893, nos seguintes jornais paulistas: Farol Paulistano, Diário de São Paulo, A Província de São Paulo, Correio Paulistano1.

O contexto de situação em que as cartas se efetivam está revelado no próprio texto. Tal revelação não se dá de uma forma mecânica, mas por meio de um relacionamento sistemático entre o meio social, de um lado, e a organização funcional da língua, de outro. A interação ou interatividade é elemento fundamental do discurso/ texto, do que é constitutiva, pois se trata de uma troca explícita ou implícita, com outros enunciadores e supõe a presença de um outro ao qual se dirige o enunciador e com relação ao qual constrói seu discurso.

1. Conceito de interação

A interação é considerada um dos componentes do processo de comunicação, isto é, faz parte de toda atividade de linguagem, construindo efeito de sentido nesse processo. Para Bakhtin (1929), ela "é a realidade fundamental da linguagem". Segundo Brait (2002, p. 194), "é um fenômeno sociocultural, com características linguísticas e discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e interpretadas".

Ao estudar um texto a partir da perspectiva textual-interativa, pode-se observar as relações interpessoais veiculadas pela maneira como a situação comunicativa está organizada. Isso significa que o texto deve ser observado não apenas em relação ao que está dito, mas também as formas da maneira de dizer, pois estas permitem uma leitura dos implícitos que se revelam e evidenciam a interatividade "como um jogo de subjetividades, um jogo de representações em que o conhecimento se dá através de um processo de negociações, de trocas, de normas partilhadas, de concessões" (Brait, 2002, p. 194).

Em toda interação, os interlocutores estão reunidos sob determinadas condições "contratuais", que estão diretamente ligadas ao contexto situacional e aos papéis sociais dos participantes dessa interação. Uma análise textual deve, portanto, levar em conta os traços lingüísticos que permitem reconhecer a intencionalidade do enunciador, os efeitos de sentido construídos por esse enunciador ou pelo locutor por ele instaurado/instituído, e a persuasão ou manipulação que o enunciador busca exercer sobre o eunciatário (leitor).

Segundo Bakhtin (1927, p. 16), todas as línguas possuem meios gramaticais de expressão dos aspectos das diferentes atividades humanas e os papéis que os interlocutores desempenham em tais atividades, refletindo em sua própria estrutura o evento da inter-relação desses usuários: "1ª 2ª e 3ª pessoas e estrutura de sentença variável de acordo com a pessoa do sujeito ("eu" ou "você" ou "ele"). A forma de uma proposição sobre uma 3ª pessoa, a forma de um tratamento de uma 2ª pessoa, a forma de um enunciado sobre si próprio (e suas modificações) já são diferentes em termos de gramática".

Desse modo, o conceito de interação é parte integrante da concepção de linguagem que orienta a perspectiva textual-interativa, buscando olhar para a materialidade linguística e para a situação comunicativa constitutivas de uma enunciação e de um enunciado concreto, visando a observar as condições de produção, de circulação e de recepção de uma determinada situação comunicativa: em nosso corpus, as cartas do leitor.

Para discutir a questão do interlocutor, ou como dizia Bakthin (1929), para tratar do conceito do outro, é preciso considerar o papel do ouvinte/leitor, dado que a enunciação se constrói a partir da interação estabelecida entre os interlocutores na situação discursiva. A relação dialógica ou dialogismo é, portanto, condição de linguagem. No texto escrito, há o estabelecimento de uma relação dialógica ou diálogo, em sentido amplo, entre o enunciador (autor/escrevente) e o enunciatário (leitor). Cabe lembrar que a atividade verbal sob a forma escrita também é orientada em função de intervenções anteriores da mesma natureza. Ao analisar o texto escrito é necessário levar em conta não só o conteúdo e a relação do enunciador com esse conteúdo, mas principalmente a relação do enunciador com o outro e com os discursos desse outro, explicitados ou presumidos.

Em relação às cartas do leitor, importa dizer que estão relacionadas a assuntos vividos pela sociedade da época e noticiados nos jornais ou a aspectos pessoais. Daí a motivação para escrever no jornal, tendo a possibilidade de o leitor publicar sua crítica, opinião ou pedido pessoal.

2. Origem da carta

A carta2 é o gênero discursivo preferido por pesquisadores que se dedicam aos estudos diacrônicos da língua devido à sua proximidade com a oralidade. Por meio dela pode-se pesquisar a evolução do próprio gênero carta, sua função em épocas distintas, além de verificar seu papel no desenvolvimento ou (re) criação de outros gêneros. Nesse sentido, a carta pode ser analisada como um gênero que revela uma tradição discursiva (TD) da língua portuguesa no Brasil, evidenciando uma reorientação, adaptação ou mesmo mudança ao longo do tempo.

Na Antiguidade, as cartas serviam para informar as pessoas, ocupando o lugar dos jornais. Em seu livro O jornalismo antes da tipografia, Rizzini (1977, p. 9) assinala que as cartas:

Passavam de mão em mão quando continham novidade de interesse. Liam-se, comentavam-se, transcreviam-se as [...] em que os grandes personagens expunham seus pontos de vista. Era por meio delas que, atacado, defendia-se o político diante das pessoas cuja estima desejava conservar; emudecido o Fórum, como no período de César, era por meio delas que se procurava formar num público restrito uma espécie de opinião geral. Certas cartas afixavam-se nas praças ou corriam em cópias distribuídas pelos destinatários, tornando-se públicas.

A partir do momento em que no século XVIII a carta, considerada um gênero básico, passa a exercer a função de correspondência privada entre amigos e parentes, pode-se dizer - conforme Pessoa (2002, p. 201) - que outros gêneros começam a se definir. Nessa perspectiva, o jornal (que se originou da carta) "passou a incorporar posteriormente a carta, agora, diferenciada desse instrumento originário".

Na visão de Bakhtin, as sociedades e culturas são várias, assim como suas atividades, cuja mediação é feita pela linguagem. Os usos dessa linguagem são tão variados quanto variadas forem as atividades humanas, que moldam a linguagem por meio de enunciados relativamente estáveis, garantindo a comunicação verbal. Esses enunciados constituem os chamados gêneros discursivos.

Os gêneros discursivos são textos empiricamente realizados, encontrados na sociedade de forma materializada, tais como: notícia, artigo, entrevista, carta, bilhete, crônica, romance, receita culinária, situados no espaço e no tempo. Para Marcuschi (2001, p. 43), a definição dos gêneros é de natureza sócio-comunicativa, baseada em parâmetros pragmáticos e discursivos, visto que sua sedimentação se dá por meio de práticas sociais que visam a determinados propósitos comunicativos.

Ao analisar o gênero carta, Silva (1997) afirma que esse gênero discursivo per-mite uma variedade de tipos de comunicação, tais como: pedido, agradecimento, conselho, congratulações, desculpas, informações, intimação, prestação de contas, notícias familiares, etc. A autora acrescenta que, embora sendo cartas, não são da mesma natureza, pois circulam em campos de atividade diversos, apresentando funções comunicativas variadas: nas relações pessoais, nos negócios, entre outras. Desse modo, esses tipos de cartas podem ser considerados subgêneros do gênero maior "carta", pois todos apresentam traços comuns, sua estrutura básica: a seção de contato, o núcleo da carta e a seção de despedida; mas são classificados quanto à forma de realização e suas intenções. Assim, encontramos carta pedido, carta resposta, carta pessoal, carta programa, carta circular, carta ao leitor, carta do leitor, entre outras.

2.1. Carta do leitor

Levando em conta a perspectiva funcional-interativa, verificamos que a carta do leitor é um texto que circula no contexto jornalístico em seção fixa de jornais e revistas, denominada comumente de cartas, cartas à redação, carta do leitor, painel do leitor, destinada à correspondência dos leitores. Em outras palavras, a carta é utilizada em situação de ausência de contato imediato entre remetente e destinatário, que não se conhecem (o leitor e a equipe editorial do jornal ou da revista), visando a atender vários propósitos comunicativos: opinar, agradecer, reclamar, solicitar, elogiar, criticar, entre outros. É um gênero de domínio público, de caráter aberto, com o objetivo de divulgar seu conteúdo e possibilitando a sua leitura ao público em geral.

Na atualidade, as cartas do leitor são divulgadas em jornais e revistas de grande circulação e tratam de notícias ou reportagens de temas de interesse nacional, publicadas nesses veículos de comunicação, ou de solicitações feitas pelos leitores, pois são de fácil acesso, demonstram um contato, por parte deles, com os fatos importantes e recentes da sociedade e estão escritas em registro formal ou semiformal do Português.

Sabemos que nem toda carta do leitor é publicada, pois há sempre uma triagem para a seleção das cartas a ser, efetivamente, publicadas e entre aquelas que são selecionadas para publicação pode haver ainda uma edição, como ocorre normalmente no Jornal Folha de S. Paulo ou na Revista Veja, por exemplo. Por razões de espaço da seção ou por direcionamento argumentativo, as cartas podem ser resumidas, parafraseadas ou mesmo ter informações eliminadas. O que acaba, segundo Bezerra (2002, p. 211), "por configurar-se como uma carta com co-autoria: o leitor, de quem partiu o texto original, e o jornalista, que o reformulou".

Entretanto, nos jornais do final do século XIX não é bem isso o que se vê. Na verdade, nos jornais selecionados as cartas são colocadas integralmente e versam sobre os mais variados e distintos assuntos vividos pela sociedade da época e noticiados nos jornais ou sobre temas pessoais: pedidos, reclamações, comentários, busca de contato com parentes ou amigos, entre outros.

Nessa época, a carta do leitor foi muito produtiva e, segundo Pessoa (2002, pp. 201-202), esse gênero - conhecido na imprensa como correspondência - "parece ter se transformado no artigo jornalístico muitas vezes rotulado de opinião". Fundamentando-se em Sodré (1999: 148), o referido autor afirma que normalmente um só artigo ocupava todo o espaço do jornal de então que, geralmente, era composto de apenas duas páginas.

Seguindo a perspectiva teórica relativa às atividades comunicativas elaborada por Silva (1997), passamos a apresentar sua proposta teórica para a análise das cartas do leitor. Essa proposta engloba aspectos formais (estrutura discursiva, isto é, o modo de organização da informação: narração, descrição, exposição, argumentação) e funcionais (unidade comunicativa e sua força ilocucionária) que se associam na classificação do gênero carta.

Nas cartas sob análise3, encontramos um exemplo significativo em que o escrevente faz uso da estrutura narrativa para contar um diálogo que ouvira, quando estava descansando na ponte do ferrão, entre um senhor português e um estudante brasileiro. Esta carta foi publicada no Farol Paulistano, em 15 de março de 1828. Vejamos um pequeno trecho:

(1) Senhor Redactor

Depois de cessar um pouco essa abundante chuva, que desde o anno passado tem caído todos os dias sem interrupção, quis ver o estado da varzea do Carmo, e se com effeito tinha-se conseguido o fim d'esgotá-la, dirigi-me até a chamada ponte do ferrão, que foi entulhada e vi o pêso das aguas, que não respeita grandes barreiras [...]. De volta sentei-mea descançar na ponte fraca e aí estavão talvez ao mesmo fim dois sugeitos, um dos quaes era um Portuguez velho, e Brasileiro novo, [...] Logo que cheguei encetavão elles uma conversação, e por me parecer interessante apenas voltei a casa tracteri d'escrevê-la para me não esquecer, e suppondo que possa alguem julgá-la tambem interessante lh'a envio para que se digne publicar no seu Farol.

Quanto ao uso de estrutura descritiva, a carta selecionada no exemplo (2) - publicada no Correio Paulistano, em 22 de julho de 1893 - é construída com base na descrição de um indivíduo. Observemos:

(2) Rio Verde

Ha mezes que appareceo nesta cidade um individuo alto, corcunda, espadaúdo, meio careca; ao longe parece com corvo mestre e outros disem que com o abestruz e eu me inclino para quaesquer das duas aves. Disem chamar-se "Cruz", este antigo pa- tibole de malfeitores, emfim pelo nome não se perca.

Disem tambem ser amphibio, porem não parece pela pelle; que é orgam hoje e outros que é Realejo por ter manivella. Ja ouvi tratal-o de ganso e doutor Scismado, mas não sei se attende por esses nomes. O que sei é que ja foi juiz, cujas bravatas existem em cartorio onde exerceo esse cargo, despachando em um inquerito onde disem, era indiciado e hoje é representante da so ciedade.

Sei mais que scisma soffrer dos pulmões e nem as pedras o convencem do contrario. No jury tem voz aflautada e as vezes parece guincho de vehiculo de duas rodas, e me affirmam mesmo que toca flauta e flautim. Pretende, havendo mudança de situação ser nomeado juiz de direito de uma Comarca visinha. O seu ar é de bôbo e por isso muito esquivo. Advinhem: quem é o biographado?

Rio Verde, 15 de Julho de 1893.
JOÃO CALDAS.

A seguir, buscaremos relacionar as cartas do leitor a essa proposta teórica. O gênero carta é uma unidade comunicativa, pois apresenta uma estrutura de informação a partir de uma organização típica, para uso em contextos específicos: ausência de contato imediato entre o emissor e o destinatário. Entretanto, esta é uma categoria bastante ampla, apresentando uma diversidade de textos e propósitos.

Na visão de Swales (1990), o termo carta faz referência ao meio de comunicação, mas carece, como categoria, de uma indicação de propósito suficiente para alcançar o status de gênero.

Realmente o termo carta é abrangente e, nas palavras de Silva (1997, p. 121), pode-se dizer que é

pouco esclarecedor: com exceção do formato externo - cabeçalho, data, assinatura - e algumas expressões formulaicas freqüentes em suas seções iniciais e finais, o corpo da carta permite qualquer tipo de comunicação: desde as vantagens de um determinado cartão de crédito até informações sobre o condomínio, passando pelas esperadas novidades do amigo que mora no exterior. Todas são cartas, mas não devemos colocá-las na mesma categoria.

As várias possibilidades de uso das cartas remetem a distintos campos de atividades: a propaganda, os negócios, a correspondência pessoal. Essas categorias suscitam o papel que a carta representa na interação social. Nessa perspectiva, podem ser analisados como subgêneros do gênero carta. De acordo com Swales, o termo carta é uma espécie de rótulo conveniente para reunir, supragenericamente, os discursos

Se observarmos as cartas a partir do propósito comunicativo, isto é, do objetivo do emissor ao escrevê-las, podemos estabelecer categorias que se relacionam à intencionalidade do emissor ou sua funcionalidade: pedido, agradecimento, informação, reclamação, entre outros.

Os enunciadores das cartas sob análise são pessoas que vivem na cidade de São Paulo ou no Estado de São Paulo e procuram, por meio do jornal, atingir propósitos bem específicos e variados. Dentre as cartas levantadas até o momento, destacam-se: pedido; reclamação; desabafo; comentário sobre matéria publicada, comentário ou crítica a políticos, sobre as escolas públicas, as condições das estradas, iluminação pública, limpeza urbana; biografia; confissão.

Em algumas correspondências o propósito é explicitado pelo enunciador, aparecendo em posição de destaque logo no início do texto. Com frequência, o objetivo da carta não é indicado tão claramente, devendo ser inferido. Veja-se o exemplo a seguir:

(3) A Companhia de Navegação Paulista

Senhores Redactores. - Li por duas vezes, no jornal de vv.ss., reclamações sobre a irregularidade dos vapores desta companhia e da desconsideração com que se tratava os Paulistas, deixando de os avisar das trasnferencias por meio de annuncios, etc. [...]. (A Província de S. Paulo, 12 de março de 1875)

Quanto ao nível de sua estrutura discursiva, a carta do leitor não apresenta um tipo específico e, nesse sentido, diferencia-se do conto ou da receita, considerados textos prototípicos das respectivas estruturas que representam. Na carta, sequências narrativas, descritivas, argumentativas convivem harmoniosamente, como já apontamos anteriormente. Por isso, muitas vezes, é difícil delimitar as porções de cada tipo textual, que se sucedem numa progressão/transição quase imperceptível. Cabe lembrar que o estudo dessa mescla dos tipos de estruturas textuais não pode ser desvinculado do estudo da organização tópica.

A carta é sem dúvida um gênero discursivo, porém é tida como um gênero complexo. Trata-se, como já se viu, de uma correspondência em que diversas estruturas podem estar na base de sua composição. Talvez para melhor analisar e compreender esse gênero discursivo seja necessário observar o propósito de cada carta, qual a sua função enquanto atividade social, que papéis sociais são desempenhados pelos interlocutores.

3. Papéis sociais e formas de tratamento nas cartas do leitor

Neste momento, importa observar a relação entre os papéis sociais estabelecidos nas cartas sob análise e as formas de tratamento da língua.

O conceito de papel social refere-se, segundo Preti (2000, pp. 85-86), à participação do homem no grupo social. Assim, na visão do autor:

[...] cada indivíduo tem uma posição dentro de um grupo (seja ele um grupo restrito ou primário, como a família; ou um grande ou secundário, como o Estado, por exemplo). Mas, podendo pertencer a vários grupos sociais, pode ocupar também várias posições sociais, Poderá, por exemplo, ao mesmo tempo, ser o pai, na família; o professor, na escola; o jogador na equipe esportiva; o pregador, na Igreja etc. A essas posições sociais definidas do indivíduo no grupo costuma-se chamar status.

O papel social é, portanto, a maneira de o indivíduo estabelecer sua correlação vital com outras pessoas. Para Preti, (óp. cit), o locutor precisa desempenhar seu papel adequadamente, e isso necessita de um certo esforço consciente para poder produzir a impressão almejada. Desse modo, "a conduta é regulada não apenas conforme os requisitos do papel funcional, mas também de acordo com o que o público espera" (p. 89).

A linguagem é um componente essencial no desempenho do papel social. Ainda conforme Preti (2000, p. 89):

[...] ao falarmos, podemos refletir o tempo em que vivemos (variação diatópica); nossa condição sociocultural, profissão, grau de escolaridade (variação diastrática); nos-so sexo, faixa etária, ou aspectos de nossa personalidade, como timidez, agressividade (variação psicofísica); a situação de comunicação de que participamos, a forma verbal de interagirmos, decorrente do grau de intimidade que temos com nossos interlocutores, do tema que tratamos, da menor ou maior formalidade exigida, que resultará em registros diferentes, numa fala tensa ou distensa (variação diafásica)

Quando se analisa a relação entre os papéis sociais e a variação linguística adequada para representá-los, merece um olhar especial o estudo das formas de tratamento, ou seja, a maneira por meio da qual os interlocutores se tratam e o que pode representar na interação a escolha de uma forma ao invés de outra disponível na língua.

O uso das formas de tratamento liga-se a fatores diversos, como: intimidade, polidez, afetividade, poder, hierarquia, reverência, solidariedade. Ocorre, normalmente, nos diálogos ou nos vocativos e, nestes últimos, apresentam uma variedade devida à situação comunicativa. Nas cartas do leitor, de modo geral, os vocativos são: Senhor Redactor, Ilustríssimo Senhor Redactor, Senhores Redactores; mas há casos em que o leitor escreve diretamente para um parente, amigo ou conhecido, ou ao público: Querido esposo (carta dirigida a um voluntário da Pátria), Ao Chico Salles, Ao Compadre do Monge, Compadre Pancracio, Comadre Chiquinha, Amigo Antonio Nardi Vasconcellos Junior, Aos fazendeiros e possuidores de escravos, Ao público, etc.

Na língua portuguesa, o sistema de tratamento pode ser representado por: formas pronominais: os pronomes pessoais (tu, vós); formas pronominalizadas: termos com valor de pronomes pessoais (você, o senhor, Vossa Excelência, Vossa Senhoria e suas variações); formas nominais: nomes próprios, prenomes, nomes de parentesco ou equivalemtes, ou uma variedade de nomes empregados como vocativos ou formas de chamamento. O uso de qualquer uma dessas possibilidades depende das relações entre os diversos status sociais e os papéis para desempenhá-los. Entretanto, alguns usos podem-se fixar por mais tempo do que outros, em virtude da dinâmica das transformações sociais. Cabe observar que, nas relações entre status, não é possível passar, de repente, de um tratamento mais formal como o senhor (que implica autoridade, poder) para você (que implica intimidade, solidariedade), sem marcar a mudança de papéis sociais.

Com base nos trabalhos de Brown e Gilman (1960), pode-se analisar uma semântica do poder e outra da solidariedade, separando os dois grupos de tratamento que servem para evidenciar as posições manifestadas nas diversas relações sociais: patrão/empregado (status ocupacional), jovem/idoso (status etário), entre outros.

Segundo Robinson (1977, p. 126), sociedades que apresentam uma hierarquia muito forte, com manifestações de status atribuído (nobre/plebeu, em séculos passados), possuem uma série de formas de tratamento discriminativas, graduadas e co-ocorrentes com outros traços linguísticos. Esse fato caracteriza a semântica do poder. Ainda hoje, em sociedades modernas, encontram-se resquícios fortes dessa presença, com a permanência da classe nobre com status e papel social definidos.

Em sociedades com status social adquirido, os tratamentos apresentam variações e, conforme Preti, as formas de tratamento indicam aproximação maior e intimidade entre os interlocutores, o que constitui a semântica da solidariedade.

Em tais sociedades, como ocorre em muitos países da América, onde há menos formalidade, o sistema de tratamento apresenta-se mais simétrico, cujas variantes antes indicativas de graduação de poder expressam também intimidade e solidariedade (você/tu). Assim, muitos traços diferenciadores acabam, gradativamente, perdendo esse emprego.

Na atualidade, há a tendência a um progressivo desaparecimento de formas de tratamento indicativas de poder. No Brasil, um traço característico dessa mudança está em algumas formas de tratamento, como você e seu uso ampliado em relação a o senhor, conforme Preti (2000, p. 94), evidenciando uma "quebra de formalismo".

Talvez a transformação mais relevante das formas de tratamento no Português do Brasil diga respeito ao uso de tu e você. O sistema reduziu-se ao uso de você, tanto para indicar intimidade como cortesia, deixando a maior ou menor intimidade para a oposição tu/o senhor, o que não ocorre no Português Europeu em que tu (forma pronominal)/você (pronome de tratamento) indicam intimidade/igualdade.

Entretanto, no século XIX é difícil distinguir com rigor o uso das duas formas tu e você. Pode-se afirmar que ambos os tratamentos se integram na semântica da solidariedade. Já para o plural ficou somente a forma vocês, visto que vós desapareceu da língua falada no Brasil, sendo utilizado apenas na oratória pública.

No corpus deste trabalho, porém encontramos uma carta publicada no jornal Correio Paulistano, em que o remetente trata seu interlocutor por vós:

(4) Para que vos metteis a tralhão, meu rabula quadrado? Já que fallasteis em uso fazendo lei, pergunto-vos, com que condição ouso faz lei?" e mais adiante alterna o uso de vós/tu ao usar o imperativo: "Ora ide plantar batatas. Se reincidirdes chamo-vos á palmatoria [...]. Ande, vai para escola orelhudo (22 de junho de 1854).

Neste exemplo, observa-se uma crítica bastante violenta por parte do escrevente, que se dirige a seu interlocutor como: parvo, bolonio, meu pedaço d' asno, rabula, entre outros. Entretanto, há outro exemplo em que a esposa escreve para o jornal, dirigindo uma carta a seu esposo: um voluntário da pátria, empregando o pronome vós.

(5) Carta dirigida a um Voluntario da Patria

Querido esposo.

Embaú 10 de Setembro de 1865.

Tive o delicioso prazer de receber a vossa prezada carta, com data de 18 do proximo passado mez, a qual me encheu de orgulhoso prazer por ter certeza de que vos achavas gosando perfeita saude, e as rogativas que faço a bem aventurada virgem é que ao receberes esta vos acheis no goso da mesma. [...]

Quanto a mim só vos posso protestar os mais sinceros votos de estima amisade e fidelidade, e vos envio o saudoso e fiel coração, e um apertado abraço, por ser como sempre serei Vossa estremosa, constante, e fiel esposa.

Eulalia Maria Silveria (Correio Paulistano, 26 de setembro de 1865)

O uso de vós para a segunda pessoa do singular, antes mesmo do século XIX, é considerado um arcaísmo que se mantém em situações de reverência e prestígio, constituindo um exemplo de semântica do poder; entretanto, no exemplo citado (4), o uso de vós cria um efeito de sentido de ironia e descaso em relação ao interlocutor, uso esse que se mescla com o de tu, já que o poder e o prestígio são trocados pelo descrédito e pela inferioridade.

Quanto às expressões utilizadas nas relações de poder, incluem-se todas as formas pronominalizadas, com exceção de você: vossemecê, o senhor, a senhora, a senhora Dona, o senhor Dr., o cavalheiro, V. Exa. V. Sª. , entre outras. Tais formas indicam respeito, hierarquia e são usadas de acordo com o status atribuído ou adquirido dos interlocutores.

Nos exemplos seguintes (6 e 7), para dirigir-se ao redator do jornal, o interlocutor usa formas diversificadas. Há casos em que emprega Vossa Senhoria, como no exemplo (6), escrito por uma lavadeira. Já há outros em que o interlocutor usa o pronome de tratamento vcm, como em (7), embora o vocativo empregado seja o senhor e, em alguns momentos, use a forma senhor. Nesses exemplos, verifica-se uma variação no uso da forma empregada para dirigir-se ao redator, interlocutor conhecido apenas por intermédio do jornal, sem caráter íntimo ou de grande conhecimento partilhado.

(6) Consequencias da nova numeração

Senhor redactor.

Sou lavadeira e engommadeira, e tenho sempre exercido as minhas modestas profissões com applauso do Senhor publico e dos meus freguezes da academia. Morei d'antes no becco do inferno e ha cousa de 3 mezes mudei-me para esta sua casa, onde vivia tranquillamente em quanto na cimalha da porta se lia o NUMERO 20, mas o proprietario querendo embellezar o front-spicio do seu predio entendeu que devia mandar caial-o, o que fez, empregando em tal obra um senhor pintor muito chué que borrou-me o 2 do vinte, e ficou minha casa com o numero 0 !

Ora, eu sou muito procurada pelos meus freguezes e por isso quando elles indagão da minha casa preciso dizer-lhes o nome da rua e numero da porta, para que eles vão lá direitos. [...].

Ora, como conto a vossa senhoria já tudo isto erão tristezas para a minha alma e por isso tencionava mudar-me do meu cazebre. [...].

Vossa senhoria que é muito perspicaz hade notar os meus prejuizos e em virtude delles espero que reclamará em | meu favor, afim de que me seja restituída a cifra no seu lugar, ao contrario eu pinto na porta o que me parecer e não dou cavaco á nação. Eu não vivo de borrões na porta, entenda-se.

Estou zangada e não quero articular mais. Peço-lhe que me olhe pela cifra como cousa sua.

Até a primeira.

Sua criada

Apollinaria Gerundia de Mattosinhos (Correio Paulistano,12 de agosto de 1865)

(7) Lembranças minhas

Senhor redactor.

Sou uma assignante das suas folhas por minha conveniencia e das meninas, que gostão de ler os romances e as pilherias que o snr bota todos os dias.

Na realidade são muito bonitas.

Vmc. é muito espirituoso, e aquella sua cousa do jry já me arrebentou os cordões às saias de tanto rir. [...].

O senhor bota sempre nos jornaes os preços dos comestiveis e etc; mas não falla do preço das costuras, nem do valor dos ovos. Isso é uma falta, perdoe-me.

Olhe, se não se costurasse, nós andavamos nús. Credo, que vergonha! Não acha?

E os ovos são muito peitoraes. Se em vez do expediente do thesouro vmc. pozesse o custo destas cousas, olhe que havia de ter mais assignantes. [...].

Conforme fôr, se eu vir que o negocio deixa, dou mais elasticidade ao estabelecimento e o snr. ha de ter um interesse sacudido!

Faça alguma cousa neste assumpto que não hade perder comigo.

Desculpe o bote de rapé Princeza, que envio para consolo dos seus narizes.

Sua predilecta

Generosa Máxima (Correio Paulistano, 25 de agosto de 1865)

Biderman (1972-1973, pp. 358-359) apresenta os usos das formas de tratamento no mundo de fala portuguesa na Idade Média e afirma que o tu era marca de intimidade, afeto, emotividade ou ainda de inferioridade. Já o vós indicava nãointimidade, distância ou respeito e superioridade. No mesmo uso de vós, encontramos as formas Vossa Mercê, vossa Senhoria e Senhor.

A forma você aparece, provavelmente, no século XVIII como tratamento intermediário entre tu e Vossa Mercê. Para Biderman, você e Vossa Mercê coexistem nesse século e como apresentam valores ligeiramente diferentes, a autora não sabe se teria derivado da evolução de Vossa Mercê como afirmam alguns estudiosos, dentre eles José Pedro Machado:

Quando se considera as inúmeras variantes de Vossa Mercê levantadas por Plà Cárceres na literatura dos séculos XVI, XVII e XVIII, outra hipótese pode ser aventada. O tratamento de Vossa Mercê deve ser importado da Espanha. Ao, no final do século XVI e primeira metade do século XVII, Portugal estava sob o domínio espanhol. Além disso, as relações entre as sociedades portuguesa e espanhola sempre foram muito intensas e estreitas desde os tempo medievais. Compare-se agora variantes espanholas como: voaçed, vueçed, vassuncê, vuaçed, voazé, vuazé, vuezé, todas registradas por Cárceres. Note-se quão vizinhas se encontram foneticamente de você. Vassuncê do repertório de Cárceres também se encontra nos meios rurais portugueses e brasileiros, a par com Vosmecê e ocê. Essa última freqüente na fala urbana brasileira de vários níveis. Talvez você simplesmente represente uma daquelas variantes que corriam na Espanha senão em toda a Pensínsula Ibérica. (p. 363)

Cabe apontar ainda que no Brasil a substituição de tu por você, como forma de tratamento familiar e íntima, deve ter ocorrido na passagem do século XIX para o XX. Por isso no corpus sob análise a forma você é a menos encontrada, há poucas ocorrências. Veja-se, a seguir, o texto (8), no qual o escrevente dirige-se à mãe, empregando a forma Vossa mercê; já para interagir com o irmão, usa o pronome você4.

(8) Minha mãe, hoje 25 do corrente de 1865. Cidade de São Paulo. Corpo de Voluntarios da Patria.

Oh! que satisfação para mim em saber que estas miseraveis lettras vão achar a v.mc. com feliz saude em companhia de toda nossa familia; vou por meio d'esta pedir-lhe sua benção, e participar-lhe os successos de minha vida, hoje 25 de março, para mim um dia festivo, foi hoje que vi sahir o batalhão dos voluntarios da patria, acompanhado pela musica voluntaria; ia então adiante do batalhão o commandante do corpo volunta- rio commandando todo aquelle exercito no largo do paço ao encontro do presidente [...].

Oh! minha mãe lembre-se de mim, porque de vossa mercê não me esqueço; acceite um louvado meu, não repare na nota da carta porque, ah! esta carta foi notada com lagrimas;... pois adeus mamãe, oh! meu pae lance-me tambem sua benção, Joãozinho lembrai-vos de mim, que eu logo vou para a batalha, n'essas cam- panhas do Paraguay. Tive 200$000 de gratificação, mas nada posso mandar, nada para você nem para nossa mãe, o que confesso com pezar. Adeos, Joãozinho, de vosso irmão que muito vos estima o

Felix de Amaral Gurgel. (Correio Paulistano, 28 de março de 1865)

Para ilustrar a fase de uso de formas variantes de Vossa Mercê, encontramos cartas em que uma senhora dirige-se a uma comadre, empregando a forma mecê, como no exemplo (9). Há outra em que o escrevente emprega a forma vocemecê e vossa mercê, indistintamente para interagir com o redator (10); e outra em que usa a forma voçunce para dirigir-se ao redator (11).

(9) Comadre Chiquinha

Muito estimarei que ao receber estas mal traçadas regras, se ache já quasi boa do seu romatismo.

Eu, louvado seja Deus, vou indo boa de saude, andando somente tresnoitada, porque, além de estranhar a casa, que não é como aquella em que morei na Luz, não tenho podido mais pregar olho com a gritaria das sentinellas da cadêa, que tem garganta como esses barcos que os estrangeiros inventarão pr'a bala não furar. Olhe, nha Chiquinha, berrão, berrão os taes como as vaccas na porta do quintal, chamando as cria.

Mariquinha, que mecê sabe que soffre muito das lombrigas, leva a noite inteira se acordando assustada com | semelhantes berros. [...].

Arrematando esta, peço-lhe o favor de ver se por ahi ha alguma casinha vaga, porque quero me safar daqui como o diabo da - cruis.

Adeus; espero sua resposta

Sou sua comadre

Tudinha (Correio Paulistano, 20 de agosto de 1865)

(10) O feijão e os atravessadores

Senhor Redactor:

Vocemecê é homem da imprensa, vive sempre preoccupado com as poesias e não ha de saber do que se passa no mundo de chilra prosa em que eu e minhas comadres vivemos. Pois, eu quero sempre dar-lhe uma prosinha do meu mundéo para que vmc. faça uma pequena idéa dos transtornos em que vivemos.[...]

Em fim de contas eu o que quero é providencias sérias. A minha e a barriga de minha familia, não póde estar exposta aos botes dos atravessadores; e por isso - rogo a vossa mercê que atice a policia nesses miliantes e dê com elles no chelindró.

Eu prometto-lhe um balainho de óvos frescos se vossa mercê fizer com que os taes vendeiros dêem o feijão por uma continha que não aleije os pobres.

Sou uma sua creada

Balbina Rosa. (Correio Paulistano, 24 de abril de 1865)

(11) Duas regras

Senhor redactor.

Ha muito tempo que andava com ganas de dar uma pennada na imprensa de voçuncê; mas entonces como não sei retolica, tinha scismas que vonçuncê havia-se pôr com partes. Mas já hoje vi no seu pharol annun- ciada uma descomponenda de nha Amalia, cosinheira que foi do defundo senhor conego meu padrinho, que Deus haja, e isso me pissui de animo para botar nas folhas umas regras.

Eu conheço voçuncê de outras eras; voçuncê é que não se lembra de mim; eu estava alugada na casa do seu bispo Dom Matheus, no tempo em que voçuncê foi lá botar a Chrisma em voçuncê mesmo. Eu bem me lem- bro disso.

Mas saiba voçuncê, que eu sempre fui muito faceira e gostei de me aceiar, quando veio a lei da gente varrer a sua testada eu varria a minha á missa das armas, e quando os homens da carroça passavão no meu bequinho já achavam a lixarada n'uma montoeira.

Vai agora apparece um dia destes um velhote com uma espada grande e pistola na mão e manda que eu metta a montoeira para dentro. Isto, senhor redactor, não se faz a uma viuva honrada. [...].

Nas suas folhas argumente em meu beneficio, e eu fico rezando por sua alma ao Senhor São João no meu rosario, que me deixou minha avó.

Se lá apparecer a nha Amalia voçuncê dê-lhe lembranças minhas.

Uma sua serva.

Nicota Gertrudes. (Correio Paulistano 24 de junho de 1865)

Por meio dos exemplos, verifica-se que as formas - Vossa Senhoria, Vossa Mercê, o senhor - usadas pelo escrevente para se dirigir ao redator ou a um parente denotam respeito em relação ao papel social desempenhado pelo interlocutor. Entretanto, revelam também que a forma Vossa Mercê está passando por uma fase de transformação devido à variação com que é empregada, dependendo de quem é o escrevente e a que classe social pertence.

4. Interatividade nas cartas do leitor

A interatividade é definida, por Marcuschi (1999, p. 143), como "o movimento típico e explícito do escrevente direcionado a um leitor prentendido". Desse modo, as marcas de interatividade são constituídas por expressões ou formas linguísticas que subentendem a presença de um leitor a quem o escrevente se refere de modo claro e sem qualquer ambiguidade em determinado contexto situacional.

A relação dessas marcas com a gramática evidencia-se pelo fato de essas formas linguísticas serem usuais na língua, ou seja, são empregadas de acordo com as possibilidades que o sistema de língua portuguesa permite.

Tal uso faz parte de um movimento próprio do processo de textualização cuja presença do interlocutor evidencia-se na própria construção textual. As cartas são casos típicos de textos que permitem um uso intenso de marcas de interação, mas isso não quer dizer que outros gêneros não o permitam.

Observemos a carta, a seguir, na qual destacamos algumas dessas marcas5:

(12) COMPADRE PANCRACIO

Não começo por perguntar- lhe noticia de sua saude, porque pela ultima que me escreveo fiquei sabendo que está rijo como um cerne, fresco como uma alface, e alegre como um medico em tempo de epidemia. Tambem pudera não ser assim. O compadre passa um vidão, mora no meio da abundancia, sente o aroma das flores, e das arvores, bebe boa e cristalina agua (Não repare, poetissimo compadre), neste estylo que é muito geral nesta cidade).

Como ia dizendo, come boa carne de porco, ou de gorda vitella, passeia no seu pomar, colhe e engole por desfastio um suculento pecego, ou uma tenra banana, dorme a sesta na sua rede, a noite toma o saudavel e puro café, e quando tem mais apetite manduca o seu prato da nutriente cangica, e dorme o sonno do justo depois de ter resado o infallivel terço com a familia. E deixe correr 365 dias por um anno.

Ora realmente felicissimo compadre, uma vidinha destas é para chegar com certeza á idade do defunto Mathuzalen, que nem eu, nem o compadre conhecemos.

É verdade que o anasphaltissimo compadre por isso mesmo anda no mundo da lua, a respeito de progresso progressante não encherga um palmo adiante do nariz; e para de todo não ficar obtuso é mister que eu o vá, com estas minhas cartas burnindo, e tirando-o do estado quasi natural em que se acha.

Tenha paciencia, compadre, Deus me defenda de deixa-lo (o compadre, não a Deus) fazer figura ridicula; tenha paciencia, heide dezabuzal-o.

Aqui corre o rio por outra fórma. Levanta-se a gente pela volta das 8 horas, toma o seu café, mas um café, compadre, todo adubado com milho, e outras coisitas mais, coisa boa; lê o Correio Paulistano, faz o seu toilette, isto é, lava o rosto, pentea-se, calça as chinela, veste a ceroula, a calça, o casaco, etc., fuma o seu charutinho; e assim chega até as 10 horas, que é a hora do almoço, já se sabe, coisa fina, carne quasi sempre de boi pesteado, dizem que está reconhecida que é mais saborosa, assim como a carne de dois e tres dias, por que fica mais macia; não sabia desta, compadre, pois [v]á aprendendo, que muito tem que aprender.

O leite aqui compra-se já adubado com agua e polvilho, que lhe dá um sainete excellente. O pão, isso então, compadre de uma figa, é coisa grande; temos pão de todas as nações; pão francez, italiano, hespanhol, portuguez, allemão, e não sei se até o pão turco; cada um com seu differente feitio, e alguns bem engraçados; e quanto ao sabor, isso nem fallemos, é comer e gritar por mais; uns tem um gostinho de azedo, qne é um regalo, outros com uns longes de môfo que o torna verdadeiramente apetitoso, estes claros, aquelles de uma côr mais trigueira, outros ainda mais, que até fazem uma vista agradavel na mesa. Dizem-me que este ge- nero está n'uma tal perfeição, que emprega-se na sua manipulação todas as farinhas conhecidas e desconhe- cidas, e é isto que o torna cada vez melhor. A respeito de pão dir-lhe-hei, impertinentissimo compadre, que só não temos o - Pão nosso de cada dia.

O jantar tem sempre lugar a hora da sua merenda, frugalissimo compadre, compõese de - todas las cosas e algumas cositas mais, tudo iguarias papafina.

Quanto ao vinho e ao chá, isso nem é bom fallarmos, ha tal abundancia, e variedade que eu iria longe, se quizesse descrever-lhe. Que perfeição ! que gosto! O compadre póde comprar uma garrafa de vinho de 640 ou de 800 rés, que com essa só garrafa terá vinho, aguardente, licor, rozasolis, cognac, cerveja, etc. Faz pra- zer ainda ao paladar mais estragado.

O chá antigamente era uma bebida desenxabida, hoje não senhor, principia pela côr que é de um amarello requeimado, e tem um gostinho de sassuaiá com seus longes de sabugueiro, que melhor não póde ser.

Compadre, ha hoje uma transformação em tudo isto que aposto o que quizer em como se o compadre viesse comer um dia ás nossas mesas, não saberia o que estava comendo, talvez cuidasse que estava saboreando os celebres bicos de rouxinol, e o manjar dos anjos, com que nos regalão os ouvidos quando somos crianças.

Agora do que o compadre mais se havia de admirar seria do preço de tudo isto. O'he, com qualquer 8$ rs. por dia o compadre póde almoçar, jantar e ceiar! Realmente é de graça.

Uma coisa que não temos nesta nossa boa cidade do Apostolo das gentes, quem o acreditaria! é agua. Mas declaro-lhe, sequiozissimo compadre, que não faz falta. Temos tanto liquido de diversas naturesas que realmente a agua deve ser banida de uma vez; não deve servir nem para a lavagem do corpo. E que bom não será banharmo-nos em caninha, cerveja, cognac, ou Cliquot? Que aroma delicioso não exhalará uma cidade que adopte este hygienico, e agradavel costume?!

Agora, aceiadissimo compadre, á noite quando depois de repletos de tantas delicadas, e variadissimas iguarias, sahimos a dar o nosso passeio hygienico, que prazer sentimos, quando ao passarmos por uma esqui- na, vemos correr della uma agua grossa com forte cheiro de sal amoniaco, ou quando encontramos um grande e alto carro conduzindo grande quantidade do verdadeiro patcholly, que deixa evaporar o mais ex- quisito aroma conhecido! Que bem estar não sente um filho de Deos ao passar pela rua do Rosario, em frente a casa que pertenceu ao seu velho amigo capitão Severino! Oh compadre de um dardo, é que é o verdadeiro viver no seio de Abrahão; agora é que se póde dizer com verdade - esta vida não chega a netos, nem a filhos com barbas.

Affirmão-me, compadre, que a policia tem ultimamente visitado as casas de negocio, e inutilisado muitos generos deteriorados, falsificados, etc.. mas realmente, austerissimo compadre, acho que a policia não tem ra- são, e que de alguma fórma vae contra a plena liberdade do commercio. Os nossos commerciantes apenas o que fazem é melhorar o genero, fazendo diversas mis turas, e porisso, variando-o, tudo em beneficio do povo. E o compadre sabe perfeitamente que a variedade deleita, como dizia o outro.

Era o que faltava que homens que vivem só pensando no modo de nos ser util e agradavel soffressem nos seus interesses. Nada, não admitto, e para enristar a lança por elles estará sempre prompto o seu velho compadre

O ZÉ DA VESTIA. (Correio Paulistano, 21de janeiro de 1864)

Na carta sob análise, todas as partes destacadas com sublinhado apresentam uma relação interpessoal direta do escrevente (O Zé da Vestia) com seu destinatário (Compadre Pancracio). Tudo transcorre como se ele estivesse na presença de seu interlocutor (Tenha paciência compadre; não sabia desta compadre; Agora aceiadissimo compadre). Evidencia-se, assim, que o gênero carta pessoal tem um interlocutor definido, único, bem delineado e íntimo. Além disso, há uma suposição de conhecimentos partilhados que sustenta uma série de afirmações ou comentários que escapam aos demais leitores do jornal.

Quanto a elementos característicos da interatividade, veja-se a própria construção de vários trechos da carta no estilo de atos ilocutórios (Não repare; Tenha paciência; vá aprendendo, que muito tem que aprender), perguntas (não sabia desta, compadre) Outro indício de relação direta com o interlocutor são os vocativos (poetíssimo compadre; felicíssimo compadre, anasphaltissimo compadre, compa-dre de uma figa; adeiadissimo compadre, austerissimo compadre, Oh compadre de um dardo, impertinentissimo compadre, etc). Há ainda o uso de marcadores discursivos - agora, então, assim, mas realmente, acho que, olhe que encadeiam as seqüências textuais e estabelecem um envolvimento com o interlocutor.

5. Considerações finais

Essas marcas de interação revelam que o enunciador/escrevente age visando a um envolvimento multiorientado (cf. Marcuschi 1999), dado que se envolve: com seu interlocutor (o leitor a quem a carta está dirigida e aos prováveis leitores do jornal); com o tópico discursivo em desenvolvimento (o assunto tratado na referida carta); consigo mesmo; com práticas sociais específicas (na carta, o contato pessoal).

Desse modo, tais marcas são uma característica primordial do processamento linguístico oral ou escrito. Numa perspectiva cognitiva, podemos dizer - em conformidade com Marcuschi (1999) - que o processamento textual, enquanto atividade/movimento de produção e recepção de texto apresenta aspectos comuns na fala e na escrita, ou seja, a interatividade não é uma estratégia típica da fala e pode ocorrer na textualização da escrita. A interatividade é uma característica que está relacionada ao escrevente/locutor e sua ação com a língua, e não apenas um aspecto da modalidade (oral/escrita). Assim, a dialogicidade será tanto maior quanto mais definido for o interlocutor.

Em síntese, as marcas de interatividade nas cartas atuam como operadores de orientação cognitiva, evidenciando perspectivas de interpretação preferencial por parte do escrevente/locutor. Além de marcas estilísticas, são formas de ação com a linguagem (atos de fala) que estabelecem contratos, fazem negociações, propostas e definem posicionamentos para uma relação intersubjetiva eficaz.


* Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Projeto "Tradições discursivas: constituição e mudança dos gêneros discursivos numa perspectiva diacrônica", que integra o Projeto Temático de Equipe "Para a História do Português Paulista (Projeto Caipira)", Processo FAPESP no. 06/55944-0, coordenado pelo prof. Dr. Ataliba T. de Castilho (USP).

1 O material para análise foi retirado do livro organizado por Barbosa e Lopes. Críticas, queixumes e bajulações na imprensa brasileira do século XIX-cartas de leitores. Rio de Janeiro: UFRJ/FAPERJ, 2006.

2 O uso da designação gênero carta, em vez de gênero epistolar, busca dar ênfase ao sentido de unidade de comunicação construída em contextos funcionais específicos, evitando conotações literárias.

3 As cartas foram transcritas seguindo a ortografia da época.

4 Os pronomes aparecem sublinhados no texto.

5 Tais marcas estão sublinhadas no texto.


Referências

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