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Forma y Función

versión impresa ISSN 0120-338X

Forma funcion, Santaf, de Bogot, D.C. vol.32 no.1 Bogotá ene./jun. 2019

https://doi.org/10.15446/fyf.v32n1.77417 

Artículos

DISCURSOS INTOLERANTES NA INTERNET: O CASO BRASILEIRO DO RANKING SEXUAL DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO*

DISCURSOS INTOLERANTES EN INTERNET: EL CASO BRASILEÑO DEL FLANKING SEXUAL DE UNIVERSIDAD DE SAO PABLO

INTOLERANT SPEECH ON THE INTERNET: THE BRAZILIAN CASE OF SEXUAL RANKING AT THE UNIVERSITY OF SAO PAULO

Augusta Cássia Schwtner David **  

Luciana Carmona Garcia Manzano ***  

** Mestra em Linguística pela Universidade de Franca. Professora de língua espanhola e portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, Brasil. no câmpus Muzambinho. gutaschwtner@hotmail.com

*** Doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos. Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade de Franca, São Paulo. Brasil. luciana.manzano@unifran.edu.br


Resumo

O presente artigo tem como objetivo mostrar como foram constituídos, no espaço digital, discursos intolerantes como respostas às notícias sobre a exposição de um cartaz, denominado ranking sexual, no centro de vivência da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" da Universidade de São Paulo, na cidade de Piracicaba. O cartaz apresentava uma classificação de pessoas, entre mulheres heterossexuais e homens homossexuais, segundo características físicas e práticas sexuais. Os trabalhos de Diana Luz Pessoa de Barros sobre os discursos intolerantes na internet e a obra de Marie Anne Paveau, que discorre sobre as virtudes discursivas e os julgamentos morais, foram os principais aportes para desenvolver este estudo. Contamos ainda com as reflexões de Michel Foucault sobre o discurso e de Dominique Maingueneau, a partir da concepção do que é a polêmica entre os sujeitos do discurso.

Palavras-chave: discursos intolerantes; julgamento moral; polêmica; práticas sociais; ranking sexual; Foucault; Maingueneau

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo mostrar cómo se constituyeron, en el espacio digital, discursos intolerantes como respuesta a las noticias sobre la exposición de un cartel que fue denominado de ranking sexual, en el centro de vivienda de la Escuela Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidad de Sao Pablo, ciudad de Piracicaba. El cartel tenía una calificación de las personas que aparecían allí, de acuerdo con las prácticas físicas y sexuales. Los trabajos de Diana Luz Pessoa de Barros sobre los discursos intolerantes en internet y la obra de Marie Anne Paveau, que trata de las virtudes discursivas y los juicios morales, fueron los principales apoyos para desarrollar este recorrido. También usamos los aportes de Michel Foucault al abordaje del campo discursivo y de Dominique Maingueneau a la comprensión de la polémica entre sujetos del discurso, valiéndonos para ello del Análisis del Discurso de línea francesa.

Palabras clave: discursos intolerantes; juicio moral; polémica; prácticas sociales; ranking sexual; Foucault; Maingueneau

Abstract

The objective of this article is to show how intolerant speech is produced in the digital space in response to news of an exhibition of a poster called "Sexual Ranking" at the student housing facility of the Escuela Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, University of Sao Pablo, in the city of Piracicaba. The poster displayed a classification of people, from heterosexual women to homosexual men, according to physical features and sexual practices. Our study is based mainly on the work of Diana Luz Pessoa de Barros on intolerant speech on the internet, and that of Marie Anne Paveau on discursive virtues and moral judgments. We also resorted to Michel Foucault's reflections on discourse and those of Dominique Maingueneau on what constitutes the controversy among subjects of discourse.

Keywords: intolerant discourses; moral judgment; controversy; social practices; sexual ranking; Foucault; Maingueneau

INTRODUÇÃO

Em junho de 2015, um cartaz exposto no centro de vivência da ESALQ-USP, câmpus Piracicaba, virou notícia nos meios de comunicação por sua temática difamatória: tratava-se de um ranking sexual que expunha nomes de alunas e alunos da instituição, e indicava, a partir de uma classificação das características físicas, com quantos homens, também da instituição, elas e eles haviam tido relações sexuais. Obviamente, para não prosseguir com a exposição dos nomes, os veículos de comunicação os rasuraram. Segue abaixo a Figura 1 acerca do referido cartaz, publicado pelo site g1.globo.com, do Grupo Globo, maior e mais influente grupo de comunicações do país.

Fonte: g1.globo.com.

Figura 1 Imagem do cartaz 

Nosso interesse por esse caso se concebe para além do fato em si, ou seja, da colocação do cartaz em circulação no câmpus e dos desdobramentos que ocorreram por conta da exposição de pessoas que puderam vir a se sentir ofendidas e pela investigação iniciada pela administração institucional. O que nos motivou a olhar para esse caso foi o modo como a transformação do fato em notícia propiciou manifestações on-line que sentenciam e julgam os sujeitos ali envolvidos. Ainda que o evento não tenha ocorrido nas malhas digitais, é por meio delas, sobretudo, que se coloca em circulação o cartaz entre o público geral e, mais especificamente, entre os que seguem as publicações de notícias do site g1.globo.com. A publicação de um cartaz classificatório no centro de vivência da ESALQ ganha o status de acontecimento discursivo por ser um marco num enredamento de enunciados anteriores e posteriores; enunciados retomados, (re)atualizados e reverberados a partir da circulação da notícia. Ele pode ser denominado acontecimento,

[...] porque está ligado de um lado a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, [...] aberto à repetição, à transformação, à reativação; [...] está ligado não apenas a situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem. (Foucault, 1995, p. 33)

À sequência da publicação da notícia sobre o ranking, no referido site, foram contabilizados 1754 comentários dos usuários on-line. Muitos desses comentários retomam enunciados e práticas, provocando, entre alguns comentaristas, o debate sobre os direitos sobre o corpo feminino e muitas sanções avalizadas pela aceitabilidade moral (ou não) de um enunciado. Para compreender o âmbito moral dos discursos, recorremos a Pa-veau (2015), quando trata da presença e ausência das virtudes discursivas. A dimensão moral dos enunciados é explicitada, segundo Paveau, nos metadiscursos - ou seja, nos discursos decorrentes de um discurso «original». A moral é entendida como normativa, que não se expressa em um único ato, mas que é um «sistema de normas coercitivas que podem ser auxiliares de dominação social» (Paveau, 2015, p. 29).

Como conjunto normativo, as práticas sociais são julgadas moralmente como boas ou más e, com base nesse julgamento, os sujeitos seriam premiados ou punidos. Por suscitar debates e posicionamentos, como poderemos ver no material coletado a seguir (Figura 2), exemplificamos como a publicação do cartaz, assim como a dos comentários, alcançam o status de acontecimento discursivo moral, pois apresentam posicionamentos sobre valores da nossa sociedade, como a honradez e a imoralidade.

Fonte: g1.globo.com.

Figura 2 Comentário publicado no gl 

Podemos observar, na materialidade do enunciado, um julgamento moral em duas direções, ainda que a conjunção «mas», no primeiro período, reoriente a declaração «sem querer defender os moleques». O efeito de sentido que o substantivo «moleques» promove se alia à desqualificação dos produtores1 do cartaz pela associação à imaturidade e à má atitude, à «molecagem» que se assemelha a dedurar os colegas, tão combatida pelos adultos na educação das crianças, inscrita como sintoma de mau comportamento. Assim, o sujeito discursivo busca marcar um posicionamento de defesa dos valores educacionais inscritos socialmente pela sanção a partir de um substantivo que, de fato, adjetiva os autores do cartaz.

Porém, a partir da conjunção «mas», seguida da afirmação/interrogação «essas meninas muito dadas e que furumfam que o primeiro que aparece se expõem muito também né?» podemos observar um julgamento moral de viés machista que instaura, ao mesmo tempo, uma espécie de expiação da conduta dos autores do cartaz pelo demérito das vítimas - o que, no limite, afiança a existência de um suporte de exposição (o cartaz), já que as vítimas «se expõem» na sociedade.

De acordo com Paveau (2015, p. 3 4), que se embasa na ética das virtudes, proveniente da ética aristotélica, «um comportamento será moral se estiver em conformidade com os valores adotados por um indivíduo ou um grupo». De tal concepção, decorrem os conceitos de «produções discursivas» virtuosas e não virtuosas. O que diferenciaria uma da outra seria as condições de produção permitidas pelas normas sociais, pois

[...] o senso comum preside a produção de enunciados que dizem "o que fica bem dizer" e "o que não se deve dizer" [...]. As normas sociais que regulam as relações humanas decidem o que constitui "boas maneiras" e o que é decente dizer ou não dizer nas interações face a face. (Moirand citado por Paveau, 2015, p. 13)

O enunciado analisado aqui entra em uma rede discursiva construída historicamente, que inscreve a mulher numa sociedade organizada por e em torno do homem, na qual não há direitos iguais, na qual o homem se relaciona com o sexo e com a sexualidade de modo imponente e interdita o sexo e a sexualidade à mulher. Nesse sentido, compreendemos a produção desses enunciados como construções discursivas intolerantes. Segundo Barros (2014), os discursos intolerantes são discursos de «sanção aos sujeitos» que, enquanto maus cumpridores de um determinado contrato social, devem ser punidos; destarte, são imbuídos de paixões como o ódio e o medo para com o outro.

O ACONTECIMENTO DISCURSIVO E SEU ENREDAMENTO NAS MALHAS DIGITAIS

As pessoas citadas no cartaz são discriminadas por não se encaixarem num ideal determinado pelas regras sociais, as quais são internalizadas pelo contrato que apreendemos ao longo das interações experimentadas: a mulher deve ser pura, discreta, comedida e «se dar ao respeito». O cartaz dá a ver, assim, mulheres que se mostrariam o oposto disso, como diz o sujeito discursivo do enunciado analisado anteriormente: «meninas muito dadas». São pessoas que se afastaram do caminho considerado normal ou aceito dentro da sociedade a que pertencem, portanto são vistas como «maus atores, maus cidadãos» (Barros, 2011, p. 2).

O cartaz apresenta estigmatizações dos sujeitos a partir de características de partes do corpo: nas duas primeiras colunas, essa discriminação recai sobre as mulheres, no apelo da escolha lexical de partes da genitália feminina para classificação, respectivamente «buceta» e «teta». A última classificação - de «sociedade do anel», faz referência à trilogia clássica de O Senhor dos anéis, e recorre ao conhecimento popular no tocante aos nomes que a prática de sexo anal pode ter, como «ceder» ou «dar o anel», e pode incidir tanto sobre homossexuais quanto sobre mulheres que realizam tal prática. Essa estigmatização existe e funciona como discriminatória porque há uma referenciação baseada na aceitação de uma regra anônima, que permeia a sociedade e fortalece o que se chama de «normal» ou «anormal».

Os contratos sociais rompidos podem ser vistos, num primeiro momento, durante a classificação das pessoas que aparecem no cartaz. A primeira coluna traz uma característica física que sugere a falta de higiene ao falar do odor íntimo das mulheres que aparecem nessa primeira coluna, intitulada «buceta fedida». A segunda coluna, denominada de «teta preta», julga aquelas mulheres que não cumprem com o contrato social de branqueamento da sociedade, o que configura, além de discurso machista (ao se referir a uma mulher ao reduzi-la a uma parte do seu corpo), um discurso de preconceito racial ou ainda a idealização de que os mamilos devem ser claros.

Já a última coluna apela para o tabu da prática de sexo anal (na coluna definida por «sociedade do anel»), o que pode constituir um rompimento com o contrato de postura sexual feminina mais recatada, ou ainda, com o contrato de heterossexualidade que implica concepções de moralidade. Esses sujeitos se constituem como maus atores sociais: a mulher sem higiene, a mulher com o mamilo de cor inadequada, o homossexual ou a mulher com conduta sexual inadequada. Atentamos para o fato de que a rotulação incidente sobre as mulheres e os homossexuais presentes na lista foi feita baseada na referenciação que «normaliza» a exposição das mulheres que contribuem para as experiências dos homens. Para eles, quanto mais companheiras, maior experiência e, consequentemente, maior adequação ao ideal viril histórico.

A punição para os maus atores do cartaz se dá na perda de privacidade de sua intimidade. No cartaz, figuram apenas apelidos, que foram riscados na imagem que mostramos neste artigo. Porém, é importante ressaltar que, ao menos no Brasil, como temos conhecimento, um apelido, por vezes, tem mais força do que o nome próprio para determinados grupos, como é o caso dos universitários da ESALQ, que são «batizados» com apelidos na recepção dos calouros, todos os anos, e esses apelidos são usados como identificação cotidiana entre os alunos.

Paveau (2015) afirma que se lembrar do nome é se lembrar da pessoa. No caso dos estudantes listados, por tradição, ou seja, pela memória discursiva que se é possível acessar, os apelidos são tão ou mais importantes que os nomes, a ponto de acompanhar os estudantes em suas jornadas após a graduação. Assim, o apelido naquela lista se associa a uma pessoa específica. Esse tipo de ataque é chamado de ad nomem e, por ser realizado de modo tão explícito, pode desencadear reações jurídicas. No cartaz, observamos a discursivização dos julgamentos de valoração moral; os apelidos ali inscritos resultam em classificação discriminatória, discriminação que podemos depreender, embasados nas regras sociais que conhecemos: não é indício de boa conduta expor pessoas sem o consentimento delas.

O nome social que nos atribuem, seja o nome de batismo, seja o codinome pelo qual nos reconhecem, «constitui o lugar de um valor situado exatamente na articulação entre o social e o individual, a honra» (Paveau, 2015, p. 260). O nome deve ser defendido, honrado. Pitt-Rivers (citado por Paveau, 2015) afirma que a honra envolve não só um determinado comportamento, mas também implica um tratamento especial em decorrência do comportamento honrado, como um reforço positivo. É comum a valorização e defesa da honra. Nosso nome nos representa; devemos zelar por ele.

Inscritos em uma rede de enunciados históricos (re)produzidos socialmente, que constroem sentidos sobre a conduta e a postura da mulher (não ter a «buceta fedida» ou a «teta preta») o(s) autor(es) do cartaz produz(em) uma verdade. As informações veiculadas no cartaz e sua publicação obedecem a condições de possibilidade, ou seja, a uma possibilidade de dizer, a partir de uma verdade compreendida «como ajuste do discurso à realidade» (Paveau, 2015, p. 287).

Observaremos, a seguir, na materialidade dos comentários que traremos para análise, o confronto de diferentes posicionamentos ideológicos, ou seja, mais de um posicionamento detentor da «verdade», valor idiossincrático e variável em conformidade com o contexto sócio-histórico-ideológico de cada sujeito. Como o discurso é um dos lugares em que se manifesta a ideologia, Brandão (s. f, p. 6) assegura que «o discurso é o espaço em que saber e poder se unem, se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito que lhe é reconhecido socialmente». Para a autora, o discurso é jogo provocativo de ação-reação, local de lutas verbais, em que ora predomina a dominação, ora a aliança, ora o poder, ora a resistência, promovendo polêmicas por apresentar contradições.

Por polêmica, entendemos, para além de um conjunto de enunciados que se materializam em oposição sobre um tema em debate, uma relação de controvérsia realizada de modo explícito (Maingueneau, 1997, 2005). Quando se retoma o enunciado do Outro, não há fidelidade absoluta. Essa falta de fidelidade torna o discurso do Outro um simulacro, pois não há como compreender o discurso do Outro fora de sua formação discursiva. Ocorre, no evento polêmico, o que Maingueneau denominou de «interin-compreensão», fenômeno caracterizado pelo fato de que não podemos compreender o discurso do Outro a partir de nossa posição. No material que trazemos para este artigo, a polêmica se instaura a partir da divergência desvelada nos comentários realizados por sujeitos inscritos em diferentes formações discursivas.

Retomando Pêcheux (1988), os sentidos não estão nas palavras. Uma vez que somos inseridos na sociedade, nossas manifestações de linguagem são relativas aos outros participantes do mesmo grupo social. Como podemos saber que a exposição do cartaz na universidade foi difamatória, motivo de indignação e que pode implicar punição jurídica àqueles que o confeccionaram? Sem analisar o entorno, as colunas se referem a partes do corpo e à participação em uma sociedade específica. Recorrendo à relação sinonímica da palavra «buceta» e da palavra «vagina» para o órgão sexual feminino, estamos diante de um caso comum de língua em uso, já que é frequente, no uso da linguagem informal, a utilização de palavras chulas para nomear partes do corpo, seja masculino ou feminino. A diferença é que a adjetivação atribui a essa parte do corpo uma característica desagradável. É como se esse ator social não cumprisse um contrato de higiene - e merecesse punição por isso. Da mesma forma, falar da coloração do mamilo como uma característica negativa revela a quebra de contrato do ideal de coloração do mamilo da mulher, além da desaprovação da prática de sexo anal.

A ABORDAGEM METODOLÓGICA: UMA JUSTIFICATIVA À SELEÇÃO DA MATERIALIDADE REPRESENTATIVA DOS DISCURSOS

Foram selecionados, para a produção deste artigo, dez comentários, coletados do site de notícias g1.globo.com e transcritos, a partir do que se pôde compreender como materialidade representativa dos discursos intolerantes sob a ótica de julgamento e sanção moral.

A escolha deste site se deu porque, dentre todos os suportes de notícias que se referiram ao ranking sexual, ele foi o que teve maior número de comentários de usuários on-line. Além disso, a relevância da notícia se mostra já a partir de uma busca pelo tema pela ferramenta de pesquisa de conteúdo do Google: é a primeira entrada de acesso para a notícia. Nesse espaço tecnodiscursivo, os conflitos se deram em maior número e reverberaram mais comentários sobre o tema, provocando mais reações, o que reforça sua característica de acontecimento e fornece maior possibilidade de coleta de material representativo para a análise. Dentre 1754 comentários que figuram na página, destacamos os mais populares, ou seja, aqueles que receberam maior número de reações, por meio da aprovação contabilizada em likes, e desaprovação expressa por meio de dislikes, ou ainda, por meio de comentários dos comentários, alguns para concordar, combater, questionar (entre outras possibilidades) o outro sujeito numa determinada interação.

Comentários selecionados

Elegemos comentários que se valeram de separação sexista: atores sociais que se legitimam a partir de um saber sobre o que é certo ou errado segundo o gênero do «outro» por ele avaliado. Por serem socialmente avaliadas, as paixões que moveram os sujeitos em questão são denominadas de «moralizadas». Ainda recorrendo a Barros (2011), as paixões são divididas em malevolentes (ódio, raiva, antipatia e, no caso em questão, misoginia) e benevolentes (amor e compaixão com seus «iguais»). As paixões malevolentes são expressas por sujeitos que atribuem como válida a punição ou o castigo àqueles que não cumprem um determinado contrato social e que se contrapõem às benevolentes.

Há uma política de uso para as páginas de sites de notícias que permite, ao final do texto de notícia, a realização de comentários pelos leitores. A fim de que conteúdos considerados impróprios não sejam publicados, como palavrões, expressões chulas e ideias que firam os direitos humanos, é comum que os sites se valham de filtros e mediadores. Esses mecanismos bloqueiam palavras segundo um modelo previamente montado com base no que as políticas da página permitem ou proíbem. As políticas reguladoras do que pode ou não ser dito pelos usuários são determinadas pelos termos de uso das páginas da web, e os filtros ou mediadores decidem o que pode ou não se tornar público. Ressaltamos tal situação para que se entenda que, mesmo em um espaço destinado para a manifestação do público leitor dessas páginas, há uma ordem do discurso que determina o que é ou não possível ser exposto, numa «liberdade» vigiada.

No Quadro 1, apresentamos a seleção de comentários que compõe o recorte analisado.

Quadro 1 Comentários selecionados 

Fonte: site g1.globo.com.

Legitimados por certos saberes dentro de uma cultura, os sujeitos autores dos comentários à notícia manifestam uma verdade segundo sua posição social que implica uma concepção de certo versus errado, ou seja: sancionando a ação do outro dentro de um contrato social que instaura ajuste ou desajuste, cujos efeitos de sentido são construídos ao longo de sua constituição como sujeito social.

O comentário de número 1 se materializa sob o perfil de codinome Kamylo. Esse perfil, ao materializar o enunciado «as mulheres tem que se dar ao respeito» (re)atua-liza efeitos de sentido calcados historicamente no seio de uma sociedade construída sob o modelo centrado no homem, no masculino: o homem se dá a ver à sociedade, e a mulher, subjetivada para ser esposa e mãe, atua nos bastidores da vida; assim, ela não se mostra, seu corpo e sua sexualidade devem ser contidos, sua conduta social ou sexual, vigiada. Após a afirmação que reitera a regra do contrato social de que todas as mulheres «tem que se dar ao respeito», o sujeito discursivo instaura uma classificação ao separar mulheres que não se dão ao respeito (como as que foram nomeadas no cartaz por suas práticas sexuais) daquelas que sim, se dão ao respeito, ao destacar, em caixa alta, a expressão «NEM TODAS», o que, novamente, expia a autoria do cartaz e justifica sua circulação como punição legítima para a mulher que quebra o contrato social da sexualidade.

Delk Smyle, no comentário 2, (re)atualiza efeitos de sentido que se associam à certa compreensão de igualdade de gêneros a partir do que se pode considerar como lex talionis («lei de talião») ou reciprocidade da ação ou reação («olho por olho, dente por dente»). Ora, se as mulheres «podem fazer o que quiser», o homem, em consequência, pode reagir como quiser também. Desse modo, a exposição do cartaz é, novamente, apoiada, e o posicionamento do sujeito discursivo se legitima em uma lógica que continua a valorizar a atuação do homem como eixo da sociedade, em detrimento da atuação da mulher a partir do contrato social de discrição ou recato. A liberdade das práticas corporais da mulher é questionada. Em uma sociedade assentada sobre o modelo masculino de poder, há um contrato social que estabelece a ausência de relações sexuais da mulher "feita pra casar". Ao romper esse contrato social, essa mulher perde seu direito à privacidade, assim, perde o direito ao respeito. Do mesmo modo, o "canalha" também é o outro que, igualmente, rompeu um contrato social que preconiza que o homem deve ser um cavalheiro e tratar a mulher como princesa.

Como desdobramento do comentário de Delk Smyle, há uma resposta direcionada a ele realizada sob o perfil de Wagner Mendes. Ironicamente, ao se dirigir a Delk Smyle em vocativo, e afirmar «por incrível que pareça, há homens que se incomodam com a liberdade da mulher», a estratégia enunciativa funciona como uma asseveração sobre a posição ideológica do sujeito do comentário que origina a resposta, ao mesmo tempo que toma forma de uma elucidação didática, como se isso fosse um contrassenso para a realidade a que Delk Smyle pertence, já que a expressão «há homens» exclui o sujeito discursivo que enuncia na resposta: esses homens são os outros, esses homens são como Delk Smyle. Sua posição favorável à liberdade da mulher é tornada visível pela expressão em caixa alta «NÃO É ERRADO». Atentemos para a pergunta que o referido comentarista faz: «Onde está escrito que é proibido?», como se as práticas sociais obedecessem apenas a códigos escritos, como se fossem regras verbalizadas. Contrariamente, sabemos que as práticas sociais, inscritas em nossa memória ao longo dos nossos contatos com a realidade ao nosso redor, não são necessariamente verbalizadas, mas sim sentidas por meio da internalização, num aprendizado pela experiência e observação do funcionamento da sociedade em que estamos inseridos. O lexema «comedor» é atribuído ao homem que «fica com várias» e é visto, pela maioria, como um adjetivo que enaltece suas qualidades enquanto homem. Já a mulher que faça a mesma coisa e fique com vários é denominada de «puta», considerada imoral. De forma contundente, ele termina a exposição de sua opinião dizendo que é normal querer se relacionar, e que devemos nos atentar aos riscos que um relacionamento sem compromisso pode envolver: gravidez indesejada e doenças. A caixa alta dá o tom de destaque quando conclui: «tr4n-s4r com mais de uma pessoa NÃO É ERRADO! Ponto».

Aqui, vemos um exemplo de como os filtros funcionam nessas plataformas interativas. Como já mencionamos, há mecanismos que bloqueiam conteúdos considerados impróprios. Palavras como «piranha», «comedor», «transar» e «puta» se tornam possíveis apenas se forem modificadas com símbolos e números, num recurso utilizado pelos comentaristas, mas que, ainda que modificados, tais vocábulos podem ser facilmente decodificados e compreendidos por meio da contextualização.

Na resposta seguinte, materializada no comentário de número 4, o enunciado atribuído ao perfil Wagner Klein retoma, marcadamente em aspas, e inscreve, dentro de seu enunciado, o enunciado do outro, «MAS tr4n-s4r com mais de uma pessoa NÃO É ERRADO! Ponto», como estratégia argumentativa que marca uma relação adversativa com o enunciado posterior, formulado parafrasticamente: a forma da palavra «transar» (tr4ns4r), seguida da expressão em caixa alta (SUJEITA a ser EXPOSTA) e do encerramento «Ponto»: «Tr4ns4r sem compromisso com colegas imaturos de faculdade te SUJEITA (não estou valorando certo-errado) a ser EXPOSTA. Ponto». A conjunção «MAS» que abre o enunciado retomado em aspas funciona, de fato, como uma conjunção adversativa para a posição do enunciador que retoma o dizer do outro, marcando uma divergência com sua afirmação e contribuindo para a permanência de um discurso que exime o autor do cartaz de responsabilidade e reafirma a sanção à mulher que rompe o contrato social.

Assim, seguem os comentários 5, 6 e 7, (re)atualizando o enunciado e perpetuando um discurso de virilidade a partir da lógica machista, construída sócio-historicamente. Sob o perfil César Flafuderoso (comentário 5), observamos a argumentação biologicista, atribuindo diferenças entre homens e mulheres à natureza, e reafirmando a valorização do homem sobre a mulher: a natureza fez homens e mulheres diferentes, e por isso o que vale para um não se aplica ao outro; portanto, o homem que se relaciona com várias mulheres é «mito», ou seja, é valorizado e incentivado de forma constante a ter (e a dizer sobre) mais experiências sexuais. Sob o perfil José Quadrado (comentário 6), atribui-se ao vício a prática sexual da mulher, portanto a desqualifica por uma condição associada à doença mental, alijando-a da capacidade de honrar o contrato social. Sob o perfil Lucas Lourenço (comentário 7), reitera-se como normal a divisão entre mulheres «decentes e respeitáveis», de um lado, e as «cadelas», de outro. Tais referências para o que é considerado verdadeiro são avalizadas por argumentos com base nos valores morais reiterados historicamente pelos aparelhos ideológicos que encontramos na família e na religião.

Os três últimos comentários aqui arrolados foram realizados por perfis que, a partir da nomenclatura, sugerem ser femininos; o perfil autointitulado Observadora (comentário 8) responde ao comentário 7 e afirma que essa classificação de mulheres enquadradas como «casáveis» ou «comíveis» é motivo para que mulheres mudem sua orientação sexual, e ainda acrescenta um pedido: o desejo de que Lucas não se reproduza para o bem da humanidade. Ainda que seu posicionamento seja de contestação, ressaltamos que Observadora tratou da questão de orientação sexual como uma escolha simples, como se a decepção com homens fizesse com que a atração por mulheres se tornasse automática e solucionasse a opressão vivida por elas. Além disso, a afirmação com relação à mudança de orientação sexual promove efeitos de sentido que se aliam a uma dada compreensão sobre o movimento feminista, de que todo homem é um macho opressor e de que todas as feministas são homossexuais. Ao resumir a construção de relacionamentos sob um conjunto de regras para seu funcionamento, novamente se revalida um modelo de contrato social para a sexualidade: a heterossexualidade.

O comentário 9, sob o perfil Tais Araujo, dá a ver, novamente, a lex talionis, a retaliação, ao sugerir a confecção de um cartaz similar, feito por mulheres, expondo a intimidade da prática sexual do homem: «Elas deviam fazer o ranking do pinto pequeno e dos ruins de cama. Acho que o efeito seria melhor do que se mostrarem ofendidas». Desse modo, a estratégia discursiva continua produzindo efeitos de sentido que se aliam a uma certa compreensão de que o feminismo atua por uma igualdade de gêneros que exclui as particularidades dos sujeitos e se torna uma guerra dos sexos.

Por fim, encerramos nossa análise com o comentário 10, sob o perfil de Camila Braga. Ao dar a ver a afirmação de que «mulher é muito chata» e «agora entendo porque tantos homens tem a opção de ser gay», reafirma, de um lado, a superioridade do homem sobre a mulher (se a mulher é chata, o homem tem, possivelmente, senso de humor) e desqualifica a orientação homossexual como opção, promovendo efeitos de sentido relacionados à possibilidade de escolha sobre a sexualidade.

Destacamos ainda que as palavras em si não são negativas, mas que, como são proferidas a partir de uma posição ideológica, lhes são imbuídos significados em relação àqueles que produziram e leram tais enunciados. Os interlocutores envolvidos podem perceber que enunciaram/ouviram/leram dizeres em que inscreveram posicionamentos negativos revisitando a memória discursiva do meio social onde convivem, o que garante uma certa «estabilidade do sentido» acordado entre os usuários de uma mesma língua. Aqueles que se percebem em condições de julgar o fazem com uma motivação: «o desprezo e a estigmatização moralmente condenáveis são socialmente justificados porque a norma dominante é legitimada, aconteça o que acontecer». (Paveau, 2015, p. 96)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, a materialidade dos discursos pôde ser acessada por meio do dispositivo tecnodiscursivo, que não se reduz a um suporte do discurso, mas que o constitui (Paveau, 2015). Não raro vemos que as mensagens eletrônicas são marcadas por agressividade verbal, ainda que haja uma lista consideravelmente grande sobre as regras de uso dessa função de comentário. Para Paveau (2015), a confrontação, a polêmica e o insulto, ou qualquer forma discursiva não virtuosa é quase uma regra nos meios digitais. A linguista ainda levanta a hipótese de que esses dispositivos permitem esse tipo de configuração discursiva, talvez porque a tela signifique uma proteção contra a reação física do outro-fator de controle da produção verbal numa interação face a face.

No caso em questão, o espaço cibernético propiciou a interação entre várias pessoas que se manifestaram sobre a reportagem resultante da exposição do cartaz. Vale lembrar que os comentários podem ser realizados por quaisquer pessoas, mas não há garantia de veracidade de identidade, uma vez que as pessoas podem se proteger por meio de perfis falsos, o que torna um pouco mais complexa a identificação física do usuário. Isso não significa que não poderão ser julgados caso cometam o que se denomina de «crimes da internet», mas dificulta o trabalho de investigação. Conhecer a origem de uma postagem no ciberespaço não significa conhecer sua fonte produtora; um mesmo computador pode ser usado por mais de uma pessoa, e uma pessoa pode conectar seu notebook ou celular de vários pontos do mundo. Essa suposta proteção que a tela física concede (é possível localizar o sujeito que comenta por seu IP) talvez sirva de incentivo para que os sujeitos entrem numa ordem do discurso em que haja condições de possibilidade para a intolerância no espaço virtual, ato que, cara a cara, pode não acontecer, uma vez que, sem proteção, as condições de possibilidades são diferentes dentro dessa ordem discursiva.

Podemos ver conflitos causados por essas avaliações do que seriam «produções discursivas não virtuosas, que se tornam alvo de reprovação da moral social, na maioria das vezes com dimensão jurídica» (Paveau, 2015, p. 36). Com relação às consequências jurídicas do que ocorre no ciberespaço, é possível observar que as investigações podem ser dificultadas porque a tela que separa também protege a identidade e a integridade física das pessoas. Há de se mobilizar equipes técnicas para saber com precisão a localização do endereço de onde saíram determinadas declarações, além de demandar mais tempo para que se prove quem utilizou a máquina e fez tal declaração.

Nas palavras de Barros (2011), a intolerância sempre encontra justificativas para suas práticas e discursos. Os conflitos são resultado do modo diferente do outro, da incompatibilidade de suas práticas em relação ao que se acredita ser o «certo», o «melhor». Os sujeitos intolerantes são sempre apaixonados, seguidores dos valores morais vigentes da sociedade em que estão inseridos.

As pessoas classificadas pelo ranking sexual foram alvo de intolerância, tanto no espaço universitário do qual fazem parte quanto no espaço tecnodiscursivo em que circula o acontecimento discursivo. Mas a intolerância não é exclusividade daqueles que julgaram a exposição como atitude acertada; vimos, nos comentários, que o sectarismo permeia os dois posicionamentos ideológicos: independentemente da opinião sobre as práticas que levaram à confecção do cartaz e suas consequências, há um juízo ao que consideram como bons ou maus atores sociais. Para os que defendem a atitude dos sujeitos - modalizados pela paixão de vingança - que criaram o ranking, a mulher que não se resguarda, que não possui o recato idealizado pela maioria machista, constitui-se como um ator social anormal, e por isso merecedor de punição, demandando o julgamento moral que lhe foi infligido. Elas são objeto de ódio e de injustiça. Já para os que defendem a liberdade das práticas sexuais das mulheres, o mau ator é o sujeito que se valeu dessa moralização para julgá-las e expô-las, e consequentemente ele também deve ser punido, deve ser cerceado, não se reproduzindo ou sendo classificado da mesma forma que as pessoas arroladas na lista foram.

Há um padrão em que devemos nos encaixar, tanto corporalmente quanto nas práticas que são aceitas como as condizentes com o que se espera de acordo com as referências socialmente aprendidas. Tachar e expor as pessoas por seus atributos físicos e julgá-las pelas atitudes consideradas desviantes faz parte dos vários mecanismos disciplinadores. De acordo com Courtine (2013), é no final do século XIX que a exibição do anormal ganha destaque. Considerada como «elemento central de um conjunto de dispositivos que fazem da exposição das diferenças, estranhezas» (Courtine, 2013, p. 121), entre outros desvios incidentes sobre o corpo, essas ações de exposição foram as sementes do que se tornaria a moderna diversão massificada.

A exposição da classificação e redução das pessoas a uma característica íntima ou a uma parte do corpo é uma violência, ainda que, muitas vezes, pensemos na violência como algo que seja fisicamente visível. O peso da sanção carregada pelos «diferentes» compromete as formas de se relacionar e de se expressar no mundo, a confiança no outro, dentre vários outros problemas. Especificamente neste artigo, as vítimas são mulheres que sofreram violência por serem consideradas inferiores por seu gênero. Assim, entende-se a violência de gênero como

o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. (Safiotti, 2001, p. 116)

Como foi possível observar na materialidade discursiva coletada para este artigo, apesar de a emancipação da mulher ocorrer em várias esferas, ainda há muita vigilância sobre suas ações; ela ainda é valorizada pelo comportamento recatado e deve ser dócil para que seja vista como um bom ator social. O fato de que o sujeito feminino tenha alçado voo e conquistado outros espaços antes inimagináveis não impediu a discursivização das concepções e práticas machistas.

Na contemporaneidade, a avalanche de informações e o aumento do acesso ao ensino superior não garantem o desaparecimento do preconceito e das violências justificadas como punições merecidas pelas mulheres. As cristalizações dos valores sociais são exteriores a esses fatores, e as agressões sofridas pela mulher ocorrem em maior ou menor grau, indiferentemente da classe social, raça ou escolaridade.

Ainda que as justificativas e o apoio encontrados em outros sujeitos que se valem da moralização para aplicarem seu julgamento sejam reconhecidas como ações intolerantes, não é raro que se consiga valorizar, de modo positivo, uma atitude que, em outra situação, seria considerada negativa, porque os valores não são imutáveis, eles são modalizados de acordo com a comunidade em que estão inseridos.

O que podemos perceber nas práticas sociais é a persistência de um «referencial falocêntrico», em que o masculino é contraposto ao feminino de forma que se destaca com valores positivos, com as práticas sexuais incentivadas, com o modelo de homem ativo, pronto para enfrentar o exterior do seu lar. O que se espera do feminino, por sua vez, é uma passividade, uma docilidade sobre a qual Foucault (1996, p. 126) discorreu em Vigiar e Punir: «É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado». Sobre a disciplina utilizada de forma mais extensiva aos corpos que se quer docilizar (no caso do presente estudo, dos corpos femininos), Foucault afirma que ela

[...] "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso pode-se fiar em seu super-poderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. [...] e são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos. (Foucault, 1996, p. 153)

A vigilância sobre o corpo feminino e a ditadura sobre a expressão da sua sexualidade são ancoradas no que Foucault denominou de «gratificação-sanção», parte da punição disciplinar, de modo a tornar a mulher dócil. Essa disciplina avaliadora realiza o julgamento por meio da sua «verdade», ou seja, valorando positivamente um comportamento e usando de dispositivos coercitivos para normalizá-lo.

Os discursos machistas continuam circulando a despeito de toda a transformação do papel do sujeito feminino nos últimos tempos. Se antes as mulheres mais pobres sempre participaram das atividades laborais e eram pouco reconhecidas, ganhando menos que os homens, as mulheres ricas e de classe média eram recolhidas em casa, sendo denominadas «rainhas do lar». A nova configuração mundial engloba as mulheres de todas as classes como mais participativas em atividades profissionais, chegando inclusive a altos cargos antes reservados apenas ao homem.

Quando um sujeito se desvia do modelo ideal, as instituições (escola, religião, família, entre outras) lhe infligem punições a fim de corrigi-lo. As correções podem recair sobre os corpos (como o encarceramento nas prisões) ou podem acontecer em forma de rotulações, discursivizações de dimensionamento moral. No caso específico da pesquisa apresentada, as mulheres arroladas no denominado «Ranking sexual» da ESALQ tiveram atitudes consideradas inadequadas ao envolverem-se intimamente com mais de um parceiro, de forma descompromissada. Recaiu sobre elas a penalização de terem o nome relacionado com sintagmas que, na nossa sociedade, são, axiologicamente falando, negativos. Não obstante, o fato de não saberem ao certo o que houve nem conhecerem pessoalmente os estudantes que figuraram no cartaz, os comentadores se veem com a imagem de superioridade moral, por isso entendem-se no direito de julgá-las, uma vez que se inscrevem em uma formação discursiva machista, que constrói a figura dessas mulheres como desqualificadas e desajustadas. Nesse contexto, as adjetivações que foram utilizadas para referir-se aos nomes dos estudantes são motivo de constrangimento e humilhação aos participantes involuntários da classificação mostrada para todos os outros estudantes daquela instituição de ensino; o ranking funcionou como um modelo a não ser seguido, o que não se deve ser, o que não se deve fazer.

Os comentários decorrentes da notícia reverberaram os posicionamentos por meio da divulgação da internet. No espaço digital, o discurso mais intensificado, normatizado e normatizador, aparece na formação discursiva machista. Isso revela que a imagem que predomina em nosso contexto social é a da valorização de comportamentos de recato e docilidade feminina em face da luta pela igualdade de direitos, o que nos faz pensar que a luta pela igualdade precisa abranger fortemente a sexualidade e o corpo da mulher.

REFERÊNCIAS

Barros, D. L. P. (2011). A construção discursiva dos discursos intolerantes. Revista eletrônica Diversitas. 1, 1-20. Recuperado de: http://diversitas.fflch.usp.br/files/Texto%20Profa.%20Diana%20Luz%20Pessoa%20de%20Barros%20(1).pdf. [ Links ]

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Brandão, H. H. N. (s. f.). Analisando o discurso. Recuperado de: http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/BrandaoAnalisandoODiscurso.pdf. [ Links ]

Courtine. J. J. (2013). Decifrar o corpo: Pensar com Foucault. Petrópolis: Vozes. [ Links ]

Foucault, M. (1995). Arqueologia do Saber (6a ed.). Rio de Janeiro: Forense. [ Links ]

Foucault, M. (1996). Vigiar e punir (13a ed.). Petrópolis: Vozes . [ Links ]

Imagem do cartaz. (2015). Recuperado de: http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2015/06/ranking-expoe-intimidade-sexual-de-alunas-da-usp-e-causa-revolta.html. [ Links ]

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Maingueneau, D. (2005). Gênese dos discursos. Curitiba: Criar. [ Links ]

Paveau, M. A. (2015). Linguagem e Moral: uma ética das virtudes discursivas (Ivone Benedetti, trad.). Campinas: Editora da Unicamp. [ Links ]

Pêcheux, M. (1988). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (Eni Orlandi et al., trads.) Campinas: Editora da Unicamp . [ Links ]

Safiotti, H. I. B. (2001). O poder do macho (11a ed.). São Paulo: Editora Moderna. [ Links ]

* Este artigo é uma análise avançada à qual as autoras se dedicaram a partir dos resultados da dissertação de mestrado intitulada «O peso da sanção normalizadora sobre o corpo da mulher: a sexualidade vigiada no "ranking" ESALQ», defendida em 2017, na Universidade de Franca.

1 A investigação responsabilizou 5 alunos pelo ocorrido, e as reportagens que fizeram referência aos resultados da investigação os denominaram no plural masculino, pois não foram divulgados os nomes dos responsáveis. Desse modo, optamos, também, por designar os autores no plural masculino.

Cómo citar este artículo: David, A. C. S., & Manzano, L. C. G. (2019). Discursos intolerantes na internet: o caso brasileiro do ranking sexual da Universidade de São Paulo. Forma y Función, 32(1), 81-99.

Recebido: 19 de Abril de 2018; Aceito: 25 de Outubro de 2018

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