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Forma y Función

Print version ISSN 0120-338X

Forma funcion, Santaf, de Bogot, D.C. vol.33 no.2 Bogotá July/Dec. 2020

https://doi.org/10.15446/fyf.v33n2.79840 

Artigos

RETÓRICAS REVOLUCIONÁRIAS NA LINGUÍSTICA: RECEPÇÃO DE TEORIAS E NOVIDADE CIENTÍFICA

RETÓRICAS REVOLUCIONARIAS EN LA LINGÜÍSTICA: RECEPCIÓN DE TEORÍAS Y NOVEDAD CIENTÍFICA

REVOLUTIONARY RHETORIC IN LINGUISTICS: RECEPTION OF THEORIES AND SCIENTIFIC INNOVATION

Ronaldo de Oliveira Batista *  

*Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, São Paulo, Brasil, © ORCID https://orcid.org/0000-0002-7216-9142. ronaldo.obatista@gmail.com


Resumo

O objetivo deste artigo é discutir a noção de revolução na história da linguística a partir da observação da retórica de linguistas circunscritos a determinadas comunidades de pesquisadores. Propõe-se uma interpretação (a partir de um quadro sociorretórico de análise em Historiografia Linguística) de dois momentos da história da linguística brasileira (considerada exemplo analítico a sustentar uma reflexão meta-historiográfica) em que linguistas advogaram por rupturas revolucionárias na ciência da linguagem. Constituem-se como material de análise: (1) a resenha de Miriam Lemle de 1967, marco da recepção brasileira à Gramática Generativa; (2) o manifesto que elaborou o programa da Gramática Construtural em 1973. Entende-se que uma análise dos posicionamentos discursivos dos cientistas permite evidenciar o humano na prática científica, muitas vezes negado, ainda que presente nas disputas intelectuais e institucionais que caracterizam o pensamento científico.

Palavras-chave: gramática construtural; gramática generativa; historiografia da linguística; linguística brasileira; retórica revolucionária

Resumen

El objetivo de este artículo es discutir la noción de revolución en la historia de la lingüística a partir de la observación de la retórica de lingüistas circunscritos a determinadas comunidades de investigadores. Se propone una interpretación (a partir de un cuadro sociorretórico de análisis en Historiografía Lingüística) de dos momentos de la historia de la lingüística brasilera (considerada ejemplo analítico para sustentar una reflexión metahistoriográfica) en que algunos lingüistas abogaron por rupturas en la ciencia del lenguaje. Se constituyen como material de análisis (1) la reseña de Miriam Lemle de 1967, marco de la recepción brasilera de la Gramática Generativa, y (2) el manifiesto que elaboró el programa de Gramática Constructural en 1973. Se entiende que un análisis de las posiciones discursivas de los científicos permite evidenciar el humano en la práctica científica, muchas veces negado, aunque presente en las disputas intelectuales e institucionales que caracterizan el pensamiento científico.

Palabras clave: gramática constructiva; gramática generativa; historiografía de la lingüística; lingüística brasilera; retórica revolucionaria

Abstract

The article aims to discuss the concept of revolution in the history of linguistics from the study of the rhetoric used by linguists within certain research communities. One proposes an interpretation (from a socio-rhetoric framework of analysis in Linguistic Historiography) of two moments in the history of the Brazilian linguistics (as an analytical example to support a meta-historiographic reflection), in which linguists advocated a revolutionary rupture in the science of language. One bases the analysis on: (1) the review by Miriam Lemne in 1967, a milestone in the Brazilian reception of the Generative Grammar, (2) the manifest of the Construction Grammar in 1973. One assumes that an analysis of the discursive position of scientists helps to reveal the human component in the scientific practice, which is often denied, but is present in the intellectual and institutional arguments typical of the scientific thought.

Keywords: construction grammar; generative grammar; historiography of linguistics; Brazilian linguistics; revolutionary rhetoric

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é, pela Historiografia da Linguística1, refletir sobre a noção de revolução científica a partir da observação da retórica2 dos linguistas. Complementarmente, se propõe analisar, como estudos de casos a apoiar uma reflexão metahistoriográfica (Swiggers, 2019), dois momentos da história da linguística brasileira em que linguistas advogaram por rupturas revolucionárias. Constituem-se como material de análise: (1) a resenha de Miriam Lemle de 1967, marco da recepção brasileira à Gramática Gerativa; (2) o manifesto que divulgou o programa da Gramática Construtural em 1973, escrito por Geraldo Mattos e Eurico Back. Com esses estudos, pretende-se demonstrar que retóricas revolucionárias na linguística brasileira das décadas de 19601970 se constituíram em duas direções: uma que reivindicou a novidade em diálogo com teorias vindas do exterior; outra que reivindicou a novidade em ruptura com teorias linguísticas existentes.

Toda historiografia é produto de uma operação seletiva, em que se definem recortes no que se estabelece como o material de investigação e como fatores que demarcam uma periodização (o que incluir e o que excluir no estudo do historiógrafo). Nesta narrativa, considerou-se como material análise dois movimentos intelectuais e sociais que sucederam uma institucionalização da linguística em 1962 por meio de uma política de ensino, que acarretou o surgimento de diferentes iniciativas de produção científica (Altman, 1998). Especificamente em relação a esse recorte, foram ainda selecionados dois materiais que de modo incisivo marcaram uma ruptura com teorias e métodos de análise linguística previamente estabelecidos na história da linguística brasileira. Esta é, portanto, a razão principal que norteou o critério de seleção dos dois materiais que compõem o córpus analítico deste artigo: a destacada retórica de ruptura presente nos discursos dos linguistas.

Com esse marco temporal não se quer assumir que não tenha havido produção científica e docente em linguística pré-1962 em diálogo com pesquisas e teorias formuladas em centros norte-americanos e europeus. No entanto, essas iniciativas anteriores ao decreto nacional que instituiu a obrigatoriedade do ensino de linguística nas faculdades de letras não tiveram continuidade e impacto em matéria de produção e circulação institucionalizada em ciência da linguagem assumida como tal (é desse período a disputa entre filólogos e linguistas pelo campo de estudo das línguas), evidenciada, por exemplo, em produção periódica especializada (ainda que tenha havido publicação em revistas e boletins de filologia) e organização de associações de pesquisadores reconhecidos e legitimados por seus pares como linguistas. Ao lado desses fatores, a implantação de cursos de formação em nível de pós-graduação é outro aspecto que nos permite demarcar o período após 1962 como de institucionalização de fato de uma ciência da linguagem no Brasil (a seguir certos termos da argumentação de Altman na sua história de 1998).

A atuação destacada de Mattoso Camara Jr. (sob influência do estruturalismo norte-americano na linha de Bloomfield) em ensino e pesquisa em linguística a partir da década de 1940 não teve em sua época os efeitos sociais que permitissem uma implantação definitiva de uma ciência da linguagem no Brasil, que teria de esperar algo em torno de vinte anos para que de fato se institucionalizasse oficialmente em centros de ensino e pesquisa. Se recuarmos ainda mais no tempo, uma produção de gramática da língua portuguesa foi influenciada pelo pensamento dos naturalistas (como em Júlio Ribeiro) e também pelos neogramáticos (como em Said Ali). De qualquer maneira, se pode apontar que foram iniciativas muito mais individuais do que coletivas em termos de produção e circulação de ideias linguísticas3.

O recorte que fizemos para esta análise privilegia dois posicionamentos que já pertencem a um momento histórico em que se pode falar de fato de estudos linguísticos institucionalizados, com docência e pesquisa organizada em centros de formação, com publicação regular e reconhecida por pares, com a formação de grupos de especialidade que se reconhecem como praticantes de determinada corrente de pesquisa linguística e desse modo marcam sua legitimidade científica.

Naturalmente que esse recorte não implica de imediato uma negação da natureza ou da validade de iniciativas individuais de produção em linguística no cenário brasileiro. Nesse sentido, reforço que a seleção dos materiais de análise não assume que foram apenas eles que representaram movimentos de implantação de uma linguística nacional em diálogo com correntes e pesquisadores internacionais. Como toda história é uma versão, outras narrativas darão conta do que aqui não foi privilegiado para a elaboração de uma interpretação de momentos da história da linguística brasileira (não considerada, obviamente, em sua totalidade).

O material será analisado por meio de um quadro sociorretórico (Batista, 2019a) que observa as retóricas dos linguistas para uma interpretação de etapas da história da linguística. Se entende que uma análise dos posicionamentos discursivos dos cientistas permite evidenciar o humano na prática científica, muitas vezes negado, ainda que presente nas disputas intelectuais e institucionais que caracterizam o pensamento científico.

Para tanto, em primeiro lugar, retoma-se o conceito de revolução na história da linguística; em seguida, apresentam-se diretrizes para os estudos de casos; na sequência são analisadas retóricas que pretenderam legitimação de posicionamentos teóricos em meio a grupos de especialidade4 e programas de investigação5; uma conclusão argumenta a favor da validade da observação das retóricas na reconstituição histórica do conhecimento linguístico.

REVOLUÇÃO EM HISTORIA DA LINGÜÍSTICA6

A noção de revolução científica é clássica nas ciências exatas e naturais; o marco inicial de uma compreensão histórica desse fenômeno é a publicação de Sobre a revolução dos orbes celestes de Nicolau Copérnico em 1543. A partir desse discurso fundador de uma concepção revolucionária em ciência, outros estudos também foram considerados revolucionários em um recorte que abrange os séculos XVI e XVII (Harman, 1995; Marcondes, 2016). Nessa circunscrição temporal, revolução se referia a modificações do pensamento antigo e medieval que se deram com novas descobertas, principalmente em física e astronomia, que instauraram uma nova forma de conceber o cosmo e uma profunda alteração na maneira de compreender ciência e conhecimento7. Essa compreensão de uma prática científica em termos revolucionários se estendeu aos séculos XVIII e XIX, quando, segundo Joseph (1995), a noção de revolução científica teria se institucionalizado como expectativa normal no panorama das ciências.

A noção de revolução permaneceu como um dos tópicos centrais da reconstrução histórica dos atos científicos. No século XX (para fazer uma seleção arbitrária), um nome se destacou ao tratar da dinâmica de produção do conhecimento, compreendida em chave histórica e filosófica: Thomas S. Kuhn (2000[1962])e sua abordagem da estrutura das revoluções científicas, na qual paradigmas se sucederiam em termos de ruptura e quebra de tradição. Para Kuhn, uma revolução científica constitui-se como uma ação intelectual, delimitada por uma dimensão social e uma linguística, na qual uma força persuasiva atuaria na elaboração de argumentos científicos8.

A linguística, como ciência cindida em diferentes programas de investigação e grupos de especialidade (muitas vezes em linha direta de confronto uns com os outros), também foi vista por historiógrafos (alguns influenciados por Kuhn ou motivados criticamente por ele) na pauta de um campo permeado por revoluções teórico-metodológicas, desde o clássico (para se limitar a uma exemplificação restrita ao século XX) de Ferdinand de Saussure (Cours de linguistique générale, de 1916), que romperia com a tradição da linguística histórico-comparativa, até a polêmica revolução de Noam Chomsky (com sua associação entre linguagem e mente e seu modelo de análise sintática) na segunda metade do século XX9.

Dois historiógrafos da linguística podem ser citados em relação a uma reflexão sobre a noção de revolução na linguística: John E. Joseph e E. F. Konrad Koerner. Joseph (1995) discutiu a noção de revolução em uma resenha na qual tratou de duas narrativas históricas: Stephen Murray (1994) e seu estudo sociológico sobre grupos de especialidade (nessa perspectiva, as revoluções em linguística são analisadas sob uma ótica social; os eventos da ciência são sociais, com uma dimensão intelectual e retórica, esta atuando como elemento persuasivo nem sempre explícito na validação institucional das práticas de análise linguística); Randy Allen Harris (1993) e seu estudo sobre as «guerras» na linguística a partir do exame da retórica adotada pelos linguistas (nessa perspectiva, as revoluções científicas são acontecimentos retóricos que possuem uma dimensão social e uma intelectual). Para Joseph, a noção de revolução é central em linguística, já que as rupturas revolucionárias seriam muito mais frequentes na história do conhecimento sobre a linguagem do que é normalmente considerado. Já Koerner (1999) apontou para uma possível orientação metodológica ao indicar que revoluções na história da linguística devem ser analisadas mediante a observação de diferentes fatores que determinam o reconhecimento e a aceitação de uma ruptura revolucionária como tal. Entre esses fatores estariam os sociais e os políticos, que poderiam explicar razões do sucesso ou do fracasso de descontinuidades teóricas e metodológicas radicais entre paradigmas na linguística.

Da leitura dos dois historiógrafos, pode-se depreender um eixo orientador para a análise de revoluções na história da linguística, ainda que eles não tenham de fato fornecido diretrizes de análise, mas orientações gerais para a compreensão de momentos em que linguistas clamam por posicionamentos revolucionários, via discursos adotados ou via trabalhos diversos que assumiriam tal configuração.

Considerando a ressalva de que uma ruptura revolucionária nunca é de fato totalmente desconectada de conhecimentos intelectuais e/ou científicos anteriores (ao contrário do que muitos «revolucionários» assumem quando procuram validar seus posicionamentos de ruptura radical), compreende-se que uma revolução não é uma ruptura in totum com modos de conceber teoricamente a linguagem. O que ocorre na dinâmica dos fatos históricos é que muitas vezes linguistas alegam estar diante de revoluções compreendidas como rupturas absolutas, mas esse posicionamento é discursivo e procura retoricamente delimitar espaços intelectuais e institucionais.

Assim, há rupturas (muitas vezes alegadas como revolucionárias) entre programas de investigação quando mudanças ocorrem na concepção de língua, na definição do objeto teórico, na elaboração de técnicas de análise. Essa descontinuidade epistemológica e metodológica é acompanhada de sua contraparte social, pois uma ruptura é elaborada no interior da dinâmica social dos grupos de especialidade, que assim determinam formas de pertencimento ou não às comunidades de interlocução e promovem, por meio da institucionalização do conhecimento, legitimações de ideias elaboradas sobre a linguagem.

Desse modo, a percepção de uma revolução se estabeleceria quando uma ruptura viria acompanhada de uma movimentação institucional que promoveria a alteração de grupos de especialidade em destaque em dada conjuntura científica num determinado recorte temporal e social, tornando obsoletas (de acordo com um ponto de vista) práticas anteriores de pesquisa linguística.

Naturalmente que fica o questionamento a respeito de uma revolução integral em linguística diante de sua pluralidade científica. Talvez tenhamos de pensar em rupturas (alegadas ou não como revoluções) situadas em torno de programas de investigação que de alguma maneira compartilham algo de visão de linguagem ou técnicas de análise. Isso porque a diversidade de programas de investigação não permite a presença de uma ruptura radical com todos os conhecimentos em prática, no que se compreende como a configuração do diversificado campo da(s) ciência(s) da linguagem.

Pela complexidade dos fatores apontados, pode-se compreender que revoluções de fato talvez sejam mais raras do que o posicionamento de Joseph (1995) num primeiro momento nos levaria a crer. No entanto, se à noção de revolução associarmos a noção de retórica, podemos chegar ao ponto que nos parece ser importante para Joseph: as revoluções podem muitas vezes ser alegadas como tal (e não serem de fato revoluções). Ou seja, grupos de especialidade (por meio de figuras de destaque, como líderes institucionais e/ou organizacionais) poderiam advogar por revoluções tendo em vista legitimar suas ideias em relação a outras práticas linguísticas. Um dos elementos fundamentais para essa legitimação é o modo a partir do qual um linguista se posiciona diante da dinâmica histórica. Um posicionamento de continuidade com tradições de conhecimento ou um de descontinuidade com outras propostas de investigação linguística.

A retórica, nessa perspectiva, seria elemento crucial das rupturas científicas e se distinguiria como sendo de continuidade ou ruptura. Tal posicionamento permite que se observe a história da linguística em torno de revoluções de fato (com as ressalvas para sua existência) ou alegadas como tal, a partir de um posicionamento que se tornou legítimo diante de uma configuração contextual específica, que forneceu os suportes (sociais e institucionais) necessários para que os discursos dos linguistas se posicionassem em termos de continuidade ou descontinuidade.

Desse modo, revoluções na linguística podem ser analisadas pelo historiógrafo, que deverá em última instância observar sua natureza e real configuração científica em matéria de ruptura radical ou não, a partir da observação (I) dos grupos de especialidade que clamam pela renovação de seus programas de investigação (com suas ancoragens sociais e institucionais) e (2) das retóricas dos linguistas em busca da validade de seus posicionamentos científicos.

A retórica, portanto, é objeto de análise para a compreensão da natureza de uma «revolução» na história das ideias linguísticas, seja ela, como movimento de descontinuidades, alegada, parcialmente realizada, percebida como ruptura total ou mesmo negada em sua validade científica e social.

Na próxima seção, se expõe uma diretriz metodológica para a observação dessas retóricas dos linguistas. Em seguida, dois estudos de casos da linguística brasileira procuram demonstrar como uma retórica de ruptura pode se apresentar no desenvolvimento histórico de uma tradição nacional de pesquisa.

RETÓRICAS DOS LINGUISTAS10

Define-se retórica como uma manifestação linguístico-discursiva de natureza persuasiva de um agente da produção ou recepção de estudos sobre línguas e linguagem, circunscrito a um programa de investigação e a um grupo de especialidade. Essa prática enunciativa se faz por meio de gêneros específicos e de atos de fala que estabelecem rupturas ou continuidades em relação a paradigmas científicos no campo dos estudos da linguagem. A análise das retóricas dos linguistas pode ser empreendida através de um quadro sociorretórico que define como objetivos: compreender como se constrói a legitimidade de um saber por meio do discurso adotado por agentes da produção e recepção de ideias linguísticas; analisar recursos linguísticos e argumentativos utilizados na elaboração de retóricas; circunscrever a retórica em uma dinâmica histórica e social.

Tendo esses objetivos em vista, uma análise das retóricas dos linguistas segue como etapas de investigação (não em sequencialização linear, mas em relação de circularidade e interpenetração): (i) contextualização da retórica em um domínio histórico e social, o que implica situar os discursos científicos em um grupo de especialidade, estabelecendo a natureza da camada contextual-institucional em que se localiza a manifestação discursiva dos linguistas; (2) contextualização da retórica em um programa de investigação, o que implica situar a manifestação discursiva dos linguistas em camadas teórica e técnica; (3) análise da retórica, que compreende observar: (a) provas e argumentos que sustentam posicionamentos discursivos e estratégias argumentativas empregadas; (b) a configuração lexical e gramatical da retórica, com a observação da estrutura textual que veicula posicionamentos argumentativos adotados; (4) correlação da retórica com seu ambiente de circulação e recepção, seus gêneros de divulgação e modos de interação que estabelece entre sujeitos do discurso retórico e seus interlocutores, tendo em vista a repercussão obtida pelas manifestações discursivas dos linguistas.

Entende-se que as retóricas são a manifestação dos linguistas em busca da legitimação de suas posturas de ruptura ou continuidade com modos de empreender a pesquisa em ciência da linguagem. Estão nas retóricas, a depender de sua configuração, alegações científicas de atos revolucionários na linguística, que clamam por descontinuidade com outras tradições de pesquisa, diante das quais essa retórica se firma em oposição.

Na seção seguinte, dois episódios da linguística brasileira serão analisados tendo em vista evidenciar dois aspectos: (I) a natureza de retóricas revolucionárias na linguística brasileira dos anos 1960 e 1970; (2) o modo como a noção de revolução está relacionada com a prática discursiva que lhe dá sustentação na dinâmica social e histórica da circulação das ideias linguísticas.

RETÓRICAS REVOLUCIONÁRIAS NA LINGUÍSTICA BRASILEIRA

Os anos 1960 foram fundamentais para a linguística brasileira e sua institucionalização11. Data de 1962 o decreto do governo brasileiro que determinava a presença de uma disciplina linguística nos currículos das faculdades de letras. A partir desse marco, polêmico por certo, os pesquisadores brasileiros interessados em linguagem tiveram de se organizar, de diferentes e complexas formas, para seguir a diretriz oficial. A formação de docentes capazes de ministrar a disciplina veio acompanhada da necessidade de formar pesquisadores para um campo que demanda preparo, leitura e sólida formação. Para suprir a demanda, medidas foram tomadas por um grupo de professores que atuava com linguística no Brasil e foram líderes intelectuais e/ou organizacionais desses primeiros momentos da linguística na década de 1960 (Altman, 1998): jovens foram enviados ao exterior para iniciar, aperfeiçoar ou concluir estudos de pós-graduação; professores estrangeiros foram convidados para ministrar cursos; programas de formação específica foram ofertados.

Uma articulação social com objetivo de fornecer bases mínimas para oferta da disciplina. Nesse fluxo concentrado no ensino de linguística, a pesquisa brasileira em ciência da linguagem, neste período da década de 1960, começou a se formatar, permeada por influências estrangeiras, pelas leituras dos textos que chegavam da Europa e dos EUA12. Na interpretação de Altman (1998), uma linguística que começou a se formar não em decorrência de um movimento intelectual que demandou institucionalização, mas por necessidade de institucionalização que gerou elaboração de programas de ensino e pesquisa.

Esses momentos da linguística no Brasil, na consequência histórica dos anos 1960 e no estabelecimento dos empreendimentos de pesquisa nos anos 1970, são um dos gestos fundadores do campo. A linguística brasileira se estabeleceu dessa maneira e é a partir dessa instância que se deve compreender seus movimentos de continuidade e descontinuidade intelectual e institucional. São diversos os grupos de especialidade e as práticas de pesquisa, pulverizadas em programas de investigação que se percebem como distintos.

As retóricas aqui analisadas permitem evidenciar duas direções na produção brasileira em linguística: o interesse de dialogar com a pesquisa internacional e o anseio de, em movimento contrário, estabelecer caminhos teóricos originais. Essas duas direções produziram retóricas de ruptura, seja pelo alinhamento à última «moda» em ciência, seja pela negação de um complexo de subdesenvolvimento intelectual por meio de uma inovação teórica. Os estudos a seguir objetivam apresentar como retóricas nessas direções se estabeleceram na linguística brasileira13.

A «ruptura» da Gramática Gerativa em sua recepção brasileira

Na década de 1960 foi experimentado o que, não sem polêmica, identifica-se em muitas versões de uma história da linguística como a revolução chomskiana em ciência da linguagem, quando esta teria entrado num estágio dito mais científico a partir da associação entre linguagem, mente, biologia, tendo como contraparte linguística o componente sintático privilegiado para análise. Essa movimentação intelectual na linguística ecoou na linguística brasileira da década de 1960 com a resenha de Miriam Lemle para o livro de Noam Chomsky Aspects of the Theory of Syntax (1965). Assumindo espaço científico (e discursivo) de quem fala como parte de uma comunidade que partilha das ideias chomskianas, Lemle (1967) publicou seu texto na revista Tempo Brasileiro, espaço de discussão intelectual e científica privilegiado naquele momento. A resenha é marco da recepção brasileira à Gramática Gerativa (Batista, 2007, 2010) e nela podem ser encontrados elementos que permitem apontar que a retórica de Lemle buscou não só estabelecer diálogo com o que se fazia então de «mais moderno» em ciência da linguagem, como também delimitar a presença de linguistas brasileiros interessados no programa chomskiano.

O tom adotado na resenha era o da ruptura com a linguística de antes das proposições de Chomsky e da negação com o pensamento gramatical tradicional.

Essa ruptura estabelecida via retórica colocava-se contra uma prática de análise linguística estruturalista (de cunho norte-americano, sob influência de procedimentos metodológicos elaborados pelo programa distribucionalista), em destaque, por exemplo, na Universidade de Brasília, no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Esses foram alguns dos centros que, ao lado da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas, possibilitaram a congregação de um grupo de jovens pesquisadores com interesse na investigação em ciência da linguagem (ancorada principalmente no ensino de linguística). Associadas a esses centros, o final da década de 1960 veria também a instalação dos primeiros programas de pós-graduação, as publicações em revistas periódicas especializadas e as propostas de formação das primeiras associações científicas (Altman, 1998).

Esses movimentos de institucionalização da linguística brasileira organizaram-se, de acordo com Altman (1998), em torno de uma prática (não de todo homogênea) que privilegiou o estudo descritivo sincrônico do português, em especial os estudos fonéticos, fonológicos e morfológicos (como rezava a cartilha estruturalista norteamericana da época).

A essa configuração teórica é que Lemle respondia em sua resenha, além da oposição aos tradicionais métodos de ensino de gramática escolar. Não à toa, Lemle será uma das pioneiras a ultrapassar a barreira analítica da palavra e dos morfemas com propostas de análise sintática da língua portuguesa (Altman, 1998).

Foi de ruptura, portanto, com esse estado da ciência da linguagem no Brasil o direcionamento da resenha, que apresentou Chomsky por meio de uma retórica elaborada em léxico configurado na isotopia da novidade, em que a reiteração da ruptura revolucionária se dava linguisticamente pelas estruturas textuais de reforço de referências e repetições. O uso do item lexical revolução (em suas diferentes formas morfológicas) reforçava o posicionamento que imprimia à história da linguística uma imagem de ruptura revolucionária. A construção argumentativa da retórica partia do pressuposto de que se falava de um lugar de consenso, o que reforçava a imagem de uma revolução que de fato se estaria instaurando. A estratégia argumentativa adotada, deliberadamente ou não, ancorava-se também na seleção de um argumento de qualidade para a teoria chomskiana, pois esta seria consciente de seu arcabouço epistemológico e, assim, seria mais científica. A negação da validade da linguística estruturalista na linha do distribucionalismo era destacada na retórica. Uma revolução precisa alterar um estado de coisas para que seja percebida como tal. Esse estado a ser alterado era o de uma linguística descritiva, vista na resenha como apoiada em elaboração de corpora, sem alcance real para interpretação dos fenômenos linguísticos, que deveriam ser vistos em ótica mental e biológica. A retórica de Lemle repetia outras retóricas adotadas pelos jovens linguistas norte-americanos que aderiram ao programa de Chomsky e procuraram, veementemente, descontruir qualquer ganho de uma linguística precedente às propostas do líder intelectual, que começava a ser delineado em torno do ethos do herói do pensamento linguístico (Harris, 1993; Batista, 2010).

«Está se formando, ao redor de Chomsky, uma corrente revolucionária na linguística: é da chamada gramática gerativa-transformacional. Novas questões, novas posições teóricas, novos rumos de investigação, novas formas de descrição vêm sendo propostas». (Lemle, 1967, p. 55)

«A linguística da primeira metade deste século vem sendo vista como um interregno em que certos valores positivos foram cultivados, tais como a consciência da necessidade de precisão formal e acuidade observacional, mas que sofrem de uma certa estreiteza de vistas no que concerne a suas posições epistemológicas». (Lemle, 1967, p. 55)

«Assim chega-se a mais uma notável diferença de conceitos entre a lingüística da primeira metade do século e esta. Aquela, concebendo uma língua como um corpus de dados, considerava-a como um sistema em si, independente de todas as outras. [...] Pela teoria de Chomsky, ao contrário, [...] sendo uma língua vista como uma das formas possíveis de manifestação da propriedade humana de linguagem, é natural que todas as descrições partam de um mesmo molde e façam uso de um cabedal comum de termos e tipos de regras, pois eles são entendidos como denotações de caracteres que são gerais». (Lemle, 1967, p. 59)

Os trechos selecionados acima refletem o teor geral da resenha e funcionam como amostragem para que se perceba o direcionamento retórico adotado por Lemle. Ao tratar de uma corrente revolucionária por definição (ancorada no precedente histórico do papel que Chomsky já assumira na ciência da linguagem), a elaboração argumentativa partia da premissa de que antes da Gramática Gerativa se estaria diante de um período de ciência normal -no sentido estabelecido por Thomas Kuhn (2000[1962]) no clássico Estrutura das revoluções científicas-, já limitada em seus alcances científicos. A revolução, portanto, vinha em boa hora. A impessoalidade discursiva contribuiu, em termos de construção textual, para a transmissão de um efeito de consenso em relação à revolução descrita; a estratégia argumentativa se estabelecia no complexo e tendencioso jogo da parte e do todo para apresentar um episódio da história da linguística como impacto absoluto diante de outras possibilidades teóricas. Essas outras possibilidades, marcadas textualmente no contraste entre o novo e o ultrapassado (podem ser destacados o uso de marcadores argumentativos de oposição e os confrontos materializados em pares de pronomes demonstrativos, por exemplo), fixavam discursivamente dois campos de investigação que não dialogavam; um por ser limitado e já não mais científico; outro por ser científico e, desse modo, impermeável a qualquer influência do que lhe fosse precedente.

Ainda em sua resenha, Lemle ressaltou as possibilidades que a teoria de Chomsky oferecia para a linguística, que passava a dialogar com a psicologia e com os mecanismos de tradução automática, abrindo o que chamou de «novas frentes» para a pesquisa em linguagem. A retórica ancorava-se no posicionamento argumentativo de que a novidade era por si mesma (como no argumento retórico do existente) positiva, pois eliminava o ultrapassado e o que necessitava de alteração em nome de uma compreensão mais científica da linguagem. Nessa retórica estavam os elementos necessários para que o público brasileiro recebesse a notícia de uma novidade revolucionária, que alterava os limites anteriores nos estudos das línguas e apresentava um caminho aberto à inovação científica.

Associado a condições institucionais que permitiram a instalação de disciplinas de linguística gerativa nas faculdades de letras e em cursos de pós-graduação, à formação de mestres e doutores, ao financiamento de pesquisas e bolsas de estudos, as publicações em artigos e em livros monográficos, o esforço de persuasão de Lemle pode ser considerado como de resultado positivo, porque nas décadas posteriores um poderoso (institucionalmente) e influente (intelectualmente) grupo de especialidade em Gramática Gerativa se estabeleceu na linguística brasileira, reproduzindo constantemente essa retórica inaugural de uma revolução na ciência da linguagem.

A «revolução» da Gramática Construtural

Uma proposta de teoria linguística foi divulgada nos primeiros anos da década de 1970 pelos professores de língua portuguesa e autores de livros didáticos Eurico Back e Geraldo Mattos. Os dois formavam um grupo regional no sul do Brasil com base na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, um espaço institucional marginal na constituição social de uma linguística no Brasil, que na época estava concentrada principalmente nas universidades públicas de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e nas publicações periódicas especializadas produzidas nesses centros de difusão da pesquisa e das diretrizes de ensino de linguística (Altman, 1998).

Apoiados na experiência docente, Back e Mattos propuseram com toda a força de uma retórica revolucionária o que chamaram de Linguística Construtural, proposta teórica de descrição e análise linguística que divulgaram como sendo absolutamente distante de qualquer influência direta de outras teorias linguísticas que a eles eram contemporâneas.

Sem qualquer compromisso com as correntes atuais ou as nomenclaturas existentes, apresentamos os fatos fundamentais da linguagem humana extraindo-lhes as consequências inevitáveis para a descrição científica das línguas. Resultarão destas reflexões uma técnica científica para o estudo da linguagem e os critérios para julgamento da validação das inúmeras técnicas empregadas pelos linguistas. (Back & Mattos, 1973, p. 2)

A ruptura se dava num contexto científico em que as teorias distribucionalista, gerativista, tagmêmica, glossemática estavam disputando espaço científico em um ambiente intelectual de efervescência em termos teóricos e metodológicos diante da diversidade de programas de investigação que buscavam legitimar seus princípios teóricos.

A proposta construturalista afirmava que a descrição e a análise linguística deveria globalmente dar conta de todos os aspectos formais e semânticos da língua (alegava-se que estes últimos aspectos eram negligenciados na linguística da época). Era proposta uma linguística integral dos significantes e significados, englobando os aspectos criativos e o uso da língua. Na fórmula central da proposta, o construturalismo era uma linguística que dava conta do «estoque» (equivalente ao que eles entendiam como competência linguística) e do «estilo» (equivalente à noção de performance).

Os veículos de divulgação da proposta de Back e Mattos foram principalmente a sua Gramática Construtural da Língua Portuguesa (1972) e o «Manifesto» (1973) publicado no primeiro número da Construtura, periódico fundado e dirigido pelos construturalistas. O «Manifesto» é nosso interesse neste artigo.

A Introdução do «Manifesto» sem rodeios já imprimia a expressiva retórica revolucionária adotada por Back e Mattos:

I.I Objetivo.

Nosso objetivo é apresentar os fundamentos científicos de uma nova escola linguística: A Linguística Construtural.

I.2. Razões da escolha de um novo caminho.

Antes de apresentarmos os princípios nos quais se baseia a doutrina construtural, é de se notar por que não nos filiamos a nenhuma das correntes existentes e por que propomos rumos novos e, por conseguinte, uma nova orientação, uma nova escola:

  • a) Nenhuma escola ou corrente da Linguística Moderna conseguiu fazer uma descrição coerente de todos os fatos de uma língua. (Apenas de fatos isolados ou de fatos muito delimitados.)

  • b) Todas as escolas trabalham fundamentadas em algo científico (parte de suas afirmações são verdadeiras); mas ou se baseiam em premissas falsas e têm procedimento científico, ou o procedimento é truncado por falta de uma visão global e coerente de fatos linguísticos, ou os estudos são tremendamente incompletos por não terem encontrado os meios adequados.

  • c) Nenhuma corrente conseguiu, por isso, estabelecer a Linguística num corpo de doutrina global e coerente, sistematizando todos os fatos da linguagem. (Back & Mattos, 1973, p. i)

Na retórica dos construturalistas, a escolha do adjetivo nova (e suas variações morfológicas) não deixava espaço para dúvida: o que o «Manifesto» propunha era uma retórica programática de ruptura com outras escolas linguísticas, não à toa a teoria que Back e Mattos apresentavam era definida em maiúsculas como A Linguística Construtural. A definitivização do sintagma nominal e a nomeação da escola não como uma teoria, mas como uma «Linguística» nos evidência o poder persuasivo de um discurso que delineava «um novo caminho», em tudo diverso do que era presente na linguística até o momento da proposta construturalista. Uma «nova» teoria que se estabelecia diante também da necessidade de legitimação de um grupo de especialidade específico, que nascia liderado em termos intelectuais e organizacionais por Back e Mattos e formado por seus discípulos, alunos seus naquele contexto institucional em que atuavam. Na justificativa da proposição de sua teoria, Back e Mattos construíram uma retórica que em sua seleção lexical conduzia os leitores do Manifesto por meio de uma formulação implícita quase que de ordem, movimento discursivo típico do gênero manifesto, que pede a conclamação de um auditório. Este era interpelado pela caracterização de uma teoria científica que se afirmava ser fundamentada em princípios sólidos, constituindo de fato uma «doutrina».

Na retórica, desautorizava-se a natureza científica de outros programas de investigação mediante o uso de uma estratégia argumentativa que apelava para o argumento retórico da qualidade: o construturalismo era o programa «novo» necessário porque analisava «todos» os fatos de uma língua, em uma «doutrina global» e coerente. A imagem de exaustividade científica era realçada no Manifesto, que parecia responder às características de animação política típica do gênero. A insistência em um caráter global da teoria ancorava-se, conscientemente ou não, no uso do argumento retórico da quantidade, pois na formulação científica dos construturalistas a totalidade era vista como positiva diante de outros programas de investigação que selecionavam e recortavam seu objeto teórico em níveis ou componentes analíticos específicos. Em contrapartida, esses argumentos da qualidade e quantidade eram reversamente negados para outras propostas científicas.

A negação da validade científica de outros programas se deu em tom incisivo, na medida do que se espera de um manifesto, que elaborou discursivamente um ethos para os linguistas do projeto construturalista combativo e engajado, tendo em mira mover seu auditório na base da adesão e do convencimento inequívoco. Nesse sentido, a imagem simbólica que os construturalistas elaboravam para si e seu programa partia da desqualificação científica do que não lhe era, retoricamente, visto como similar e, mais que tudo, daquilo que era apontado como equivocado em termos metodológicos.

Não admitimos como cientificamente legítima uma técnica adequada para a descrição das línguas, quando os postulados não são adequados. Que adianta ser o procedimento científico, se as bases não são! Descrições de língua sem postulados adequados jamais espelham fatos reais da linguagem. Por que fazer uma descrição em bases binaristas, se a língua não funciona sobre bases binaristas? Por que fazer uma descrição transformacionalista, se as estruturas da língua não são resultado de transformações? (Back & Mattos, 1973, p. II4)

A desqualificação de programas como o estruturalismo e o gerativismo no trecho acima evidenciava a exigente aspiração revolucionária de Back e Mattos, elaborada em torno de argumentos fundados na estrutura do que lhes parecia ser uma realidade necessária para a pesquisa linguística. Talvez aqui se possa argumentar que o papel de professor falou mais alto na proposição dos autores construturalistas. Ensinar língua na educação básica (e eles foram professores nesse nível e publicaram obras didáticas de expressão em sua época) implicava (e implica) a transmissão de elementos de um sistema em sua totalidade, dos sons ao texto e ao uso linguístico. Essa prática pedagógica pode ter contaminado o que Back e Mattos consideravam ser uma prática científica, pois seu principal argumento era o da exaustividade analítica do construturalismo, ponto epistemológico a partir do qual se organizava toda uma postura revolucionária diante de outras teorias. Teria, nesse sentido, faltado aos propositores do construturalismo o discernimento da seleção de um objeto teórico diante de um complexo objeto observacional, aspecto fundamental na constituição científica de um projeto linguístico de pesquisa14.

Os trechos do «Manifesto» apresentados refletem a totalidade discursiva da retórica dos construturalistas e podem nos evidenciar estratégias argumentativas adotadas, conscientemente ou não, por Back e Mattos. O argumento da dessemelhança e da falta de identidade fundamentou a postura científica dos construturalistas (não à toa há um significativo emprego de itens lexicais de natureza negativa a instaurar o posicionamento retórico do dissenso e da ruptura total): a retórica reforçava que os construturalistas tinham uma postura científica distinta a qualquer outra prática científica corrente na linguística da época. Nessa linha de elaboração retórica, as relações de causa e efeito foram destacadas, apoiadas no argumento da quantidade: adotar a teoria construturalista teria como efeito alcançar a descrição integral da língua, única que poderia de fato ser considerada científica.

O desejo de ruptura dos construturalistas estava no espírito de sua época. Altman (1998) na sua reconstrução historiográfica da linguística brasileira aponta que a década de 1970 foi um período de busca por rupturas na ciência da linguagem que se fazia no Brasil diante de uma diversidade teórica que já começava a se configurar em diferentes caminhos. Uma linguística brasileira que começava a tomar corpo com a entrada do referencial teórico gerativista em competição com as práticas distribucionalistas nas pesquisas que se faziam então, ao lado da crescente institucionalização de um grupo em torno da semiótica. Nesse contexto, as reivindicações por ruptura e novidade não eram raras e apareciam em textos de natureza programática que procuravam delimitar posturas científicas e grupos de especialidade.

A retórica dos construturalistas respondia, à sua maneira, a esse contexto histórico, porém, como afirmam Altman (1998) e Batista (2013), ela perdeu-se em seus propósitos revolucionários. Ainda que se possa apontar a publicação da gramática e de números do periódico do grupo e a formação de alunos (que seriam inclusive respeitados no panorama científico da época por serem habilidosos em técnicas descritivas) como fatores positivos a demarcar um espaço de atuação para os linguistas construturalistas, a proposta não teve continuidade. Na linguística brasileira, poucas são as lembranças da configuração teórico-metodológica do programa da Linguística Construtural. Quando se faz menção ao projeto, costuma-se insistir na caracterização de novidade teórica, como um dos poucos movimentos científicos da linguística brasileira originais. No entanto, essa interpretação sobre os construturalistas tem de ser revista também. Batista (2013) aponta com detalhes aspectos da teoria construturalista fortemente baseados em outras propostas teóricas de sua época, o que nos abre caminho para uma revisão histórica dessa proposta que muitos ainda veem como inovadora. O fato é que a revolução não se estabeleceu. Ela ficou alegada como tal na voz discursiva de Back e Mattos e na memória seletiva de uma história da linguística que parece, muitas vezes, ser ansiosa por se livrar de sua caracterização como ciência de recepção.

Duas direções para as retóricas

As duas retóricas (a de Lemle e a de Back e Mattos) permitem apontar que havia dois, entre outros, movimentos da linguística brasileira das décadas de 1960 e 1970. De um lado, houve a retórica gerativista que procurou alinhamento a programas de pesquisa de prestígio, institucionalizados em centros estrangeiros. Essa filiação contribuiria para legitimar certas práticas da linguística que começava a se configurar como campo de ensino e pesquisa no Brasil. Sem dúvida, o pertencimento a uma esfera de interlocução internacional era um capital científico válido na época. Por outro lado, uma retórica como a construturalista nos evidência o desejo de ruptura de uma tradição de recepção (característica marcante de uma linguística praticada fora dos centros norte-americano e europeu de produção científica). Romper com certa submissão intelectual pareceu ser o tom de linguistas que reivindicaram por especificidades da linguística brasileira, seja por conta de um inovador (alegado ou de fato) aparato teórico-metodológico, seja por conta do fornecimento de uma série de dados linguísticos relevantes para o desenvolvimento de programas de investigação em linguística.

Se nada ficou em termos institucionais da retórica revolucionária dos construturalistas, não se pode dizer o mesmo do anseio por inovação na ciência da linguagem feita no Brasil. A década de 1980 testemunharia uma linguística brasileira novamente percebida pela perspectiva da revolução científica por meio da proposição de uma teoria sociolinguística paramétrica; esta, sim, com resultados muito mais positivos do que os obtidos pelos «revolucionários» Back e Mattos.

CONCLUSÃO

Este artigo teve como objetivo principal apresentar uma reflexão (a partir de discussões anteriores em Historiografia da Linguística) a respeito da análise de revoluções na história do conhecimento produzido sobre a linguagem. Argumentou-se, nessa perspectiva, que um dos modos de aproximação interpretativa de reivindicações revolucionárias em linguística pode ser estabelecido a partir de uma análise historiográfica que tome como objeto analítico a retórica dos linguistas.

Tal posicionamento se deve ao fato de que as retóricas permitem evidenciar o cruzamento de aspectos internos das teorias (a configuração epistemológica e metodológica) com aspectos exteriores de contextualização social de propostas de programas de investigação científica.

A ciência da linguagem, assim, em sua reconstrução historiográfica, passa a ser vista como processo dinâmico ao mesmo tempo, social e intelectual. Cabe ao historiógrafo, nessa perspectiva, analisar a história da linguística em seus movimentos de continuidade e descontinuidade a partir de um ponto de vista que relaciona a produção de conhecimento com suas ancoragens sociais, nas quais se dará ou não a legitimação de práticas científicas nas retóricas dos linguistas, ainda que o simulacro da objetividade em ciência nos dissimule constantemente esse aspecto.

REFERÊNCIAS

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1Para introdução à Historiografia da Linguística: Batista (2013, 2019b).

2Como afirmado em trabalhos anteriores (por exemplo, Batista, 2015, 2018, 2019a), o termo denota modos de discurso de indivíduos ou grupos que objetivam alcançar efeitos de persuasão através de seus enunciados e assim legitimar práticas científicas.

3Agradeço ao parecerista anônimo a referência a essas iniciativas que de fato representam produções em ciência da linguagem em um período anterior ao destacado na análise historiográfica deste texto.

4Grupos de especialidade dizem respeito a comunidades de pesquisadores que compartilham mesmas concepções teóricas e diretrizes metodológicas em torno de um objeto de análise em ciência da linguagem. O conceito é de Stephen Murray (1994).

5Programas de investigação são quadros teórico-metodológicos configurados em torno de uma visão específica sobre o objeto linguagem, a partir da qual são definidas técnicas e metodologias de análise. O conceito é de Pierre Swiggers (2019).

6As reflexões dessa seção foram elaboradas a partir de considerações sobre retóricas científicas apresentadas por Koerner (1999), Joseph (1995), Harris (1993), Murray (1994), Kuhn (2000[1962]), Ziman (1979[1968]), Gross (1990), Altman (1998).

7É sempre importante a ressalva de que a ruptura traz em si mesma a tradição, pois só há demarcação de oposição teórica e metodológica se se considerar um contexto científico anterior que possibilitou a ruptura. Uma revolução relaciona-se necessariamente a uma tradição. E dessa revolução poderá haver outras revoluções, tornando a primeira também tradição. Quanto a uma interpretação historiográfica, pode-se ter uma narrativa que sublinhe a trajetória de continuidade ou a de ruptura, mesmo que saibamos que a dinâmica histórica implica esses dois polos intrinsecamente relacionados.

8Na reconstrução histórica do conhecimento sobre a linguagem, as considerações de Kuhn tiveram um impacto enorme e foram diversas vezes revistas pelos historiógrafos, principalmente numa chave crítica que não estabelece para a ciência da linguagem uma dinâmica tão radical de ruptura e substituição de paradigmas.

9Joseph (1995) faz um questionamento a respeito do fato de a linguística moderna constantemente se colocar em torno de um ideal revolucionário em seus modelos de investigação teórica. Ele chega a afirmar que raros são os linguistas que não se consideram parte de uma revolução, concluída ou em progresso.

10Esta seção apresenta considerações teórico-metodológicas que fundamentam uma pesquisa mais ampla sobre a retórica dos linguistas. Sendo assim, dada a sua configuração de diretriz de pesquisa, ela contém explanações presentes em outros trabalhos, por exemplo em Batista (2015, 2018, 2019a)

11Não se assume com essa periodização (arbitrária, como todo recorte temporal histórico em termos interpretativos) que não tenha havido nenhuma produção intelectual brasileira anterior a i960 que possa ser reconhecida como linguística. Há, por exemplo, a contribuição de Mattoso Camara Jr., de Nelson Rossi, dois nomes de destaque quando se pensa em uma história da linguística brasileira, com trabalhos que são anteriores à década aqui considerada como marco inicial para esta interpretação historigráfica.

12Apontar que na década de 1960 começou a haver um amplo movimento de diálogo com o exterior não deve implicar uma afirmação de que anteriormente na produção brasileira em estudos de linguagem não tivesse havido diálogo entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros. De destaque, por exemplo, é o diálogo intenso entre Mattoso Camara e a linguística norte-americana de sua época.

13Os estudos são breves dada a extensão limitada deste texto. As retóricas são analisadas a partir de trechos do material considerados amostragem do tom discursivo adotado por seus autores.

14Nesse sentido, observar a reflexão de Borges Neto no âmbito de uma Filosofia da Linguística: «Toda tentativa de dar uma abordagem, digamos, "holística" da linguagem, isto é, toda tentativa de construir um objeto teórico que apanhe todos os aspectos possíveis do domínio —algo como uma teoria "integral" da linguagem— está fadada ao fracasso. Mesmo que se conseguisse construir uma teoria assim, creio que ela não teria grande utilidade». (Borges Neto, 2004, p. 69)

Como citar este artigo: Batista, R. O. (2020). Retóricas revolucionárias na linguística: recepção de teorias e novidade científica. Forma y Función, 33(2), 41-61. https://www.doi.org/10.15446/fyf.v33n2.79840

Recebido: 22 de Maio de 2019; Aceito: 07 de Janeiro de 2020

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