SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.60 issue170APPROACHES TO THE THEOLOGICAL WORK FROM THE MYSTICAL EXPERIENCE author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Theologica Xaveriana

Print version ISSN 0120-3649

Theol. Xave. vol.60 no.170 Bogotá July/Dec. 2010

 

PELA PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO: UMA ÉTICA GLOBAL*

A GLOBAL ETHICS FROM THE GOOD SAMARITAN PARABLE

UNA ÉTICA GLOBAL A PARTIR DE LA PARÁBOLA DEL BUEN SAMARITANO

JOSÉ HENRIQUE SILVEIRA DE BRITO**

RAMIRO DELIO BORGES DE MENESES***


* Artigo de Reflexão. Este trabalho faz parte de um projecto de investigação sobre " Humanização em Saúde", determinado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia - Lisboa, orientado pelo Centro de Estudos Filosóficos da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa.
** Tese de Doutoramento em Filosofia (Lévinas), pela Faculdade de Filosofia de Braga, Universidade Católica Portuguesa, Companhia de Jesus; Professor Associado, com agregação, e Aposentado da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional de Braga; Investigador Senior do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto; Investigador do Centro de Estudos Filosóficos, Centro Regional de Braga, Universidade Católica Portuguesa. Correio electrónico: jhsilveirabrito@gmail.com
*** Candidato a Doutor, Faculdade de Filosofia de Braga; professor adjunto, no Instituto Politécnico de Saúde do Norte, Portugal; investigador do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, do Centro de Estudos Filosóficos da Faculdade de Filosofia, Braga; Mestre em Bioética (2005), Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; Licenciado em Filosofia (1974), Faculdade de Filosofia, U.C.P.; Licenciado em Farmácia (1981), Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto e Licenciado em Medicina (1991), Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Correio electrónico: ramiro.meneses@ipsn.cespu.pt

Fecha de recibo: 7 de abril de 2010. Fecha de avaliação: 9 de junio de 2010. Fecha de aprovação: 17 de junio de 2010.


Resumo

Partindo do consenso de uma ética global , pretende-se encontrar quais são as condições desta ética a partir da parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37 ). Atrvés da qualidade de vida, no âmbito da parábola do Bom Samaritano , encontramos os elementos necessários para definir uma ética global, sem deixar de considerar o pensamento de dois filósofos, como Lévinas e Cortina, como suporte da nossa leitura fenomenológica da parábola, permitindo novas conceitualizações para a qualidade de vida, representada nos diferentes personagens, quer reais, quer fictícios, da parábola.

Desta feita, verifica-se uma relação entre a ética global e a parábola, dado que esta se afirma como ética de máximos, desde a aretologia neotestamentária até à visualização axiológica, que terminará na afirmação da qualidade de vida escatológica, iniciando-se, também, na qualidade de vida telúrica.

Palavras Chave: Parábola do Bom Samaritano, ética global, qualidade de vida, Lévinas e Cortina.


Abstract

From the starting point of a consensus on global ethics, it is wondered which are the conditions for such ethics, based on the Good Samaritan parable. (Luke 10, 25-37). In the context of this parable we can identify the necessary elements in order to define a global ethics, regarding also the thought of the philosophers Levinás and Cortina, which serves as a basis for a phenomenological reading of the parable. This way, new conceptualizations about life styles can be made, lifestyles represented by the different characters that play a role in the parable, whether real or fictional. Thus, we confirm the existence of a relation between global ethics and the parable, because the later is proposed a an ethics of maxims, from Neo- TestamentaryAretology to the axiological visualization leading the way to the affirmation of an eschatological life also initiated in the earthly life.

Key words: Parable of the Good Samaritan; global ethics; quality of life; Levinás and Cortina.


Resumen

Partiendo del consenso sobre una ética global, se quieren reconocer cuáles sean las condiciones de esta ética con base en la parábola del Buen Samaritano (Lc 10,25-37). En el ámbito de dicha parábola se pueden identificar los elementos necesarios para definir una ética global, teniendo en cuenta además, el pensamiento de los filósofos Levinás y Cortina, como soporte de una lectura fenomenológica de la parábola. De este modo, serán posibles nuevas conceptualizaciones sobre los tipos de vida, representados por los diferentes personajes que aparecen en la parábola, sean ellos reales o ficticios. Así, se constata una relación entre la ética global y la parábola, dado que esta última, se propone como ética de máximos, desde la aretología neotestamentaria hasta la visualización axiológica que terminará en la afirmación de una vida escatológica que se inicia también en la vida telúrica.

Palabras clave: Parábola del Buen Samaritano; ética global; cualidad de vida; Levinás y Cortina.


INTRODUÇÃO

Não se pode dizer que a pergunta, "Será possível uma ética global?", tenha aparecido como tema de reflexão, apenas nos últimos tempo, dado que já Kant tentou dar resposta ao "estabelecer o princípio supremo da moralidade e as bases de uma ética universal, à margem de casuísticas particulares".1 Mas, se há acordo quanto à necessidade de uma tal ética, a afirmação da sua possibilidade não recolhe igual consenso. O panorama da ética contemporânea é bem prova disso, pois que todas as tentativas de encontrar uma determinada interpretação de bem, de princípios morais, que possa ter valia universal, têm fracassado, porque não têm recolhido um consenso comparável ao da sua necessidade. Começaremos por fazer a distinção entre éticas de máximos e de mínimos, apresentando, de seguida, uma síntese do que diz Karl Otto Apel sobre a possibilidade de fundar a Ética. Numa terceira parte, abordarei a questão dos Direitos Humanos e, com Adela Cortina, tentarei fundamentá-los filosoficamente, mostrando os limites que aqui encontramos à fundamentação de uma ética global. Numa quarta parte, tentarei encontrar na obra de Lévinas uma solução para a problemática que nos ocupa. Procuramos finalmente uma leitura plesiológica para interpretar uma ética global como "ética da qualidade de vida", pelo sentido da parábola do Bom Samaritano.

ÉTICAS DE MÁXIMOS: NA PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO

Nas sociedades pluralistas em que vivemos, a investigação que Lévinas nos propõe, na sua obra, assume ainda maior importância visto que, se não houver imperativos morais incondicionais2, se a moral não tiver uma fundamentação, então as nossas sociedades não serão, do ponto de vista moral, pluralistas, mas relativistas. Não haverá distinção entre bem e mal3 e tudo será aceitável, basta que correspondam às tendências, aos desejos, à moda, aos interesses que dominam no momento.4 É por isso que uma das funções primeiras da Ética será a justificação da Moral. A ética da parábola do Bom Samaritano é uma ética de máximos, no intuito de determinar uma ética global.

É neste contexto que se fala em éticas de máximos e éticas de mínimos.5 Com estas expressões não se pretende significar que uns vivem segundo éticas de máximos e outros, segundo éticas de mínimos. Cada um, do ponto de vista subjectivo, vive uma ética de máximos e essas diversas éticas de máximos partilham um conjunto mínimo de valores. Mas será possível encontrar uma fundamentação universalmente aceite para essa ética de mínimos? É esse o objectivo de Apel com a "ética da discussão" ou da argumentação. A parábola é bem o exemplo daquilo a que se poderá chamar de ética da argumentação.

Trata-se, pois, de apresentar uma aretologia axiológica predominantemente plesiológica.

FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA GLOBAL:
PELA PRÁGMATICA TRANSCENDENTAL

Para Apel, a fundamentação racional da ética, na idade da ciência, confrontase com um problema que parece inultrapassável: actualmente só um conhecimento que assuma a neutralidade axiológica da ciência tem fundamentação racional e a Ética, cujo objecto de estudo não é axiologicamente neutro, parece não poder aspirar a tal fundamentação, o que leva o autor a dizer que a fundamentação da ética é "simultaneamente necessária e originariamente impossível".6

Para superar esta dificuldade, Apel chama a atenção para a impossibilidade de absolutizar a relação sujeito-objecto, pois há que ter em conta a relação sujeito-sujeito, relação existente na comunidade científica e sem a qual a ciência é impossível. Essa comunidade, sublinha o filósofo, só poderá fazer ciência se possuir um sistema mínimo de certezas paradigmáticas e premissas de argumentação aceites, válidas universalmente, sem as quais a comunicação será impossível.

Assim sendo, devemos esclarecer a questão das condições normativas dessa comunidade de argumentação, isto é, os princípios éticos universalmente válidos , que não podem ser racionalmente postos em questão, uma vez que, sem eles, a argumentação será impossível, sendo até a negação da possibilidade de comunicação somente possível pela existência e pelo exercício desses princípios. Atingimos assim o que Apel chama "o ponto inultrapassável do pensamento, enquanto argumentação, numa filosofia a fundamentar de modo pragmático-transcendental".7

Na argumentação, mostra o autor, é inultrapassável o reconhecimento de certas regras morais fundamentais: as da comunidade ideal de comunicação. Essas regras morais são a da justiça (todos os interlocutores podem utilizar os actos de fala necessários à articulação das pretensões em ordem a um consenso válido), a da solidariedade entre os membros potenciais da comunidade de argumentação e a da corresponsabilidade (todos são responsáveis pelo esforço solidário, visando articular e resolver os problemas). É a inultrapassagem destas regras, reflexivamente apreendidas, que permite responder às questões "porquê, de uma maneira geral, ser racional?" e "porquê ser, de uma maneira geral, moral?"8 A parábola refere-se como pragmática do Samaritano, porque tem no Desvalido do Caminho o seu epicentro teológico, ao ser apresentada como conto-narrativa do Homo Viator (Lc 10.25-37) e referindo a sua transcendentalidade no Pai das Misericórdias.

A mediação discursiva mostra que, na procura do consenso, há corresponsabilidade como conceito pós-convencional de responsabilidade, com validade prática. Isto é, tendo presente a teoria do juízo moral de Kohlberg9, na procura do consenso, a mediação discursiva não é regida pelas normas éticas, mas por princípios. Segundo Apel, na procura do consenso para a ultrapassagem dos problemas, o indivíduo partilha a priori uma responsabilidade solidária com os que entram em discussão, partilha a que ultrapassa o nível da convenção moral socialmente observada. Numa formulação ricoeuriana: a procura do consenso não tem como linhas orientadoras últimas a moral, mas a ética como procura da vida boa com e pelos outros numa sociedade justa.10

Este esforço apeliano para fundar racionalmente uma macro-ética é notável, mas o resultado final é bastante limitado. Senão vejamos: como passar das regras morais da comunidade ideal de comunicação, completamente separada do concreto da vida social e cultural, para as que regem as comunidades reais de comunicação histórica, cultural e socialmente definidas? Como passar da norma formal para as normas concretas em contextos histórico-sociais concretos? Em nosso entender, na ânsia de se colocar ao nível do universal, Apel envereda pelo formalismo e valoriza a discussão, pelo que concordamos com Ricoeur, quando diz que Apel sobrevaloriza o lugar da discussão nas interacções humanas e a formalização e codificação da organização, tendo como resultado a ocultação dos conflitos, que reconduzem a moral em direcção à sabedoria prática.

Para Ricoeur o que é criticável na ética da discussão, não é o convite a procurar o melhor argumento, mas a estratégia de depuração ou de purificação relativamente às convenções e às tradições, entendidas no sentido de autoridade anti-argumentativa, estratégia que dificulta a mediação contextual e a ligação à realidade. É por isso que ele sugere uma reformulação que permita à "ética da discussão" colocar em contexto a exigência de universalização, substituindo a noção de convenção pela de convicção. As convicções exprimem tomadas de posição de onde resultam as significações, as interpretações e as avaliações relativas à multiplicidade dos bens e às finalidades da vida. Se o fim visado no processo de argumentação é a procura do melhor argumento, então não podemos esquecer que é sobre as coisas da vida que se argumenta, se discute e, por isso, devem ser admitidos na discussão outros jogos de linguagem, cujas práticas podem advir pela tradição. A tarefa da discussão, enquanto instância crítica, é assumir o papel correctivo, elevando ao nível das "convicções bem pesadas" as posições em situação, na procura de um "equilíbrio reflectido" entre a exigência de universalização e o reconhecimento das situações singulares.11 Esta "dialéctica fina"12, entre a pretensão universal ligada a alguns valores e a discussão ao nível das convicções inseridas em formas de vida concreta, ilustradas nalgumas situações diferenciadas, constitui, segundo Ricoeur, "o nível sapiencial da ética".13 Aliás, como sabemos, Ricoeur, embora fale "de universais em contexto ou de universais potenciais"14, renuncia à ideia da fundamentação racional da ética, que considera impossível devido à finitude da nossa compreensão.

OS DIREITOS HUMANOS: PELA PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO

Adela Cortina, na linha de Apel, encontra uma fundamentação para os Direitos Humanos no facto de ser inegável que os homens coordenaram as suas vidas mediante acções comunicativas15 e essas acções só são possíveis entre seres morais,cuja comunicação tem como condição de possibilidade os princípios éticos. Com esta fundamentação, a autora quer superar as dificuldades que acompanham, quer o jusnaturalismo substancialista, quer o jusnaturalismo jurídico, que é historicista.16

    Trata-se de um tipo e fundamentação que tem em conta dois dados do fenómeno, transcendentalidade e história, e que, por tanto, supera tanto o jusnaturalismo substancialista, que opta por uns direitos atemporais determinados, interpretados por pessoas autorizadas, como o positivismo jurídico - historicista, ancorado na vontade concreta, injusto com a natureza das exigências da razão, que vão para lá dos contextos históricos concretos.17

Considera a autora, e acertadamente, que a razão vai para além do historicismo e do substancialismo atemporal. A razão humana é hermenêutica, estando, por isso, inserida na história e nas tradições.

Esses direitos são os pressupostos do discurso e o discurso prático é um prolongamento necessário de uma acção comunicativa, no sentido habermasiano da expressão, quando se põe em questão as pretensões de racionalidade das normas. Considera a autora que, para esboçar uma teoria dos direitos humanos, é indispensável, antes de mais, clarificar o que se entende por tal expressão. Cortina entende:

    ...por direitos humanos aqueles que se atribuem a todo o homem pelo facto de o ser. No nosso caso esta definição tautológica ficaria precisada porque contamos com uma pragmática linguística como base para a nossa caracterização do homem: entendemos por homens aqueles seres que possuem competência comunicativa ou que poderiam possuí-la.18

A autora reconhece que este modo de caracterizar o ser humano não está isento de dificuldades, uma vez que levanta todos os problemas envolvidos numa caracterização que toma como referência uma única qualidade humana, e, ainda por cima, quando parece que nem todos aqueles que consideramos homens parecem possuir tal característica. Apesar disso, Cortina considera que a via por ela escolhida tem a vantagem de fundamentar a normatividade dos Direitos Humanos, mediante o princípio da ética discursiva, dado que se se atendesse apenas a uma qualidade biológica, para fundar os direitos humanos, como a pertença à espécie humana, ter-se-ia o grave inconveniente de incorrer na "falácia naturalista" de Hume. Partindo da caracterização do ser humano como ser com competência comunicativa, diz a autora:

    ...evitamos a falácia naturalista, já que a reconstrução dos pressupostos inultrapassáveis dos actos de fala nos conduz a um resultado filosófico: que todo o virtual participante num discurso prático tem que ser reconhecido como pessoa e, portanto, hão-de se lhe atribuir alguns direitos, claramente distinguíveis dos que estabelecemos ao largo da história. Se pudéssemos entender estes "direitos pragmáticos" como "direitos humanos", poderíamos resolver o problema de mediar transcendentalidade e história.19

Esses direitos pragmáticos são direitos transcendentais, no sentido de condições de possibilidade de viver humanamente, que apresentam exigências normativas, que se vão concretizando nos contextos históricos da acção20 e nos de aplicação/vivência das acções. Por este trajecto, Cortina encontra uma fundamentação para os Direitos Humanos. Seriam Direitos Humanos as condições que um sujeito deve possuir para participar no diálogo que visa encontrar o acordo, o qual é sempre obtido num contexto histórico. É irrealista, considera a autora, tentar um acordo sem atender à situação histórica dos afectados à situação material e cultural em que se encontram.

A autora, depois de enunciar alguns direitos humanos, tais como o direito à vida, à liberdade, à participação no debate público e a ser respeitado como interlocutor válido, acrescenta:

    Ora bem, posto que desde o começo temos visado um telos na comunicação -o acordo-, que só pode produzir-se plenamente em condições de simetria material e cultural, outros direitos se derivam desta caracterização teleológica do falante competente, direitos que só historicamente podem ir-se concretizando:
    -O direito a umas condições materiais, que permitam aos interlocutores discutir e decidir em pé de igualdade;
    -O direito a umas condições culturais, que permitam aos interlocutores discutir e decidir em pé de igualdade.
    Estes são, em meu entender, os direitos humanos que podem derivar da base racional da ética discursiva. Com isso se desacreditam hoje o emotivismo, o cepticismo e o pragmatismo radical, sem necessidade de regressar ao aristotelismo. Naturalmente, muito poderia objectar-se à nossa enumeração e caracterização de tais direitos e, do mesmo modo, fica gostosamente aberta à crítica construtiva.21

Como é patente, no último parágrafo citado, os Direitos Humanos serão sempre afectados por algumas contingências na sua determinação histórica. Essa determinação está afectada por uma certa relatividade, que não se pode identificar com o relativismo. Isto significa que não estamos perante um relativismo radical, porque esses direitos estão fundados nas condições necessárias à acção comunicativa e, por isso, não podem ser relativos.22

A parábola do Bom Samaritano não é uma parábola sobre os direitos humanos, mas pode fundamentar os mesmos a partir da plesiologia. Uma ética global será uma "ética da qualidade de vida", da telurica até à escatológica.

A qualidade de vida telúrica está presente, na concepção elaborada por Elizari, quando se a situa como estando ligada a determinada concepção do ser humano, das suas necessidades e aspirações. O mundo globalizado, onde vivemos, está sujeito a constantes variações temporais, pessoais e vitais.23

Na parábola do Bom Samaritano, a qualidade de vida telúrica encontrase representada pelos salteadores: et incidit in latrones, qui etiam despoliaverunt eum et, plagis impositus, abierunt semivivo relicto (Lc 10,30).

A qualidade de vida telúrica será a forma do acto de se alimentar, pela sua actividade, constituindo-se como fruição. A qualidade de vida telúrica é a fruição.

Segundo Lévinas, a fruição é a última consciência de todos os conteúdos, que enchem a minha vida. A qualidade de vida telúrica é uma vida de dependência, como a dos salteadores, dos alimentos e dos desejos de posse. São conteúdos que não apenas a preocupam, mas que a ocupam, que se divertem, das quais ela é fruição.24

A qualidade de vida telúrica foi a fruição do semi-morto, porque O expoliaram, enchendo-O de pancadas e abandonaram-No. A qualidade de vida dos salteadores revela-se na consciência do poder e dos conteúdos maté-rias (desejo de alimentos e de poder) , enchendo assim a sua vida.

Os salteadores (bandidos) simbolizavam a qualidade de vida telúrica, dado que a fruição ao "semi-morto" é erigida de recordação, de sede e de saciedade. A qualidade de vida telúrica expressa-se onde a fruição é a própria contracorrente do Mesmo, não será a ignorância do Outro (Desvalido no Caminho), mas a vida do Outro.

A qualidade de vida telúrica implicará uma exploração, tal como a realizaram os salteadores, estará no despojar da sua indumentária e da axiologia des-valere in doloris via. Aqui, pelo comportamento dos bandidos, a alteridade do Outro (semi-morto), sobrepujada em nome das necessidades, de que se lembra e se inflama o prazer de extorquir, de bater e de abandonar o Desvalido.

A qualidade de vida telúrica é uma conduta de fruição, uma vez que os salteadores, ao quebrarem a alteridade, de que dependem os ultrajes ao Desvalido, no caminho de Jerusalém a Jericó, constituíram uma ética de fruição. A qualidade de vida telúrica comporta um comportamento de fruição, onde se encontra o comportamento hedonista e o desejo de poder.

A qualidade de vida telúrica, tal como a viveram os salteadores, é uma evolução. A ruptura da totalidade, que se realiza pela fruição da solidão ou pela solidão da fruição, é radical.25

Naturalmente, a qualidade de vida telúrica (Lc 10, 30) vive-se num mundo de utensílios, constituindo sistemas de preocupação de uma existência angustiada do seu ser, formalizando uma ética de suspeita e vitalista.

A qualidade de vida telúrica aufere-se na fome, no dinheiro e na comida, que satisfazem bandidos e poderão ser interpelados como simples objectos, ao transformarem o Quidam Homo em semivivus.26

A qualidade da qualidade telúrica ficou, segundo o conto exemplar e provocante de um Desvalido no Caminho (Lc 10,25-37), no des-valere do ser, do agir e do fazer. A qualidade de vida telúrica diz que a sensibilidade é fruição. Na qualidade telúrica do viver, a sensibilidade descreve-se não como um momento de representação, mas como o próprio acto da fruição, satisfazse com o dado e contenta-se.27 A simultaneidade da fome e do alimento constitui a condição paradisíaca da fruição. Esta, como elemento da qualidade de vida telúrica, parece tocar um "outro" na medida em que o fruto se anuncia no elemento e é ameaça de insegurança.

Os salteadores, pela identidade poiética, fruíram do mundo das coisas, como dos elementos puros, como qualidades telúricas da vida, como qualidades poiéticas no fazer ao quidam homo sem porte, sem substância, unicamente para usar ou viver do desvalido, no sentido de usar ou de privar do Desvalido.28

O quidam homo (desvalido) foi para os salteadores (Lc 10,30) como se fosse um objecto. Com efeito, a fruição para o bandido já é um contentamento de objectos e de satisfações. Pela actuação dos salteadores, a qualidade de vida telúrica vê-se na familiaridade com o elemento (dinheiro, fome, alimento, etc.), que conduz ao "egoísmo da fruição". A fruição não tem segurança, porque a insegurança ameaça uma fruição já feliz no elemento e na qual só a felicidade torna sensível a inquietude.29 Os salteadores tiveram o recurso do trabalho e da posse pela fruição do Outro (Desvalido no Caminho). Esta é uma qualidade de vida identitária, que se traduz como qualidade telúrica do viver no dia-a-dia.

PELA PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO: PARA UMA ÉTICA GLOBAL

A Ética, que Levinas elaborou, partindo da análise da relação eu-Outro, é uma metafísica, uma ética como filosofia primeira, onde se descreve uma relação que implica separação. Não se trata, portanto, de uma ética normativa, mas será prévia a esta ética. Para justificar tal afirmação vale a pena transcrever um texto, cujo alcance é fundamental:

    A ética, já por si mesma, é uma óptica. Ela não se limita a preparar o exercício teórico do pensamento que monopolizaria a transcendência. A oposição tradicional entre teoria e prática, desaparecerá a partir da transcendência metafísica em que se estabelece uma relação com o absolutamente outro ou a verdade de que a ética é a via real. Até então, a relação entre teoria e prática não se concebia de outro modo a não ser como uma solidariedade ou uma hierarquia: a actividade repousa em conhecimentos que a iluminam; o conhecimento pede aos actos o domínio da matéria, das almas e das sociedades -uma técnica, uma moral, uma política- procurando a paz necessária ao seu exercício puro. Nós vamos mais longe e, com o risco de parecer confundir teoria e prática, tratamos uma e outra como modos de transcendência metafísica. A confusão aparente é querida e constitui uma das teses deste livro.30

O eu, descrito na obra levinasiana, não é o eu da vida moral, na procura da vida realizada, procura que, como refere Ricoeur, passa pela prova da norma31; mas um eu prévio, transcendental, que é passividade, que é "o outro em mim", sendo "a alma o outro em mim".32 As coisas do mundo não se apresentam primariamente como objectos a conhecer, mas antes "objectos de fruição". Citando: "as coisas [...] são sempre, numa certa medida -e mesmo os martelos, as agulhas e as máquinas- objectos de fruição, oferecendo-se ao gosto"33, pelo que se apresentam como "alimentação".34 Estar no mundo é pois viver no mundo: viver em e viver de... E, nesta parte da obra, Lévinas utiliza uma expressão que para o nosso objectivo é sintomática: "vivemos de boa sopa, de ar, de luz, de espectáculos, de trabalho, de ideias, de sono, etc..."35 Viver no mundo não é viver num exílio, mas sentir-se bem, sentir-se em casa, fruí-lo porque ele é bom.

O outro apresenta-se perante o eu, não como objecto que está à sua medida mas, numa total desmedida, como inabarcável. O outro não é, primariamente, objecto do conhecimento; ele escapa sempre às tentativas de redução a objecto, surge como altura ou como miséria, mas nunca como estando à mão, como objecto de que o eu se pode apossar. A relação euoutro é, segundo Lévinas, assimétrica. Na linguagem com que o autor se exprime, em Totalité et Infini, o olhar com que o rosto do Outro me olha e o olhar com que o eu o olha têm um "desnivelamento metafísico. Outrem é metafísico"36, pelo que não se identifica com a imagem que o eu possa ter dele. "Ele produz-se à medida -ou à desmedida- do Desejo e da bondade como dissimetria moral do eu e do outro."37

O outro resiste a todas as tentativas de domínio, ele surge na sua exterioridade como rosto e "o rosto é presença viva, ele é expressão". O rosto não é uma máscara, uma fachada inerte à disposição do observador. Sendo expressão, o rosto desfaz "a forma em que o essente, expondo-se como tema, se dissimula por aí mesmo. O rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso".38 O Outro é rosto e, quando o rosto do Outro se apresenta, é já palavra inteligível que, na sua exterioridade, diz: "não cometerás assassínio". Por isso "a essência do discurso é ética"39 e o começo do discurso, da linguagem, como dirá mais tarde Lévinas, é mandamento.40 Estamos aqui perante a palavra, o discurso, que não é o logos grego, mas o dabar hebraico, palavra, ordem que exige resposta. Num texto célebre de Lévinas, pode ler-se:

    Outrem que se manifesta no rosto, perfura de alguma maneira a sua própria essência plástica, como um ser que abre a janela em que a sua própria figura contudo se desenha. A sua presença consiste em desvestir-se da forma que contudo o manifesta. A sua manifestação é um surplus sobre a paralisia inevitável da manifestação. É isto que exprime a fórmula: o rosto fala. A manifestação do rosto é o primeiro discurso. Falar, é antes de todas as coisas esta maneira de vir de detrás da aparência, de detrás da sua forma, uma abertura na abertura.41

Na afirmação da relação eu-Outro, os dois pólos não se estruturam em sistema pela negação da individualidade dos interlocutores. A afirmação do contacto eu-Outro é acompanhada pela constatação da sua separação: "O rosto que me olha afirma-me. Mas, face a face, eu não posso negar o outro."42 O rosto, cuja "epifania [...] 'revela' o infinito",43 manifesta-se sempre na palavra que obriga a uma resposta.44

A relação eu-outro não é uma relação de fruição, como é a relação eumundo, mas uma necessidade de resposta, uma responsabilidade. Esta, contudo, não resulta de uma iniciativa do eu, mas é an-árquica e incessível. An-árquica porque não começou num determinado tempo; antes de o eu resolver assumir uma responsabilidade, ele já é responsável, porque o rosto do outro ordena antes de o eu ter consciência disso.

Naturalmente, as prescrições sobre a impureza legal, que se contrai com um cadáver ou um semi-morto, faziam parte do Pentateuco Samaritano, mas toda essa legislação não foi obstáculo para que o protagonista da nossa história antecipasse os seus sentimentos de entrega a qualquer espécie de restrição legal, que, em casos como este, devem ser superados pela misericórdia na dimensão agápica. Estas duas realidades surgem de uma responsabilidade poiética do Samaritano, como condição da qualidade de vida poiética.

O Bom Samaritano anuncia uma nova qualidade de vida pela sua conduta axiológica. Esta chama-se "qualidade de vida poiética".

O Doutor da Lei pergunta por uma definição do conceito de próximo, num enunciado como o da lei, para determinar como amar o próximo, como a nós mesmos. Tanto na citação do Pentateuco, quanto na pergunta do Doutor da Lei, o próximo é o destinatário de um acto de misericórdia.

Não se pode negar que a parábola dá, indirectamente, certa resposta à pergunta colocada: o teu próximo será precisamente o necessitado de amparo e de ajuda, a quem damos prioridade , tal como encontramos no caminho. O próximo será poieticamente aquele a quem damos prioridade.

A narrativa fala-nos, claramente, da qualidade de vida poiética, dado que o Samaritano fez a misericórdia ao Desvalido no Caminho. Deu-lhe e fezlhe qualidade de vida. Uma nova e original qualidade de vida axiológica. Assim, será próximo aquele que faz misericórdia e ternura relativamente ao Outro.

Dentro de um contexto imediato, a misericórdia (eleos) do Bom Samaritano, para com o Homo Viator, será um exemplo bem preciso da qualidade de vida poiética, que se transformou numa qualidade plesiológica. É um exemplo adequado de amor ao próximo e surge como condição de vida eterna, a Outra qualidade de vida em Deus-Pai.

A narrativa do Homo Viator (Lc 10,25-37) sugere, também, que o Samaritano encontrou o seu caminho, poieticamente, para a outra qualidade de vida, onde reside a vida eterna, que será a participação em Deus.

A qualidade de vida poiética é per naturam suam uma qualidade de vida plesiológica, que irá abrir caminho, pelo Desvalido no Caminho, a outra qualidade de vida, que é a escatológica. A parábola do Bom Samaritano inspira uma nova morada da conduta humana, como ética de alteridade, assente na vocação plesiológica do Samaritano. Trata-se de uma parábola sobre a qualidade de vida plesiológica, que também é poiética. A preocupação ética de Jesus está no verbo aramaico abdad, em grego poieo (fazer) e não na praxis. A qualidade de vida plesiológica surge como ética poiética.45

A parábola do Bom Samaritano é uma narrativa sobre a qualidade de vida plesiológica, porque foi poiética no sentido soteriológico da proximidade do próximo. Daqui se infere que a narrativa do comportamento é um apelo e vivência da conduta plesiológica. A nova qualidade de vida plesiológica tem um ditame novo, que é o discurso da Nova Aliança, quando diz: vai e faz a misericórdia, que já estava dito em Os 6,6: "Não quero sacrifícios, mas sim a misericórdia."

Esta nova qualidade de vida poiética, como conduta plesiológica, encontra-se alicerçada na consciência plesiológica, que vem do eventum Dei misericordiae pelo fazer, com esmero e dedicação, cuidados ao Desvalido no Caminho (Jesus Cristo) em virtude da "comoção das vísceras" de um Samaritano.46

Assim, o Samaritano, sob influência desta forma poiética de consciência, teve o cuidado de executar, com sentido agápico, tarefas sem necessitar da consciência prática, nem de saber quem era o seu próximo. Aqui está a qualidade de vida poiética de um Samaritano bom. A atitude do Samaritano faz passar a qualidade de vida telúrica (estalajadeiro e salteadores) para uma qualidade de vida poiética.

A responsabilidade levanta problemas quando aparece o terceiro que é "outro diferente do próximo, mas também um outro próximo, mas também um próximo do Outro e não simplesmente seu semelhante, tema bastante desenvolvido por Lévinas em Autrement qu'être ou au-delà de l'essence".47 As questões dizem respeito à extensão da responsabilidade do eu pelo Outro, porque os dois não são os únicos que existem no mundo. O eu nunca está perante um único Outro, mas são vários os Outros com que o eu se relaciona e a responsabilidade, que até ao momento nos apareceu em sentido único48, surge numa multiplicidade de sentidos.49

Uma vez que estou perante vários outros e perante os Outros dos Outros -"na proximidade do outro, todos os outros me obsessionam"- não tenho obsessão por um único outro mas pelos inúmeros outros com os quais estou a cada momento em relação, pelo que "a obsessão exige justiça, reclama medida e saber, é consciência".50 O aparecimento do Outro, porque é acompanhado da revelação de muitos Outros, obriga a tornar presente o que não pertence a qualquer tempo sincronizável. A presença dos vários Outros, exigindo justiça, impõe a necessidade da representação.51 Com o aparecimento do terceiro, o rosto do Outro aparece como o incomparável que devo comparar, o inobjectivável que devo objectivar.

A assimetria, que nos aparecia inerente à proximidade, incompatível com a correlação, que impunha uma responsabilidade obsessionante, que ninguém podia assumir por mim, em que ninguém me podia substituir, surge agora, devido à relação com o terceiro, numa "incessante correcção da assimetria", em que o rosto perde a sua aura, que lhe dava o carácter de estrangeidade, o que permite a "traição da minha relação anárquica com a eleidade" e provoca a origem da avaliação, do pensamento, da objectivação, da ciência, da política.52 Com a entrada do terceiro, dá-se o aparecimento da moral como moral normativa. Surge a norma e a vivência concreta da responsabilidade infinita do eu perante cada outro. Pensamos ser por aqui que com Lévinas podemos fundamentar a Moral.

Mais ainda, pensamos ser por aqui que com Lévinas podemos fundamentar as duas tradições que a História da Filosofia Moral consagrou: a teleológica e a deontológica. A teleológica porque viver a responsabilidade que o eu é perante o outro realiza-o e leva-o à "vida boa". Tenha-se presente que já em Autrement qu'être, ao falar da responsabilidade do eu perante o outro, Lévinas apontava nesta direcção. Dizia o autor que a relação eu-Outro, sendo "um-para-o-outro", vive-se na doação concreta, o que implica uma relação na separação em que :

    ...o dar oferece não a super-fluxão do supérfluo, mas o pão-arrancado-à-sua-boca. Significação que significa, por consequência, no alimentar, no vestir, no alojar - nas ligações maternais em que a matéria se mostra somente na sua materialidade. 53

Lucas emprega um verbo pouco comum, composto por dupla proposição, anti-par-erchesthai, querendo significar que passou para o outro lado. Assim, se significa que o Sacerdote evita qualquer espécie de contaminação ritual, por contacto, mesmo por mera proximidade com um cadáver (Nm 5,2c; 19,2-13). Um Sacerdote só poderia contaminar-se, se fosse a enterrar algum dos seus parentes mais próximos (Ez 44,25-27), tendo em atenção as prescrições do Levítico (5,3; 21,1-3) e da tradição rabínica posterior.

O Sacerdote e o Levita representam a qualidade de vida litúrgica. Tratase de uma qualidade de vida formal, que está centrada na prática do culto. Este é o centro desta qualidade de vida. É uma vida intermédia, que tem um espaço, que se chama o Templo de Jerusalém. Tudo gira em torno deste espaço. Naturalmente é uma qualidade de vida jurídica, que filosoficamente se referencia à praxis e não à plesiologia poiética.

O paradigma da responsabilidade de identidade, em que me comprometo só pelos sucessos e interesses, apresenta a sua pauta de comportamento revelada, metaforicamente, no Sacerdote e no Levita, que não se detêm e seguem o seu caminho.

Isto quer dizer que aquelas duas personagens do Templo de Jerusalém representam o amor de identidade, que não se compromete pela qualidade agápica .

Trata-se, pois, de um amor que deseja o Outro, se pertencer ao seu mundo, enquanto ignora o "desvalido": viu, desviou-se e passou ao lado (Lc 10,31-32).

O Sacerdote e o Levita amam aqueles que já estão dentro do seu mundo afectivo pelo sangue, pelo parentesco ou pelo interesse, mostrando-se desinteressados e desconhecedores dos demais.54 A qualidade de vida cultual é formatada pelos rituais e caracteriza-se pelo amor de identidade e não pela alteridade, como a do Samaritano. A qualidade de vida litúrgica será decifrada num amor de eros, como sendo um amor paradoxal, tanto para o Eu, que, em vez de se realizar, fica perdido na Lei e nos Profetas, bem como no ritual, quanto para o Outro que, no momento em que é possuído ou incorporado, em vez de estar próximo se revela inacessivelmente distante. Este é inexoravelmente um não dar-se. Trata-se, pois, de uma qualidade de vida identitária. O Sacerdote e o Levita estavam eticamente preocupados com a norma objectiva da moralidade (recta ratio), expressa pela Torah, mas pouco interessados na consciência do fazer ou na "consciência plesiológica".55

Segundo a Lei de Israel, o sacerdócio proíbe o contacto com um cadáver, sendo a única excepção os parentes. O cumprimento da Lei era considerado o melhor caminho para evitar o pecado ao alcançar a santidade. O Sacerdote aparece como vítima de um sistema. Não é um homem sem coração, é, antes, um escrupuloso cumpridor da Lei.56

A qualidade de vida cultual vai na linha de uma concepção religiosa, sendo Jesus Cristo crítico na parábola. O Sacerdote e o Levita são prisioneiros do próprio sistema legal e teológico.57 Esta qualidade de vida não é axiológica, mas tem algo de ético pelo cumprimento da Torah. Esta era a instrução de Israel, sendo esta nação uma sociedade teocrática, marcada pela vida litúrgica do Templo de Jerusalém. Toda a qualidade de vida, neste tempo, era marcada pelo compasso do Templo. Era uma qualidade de vida ritual, marcada pelas dimensões sociológicas.

A QUALIDADE PLESIOLOGICA DE VIDA: PELO HOMO VIATOR

Cristo quer a qualidade de vida de todos os seres vivos, pois Ele veio para dar vida e dar em abundância! (...) É a palavra e a vida do amor de alteridade (doação desinteressada) que dá sentido à qualidade de vida. Cristo, como Desvalido no Caminho, teve "qualidade de vida", no alto da Cruz, precisamente porque amava a humanidade! Por ela se entregou: quem ama, entrega-se, doa-se, sacrifica-se. Mesmo sofrendo, nunca se perde a capacidade da gratuitidade, o valor de se dar e de se entregar. Aqui reside o segredo da Outra Qualidade de Vida.58

Pela carta apostólica Salvifici Doloris, João Paulo II diz-nos que Boni Samaritani parabola ad doloris evangelium pertinet no sentido de que nos aproxima da dor e do sofrimento. De forma nova e segundo a qualidade de vida soteriológica, propomos: Boni Samaritani parabola in doloris evangelium. Encontramos na narrativa exemplar uma boa notícia soteriológica, como uma Outra Qualidade de Vida, dado que a parábola está dentro do sofrimento de Cristo e de todos os desvalidos (doentes, presos, nus, famintos, etc.).

Deste o facto de esta parábola, exclusiva de Lucas, estar integrada na última viagem de Cristo, para Jerusalém, até ser o protoevangelho e a propedêutica das narrativas da Paixão e Morte de Cristo, a narrativa -conto do Bom Samaritano revela, dialecticamente, o sofrimento de Cristo, na flagelação e crucificação, perante Pôncio Pilatos, como Servo Sofredor. Este Servo é a qualidade de vida soteriológica, como Desvalido pelo Caminho da dor e do sofrimento, como logos e síntese do sofrimento de Deus na Cruz.59

A qualidade de vida soteriológica, retratada no Homo Viator (Lc 10,25-37), será a "casa da salvação", como morada da conduta humana e pertencente a uma cultura ética e a uma civilização axiológica, segundo o pensamento do Romano Pontífice. Encontramos, no Servo de YHWH, o homem das dores, que vivencia tudo quanto a narrativa do sofrimento prefigura e mostra pela teodramática de Deus, que está na Cruz.

A experiência do sofrimento terá de ser perspectivada, como acontecimento escatológico, porque se enraíza no plano salvífico de Deus (paixão -morte- ressurreição) e, como tal, será portador de felicidade e de qualidade de vida.

A parábola do Homo Viator (Lc 10,25-37), como expressão cristológica, inicia-se, logo, no quidam homo, que é a recitação (síntese) de Deus-Pai (o Pai das Misericórdias), que faz a audição (tese) da Palavra e a Palavra é Jesus Cristo (Desvalido no Caminho). Esta audição (fides) vem da pregação, sendo o seu argumento Jesus Cristo. Aqui temos o primeiro momento da qualidade de vida soteriológica. A audição, que sente o Samaritano, vem do "ver" (escuta da voz sem voz, do poder sem poder do Desvalido). O sentido apologético da parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) justifica-se nesta audição .

No segundo momento da qualidade de vida soteriológica do Desvalido no Caminho, quando ao Samaritano se "comoveram as vísceras" (Lc 10,33), toma-se a decisão (antítese) , que é um amor visceral. Será a decisão justificada pela dimensão agápica. A qualidade de vida soteriológica em Cristo é agápica.

Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), o Desvalido no Caminho é a recitação do Pai das Misericórdias, que determinará a missão do Samaritano pela "comoção das vísceras". Todavia, interpretamos que o contexto missionário da parábola se descreve, no caminho de Jerusalém para Jericó, e depois, em sentido inverso, para o Gólgota, como ser e estar in statu viatoris, que é a spes.60

A justificação da "recitação", último momento da qualidade de vida soteriológica, como centro da parábola do Homo Viator, far-se-á pela apologética da missão do Samaritano. Toda a parábola é a evocação apologética de uma qualidade de vida soteriológica em virtude da "quenose" de Cristo na Cruz. Daqui se aufere que a narrativa do comportamento exemplar é apelo e vivência da conduta plesiológica.61

A grande novidade desta parábola de Lucas está no sentido plesiológico, dado por Jesus Cristo, ao ponto de se poder dizer que surge uma nova qualidade de vida soteriológica, que será a propedêutica para a Outra Qualidade de Vida, chamada de "qualidade de vida" escatológica, que é uma conversão ao que há-de vir.

A parábola do Homo Viator anuncia, como prefácio, a qualidade da Morte, pelas acções dos salteadores, de uma morte verdadeiramente humana e torna-se o melhor prelúdio da definitiva Qualidade de Vida Escatológica, da qual a expressão telúrica é mera prefiguração, na marca da esperança (spes) da eternidade, entre o antes e o depois de cada existência humana.

CONCLUSÃO

A referência plesiológica é a temporalidade de alteridade (tempo plesiológico) do Bom Samaritano, tal como aparece vivido na parábola de Lucas (10,25-37). Ele é o que não vê com preceitos. Será o que se aproxima do homem que sofre. E, porque se aproxima, criando um espaço plesiológico, é que vê bem; e, porque vê bem, "comove-se" (rahamim) e, porque se comove, debruça-se sobre Ele, para Lhe dar vida, porque se situa num tempo eónico. Na verdade, somos muito semelhantes aos ladrões, ao Sacerdote e ao Levita da parábola. Vemos quase sempre o Outro pelo lado da utilidade, que pode ter para nós, ou simplesmente, para desviarmos dele, por já nada vermos nele que nos interesse.

A Qualidade de Vida é um tema e uma leitura sempre presente na parábola do Bom Samaritano, como elemento fundamental de uma ética global, que tem raízes nos personagens fictícios da narrativa-conto, que vai da qualidade de vida telúrica (salteadores e estalajadeiro), passando pela qualidade de vida do Samaritano, que foi uma "qualidade plesiológica", pelo caminho poiético, até se atingir a "qualidade de vida soteriológica", que tem o seu epílogo, pela Cruz, no Desvalido no Caminho.

O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente Outro, esse Outro é o Homo Viator, o protagonista da parábola. A parábola do Bom Samaritano é uma narrativa sobre a qualidade de vida , que equaciona permanentemente o Dom e a Tarefa, como fundamentação segura para viver com outra Qualidade de Vida, para uma vida com qualidade, em ordem a uma vida nova em qualidade. Assim, as qualidades de vida impressas na parábola do Homo Viator (Lc 10,25-37) descrevem-se numa ética global de máximos.


Pie de página

1Heras, Teorías de la moralidad. Introducción a la ética comparada, 140.
2Lévinas, Totalité et Infini, ix.
3Camps, La imaginación ética, xii.
4Meneses, "Democracia - Sentidos e Evoluções", 147-168.
5González, "Ética civil: la historia de un nombre", 196-216.
6Apel, Éthique de la discussion, 24.
7Ibid., 30-40.
8Ibid., 41-42.
9Kohlberg, The Psychology of Moral Development: The Nature and Validity of Moral Stages, I., 34-235.
10Ricoeur, Soi-même comme un autre, 334.
11Ibid., 334-335.
12Ricoeur, "Éthique et morale", 266.
13Ricoeur, Le juste 2, 241.
14Idem, Soi-même comme un autre, 336.
15Cortina, "Morir en paz", 352.
16Etxeberria, Temas básicos de ética, 73-84.
17Cortina, "Morir en paz", 352.
18Cortina, Ética sin moral, 247.
19Ibid., 247-248.
20Cortina, "Morir en paz", 353.
21Cortina, Ética sin moral, 252-253.
22Martínez, "De la ética a la bioética", 210-211.
23Elizari, Questões de Bioética. Vida em Qualidade, 203.
24Lévinas, Totalidade e infinito, 97.
25Meneses, O Desvalido no Caminho: o Bom Samaritano como paradigma de humanização em saúde, 24.
26Ibid., 25.
27Idem, "Na Parábola do Bom Samaritano: o sentido da fruição pela humanização", 224.
28Idem, O Desvalido no Caminho, 26.
29Lévinas, Totalidade e infinito, 120.
30Lévinas, Totalidade e infinito, xvii.
31Ricoeur, Soi-même comme un autre, 237.
32Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, 86, Nota 3.
33Lévinas, Totalidade e infinito, 82.
34Ibid., 83.
35Ibid., 82.
36Ibid., 59.
37Ibid., 273.
38Ibid., 37.
39Ibid., 191.
40Idem, Au-delà du verset, 74.
41Idem, En découvrant l'existence avec Husserl e Heidegger, 197.
42Idem, Entre nous. Essais sur le penser-à-l'autre, 48.
43Idem, Totalidade e infinito, 182.
44Ibid., 175.
45Meneses, O Desvalido no Caminho, 72.
46Ibid., 72-73.
47Lévinas, Autrement qu étre aui de la de essence, 200-207.
48Ibid., 177.
49Ibid., 200.
50Ibid., 201, 89-90 e 203.
51Ibid., 202.
52Ibid., 201.
53Ibid., 97, 71-72.
54Meneses, O Desvalido no Caminho, 41-47.
55Ibid., 156-157.
56Regensdorf, Il Vangelo secondo Luca, 273-280.
57Blinzler, "Die literarische Eigenart dês sogenannten Reiseberichts im Lukasevangelium", 28-30.
58Bezerra, Contributos para uma outra qualidade de vida no âmbito da bioética teológica, 44.
59Meneses, O Desvalido no Caminho, 107.
60Ibid., 71.
61Ibid., 72.


BIBLIOGRAFÍA

Apel, K-O. Éthique de la discussion. Trad. de Mark Hunyadi. Paris: Les Éditions du Cerf, 1994.        [ Links ]

Bezerra, J. Contributos para uma outra qualidade de vida no âmbito da bioética teológica. Braga: Edição do Autor, 2006.        [ Links ]

Blinzler, Joannes. "Die literarische Eigenart dês sogenannten Reiseberichts im Lukasevangelium." Synoptische Studium, 1-2 (1953): 28-30.        [ Links ]

Brito, J. H. S. De Atenas a Jerusalém. A subjectividade passiva em Lévinas. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2002.        [ Links ]

Camps, V. La imaginación ética. Prol. da autora. Barcelona: Editorial Ariel, 1991.        [ Links ]

Cortina, A. Ética sin moral, Madrid: Editorial Tecnos,1995.        [ Links ]

_. "Morir en paz." In Ética en cuidados paliativos, por A. Couceiro. Madrid: Triacastela, 2004.        [ Links ]

Couceiro, A., ed. Ética en cuidados paliativos. Madrid: Triacastela, 2004.        [ Links ]

De Vaux, R. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona: Editorial Herder, 1992.        [ Links ]

Elizari, F. J. Questões de Bioética. Vida em Qualidade. Porto: Perpétuo Socorro, 1996.        [ Links ]

Etxeberria, X. Temas Básicos de ética. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002.        [ Links ]

González Arnaiz, G. "Ética civil: la historia de un nombre." Diálogo filosófico 35 (1996): 196-216.        [ Links ]

Heras, J. M. G. Teorías de la moralidad. Introducción a la ética comparada. Madrid: Editorial Síntesis, 2003.        [ Links ]

Kohlberg, L. The Psychology of Moral Development: The Nature and Validity of Moral Stages. 2 vols. New York: Harper & Row, 1984.        [ Links ]

Lévinas, E. Au-delà du verset. Paris : Les Éditions de Minuit, 1982.        [ Links ]

_. Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, La Haye: Martinus Nijhoff, 1978.        [ Links ]

_. De Dieu qui vient à l'idée. Paris: Librairie Philosophique Vrin, 1982.        [ Links ]

_. En découvrant l'existence avec Husserl e Heidegger. Paris: Librairie Philosophique Vrin, 1967.        [ Links ]

_. Entre nous. Essais sur le penser-à-l'autre. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1991.        [ Links ]

_. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, s/d.        [ Links ]

Martínez, J. L. "De la ética a la bioética." In Do Início ao Fim da Vida. Actas das Primeiras Jornadas de Bioética, Funchal, 18 e 19 Março 2005, coord. José Henrique Silveira de Brito. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 2005.        [ Links ]

McIntyre, A. After Virtue. A Study in Moral Theory. Notre Dame: University Press, 1981.        [ Links ]

Meneses, R. D. Borges. "Democracia - Sentidos e Evoluções." Igreja e Missão. Revista Missionária de Cultura e Actualidade 201-202 (2006): 147-168.        [ Links ]

_. "Na parábolas do Bom Samaritano: o sentido da fruição pela humanização." Acção Médica 64,4 (2005).        [ Links ]

_. O Desvalido no Caminho: o Bom Samaritano como paradigma de humanização em saúde. Santa Maria da Feira: Edições Passionatas, 2008.        [ Links ]

Regensdorf, K. Il Vangelo secondo Luca. Brescia: Paideia, 1963.        [ Links ]

Ricoeur, P. "Avant la loi morale: l'éthique." Encyclopaedia Universalis. Supplément 2. Les Enjeux. Paris: Encyclopaedia Universalis France.        [ Links ]

_. "Éthique et morale." In Lectures 1. Autour du politique, por P. Ricoeur. Paris: Les Éditions du Seuil, 1991.        [ Links ]

_. Le juste 2, Paris: Éditions Seuil, 1981.        [ Links ]

_. Soi-même comme un autre. Paris: Les Éditions du Seuil, 1990.        [ Links ]

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License