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Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas

Print version ISSN 0120-3886

Rev. Fac. Derecho Cienc. Polit. - Univ. Pontif. Bolivar. vol.42 no.116 Medellín Jan./June 2012

 

Revisitando a teoria schmittiana dos grandes espaços (Grossraumlehre): o conceito de espaço no direito internacional contemporâneo1

Revisiting the Schmittian theory of greater spaces (Grossraumlehre): the concept of space in contemporary international law

Nouvelle approche de la théorie Schmittienne des grands espaces (Grossraumlehre): le concept d'espace en droit international contemporain

Anderson Vichinkeski Teixeira2

1O presente artigo possui maiores desenvolvimentos no meu Teoria Pluriversalista do Direito Internacional, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011.
2Doutor (2009) em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa doutoral junto à Faculdade de Filosofia da Université Paris Descartes-Sorbonne. Estágio pós-doutoral junto à Università degli Studi di Firenze (2010). Mestre (2005) em Direito do Estado pela PUC/RS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Advogado e consultor jurídico. Correo electrónico: andersonvteixeira@hotmail.com

Este artículo fue recibido el día 01 de marzo de 2012 y aprobado por el Consejo Editorial en el Acta de Reunión Ordinaria N°. 14 del 26 de abril de 2012.


Resumo

O presente artigo pretende analisar alguns dos principais aspectos da teoria dos grandes espaços (Grossraumlehre) de Carl Schmitt. Nosso objeto central de estudo é a relevância da noção de espaço para a definição e estruturação das comunidades regionais no direito internacional, surgindo como possível alternativa ao tradicional conceito de território. Algumas considerações sobre o contexto histórico de desenvolvimento do pensamento schmittiano serão feitas, tentando oferecer uma melhor compreensão sobre as condições sócio-históricas da produção da obra de Schmitt.

Palavras-chave: direito internacional, grossraum, Carl Schmitt.


Abstract

The following article aims to analyze some of the main aspects of the theory of greater spaces (Grossraumlehre) of Carl Schmitt. Our central object of study is the relevance of the notion of space to the definition and structuring of regional communities in international law, emerging as a possible alternative to the traditional concept of territory. Some considerations about the historical context of development of the Schmittian thought will be made, trying to offer a better understanding of the socio-historical conditions of production of Schmitt's work.

Key words: international law, grossraum, Carl Schmitt.


Résumé

Cet article vise à analyser certains des principaux aspects de la théorie des grands espaces (Grossraumlehre), de Carl Schmitt. Notre objet central d'étude est la pertinence de la notion d'espace à la définition et la structuration des communautés régionales en droit international, qui devient une alternative possible à la notion traditionnelle de territoire. Quelques considérations sur le contexte historique du développement de la pensée Schmittienne seront faites, essayant d'offrir une meilleure compréhension des conditions socio-économiques-historiques de la production de l'œuvre de Schmitt.

Mots-clés : loi internationale, grossraum, Carl Schmitt.


Introdução

Desde o período do ius gentium, passando pelo ius publicum Europeaum, o direito internacional esteve centrado em torno dos conceitos de território e população, pois são esses elementos objetivos que melhor auxiliam a definir as formas de organização política historicamente conhecidas (Estado moderno, feudos, reinos, principados, impérios etc.). Conceitos que envolvem elementos subjetivos, como nação e povo, por exemplo, possuem relação necessariamente com a existência ou não daqueles dois elementos objetivos acima referidos (cf. Galli, 2001, pp. 17-32). As guerras, desde a sua fase arcaica (ou antiga) até a sua versão global, tinham entre suas causas decisivas disputas que, em última instância, implicavam na conquista de terrítórios e/ou submissão de populações (cf. Coker, 2004). Todavia, os influxos dos diversos processos de globalização sobre o direito internacional fizeram com que este elemento deixasse de ter a significância de outrora, uma vez que o poder não possui mais uma vinculação necessária com elementos reais e físicos tão restritivos quanto o conceito de território, como podemos ver na economia internacional, na cultura cosmopolita, na política internacional e em diversos outros campos.

Embora a virtualização das relações sociais tenha atingido um elevado nível de complexização e influenciado setores da vida social nos mais diversos âmbitos, o direito internacional permanece vinculado fortemente à noção de território, seja para definir o que é um Estado ou para delimitar os limites de urna comunidade regional. E aqui está o objeto central do presente texto: a relevância do conceito de espaço para a definição e estruturação das comunidades regionais no direito internacional, surgindo como possível substituto para a tradicional ideia de território. Nesse sentido, retomaremos a teoria dos grandes espaços (Grossraumlehre) de Cari Schmitt e buscaremos discutir a melhor adequação da noção de espaço ao direito internacional do sáculo XXI. Antes disso, faremos algumas considerares sobre o contexto histórico de desenvolvimento do pensamento schmittiano.

Por urna opção metodológica, todas as citações em línguas estrangeiras foram traduzidas.

1. Da necessária distinção entre Grossraum e Lebensraum

Na tentativa de afastar qualquer possível confusão conceitual, devemos destacar, inicialmente, que a teoria schmittiana dos grandes espaços (Grossraumlehre) era substancialmente diferente da teoria hitleriana do espaço vital (Lebensraumlehre). A teoria dos grandes espaços não possuía qualquer relação com a ideologia racista do Terceiro Reich: esta sim concebia o espaço vital (Lebensraum) tendo como base um critério biológico como ponto de referência (cf. Bendersky, 1989, p. 313). Enquanto este conceito exprimia o ideal da supremacia de uma raça frente a todas as outras, o conceito de Grossraum exprimia a dominação política, ideológica ou ainda econômica de um país - o qual se tornaria um Império (Reich), segundo a terminologia schmittiana - frente a outros países sobre os quais ele poderia, direta ou indiretamente, exercer sua influência. Schmitt dizia que "são impérios (Reich), em tal sentido, aquelas potências hegemônicas e preponderantes cuja influência política se irradia sobre um determinado 'grande espaço' e que, em princípio, proíbem por este último a intervenção de potências estranhas" (Schmitt, 1996, p. 45).

Hitler não buscou em Schmitt o conceito de Lebensraum, mas sim no então conselheiro de Rudolf Hess: Karl Haushofer, o qual sustentava que a ideia de Lebensraum significava o direito por parte de urna nação em anexar todo o território necessário para satisfazer as exigências da sua própria população, de modo que, após os nazistas tomarem o poder, tal conceito começou a se enquadrar à doutrina racista e expansionista do partido nacional-socialista (cf. Bendersky, 1989, p. 294). A visão de mundo que Hitler tinha era baseada na eterna luta entre os povos para conquistar a terra, isto é, o "espaço vital" (Lebensraum), dado que, segundo ele, as leis da natureza premiam somente os mais fortes (cf. Corni, 2005, p. 5). Jan-Werner Müller reconheceu que Schmitt não havia jamais utilizado critérios biológicos, como o do Lebensraum, na sua teoria dos grandes espaços, mas deixava um "vazio substancial" interno que "poderia facilmente ser preenchido com categorias racistas" (Müller, 2004, p. 43), sobretudo se a ideologia política predominante fosse racista. Esse "vazio substancial" da grossraumlehre schmittiana era consequência do fato de ela tratar somente da forma do grande espaço, sem dedicar muita atenção à substância que este grande espaço pode - ou deve - garantir. Schmitt deixou este vazio para que fosse preenchido por cada grande espaço específico. No entanto, de acordo com a sua noção de Império, ver-se-á que o que ocorre é, de fato, a predominância da "substância" imposta pelo Império hegemônico naquele grande espaço específico.

Caterina Resta sustenta que "ainda que 'perigosamente' próxima da categoria de Lebensraum, cunhada por Haushofer e pela sua escola geopolítica a serviço do nacional-socialismo, a noção de Grossraum não pode, absolutamente, ser confundida com esta, não fosse que pela total distância de Schmitt frente a qualquer 'vitalismo' jurídico, nem sequer por qualquer concepção racial em sentido biológico" (Resta, 1999, pp. 91-92).

A teoria schmittiana dos grandes espaços, apresentada pela primeira vez em uma conferência no Instituto de Política e Direito Internacional de Kiel, em 1939, publicada como Völkerrechtliche Grossraumordnung mit Interventionsverbot für Raumfremde Mächte [O conceito de Império no direito internacional. Ordenamento dos grandes espaços com exclusão de potências estranhas], foi, pelo contrário, sempre indicada como "o momento de maior empenho de Schmitt com a política imperialista do regime hitleriano, como o perfeito exemplo de uma prestação científica a serviço da ideologia" (Campi, 1994, p. 11). Não obstante as críticas, quando analisado desapaixonadamente vemos que o seu Völkerrechtliche Grossraumordnung não está em condições de apresentar qualquer evidência que indique uma concordância de Schmitt com a política hitleriana de agressão militar indiscriminada e de ocupação militar de outros Estados (cf. Schwab, 1994, p. 189). Por outro lado, esta política hegemônica do Lebensraum se assemelhava mais à versão universalista da doutrina Monroe com a qual os Estados Unidos tentaram impor a sua hegemonia em escala global. Assim, além das diferenças substanciais entre o Lebensraum nazista e o Grossraum schmittiano, parece-nos que também do ponto de vista lógico estas duas propostas sejam inconciliáveis, pois partem de pressupostos absolutamente diferentes.

A brevíssima relação de Schmitt com o Terceiro Reich - que durou, de fato, de 1933 a 1936, ano este em que ele foi afastado pelo Partido de todas suas atividades no regime - não é o nosso objeto de estudo neste momento, mas o importante para nós é destacar que a sua teoria dos grandes espaços não apresenta características que possam comprometê-la como um conceito nazista ou racista. Cario Galli afirma que, embora Schmitt demonstrasse simpatia por diversos princípios do nacional-socialismo, os seus textos de direito internacional e filosofia das relações internacionais adotam um prudente distanciamento das temáticas de política interna, não sendo possível, de qualquer modo, sustentar que esta parte da sua obra esteja sob influência da ideologia nazista (cf. Galli, 1996, p. 864).

2. A teoria dos grandes espaços (Grossräume) e a influência da doutrina Monroe de 1823

Não obstante Schmitt tenha sido reconhecido como um jurista de direito constitucional (Maurice Hauriou o qualificava como o "grande mestre dessa disciplina"), os seus textos também envolviam temas de teoria política, teoria do direito, filosofia das relações internacionais e do direito internacional, bem como alguns escritos literários. Somente com a criação da União Europeia é que aumentou a atenção dedicada por grande parte da comunidade acadêmica aos seus textos de direito internacional e de filosofia das relações internacionais.

Dentro do pensamento internacionalístico schmittiano a ideia de espaço é ponto chave. Ele entendia que a ordem internacional era baseada na divisão do mundo em grandes espaços (Grossräume) e se caracterizava por alguns princípios que paradoxalmente remontam à doutrina Monroe, de 1823, que ele considerava "o mais feliz exemplo de um princípio espacial no ordenamento internacional" (Schmitt, 1996, p. 13). Esta doutrina estadunidense, na sua versão originária, enunciava três princípios fundamentais aos Estados Unidos da América que deveriam valer para a sua política externa (cf. Schmitt, 1996, p. 13):

(1) a independência de todos os Estados americanos,

(2) a proibição de toda forma de colonização no seu espaço,

(3) a proibição de ingerência por parte de potências extra-americanas no referido espaço.

O paradoxal nisso está em o próprio Schmitt entender o crescimento de poder por parte dos Estados Unidos como urna das causas da falência do jus publicum Europaeum, em particular após o fim da Primeira Guerra Mundial, e dizer que a doutrina Monroe havia se tornado um projeto universalista e "fora do espaço" - similar ao universalismo do Império britânico - mediante o qual os Estados Unidos tentavam justificar a sua hegemonia imperialista para muito além dos confins das Américas (cf. Schmitt, 2007, p. 495). Ele sustentava que "a falta de medida e limite deste intervencionismo destruiu desde os fundamentos a velha doutrina Monroe e o panamericanismo que sobre esta estava baseado" (Schmitt, 1994, pp. 294-295).

No seu primeiro texto sobre o tema, anteriormente referido, ele dizia que (Schmitt, 1996):

[...] podemos mesmo observar urna outra alteração ainda mais profunda e mais importante acerca da concepção jurídica de grande espaço', isto é, a deformado da doutrina Monroe por urna concepção de grande espaço' concreto, geograficamente e historicamente definido, em um princípio geral e universalista que deveria valer para o mundo inteiro com pretensões de ubiquidade. Esta deformadlo está estritamente ligada à deturpação da doutrina em um princípio de expansão, imperialista e universal, apresentando para nós um especial interesse, pois revela o ponto no qual a política dos Estados Unidos abandona o seu princípio de espaço continental e se alinha com o universalismo do Império britânico. (p. 21)

A versão universalista da doutrina Monroe havia como pai o Presidente Woodrow Wilson, o qual, em mensagem ao Congresso dos Estados Unidos, em 22 de Janeiro de 1917, propôs que todos os povos do mundo aceitassem tal doutrina, salvaguardando, porém, cada povo o próprio direito de autodecisão. Segundo Schmitt, o presidente estadunidense não buscava com isto urna transferência conforme do pensamento espacial, não intervencionista, comido na verdadeira doutrina Monroe, aos outros espaços, mas, pelo contrário, urna extensão espacial e ilimitada dos princípios liberal-democráticos a toda terra e a toda a humanidade. Deste modo, ele buscava urna justificação para sua inaudita ingerência no espaço extraeuropeu a ele por completo estranho e no conflitto bélico entre potências europeias (cf. Schmitt, 2007, p. 495). O autor alemão alegava que a política externa do Presidente Wilson representou o desvirtuamento da doutrina originária "segundo o método de dissolver um princípio ordenador concreto e espacialmente definido em urna ideia mundial com aspirações universalistas, transformando a sã ideia central de um princípio espacial de não intervenção em urna ideologia imperialista e, por assim dizer, pan-intervencionista mundial" (Schmitt, 1996, p. 22).

O que Schmitt tinha em mente era a versão originária da doutrina Monroe, pois, segundo ele o:

[...] desenvolvimento planetário havia conduzido, já há tempos, a um claro dilema entre universo e pluriverso, entre monopólio e oligopólio, ou ainda ao problema se o planeta seria maduro para o monopólio global de urna única potência ou seria, pelo contrário, um pluralismo de grandes espaços (Grossrdume) em si ordenados e coexistentes, de esferas de intervenção e de áreas de civilidade, a determinar o novo direito internacional da terra. (Schmitt, 2003, p. 311)

3. O polêmico conceito schmittiano de Império na estrutura do direito internacional

Para dar vida a uma nova ordem internacional como esta seria necessário criar um modelo de regionalismo político-jurídico policêntrico e multipolar, que deveria ter as suas decisões com força normativa tomadas a partir da negociação multilateral e dos processos de integração regional (cf. Zolo, 2007a, p. XXI). Todavia, a proposta schmittiana se manteve demasiadamente vinculada à noção de Império, tornando difícil alcançar tais objetivos no atual contexto das relações internacionais.

Do ponto de vista estrutural, a formação de um Grossraum não implicaria em todos os Estados que o compõem serem tidos como uma fração do Império dominante neste "grande espaço", urna vez que a existência de um Império não coincide com a existência do seu respectivo Grossraum. Da mesma forma pode ocorrer que a todo Império corresponda de qualquer forma um Grossraum em que "dominam as suas ideias políticas e no qual não podem ser permitidas intervenções estranhas" (Schmitt, 1996, p. 45). A relaçãe;o entre Império e "grande espaço" é, de fato, baseada na dominação política, ideológica, cultural e/ou económica que o primeiro é capaz de exercer dentro do segundo. Com base nisso, o globo terrestre poderia ser dividido em "grandes espaços" (Grossrdume), cada um guiado por um Império em condições de manter internamente a ordem e a paz, dado que, do ponto de vista da relação entre os "grandes espaços", o princípio de não intervenção seria responsável por manter o equilíbrio entre eles e, por consequência, tornar-se-ia a norma fundamental do direito internacional: "Porém, tão logo os 'grandes espaços' internacionais, com proibição de intervenção às potências estranhas, venham reconhecidos e surja o conceito solar de império, torna compreensível a coexistência de um mundo razoavelmente subdividido e a norma fundamental de não intervenção adquire a sua eficiência disciplinada em um novo direito internacional" (1996, pp. 45-46).

Resumidamente, Schmitt sustentava que a ordem internacional encentra na noção de "Império" (Reich) o ponto que une 'grande espaço', nações e também a ideia política internamente preponderante em cada 'grande espaço'" (1996, p. Al). O conceito de Império se apresentará como urna contraposição "ao que até hoje foi o conceito central do direito internacional, ou seja, o 'Estado'" (1996, p. 48). O problema do direito internacional fundado no conceito de Estado decorreria do fato de que a concepção de espaço substituí a de território do Estado, tornando a sua soberania territorial um obstáculo ao desenvolvimento de qualquer relação internacional que tenha urna dimensão espacial, ou seja, obstaculizando grande parte dos fenômenos conhecidos que envolvem tanto as pessoas quanto as organizações políticas (cf. Schmitt, 1994, pp. 205-206). Segundo Schmitt, "do ponto de vista da ciência do direito internacional, o conceito de espaço e a ideia política não podem ser separados" (Schmitt, 1996, pp. 18-19). Dado que todos os "espaços livres" fora da Europa foram conquistados e, em seguida, passaram por processos de independência, perdendo a condição de colônias das potências europeias, a concepção espacial que havia caracterizado o Estado moderno - mais precisamente, o jus publicum Europaeum - não poderia mais subsistir frente ao poder crescente dos "grandes espaços". Em suma, o Estado tornou-se um conceito superado que não corresponde mais à realidade eficiente, destinado a ser derrotado pelo processo de formação dos "grandes espaços" (cf. Schmitt, 1996, p. 49; também em Schmitt, 1994, pp. 336-337).

Ao invés de manter a condição anárquica entre os Estados ou tentar alcançar um modelo de direito internacional universalista, Schmitt propõe um Pluriversum estruturado a partir dos diversos Grossráume que compõem o sistema internacional, uma vez que o "mundo político é um pluriverso, não um universo" (Schmitt, 1972, p. 138). Já desde o Der Begriff des Politischen, publicado em 1927, ele tinha esta ideia em mente - antes de desenvolver a sua Grossraumlehre - como um pressuposto da política e também da teoria do Estado: "a unidade política não pode ser, por sua essência, universal no sentido de uma unidade que compreenda toda a humanidade e toda a terra" (1972, p. 138).

A sua compreensão do direito internacional como um sistema policêntrico, regionalizado e centrado nos processos de negociação multilateral mostra-se altamente relevante para o atual momento das relações internacionais. No entanto, o conceito de império (Reich) é completamente incompatível com o contexto globalizado da ordem internacional visto nesse início de século. O que Schmitt havia proposto é um conceito legibus soluta que se realiza mediante o poder absoluto e centralizador que as instituições do Império possuem (cf. Zolo, 2007b, p. 155). A referida incompatibilidade reside no fato de que a formação de relações jurídicas sólidas e permanentes entre os Estados que compõem um Grossraum se encontra sob a constante ameaça de alguma sorte de comportamento absolutista por parte do Império. Na proposta schmittiana a soberania do Estado daria lugar à soberania do grande espaço. Porém, o que pode ocorrer, de fato, é que a soberania de todos os demais Estados venha submetida ao poder do Império, o qual será o único verdadeiramente soberano e agente dominante em determinado grande espaço. Schmitt dizia que na sua época existiam mais de cem Estados soberanos, mas que todos se encontrara sob o poder de duas potências dominantes (URSS e EUA) (cf. Schmitt, 1994, p. 336). O que ele parece não ter percebido é que a transformado de um Estado em Império dentro de um dado grande espaço representa a aniquilado da soberania dos demais Estados.

Danilo Zolo é preciso ao ressaltar que a ideia de Império atualmente soa incompatível com qualquer projeto pacifico de ordem internacional: um projeto pacífico "requer urna retomada neorregionalista da ideia de Grossraum, juntamente com o fortalecimento da negociação multilateral entre Estados como urna fonte normativa e urna legitimação democrática dos processos de integração regional" (Zolo, 2007b, p. 160). A forma pensada por Schmitt para o Grossraum precisa ser preenchida por alguma substância necessariamente vinculada ao contexto no qual se desenvolvem as relações entre os Estados.

4. O conteúdo material das relações desenvolvidas em um Grossraum

Embota tenha versado sobre a formação, estruturação, finalidade e oportunidade do Grossraum para a ordem internacional, Schmitt nunca foi suficientemente claro ao explicar quais matérias seriam objeto de deliberado dentro de um grande espaço. Conforme vimos inicialmente, essa questão veio a ser chamada de vazio substancial por parte da doutrina (cf. Müller, 2003, pp. 39-47; Portinaro, 1982, pp. 200-201), pois ele sempre se absteve de responder sobre como criar um sistema internacional a partir das relações políticas entre os Estados, sem o condicionamento do sistema por parte dos interesses econômicos dos Estados e sem ficar sujeito ao predomínio de interesses particulares do Império dominante.

Provavelmente ele nunca escreveu sobre o funcionamento das relações econômicas entre os Estados dentro dos grandes espaços porque entendia que a economia capitalista havia tomado das mãos do Estado nacional o controle sobre a política (cf. Schmitt, 1996, p. 46). A economia capitalista teria origem no imperialismo britânico, que sustentava ideias de mercados livres, comércio mundial e mares livres somente porque eram estes os meios mediante os quais a Inglaterra conquistou e manteve a sua hegemonia mundial até 1890 (cf. Schmitt, 1994, pp. 263-264). Além disso, após o fim da hegemonia britânica os Estados Unidos utilizaram a doutrina Monroe como instrumento de política internacional para justificar o seu comportamento imperialista - em particular no âmbito econômico - em relação a todo o resto do mundo: "Na história da doutrina Monroe americana a política econômica-imperialista do presidente Theodore Roosevelt, que se iniciou ao final do sáculo XIX, significa um ponto de reviravolta. Roosevelt fez um uso indevido da doutrina Monroe como pretexto para métodos particularmente incautos de urna dollar-diplomacy liberal-capitalista" (Schmitt, 2007, p. 493). Neste sentido, também o conceito de humanidade seria "um instrumento particularmente idôneo às expansões imperialistas e é, na forma ético-humanitária, um veículo específico do imperialismo econômico" (Schmitt, 1972, p. 139). Com o dualismo que dividia o mundo em capitalismo e comunismo, cada um buscando a unidade do mundo a partir dos seus respectivos princípios, Schmitt via a predominância da política como um modo de administrar a economia de acordo com os interesses de cada Grossraum (cf. Joerges, 2003, p. 179). Assim, pode ocorrer que a economia não tenha sido tratada na sua Grossraumlehre para deixar espaço à autonomia das decisões dos "grandes espaços".

Christian Joerges apresentou duas razões lógicas que poderiam explicar o vazio substancial que Schmitt deixou nesta parte da sua teoria: (1) a visão nacional-socialista da Europa, a qual entendia que o espaço do Cabo Norte à Sicília, de Portugal aos Urais, fazia parte do Grossraum submetido ao poder do Império alemão, não tinha como prioridade a institucionalização de urna espécie de racionalidade econômica, técnica ou política; (2) após Schmitt ter abandonado a teoria tradicional do direito internacional, ele não se encontrava mais em condições de identificar - e nenhum dos seus oponentes queria isto, menos ainda os membros do Terceiro Reich queriam - as estruturas fundamentais que deveriam desenvolver a função que o princípio de soberania não tinha mais a capacidade de exercer (cf. Joerges, 2003, p. 185). Por isto, tal vazio substancial não deve ser considerado como urna deficiência da sua teoria dos "grandes espaços", mas sim como um "espaço da prudência" de alguém que não queria ir além dos limites da neutralidade - seja como teórico, seja como cidadão.

5. Qual relevância atual do conceito de espaço para o direito internacional?

Não foi, certamente, a noção de Império ou o contexto histórico do surgimento da teoria schmittiana dos grandes espaços que merecem atenção no atual cenário das relações internacionais e do direito internacional. É o conceito de espaço que melhor legado pode deixar, sobretudo como alternativa ao de território na determinação das fronteiras de uma comunidade regional.

O momento em que Schmitt proferia a famosa conferência Völkerrechtliche Grossraumordnung mit Interventionsverbot für Raumfremde Mächte, em 1 de abril de 1939, era peculiar: a Alemanha havia anexado a Áustria no ano anterior e estava em pleno processo de expansão territorial rumo aos países vizinhos. Nada mais apropriado (ou oportunista) do que sustentar um direito internacional baseado em grandes espaços norteados pelo princípio da não interferência (Interventionsverbot) nos seus assuntos internos. Em estudo historiográfico acerca da doutrina jusinternacionalista alemã durante o Terceiro Reich, em especial quando trata da formação e orientação político-ideológica dos professores de direito internacional, Detlev Vagts ressalta que a grande parte deles possuía formação na própria Alemanha, traeos nacionalistas nos seus trabalhos, marcante influência ideológica contrária ao modo como se deu o Tratado de Versailles, e muitos haviam sido oficiais durante a I Guerra Mundial (cf. Vagts, 1990, p. 670). Em suma, Schmitt não estava sozinho na defesa de proposições teóricas contrárias a Versailles e ao sustentar ideias que fossem notadamente favoráveis ao Terceiro Reich. Todavia, origens nefastas não podem anular por completo os pontos positivos que urna teoria possa ter.

Se por, um lado, o conceito de Império é abominável aos dias atuais, vemos que, por outro, a excessiva vinculação ao referencial territorial termina por engessar o funcionamento e a dinâmica das relações internas nos principais modelos de comunidades regionais conhecidos. Introduzimos, em outro momento (cf. Teixeira, 2011), a tese da substituição da figura do Império por urna categoria intersubjetiva capaz de desempenhar a mesma função que o referido conceito exercia na teoria schmittiana. Enquanto as comunidades regionais possuem o território dos Estados dando as suas medidas, sustentamos que o conceito de espaço corresponde mais a urna realidade dinâmica e flexível - como a realidade apresentada pela globalização - do que o conceito de território, de modo que um "espaço regional", em vez de urna "comunidade regional", poderia se constituir em instância intermediária entre os Estados nacionais e urna ordem propriamente supranacional e universal. Tal categoria intersubjetiva retiraria do grande espaço aquele que parece ser o seu maior vício: a centralidade exercida pelo Império - e o consequente vazio substancial a priori criado pela teoria schmittiana. No seu lugar figuraria a tradição histórico-cultural preponderante em determinada região e capaz de aproximar os povos envolvidos, pois essa comunidade regional (ou "espaço regional") estaria sustentada pelos fundamentos extrajurídicos, como fatores históricos, culturais, políticos, antropológicos e até mesmo étnicos (em sentido abrangente, certamente), responsáveis pela atribuição de identidade e de reciprocidade entre os indivíduos pertencentes aos países membros. A existência de urna tradição histórico-cultural comum a todos os membros de urna comunidade regional possibilitaria a esta suportar com maior estabilidade os momentos de crise.

Por óbvio, essa reinterpretação já foi proposta por nós em outra oportunidade e não nos cabe aqui retomar todos os argumentos teóricos que a fundamentam. O que desejamos é conservar nosso foco na possibilidade de pensarmos as relações internacionais a partir do conceito de espaço, permitindo que maior flexibilidade e "liquidez", parafraseando Baumann, sejam dadas às comunidades regionais existentes. É notório que - e parece não ter sido criada alternativa mais adequada até o momento - os processos de integração regional estão muito vinculados ao decisionismo político e às contingências sociopolíticas do momento de celebrado dos acordos e tratados internacionais, mesmo quando eles são constitutivos de urna comunidade regional, por exemplo.

Todavia, a vinculado restrita ao elemento objetivo território para a definição das relações de urna comunidade regional acaba gerando algumas dificuldades. Em primeiro lugar, o quadro de Estados que inicialmente celebraram determinado tratado constitutivo costuma ser pouco adaptável às necessidades dos países envolvidos e aos possíveis acréscimos de novos membros que poderiam ocorrer. Em segundo lugar, relações que não implicariam na incorporado de novo membro, como as econômicas com agentes não-estatais (empresas multinacionais ou transnacionais), geralmente são limitadas pela necessidade de aceitação do acordo por parte de todos os membros e em proveito comum. Em terceiro lugar, caso ocorra grave crise política ou econômica em algum Estado membro, toda a comunidade pode ruir, pois os processos de integração são pensados em proveito de conquistas sociais, políticas e econômicas, bem como no desenvolvimento em conjunto de todos os envolvidos, colocando a solução de graves crises internas de determinado Estado como um problema a ser solucionado internamente ou em caráter de exceção. Veja-se a peculiar situação na qual se encentra inserida a União Europeia: o velho sonho de urna Europa unida perpassou diversos níveis e âmbitos de integração, gerando um modelo de comunidade regional com profunda interdependência entre seus Estados membros. Mesmo diante de grandes desigualdades entre algumas economias internas, a União Europeia construiu seu sistema financeiro com base na unidade monetária entre seus membros, equiparando realidades internas com pouco em comum. Como resultado, a crise econômica mundial, iniciada em 2008, coloca em discussão a própria existência da União, pois cada vez mais críticos alardeiam sobre a inviabilidade de manutenção do Euro e do sistema financeiro europeu. Independentemente de serem tais previsões pessimistas demais ou não, há de se reconhecer que, dentro da atual estrutura do sistema de unidade monetária, a grave crise econômica de um Estado membro precisa ser suportada pela União, sob pena de provocar urna desvalorizado cambial irreversível.

Em um modelo de integração menos territorializado e mais vinculado a elementos com maior proximidade em relação às tradições históricas específicas dos Estados membros, situações extremas de crise (política ou econômica, por exemplo) poderiam ser enfrentadas com expedientes versareis e que não implicassem em urna crise pandêmica ou eventual dissolução total da comunidade regional. Níveis escalonados de vinculação a esta permitiriam estabelecer o modo como se dariam os processos de integração: a unidade monetária ficaria restrita aos Estados com caracteres macroeconômicos similares, colocando em urna outra esfera de integração as economias mais frágeis. Isso poderia ser interpretado por olhos míopes como um critério discriminatório de ordem econômica dentro de urna comunidade regional, mas tais olhos precisara enxergar que desigualdades não desaparecem com a mera determinado de urna igualdade monetária e econômica dentro de urna comunidade regional. É necessário utilizar a força político-econômica dos Estados mais potentes para que estes suportem graves crises com maior solidez, permitindo que o foco das atenções fique limitado às economias mais frágeis, estas que poderão contar com a comunidade regional como urna espécie de fundo garantidor das suas economias internas. Entretanto, referimos aqui este tema econômico apenas a título ilustrativo do nosso argumento central e para reforçar o que estamos sustentando.

Considerações finais

Esperamos ter apresentado um breve panorama do pensamento schmittiano acerca das relações internacionais e do direito internacional, concentrando nossa atenção no conceito de grande espaço por ele introduzido às vésperas da Segunda Guerra Mundial. A Academia tem o poder de sacralizar autores desprovidos de luzes e relegar ao degredo brilhantes trabalhos de outros que não eram tão populares ou politicamente corretos. Schmitt foi, certamente, um indivíduo ideologicamente vinculado a um dos regimes políticos mais bárbaros que já se teve notícia. No entanto, como constitucionalista foi, provavelmente, o mais notável desde o surgimento desta disciplina, tanto que sua polêmica com Kelsen sobre o conceito de soberania serviu apenas para mostrar a fragilidade de argumentos fundamentais ao pensamento deste. Como jusinternacionalista - ainda que essas duas disciplinas possuam muito em comum - legou obra de rara genialidade e clarividência: Der nomos der Erde.

Afastando-se de questões pessoais, cabe ao pesquisador contemporâneo encontrar as melhores alternativas para os problemas que seu objeto de estudo oferece, ainda que isso importe em beber nas mais variadas fontes. Caso fossem acometidas por excessivos pudores, áreas como a Medicina e a Farmácia, por exemplo, jamais teriam atingido o atual grau de evolução -ressalte-se que não estou querendo legitimar os meios pelos resultados; mas apenas dar destaque a um fato posto. Nesse sentido, buscamos em Schmitt, um dos mais controversos juristas do sáculo XX, um conceito que se mostra cada vez mais válido para as relações internacionais: espaço. Mais do que fazer urna mera revisão bibliográfica, pretendemos ter oferecido um breve estudo que possa provocar reflexões acerca dos temas - e dos autores - em questão.


Referências

BENDERSKY, J. W. (1989). Carl Schmitt teorico del Reich. Bologna: il Mulino.         [ Links ]

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