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Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas

Print version ISSN 0120-3886

Rev. Fac. Derecho Cienc. Polit. - Univ. Pontif. Bolivar. vol.49 no.131 Medellín July/Dec. 2019  Epub Mar 26, 2020

https://doi.org/10.18566/rfdcp.v49n131.a02 

Artículos

Eu sou o rio, o rio sou eu: a atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais ambientais

Yo soy el río, el río soy yo: la atribución de personalidad jurídica a los bienes ambientales naturales

I am the river; the river is me: the attribution of legal personhood to environmental natural entities

Je suis la rivière, la rivière est moi: l'attribution de personnalité juridique aux bien environnementaux naturels

Rodrigo Henrique Branquinho Barboza Tozzi* 

*Especialista (Lato Sensu) em Direito Ambiental (FMU), Faculdade de Direito de Franca, Franca, São Paulo, Brasil. rodrigo_hen@yahoo.com.br


Resumo

Um dos grandes debates jurídicos da atualidade consiste na atribuição de personalidade jurídica aos bens ambientais, como rios, lagos, montanhas. Alguns países editaram normas legais reconhecendo os bens naturais - ou o meio ambiente de forma geral - como entes com personalidade jurídica, criando, assim, situações inovadoras no gerenciamento e proteção dos recursos naturais. Tendo em vista tais exemplos, este trabalho visa analisar a possibilidade de atribuição de personalidade jurídica aos bens ambientais, estudar as experiências estrangeiras e, por fim, considerar a possibilidade de sua aplicação no direito brasileiro.

Palavras-chave: Bens ambientais; atribuição de personalidade jurídica; proteção ambiental; preservação ambiental; pessoa jurídica especial

Resumen

Uno de los grandes debates jurídico de la actualidad consiste en la atribución de personalidad jurídica a los bienes ambientales, tales como ríos, lagos, montañas. Algunas naciones editaron normas legales que reconocen los bienes naturales - o el medio ambiente en general - como entidades con personalidad jurídica, así se crearon situaciones innovadoras en la gestión y protección de los recursos naturales. Teniendo en cuenta estos ejemplos, el presente trabajo tiene como objetivo examinar la posibilidad de otorgar estatus legal a los bienes ambientales, estudiar las experiencias extranjeras y, por último, considerar la posibilidad de su aplicación en la legislación brasileña.

Palabras clave: Bienes ambientales; atribución de personalidad jurídica; protección ambiental; preservación del medio ambiente; persona juridica especial

Abstract

One of the major legal debates of our times centers around the attribution of legal personhood to natural entities, such as rivers, lakes and mountains. Some nations have edited laws which recognize natural entities - or the environment in general - as entities with legal personhood. Hence creating innovative situations in the management and protection of natural resources. Taking these examples into consideration, the present paper aims to examine the possibility of providing legal status to natural entities, study foreign experiences and, lastly, consider their application in the Brazilian legislation.

Key Words: Natural entities; attribution of legal personhood; environmental protection; environmental preservation; special legal personhood

Résumé

Un des grands débats juridiques de l'actualité consiste en l'attribution de la personnalité juridique aux biens environnementaux, comme les rivières, les lacs et les montagnes. Certaines nations ont rédigé des normes légales qui reconnaissent des biens naturels -ou l'environnement en général- comme des entités dotées d'une personnalité juridique. Ainsi, se sont créées des situations inédites dans la gestion et la protection des ressources naturelles. En tenant compte de ces exemples, cet article a pour objectif d'examiner la possibilité de donner ces statuts légaux aux biens environnementaux, d'étudier les expériences étrangères et, pour finir, de considérer la possibilité de son application dans la législation brésilienne.

Mots clés: Biens environnementaux; attribution de personnalité juridique; protection de l'environnement; préservation de l'environnement; personnalité juridique spéciale

Introdução: eu sou o rio

Ko au te awa, ko te awa ko au, "eu sou o rio, o rio sou eu".

Provérbio maori

As pessoas naturais têm certos direitos legais desde o nascimento, direitos tais que se expandem até sua maioridade. Uma pessoa jurídica refere geralmente a uma entidade que não é um ser humano, mas sobre a qual a sociedade decidiu conferir direitos e obrigações específicas, numa evolução do pensamento jurídico.

Por que, então, não se pode pensar em atribuir personalidade jurídica a coisas tão vivas como os rios, que são símbolo de toda a vida que eles sustentam: fauna, flora e até mesmo o homem, que tira sua subsistência do rio, que faz do rio sua fonte de lazer?

Numa análise do direito estrangeiro, em países como Equador, Bolívia e Nova Zelândia editaram normas que dão personalidade jurídica à natureza. Esses três países inovam, ao trazer a concepção de um novo sujeito de direito, qual seja, a natureza. De acordo com Nogueira e Dantas (2012), trata-se de "uma visão global e integrada do ser humano, imerso na comunidade terrestre, que inclui, além dos seres humanos, o ar, a água, o solo, a fauna, a flora e demais elementos naturais" (Nogueira e Dantas, 2012, p. 1).

A visão jurídica tradicional considera a natureza como propriedade e fonte de matéria prima a ser extraída e utilizada para fins econômicos. Muitas vezes, a proteção ambiental é vista somente como justificável e necessária apenas para a defesa dos direitos e interesses dos seres humanos. No entanto, tal visão é incompatível com a sustentabilidade ambiental a longo prazo, dadas as limitadas capacidades do meio ambiente para sustentar as demandas humanas atuais. De acordo com Gomes,

A espécie humana tem um natural ascendente sobre as outras espécies, naturais e vegetais. Porém, isso não significa que seja "dona do mundo", mas apenas investe o Homem num estatuto de habitante privilegiado do planeta. Isso não o desresponsabiliza, antes o investe num especial dever de preservação do meio ambiente - que não implica, obviamente, prescindir da utilização dos recursos naturais em nome da sua intangibilidade, o que seria totalmente irrealista (Gomes, 2010, p. 31).

Para Recasens (2013), cria-se um consenso sobre a percepção de que a era do desenvolvimento - inaugurada em 1949 pelo presidente norte-americano Harry S. Truman - está chegando ao fim. De acordo com o autor,

Factores como la lucha agónica contra el calentamiento global del planeta, el inexorable agotamiento de las reservas de combustibles fósiles (o cuando menos, del petróleo barato) o la magnitud del hambre estructural han alimentado el debate sobre la manifiesta inviabilidad del paradigma de crecimiento económico surgido de la Segunda Guerra Mundial. La alucinación colectiva que permitió creer durante décadas que el american way of life (con sus brutales patrones de consumo y contaminación per cápita) podría llegar a universalizarse algún día parece haberse disipado, obligándonos a asumir una realidad insoslayable: el modelo de desarrollo de los países más ricos no es generalizable en el espacio y ni siquiera es prorrogable en el tiempo (Recasens, 2013, p. 2).

É preciso ter em mente que, ao se atribuir personalidade jurídica ao meio ambiente - ou a seus elementos - reconhecem-se os direitos do meio ambiente de existir separado do seu valor para o ser humano. Trata-se de seu valor intrínseco, ou seja, seu valor em si e por si mesmo, independentemente do uso ou função que pode ter na relação com outrem, incluindo o homem.

Como disposto no preâmbulo da Constituição do Equador (2008), a Pacha Mama (Mãe Terra), da qual todos são parte, é vital para a existência, é por isso que viver em harmonia com a natureza (e não a sobrepujar) é a forma de alcançar o buen vivir, que é a "7a satisfacción de las necesidades, la consecución de una calidad de vida y muerte digna, el amar y ser amado, el florecimiento saludable de todos y todas, en paz y armonía con la naturaleza". De acordo com Nogueira e Dantas (2012), o buen vivir

É de fundamental importância para mudança de paradigmas jurídicos e políticos de um Estado, modificando as estruturas universalistas e monodirecionais em que se transcrevem as atividades estatais para uma compreensão holística e integrada entre ser humano e natureza (Nogueira e Dantas, 2012, p. 1).

Em última instância, essa visão integrada entre homem e natureza é a visão tradicional indígena, para quem a natureza é um ser vivo. Além do mais, para os nativos, não há dissociação de sua existência com a natureza. Convivem e compartilham com ela a construção de seus modos de viver, seus costumes e tradições.

Por conseguinte, ao utilizar essa perspectiva indígena, tradicional, é que se reconhece que um rio, por exemplo, é um ser vivo titular de personalidade, titular de direitos e garantias. Trata-se de dar uma proteção maior a esse bem ambiental, agindo sempre no melhor interesse deste bem. Da mesma forma, é respeitar seu valor em si e por si, independentemente do uso ou função que possa ter em relação aos homens. Rãwiri (2009) salienta:

And so we go back to The River, and The River is the beginning, the beginning for our people from The Mountains to The Sea. It ties us together like the umbilical cord of the unborn child. Without that, it dies. Without that strand of life it has no meaning. The River is ultimately our mana, our tapu, our ihi, our wehi; all these things make up what The River means to us. It is our life cord, not just because it's water - but because it's sacred water to us. (Rãwiri, 2009, p. 43).

Sem rio, dessa forma, não há sentido, não há ligação entre natureza e humanos nem sequer entre os humanos.

1 O que é personalidade jurídica?

A personalidade jurídica é atributo essencial para ser sujeito de direitos e obrigações. "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil", como previsto no artigo 1° do Código civil brasileiro de 2002 (Código civil brasileiro, 2002, art. 1).

De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2010) a personalidade jurídica é a "aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito" (Gagliano e Pamplona Filho, 2010, p. 124).

Esses direitos incluem, por exemplo, o direito de celebrar contratos, de não sofrer danos perante outros, bem como as obrigações de cumprir a lei, direito à imagem, ao nome, entre outros. Quando os direitos de um indivíduo são violados, este pode buscar reparação por meio do Poder Judiciário.

Como o artigo 1° do Código Civil (Código civil brasileiro, 2002, art. 1) não distingue a pessoa, se natural ou jurídica, portanto, deduz-se que as pessoas jurídicas, também, possuem personalidade.

Evidentemente, não sendo uma pessoa natural, com corpo, inteligência e vontade própria, a pessoa jurídica sofre certas limitações em decorrência de sua natureza. Assim, tem direito ao nome, à própria existência, a ser proprietária, a usufruir, a contratar, a comprar, mas não tem direitos a contrair casamento, a liberdade de pensamento, a votar, a ser eleito, entre outros direitos de personalidade exclusivos da pessoa natural. Não tem, também, aptidão para exercer pessoalmente os seus direitos dado que não possuem capacidade de fato. A pessoa jurídica, como sujeito de direito, é uma realidade social, investida de direitos pela ordem jurídica, com a finalidade de realizar certos fins.

Como ensina Gonçalves (2015), "as pessoas jurídicas são realidades vivas e não mera abstração, tendo existência própria como os indivíduos" (Gonçalves, 2015, p. 220). No entanto adverte Venosa (2015), que as pessoas jurídicas são reais, "porém dentro de uma realidade que não se equipara à das pessoas naturais" (Venosa, 2015, p. 250).

2. Bens ambientais como sujeitos de personalidade jurídica

O direito de propriedade se baseia na ideia de que o meio ambiente é um recurso que se pode explorar como se quiser. Qualquer valor colocado no meio ambiente é medido em termos do valor que se pode derivar de seu uso, ou de sua importância para os seres humanos.

Conforme o ordenamento jurídico brasileiro, a terra pode ser comprada por qualquer pessoa, seja ela natural ou jurídica. O proprietário adquire o direito de usar, gozar e dispor da terra, dentro dos limites legais e da função social da propriedade (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 5°, XXIII; Código Civil brasileiro, 2002, artigo 1.228, § 1°). Nem a própria terra, nem as plantas ou animais que a habitam, todavia, têm qualquer direito para que seja permitido que vivam e floresçam, que se desenvolvam. A terra não possui valor inerente legalmente reconhecido além do uso da pessoa proprietária.

Dar personalidade jurídica aos bens ambientais é reconhecer que os recursos ambientais são finitos e que a raça humana é parte - e não proprietária - de um ecossistema. A concessão de direitos a um bem ambiental significa reconhecer que este bem é valioso por si mesmo, sem haver qualquer necessidade de medir esse valor em termos de sua utilização para os seres humanos.

Personalizar o meio ambiente é aumentar sua teia de proteção. Como bem ensina Silva (2004), o objeto do direito de todos, previsto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 225) não é o meio ambiente em si, mas sim "o meio ambiente qualificado" (Silva, 2004, p. 83), ou seja, o meio ambiente ecologicamente equilibrado. O objeto deste direito fundamental é um meio ambiente hígido, favorável à boa qualidade de vida. O equilíbrio ecológico é apenas uma das condições para que o meio ambiente se torne sadio.

O meio ambiente é bem de uso comum do povo, como disposto no artigo 225 da Carta Magna de 1988: "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo" (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 225). Cabe ao Poder Público, em conjunto com a sociedade em geral, escolher como gerir os bens ambientais. É importante frisar que o Poder Público é o responsável, em primeira instância, por criar ou reforçar a legislação, de modo que esta "facilidade" dê a este Poder um espaço livre para determinar o que fazer com o meio ambiente, para gerir - ou mal gerir - os recursos ambientais.

Reconhecer os direitos dos bens ambientais também envolve restrições de práticas ou atividades que podem ser consideradas como destrutivas ou indesejáveis, que podem comprometer o frágil equilíbrio do ecossistema. Obviamente, mesmo que concedido ao bem ambiental o direito de, juridicamente, existir e se desenvolver, isso não significa que atividades não possam ser desenvolvidas, como o turismo, o lazer, as pesquisas científicas, entre outros, mas sempre devendo prevalecer o direito do bem a não ser danificado.

Ademais, reconhecer a personalidade jurídica de um bem ambiental significa reconhecer o direito de todos a usufruir da higidez ambiental. Reconhece-se, também, o direito das futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, exatamente como apregoado pelo artigo 225 da Constituição Federal (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 225).

A personalidade jurídica dará aos bens ambientais vários direitos. O tipo e a extensão desses direitos poderão ser discutidos pela sociedade e os gestores -ou representantes do bem - podendo ser direitos gerais e direitos específicos, os quais podem variar de acordo com o bem ambiental.

Talvez o fator mais importante seja que o meio ambiente não fala por si, ao contrário das pessoas naturais totalmente capazes. Não pode recorrer, em seu favor, a qualquer instância, em nenhum dos Poderes. Não pode se queixar sobre como é tratado.

A lei determinará a imposição de sanção pela simples ocorrência do dano. Assim, por exemplo, se determinada pessoa desmata, de forma ilegal, mas não há qualquer tipo de fiscalização, o degradador continuaria a cometer o ilícito, eventualmente até chegar ao ponto em que o dano se torne irreversível.

Num processo, a indenização - seja ela material e/ou moral -, concedida pelo Poder Judiciário, possui dupla natureza: visa compensar o dano sofrido, atenuar o sofrimento da vítima, satisfazê-la do dano causado, ao mesmo tempo que tem natureza punitiva ao ofensor, servindo como sanção, cujo objetivo é o de desestimular a repetição do ato lesivo pelo causador do dano.

O dano, contudo, é tipicamente medido em termos de danos aos entes personalizados - pessoas naturais ou jurídicas -, mas não ao bem ambiental. Por exemplo, se a indústria polui um rio e afeta a qualidade da água, aniquilando a fauna e a flora local, afetando a população ribeirinha que utilizava esse rio para sua subsistência, tal indústria será obrigada a reparar e/ou indenizar pelos danos causados. Essa é a regra do artigo 14, § 1°, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n° 6.938 de 1981: "sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade" (Grifos nossos) (Lei n° 6.938, 1981, artigo 14, § 1°).

Se a reparação natural desse bem ambiental for impossível, ou se a recuperação natural não for suficiente para retornar o bem ambiental danificado à condição da linha base, ou seja, como se o dano não tivesse ocorrido -ou o mais próximo possível dessa situação -, o legislador previu então a sanção pecuniária, tentativa subsidiária de reparação de dano ambiental, que, no entanto, não atinge o objetivo maior, isto é, o da recuperação do dano ambiental. A vítima maior, qual seja, o rio degradado, permaneceria sem qualquer reparação.

A prova disso são os incisos VI e VII do artigo 4° da Lei n° 6.938 de 1981 que privilegiam a restauração ("VI - à preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas á sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida; VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos") (Lei n° 6.938, 1981, artigo 4°, VI e VII).

Como questiona Abelha Rodrigues (2003),

E se o meio ambiente já foi recuperado por si mesmo ou pela participação da população? E se o meio ambiente não é renovável naquele caso (extração mineral, por exemplo)? E se as espécies degradadas estiverem extintas? E se a verba arrecadada é oriunda também de ilícitos processuais cometidos no curso do processo? E se é fruto de danos extrapatrimoniais, como recuperá-los? Como escolher a melhor forma de recuperar o meio ambiente? Que pessoas deverão fazê-lo? (Abelha Rodrigues, 2003, p. 311)

Ao se atribuir personalidade jurídica a um bem ambiental, portanto, este bem ganha "voz ativa", por meio de representantes ou gestores, para agir em benefício do bem ambiental personalizado, por seu nome e somente por seu melhor interesse, inclusive podendo ingressar em juízo buscando indenização, ainda que seja somente moral.

Mesmo diante da impossibilidade de volta ao estado anterior do dano ambiental causado, remanesce ainda o dever de indenizar, para não deixar o dano sem resposta, para coibir novos danos e evitar que o poluidor aja de modo semelhante no futuro, impedindo-se, assim um novo desequilíbrio ecológico, além porque quem causa dano tem sempre o dever de repará-lo.

A personificação jurídica poderá permitir, deste modo, que o dano sofrido seja reconhecido e indenizado em favor do rio, ao invés de apenas serem indenizados seus efeitos sobre a comunidade afetada. A personalidade jurídica significa que ações judiciais para proteger a terra podem ser iniciadas em nome da própria terra, sem a necessidade de que seja demostrado danos a terceiros.

2.1 Experiências estrangeiras

O instituto da personalidade jurídica dos bens ambientais enquanto mecanismo de proteção dos ecossistemas é ainda uma área de desenvolvimento no direito; embora a ideia de conceder direitos ao ambiente não seja nova. Existem vários precedentes nos quais esta iniciativa se baseia, tais como: Equador, Bolívia e Nova Zelândia. Outros, como a Índia, buscam implementar a lei buscando o reconhecimento legal de bens naturais, conforme se verifica seguidamente:

2.1.1 Equador

A Constitución de la República del Ecuador, de 2008, avança além das fronteiras do antropocentrismo e, se inspirando na cosmovisão dos povos andinos - nomeada no preâmbulo constitucional a Pacha Mama -, reconhece os direitos da própria natureza, ao estabelecer uma ruptura radical com toda a tradição da jus-filosofia, para qual os direitos pertencem apenas às pessoas naturais ou jurídicas. Assim, os bens ambientais deixam de ser simplesmente propriedade, passando a ser entidades detentoras de direitos.

Consta no preâmbulo da Constitución de la República del Ecuador, de 2008, que o povo desse país celebra a natureza, a Mãe Terra, onde decidiu construir uma forma de convivência cidadã, em harmonia com a natureza para alcançar o "buen vivir". Do mesmo modo, seu artigo 14 (Constitución de la República del Ecuador, 2008, artigo 14) aduz que é reconhecido o direito da população em vive rem um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, que garanta a sustentabilidade e o "viver bem".

O artigo 10, por sua vez, aduz que:

Las personas, comunidades, pueblos, nacionalidades y colectivos son titulares y gozarán de los derechos garantizados en la Constitución y en los instrumentos internacionales.

La naturaleza será sujeto de aquellos derechos que le reconozca la Constitución. (Grifos nossos) (Constitución de la República del Ecuador, 2008, artigo 10).

Ademais, dedica os artigos 71 a 74 (Constitución de la República del Ecuador, 2008, artigos 71-74), aos "direitos da natureza", ao expressar no art. 71 que "La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos" (Constitución de la República del Ecuador, 2008, artigo 71).

Além disso, institui que a natureza tem o direito a restauração, que é independente da obrigação que tem o Estado e as pessoas físicas ou jurídicas de indenizar os indivíduos ou coletividades que dependam dos sistemas naturais afetados (Constitución de la República del Ecuador, 2008, artigo 72).

2.1.2 Bolívia

Seguindo a tendência do Equador, em 2009, a Bolívia promulgou a Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia, onde também se busca o "buen vivir", promovendo este princípio ético-moral (Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia, 2009, artigo 8°, I) como parte essencial do Estado. A Constituição de 2009 consagra dois artigos sobre "derecho al medio ambiente" (Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia, 2009, artigos 34 e 35).

Extravasando o campo constitucional, a Bolívia, em 2010, promulgou a Ley 071 de 2010, Ley de Derechos de la Madre Tierra (Ley 071, 2010), que tem como objetivo, reconhecer os direitos da Mãe Terra (Ley 071, 2010, artigo 1°).

La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un destino común. (Ley 071, 2010, artigo 3°).

O artigo 5° (Ley 071, 2010, artigo 5°) mostra que para efeitos de proteção e tutela de seus direitos, são atribuídos a Mãe Terra direitos de pessoa jurídica de direito público, onde a Mãe Terra e todos seus integrantes - incluindo as pessoas naturais - são titulares de todos os direitos reconhecidos por esta lei.

No que tange ao exercício desses direitos, o artigo 6° (Ley 071, 2010, artigo 6°) dispõe que todos os bolivianos, ao ser parte da comunidade dos seres que compõem a Mãe Terra, exercem os direitos previstos na presente lei de acordo com seus direitos individuais e coletivos, limitando o exercício dos direitos individuais pelo exercício de direitos coletivos nos sistemas de vida da Mãe Terra, onde qualquer conflito entre os direitos deve ser resolvido de modo a não afetar, de modo irreversível, a funcionalidade dos sistemas vivos da Terra.

Por sua vez, o artigo 7° (Ley 071, 2010, artigo 7°) elenca os direitos da Mãe Terra: à vida; à diversidade da vida; a água (que é o direito de preservar a funcionalidade do ciclo da água); ao ar puro; ao equilíbrio; à restauração; a ser livre de contaminação. Isto é, o direito à preservação de contaminação da Mãe Terra de qualquer um dos componentes e resíduos tóxicos e radioativos gerados pelas atividades humanas.

Em 2012, o Estado boliviano editou a Ley 300 (Ley 300, 2012), a Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Intregral para Vivir Bien, cujo objetivo é estabelecer os fundamentos do desenvolvimento integral em harmonia e equilíbrio com a Mãe Terra (Ley 300, 2012, artigo 1°).

Esta lei confirma os direitos da Mãe Terra como pessoa jurídica de direito público (Ley 300, 2012, artigo 4°, I, "a"). Igualmente, aduz que as funções ambientais e os processos naturais de componentes e sistemas de vida do Planeta não são considerados como mercancia, mas como presentes ("dons") sagrados da Mãe Terra.

2.1.3 Nova Zelândia

Em Nova Zelândia, foi concedida personalidade jurídica ao Parque Nacional de Te Urewera e ao Rio Whanganui e seus afluentes, resultado de acordos entre o governo da Nova Zelândia e grupos Maori.

Te Urewera é um parque nacional, e recebeu personalidade jurídica por meio do "Te Urewera Act", de 2014, dando ao parque, "todos os direitos, poderes, deveres e responsabilidades de uma pessoa jurídica" (Te Urewera Act, 2014, sessão 11). Uma diretoria ("Te Urewera Board") foi então estabelecida para atuar como "guardiã" de Te Urewera e para proteger seus interesses.

A finalidade do Te Urewera Act é estabelecer e preservar, de forma perpétua, uma identidade jurídica e um status de proteção para Te Urewera, por seu valor intrínseco, seus valores naturais e culturais, a integridade desses valores e sua importância nacional e, em particular, reforçar e manter a ligação entre Tühoe (povo Maori da região) e Te Urewera; preservar as características naturais e a beleza de Te Urewera, a integridade de seus sistemas ecológicos indígenas, sua biodiversidade e seu patrimônio histórico e cultural e prever Te Urewera como um local de uso e gozo público, para recreação, aprendizagem e reflexão espiritual. Outrossim, o status de parque nacional foi removido por esta lei, de acordo com a sessão 12 (Te Urewera Act, 2014, sessão 12).

De forma similar, o povo Maori conseguiu resultados semelhantes para o rio Whanganui e seus afluentes, sob a cosmovisão Maori do "eu sou o rio, e o rio sou eu". Nos termos do "Te Awa Tupua (Whanganui River Claims Settlement) Bill", de 2017, o rio recebe status legal sob o nome "Te Awa Tupua". Te Awa Tupua é reconhecido como um todo indivisível e vivo, compreendendo o Rio Whanganui das montanhas ao mar, e incorporando todos os seus elementos físicos e metafísicos, "declarado ser uma pessoa jurídica" (Te Awa Tupua (Whanganui River Claims Settlement) Bill, 2017, sessão 14), com todos os direitos, poderes, deveres e responsabilidades. Dois guardiões, um da Coroa e um do povo Whanganui, receberão o papel de proteger o rio. Este tratado reconhece a interconexão intrínseca entre o Rio Whanganui e a população ribeirinha, considerando que a saúde e o bem-estar deste rio estão intrinsecamente interligados com a saúde e bem-estar do povo.

2.1.4 Índia

Na Índia, um grupo chamado "Ganga Action Parivar" busca implementar o "National Ganga Rights Act", que visa reconhecer os direitos da bacia do rio Ganges.

De acordo com este grupo, as leis ambientais indianas atuais não são adequadas para proteger o rio, que também sustenta a vida de cerca de 500 milhões de habitantes.

A " National Ganga Rights Act" propõe estabelecer, proteger e defender os direitos inalienáveis e inerentes do rio Ganges, seus afluentes e bacias hidrográficas de existir, prosperar, regenerar e evoluir, bem como estabelecer os direitos das comunidades, e outros ecossistemas para um rio saudável.

2.1.5 Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra

Realizada em 2010 na Bolívia, a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra é entendida como uma resposta ao fracasso das conversações ocorridas em Copenhague durante a 15a reunião da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009 (COP15).

Essa Conferência resultou na Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, que dispõe que, assim como os seres humanos têm direitos humanos, todos os outros seres também têm direitos que são específicos à sua espécie e adequados ao seu papel e função dentro das comunidades em que existem (Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, 2010, artigo 1°, 6), e que os direitos inerentes à Mãe Terra são inalienáveis "na medida em que surgem da mesma fonte da existência" (Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, 2010, artigo 1°, 4).

O artigo 2° (Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, 2010, artigo 2°) elenca os direitos do Planeta e de todos os seres: o direito à vida e a existir; o direito a ser respeitado; o direito a regenerar a sua bio-capacidade, a prosseguir os seus ciclos vitais e processos livres de perturbações humanas; o direito de manter sua identidade e integridade como um ser distinto, auto-regulador e inter-relacionado; o direito à água como fonte de vida; o direito ao ar limpo; o direito à saúde; o direito a estar isento de contaminação, de poluição e de resíduos tóxicos ou radioativos; o direito de não ter sua estrutura genética modificada ou interrompida de forma a ameaçar sua integridade ou seu funcionamento vital e saudável; o direito a um restabelecimento completo e imediato das violações dos direitos reconhecidos pela Declaração, decorrentes de atividades humanas.

2.1.5 Declaration des Droits de L'arbre

Em 5 de abril de 2019, a França, entendendo que as árvores são seres vivos dignos de proteção jurídica, proclamou a déclaration des droits de l'arbre (2019), a declaração dos direitos das árvores.

Em 5 artigos, é ressaltado que a árvore é um ser vivo, que possui o direito de se desenvolver e reproduzir livremente, ocupando dois ambientes distintos, a atmosfera e o solo, e que por isso, desempenha um papel fundamental no equilíbrio ecológico do planeta. E nessa condição, não pode ser tratada como um simples objeto, devendo ser respeitado seu direito a integridade física, tanto de seu tronco e folhagens como de suas raízes.

A declaração protege ainda aquelas árvores que são consideradas "notáveis", seja por sua idade, aparência ou história, verdadeiros "monumentos naturais", como o texto da declaração. E por isso, podem se beneficiar de uma maior proteção.

2.2 Crítica

Como todo tema polêmico, atribuir personalidade jurídica para bens ambientais é motivo de crítica.

Cruz (1997), por exemplo, já ensinou que:

Não vemos real utilidade na atribuição de personalidade jurídica aos elementos ambientais. (...) A ficção seria evidente, pois a definição do que sejam os interesses da natureza ou de cada um dos seus elementos em cada momento, dependerá sempre da razão humana, produto combinado do conhecimento científico e tecnológico, dos valores então dominantes e da nossa interpretação do real (Cruz, 1997, p. 9).

Ninguém fala a linguagem da natureza, apenas ela própria. O homem não fala a língua da natureza, mas faz parte dela e os sinais são visíveis. O conhecimento científico e tecnológico dos dias atuais permite entender os rios, as florestas, dando ao homem melhores condições de estudar o bem ambiental, suas interações ecossistêmicas e poder definir, com segurança, quais são os melhores interesses do bem ambiental. Significa atribuir ao homem a responsabilidade que lhe cabe na proteção e defesa do meio ambiente, na preservação da Pacha Mama, da Mãe Terra, utilizando todas as ferramentas para proteger o meio ambiente.

Finalmente, os seres humanos não são os únicos membros do Planeta; portanto, não são os únicos a terem direitos. Dentro do ecossistema terrestre, o bem-estar do planeta como um todo é primordial. Nenhum dos componentes da biosfera pode sobreviver fora desse ecossistema. O bem-estar de cada membro do Planeta é, portanto, derivado do bem-estar da Terra. Por conseguinte, ainda que pelas mãos humanas, a definição do que seriam os interesses da natureza dependeria da razão, do conhecimento científico e tecnológico do homem. Da mesma forma, uma pessoa jurídica só tem capacidade de nascer e prosperar pelas mãos do homem. Mesmo titular de direitos, uma empresa, por exemplo, nem pode representar a si mesmo num tribunal, ou mesmo os tutores que representam os menores. Portanto, ficção, como ensina a autora, não é. Tem razão Euclides da Cunha quando escreveu em Os Sertões (2002):

Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável - o homem. Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos. (...)

Fez, talvez, o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável (Cunha, 2002, p. 44-46).

Vive-se em uma sociedade de risco onde o homem, causador do dano ambiental, tem o dever - não apenas jurídico, mas também moral - de reparar sua lesão. E mais, de evitar que futuras lesões venham a ocorrer. O futuro da humanidade depende disso.

Os sistemas jurídicos, políticos e econômicos das sociedades contemporâneas não impedem a destruição e a degradação da Natureza e, com ela, o bem-estar das gerações presentes e futuras.

Ao se atribuir personalidade jurídica ao meio ambiente (ou aos seus elementos), é reconhece-se o valor em si e por si mesmo do meio ambiente.

O Direito deve evoluir sem perder a consciência de que todas as espécies estão interligadas, inclusive o homem, e abandonar a ideia dos bens ambientais como algo totalmente submetido à vontade deste.

2.3 Breves considerações

Algumas considerações são necessárias depois de admitir a possibilidade de se atribuir personalidade jurídica a bens ambientais.

A primeira se refere a qual classificação dar-se-á a essa nova pessoa jurídica: se de direito público ou de direito privado. Pela natureza difusa do meio ambiente, por ser bem de interesse público, de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, a tendência é classificar os bens naturais como pessoas jurídicas de direito público. Seus atributos não podem ser de apropriação privada, ainda que seus elementos constitutivos pertençam a particulares. De acordo com Silva: "significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra a sua disponibilidade" (Silva, 2004, p. 84).

Outra questão a ser levantada é a atribuição de personalidade ao bem ambiental como um todo. A natureza está interligada, seus elementos se comunicam e vivem em simbiose. É impossível dissociar um rio de sua bacia, por exemplo. Se o rio deve ser separado do resto da natureza, onde serão seus limites? Em que ponto o rio se torna o mar? Qualquer estatuto terá que enunciar cuidadosa e precisamente, os limites desse rio.

Outra consideração a ser feita é no que se refere a como os direitos desse bem ambiental personalizado irá interagir com os direitos de terceiros, principalmente os direitos de propriedade. O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertence, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela imposta. No entanto, por ser bem de uso comum do povo, é um bem que não está na disponibilidade particular de ninguém, seja pessoa natural ou pública. Deve-se ter em mente uma visão pró-ambiente, do coletivo e não do individual. Além disso, o uso é a única faculdade conferida pelo artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 225), que é a "aplicação do próprio bem à satisfação das necessidades humanas (necessidades de saúde, vida digna e sadia, por exemplo)", conforme Piva (2000, p. 122).

O direito de propriedade é restringido por sua função social. Dessa forma, mesmo que um bem ambiental faça parte do domínio de alguém, este não pode exercer os direitos de propriedade em relação ao bem ambiental em sua plenitude. De acordo com Milaré e Loures:

A necessidade de concretização do direito ao ambiente saudável conduz, por outro lado, à reformulação de certos direitos personalíssimos, em especial o direito da propriedade, que passa a estar sujeito não apenas à vontade soberana do titular, mas também ao atendimento de sua função socioambiental (Milaré e Loures, 2005, p. 23-24).

Outra questão importante é em relação a sua representação. O bem ambiental, como pessoa jurídica, não tem rosto, no sentido de não poder representar a si próprio. A forma mais democrática de representação seria um colegiado formado por representantes do Poder Público, representantes dos povos indígenas, e representante da sociedade civil. É imperiosa a participação popular, uma vez que imprescindível a participação direta dos cidadãos na vida política por meio de canais de discussão e decisão.

É preciso considerar que o bem ambiental personalizado é uma pessoa jurídica especial, ou seja, ela é portadora apenas de direitos e garantias, mas não de responsabilidade, seja ela cível, administrativa ou penal. O nexo causal consiste no liame lógico entre fatos numa relação de causa e consequência. E a causa é sempre uma conduta humana, pois os eventos estritamente da natureza não geram responsabilização.

Por exemplo, o artigo 4°, I, "a", do Código Florestal brasileiro de 2012 (Lei 12.651, 2012, artigo 4°, I, "a"), considera Área de Preservação Permanente (APP) as faixas marginais de qualquer curso d'água natural perene e intermitente de 30 metros, para os cursos d'água de menos de 10 metros de largura.

Assim, se um indivíduo constrói nessa APP, assume o risco de, no caso de enchente, ter sua construção inundada. No entanto, se um indivíduo constrói em área além dessa delimitação legal, em caso de enchente, aplicam-se as excludentes do caso fortuito e de força maior, como fatos ou eventos imprevisíveis ou de difícil previsão, que não podem ser evitados; mas que provocam consequências ou efeitos para terceiros, sem gerar responsabilidade nem direito de indenização.

Em sentido semelhante, a pessoa que resolve mergulhar em rio de forte correnteza, assume o risco de se afogar. Ou seja, o bem ambiental pode ser sujeito ativo em eventual processo, mas nunca como sujeito passivo. Só a pessoa natural tem a capacidade de entender e querer, sendo a potencial consciência da ilicitude uma característica exclusiva da pessoa natural.

Por fim, levanta-se a possibilidade de haver um bem ambiental personalizado de direito público internacional, no caso de um rio pan-nacional, por exemplo, o rio Amazonas, que nasce no Peru, atravessa parte da Colômbia e termina no Brasil. As regras de representatividade, nesse caso, deverão contemplar nacionais dos três países, podendo haver eleição de foro em qualquer das nações.

3 Possibilidade de sua aplicação no direito brasileiro

A legislação ambiental brasileira é considerada das mais completas do mundo, no entanto, ao menos expressamente, não proíbe que seja atribuída personalidade jurídica ao meio ambiente. Em verdade, não prevê essa possibilidade.

Com a personalização jurídica, o meio ambiente continuaria a ter seu caráter difuso, pertencendo a todos. O ato de personalizar um bem ambiental não quer dizer que este bem passe para a esfera de propriedade de quem quer que seja. Conforme o artigo 2°, I, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente brasileira (Lei 6.938, 1981, artigo 2°, I), o meio ambiente é considerado como um "patrimônio público". O bem apenas passa a ter personalidade jurídica, continuando a ser usufruído por todos, sendo bem de uso comum do povo e direito fundamental de 3a geração.

O fato é que a proteção ambiental, muitas vezes, é tratada como uma limitação de projetos econômicos, ao invés de um objetivo inestimável de preservação dos recursos naturais, que são altamente valiosos e cada vez mais escassos.

A legislação ambiental estabelece regras gerais de proibições de se causar impacto ambiental significativo sobre os valores ambientais, mas até mesmo as atividades lícitas e permitidas podem causar dano e degradar o ambiente.

Um exemplo foram os problemas decorrentes da construção do porto de Açu, em São João da Barra (estado do Rio de Janeiro). De acordo com estudo da Universidade Norte Fluminense (2012), a construção de tal porto embora seja atividade lícita e muito bem-vinda para o desenvolvimento da região, provoca aumento da salinidade da água doce utilizada pelos agricultores da região, o que pode iniciar um processo de desertificação na região. Nesses casos, não se discute a legalidade ou licitude da atividade, mas sim, a sua lesividade ao meio ambiente. Para Nery Jr:

Ainda que haja autorização da autoridade competente, ainda que a emissão esteja dentro dos padrões estabelecidos pelas normas de segurança, ainda que a indústria tenha tomado todos os cuidados para evitar o dano, se ele ocorreu em virtude da atividade do poluidor, há o nexo causal que faz nascer o dever de indenizar (Nery Jr, 1984, p. 175).

Assim, eventual personalização serviria como mais uma barreira de proteção ambiental, uma vez que, por ser o dano tipicamente medido em termos de danos aos entes personalizados (pessoas naturais ou jurídicas), e não ao bem ambiental, apenas aqueles serão beneficiados em eventual ação de reparação de danos. Do mesmo modo, a única forma em que o dano ambiental fica satisfeito é com a recuperação natural. E mesmo assim, a recuperação natural não é um sistema perfeito, nunca é total, pois há os danos irreversíveis, causados, por exemplo, à flora e à fauna que se perdeu, estes realmente irrecuperáveis e até mesmo imensuráveis, mas sempre certos.

Desta forma, ao se atribuir personalidade jurídica a um bem ambiental, este bem ganha voz para poder agir em seu benefício, por meio de representantes, sempre e somente por seu melhor interesse.

Não se pode retirar direitos. E ao se personalizar o meio ambiente, não se retiram direitos. Ao contrário, acrescenta-se, como acrescenta-se mais uma barreira para a proteção do bem ambiental.

Conclusão

França, Equador, Bolívia e Nova Zelândia inovam ao estabelecer personalidade jurídica aos bens ambientais - ou à natureza de forma geral. Esses exemplos, no entanto, não foram projetados para dar mais direitos à natureza, mas sim, para que a natureza não seja concebida apenas como propriedade ou apenas como fonte de matérias primas. Refletem uma abordagem mais espiritual e de respeito pela natureza, bem como uma abordagem prática ao utilizar as concepções legais atuais de direitos e interesses para alcançar a melhor proteção.

Há que se reconhecer, nas leis ambientais brasileiras, o valor intrínseco do meio ambiente, como o Te Awa Tupua (Whanganui River Claims Settlement) Bill, de 2017, onde os "valores inatos" do rio serão reconhecidos e previstos na legislação; além disso, os "interesses" e "status" do próprio rio podem ser sustentados e representados.

Mais uma vez, o homem não fala a língua da natureza, mas faz parte dela. O conhecimento científico e tecnológico dos dias atuais, entretanto, permite compreender os bens ambientais e, desse modo, pode-se definir com segurança quais são os melhores interesses de tais bens.

Conferir personalidade jurídica a um bem ambiental permite que tal bem tenha capacidade de litigar em seu próprio nome, buscando seu melhor interesse. Embora a ação civil pública ou a ação popular tenham também o propósito de defesa ambiental, tais meios processuais podem não servir para proteger o valor intrínseco do meio ambiente. Além, o bem ambiental personalizado é uma classe especial de pessoa jurídica. Possui direitos e garantias, mas não possui obrigações e nem qualquer responsabilidade, em nenhuma esfera.

Finalmente, conferir personalidade jurídica aos bens ambientais expande a compreensão do que é possível. A fim de resolver os conflitos em torno das demandas políticas, econômicas e sociais, os seres humanos devem primeiro reconhecer coletivamente os limites do meio ambiente e perguntar à natureza: "o que é realmente possível?". Para se ouvir a resposta, poder-se-ia dar aos bens ambientais uma voz, uma personalidade. Afinal, "eu sou o rio, o rio sou eu".

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Cómo citar este artículo: Branquinho, R. H. (2019) Eu sou o rio, o rio sou eu: a atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais ambientais. Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas, 49 (131), pp. 255-277. doi: http://dx.doi.org/10.18566/rfdcp.v49n131.a02

Recebido: 13 de Março de 2017; Aceito: 10 de Junho de 2019

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