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Universitas Humanística

Print version ISSN 0120-4807

univ.humanist.  no.61 Bogotá Jan./June 2006

 

religões e religiosidades populares. o conflito religioso e a simbiose de ritos e performances entre neopentecostais e afro-brasileiros

Julio Cezar Benedito1

Universidade Católica de Brasilia (Brasil) jcezarb@uol.com.br

Recibido: 19 de agosto de 2005 Aceptado: 10 de noviembre de 2005

 


Resumo

Este trabalho visa apresentar, a partir de observações de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, a transformação do conflito religioso entre neopentencostais e seitas afro-brasileiras, com foco especial na «simbiose ritualística» que hoje ultrapassa os limites do sincretismo religioso. Busca-se explicar como a mencionada simbiose e a conseqüente espetacularização contribuem para o sucesso e expansão da Igreja Universal do Reino de Deus no território brasileiro.

Palavras chave: conflito, interação, neopentecostais e afro-brasileiros

 


Resumen

Este trabajo tiene como objetivo presentar, a partir de observaciones de campo realizadas en el Distrito Federal, la transformación del conflicto religioso entre neopentecostales y sectas afrobrasileñas, centrándose en la «simbiosis ritual» que excede los límites del sincretismo religioso. Se busca explicar como la mencionada simbiosis y la espectacularización consecuente contribuye al éxito y expansión de la Iglesia Universal del Reino de Dios en territorio brasileño.

Palabras clave: conflicto, interacción, neopentecostales, afro-brasileños.

 


Abstract

This work aims at presenting the transformation of religious conflicts between Neopentencostals and Afro-Brazilians sects, based on research and field studies carried out in the Federal District. Special emphasis is placed on the “ritualístic symbiosis” that today exceeds the limits of religious syncretism. The article intents to explain how the aforementioned symbiosis and subsequent spectacularization contribute to the success and expansion of the Universal Church of the Kingdom of God in the Brazilian territory.

key words: conflict, interaction, neopentecostals and afro-Brazilians, syncretism.

 


Introdução

Este trabalho visa apresentar a transformação do conflito religioso entre neopentencostais e seitas afro-brasileiras, no sentido da absorção e utilização das práticas destes últimos nos rituais dos primeiros, com foco especial na simbiose ritualística que hoje ultrapassa os limites do sincretismo religioso. Pretende-se evidenciar como esta simbiose, realizada através dos rituais de exorcismo, sessões de descarrego, cânticos evocativos, venda de artefatos religiosos e utilização de vestuário, tem contribuído para o processo de espetacularização dos rituais neopentencostais, notadamente da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A partir de observações de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal busca-se explicar como a mencionada simbiose e a conseqüente espetacularização contribuem para o sucesso da expansão da Igreja Universal do Reino de Deus no território brasileiro.

A Igreja Universal

Fundada em 1977 por Edir Macedo2, a neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus é a denominação que mais tem crescido nos últimos tempos no Brasil. Os números chegam a ser surpreendentes para uma instituição que tem pouco menos de três décadas de existência. Já em 1995, o Jornal do Brasil 3 afirmava que se fosse uma empresa, só com a arrecadação de seus fiéis, a Igreja ocuparia a 29ª colocação na relação dos maiores e melhores grupos privados do país. Ainda de acordo com este mesmo jornal, o faturamento anual da Igreja Universal do Reino de Deus era maior que o da Açominas, Norberto Odebrecht, Johnson & Johnson, Hoerscht, Kaiser e se igualaria a empresas do porte da Brahma e da Sadia.

Para uma igreja que começou numa ex-funerária no bairro da Abolição no Rio de Janeiro, o império econômico que possui hoje é espantoso. Dados de 1995 revelam a Igreja Universal dona de 01 banco, 02 jornais, 01 revista, 30 emissoras de rádio no Brasil e 05 no exterior, 01 rede de TV com 25 repetidoras, 2014 templos no país e 221 em 45 países de todos os continentes, três milhões de fiéis em território nacional, arrecadação estimada pela Associação Evangélica Brasileira (AEVB) – só em dízimos – de quase R$ 1 bilhão, 1 partido político em Portugal (Vieira, 1995:16), além de um reconhecido poder político no Brasil.

Reafirmando esta situação, a revista Veja, em reportagem publicada em 03/11/ 99, afirma que a arrecadação da Universal é grande o bastante para colocála na lista das 100 maiores empresas do país, à frente de grupos muito bem administrados e comercialmente agressivos, como a Arisco e a TAM.

Numa direta alusão ao império religioso de Edir Macedo, Gilberto Gil incendiou o ambiente de confronto com os afro-brasileiros ao satirizar os insistentes recolhimentos pecuniários de Macedo e seu grupo com a música sugestivamente intitulada Guerra Santa.

Ele diz que tem, que tem como abrir os portões do céu.
Ele promete a salvação
Ele chuta a imagem da santa, fica louco, pinel,
Mas não rasga dinheiro não.
Não lembra de nada, é louco.
Mas não rasga dinheiro,
Promete a mansão no paraíso, contanto que você pague primeiro.
Que você primeiro pague, dê sua doação.
E entre no céu levado pelo bom ladrão.

A despeito das criticas de Gil, a expansão da Igreja Universal do Reino de Deus deve, e pode ser explicada, em parte, pelas atualizações inovadoras do pentecostalismo que provocaram mudanças nos seus posicionamentos teológicos, litúrgicos, éticos e estéticos. Os neopentecostais estão preocupados não só com a vida espiritual, mas também com a vida aqui na terra, quanto à fruição dos bens deste mundo. As liturgias são mais emotivas e informais, a ética e a estética cristãs cada vez mais próximas da mundana.

Neste sentido, Silva menciona que: As promessas de salvação instantânea, intimidade com o dinheiro, tolerância em relação aos costumes dos fiéis, organização empresarial sofisticada, exploração dos meios de comunicação de massa e técnicas de persuasão enérgicas fazem dos neo-evangélicos o McDonald’s da religião contemporânea (1995:14).

Com rituais acessíveis e utilizando modernas técnicas de marketing de massa, a Igreja Universal do Reino de Deus segue arrebanhando uma quantidade cada vez maior de fieis às suas hostes. Colocando a religião em um espaço de consumo facilitado, desimpedindo o acesso a Deus e suas benesses, os universais vêm ganhando espaço na mesma medida em que geram acidas criticas ao seu açodado comportamento.

Segundo Freston (1993): A Igreja Universal do Reino de Deus é a combinação de igreja pentecostal e agência de cura divina, pois une a preocupação com as demandas particularistas e com a demanda espiritual de salvação. Neste sentido, pode-se perceber que os membros do culto estão altamente antenados à realidade social e econômica definida pela modernidade. Na medida em que oferecem ao individuo o conforto espiritual da salvação e, simultaneamente, alivio para os males e vicissitudes do mundo físico, via de regra no seu aspecto mais evidente, o financeiro.

Em um momento histórico marcado pelo crescimento da violência, comércio de drogas e criminalidade, que provocaram uma redução no fluxo turístico para o Rio de Janeiro, as massas passaram de um processo de desencanto para um outro de reencantamento4, representado pelo conservadorismo carismático católico, pelo fundamentalismo protestante, ou, mesmo, a opção pelas religiões afro-brasileiras, além da explosão de novos movimentos sincréticos, alguns pentecostais, dos quais Edir Macedo é uma de suas expressões mais completa 5.

É a essa população, que a Igreja Universal oferece um espaço para contato, ritos de estimulação e encorajamento, apresenta formas de canalização do descontentamento e de minimização da baixa auto-estima. Em seus templos, as pessoas encontraram uma ideologia que se propõe propulsora de ascensão social e, ao mesmo tempo, discursos apropriados para a mistificação das causas que geraram doença, pobreza e miséria. Desenvolvendo seu trabalho com valores da religiosidade popular brasileira, e de seus mitos, a Igreja Universal do Reino de Deus retomou antigos argumentos que atribuem ao diabo a causalidade única por todos os males.

Nas reuniões de libertação, que acontecem especialmente às sextasfeiras, às 19:00 horas, as pessoas têm suas vidas transformadas por intermédio das orações, que têm o poder de expulsar os espíritos opressores. Ao se manifestarem, eles confessam as inúmeras maldades praticadas para destruir a vida sentimental, familiar, física e financeira da vítima. Os encostos são obrigados, pela autoridade do Nome de Jesus, a se identificarem e, aos berros, costumam revelar também o intuito de destruir sua vítima (Folha Universal, 07/05/2003).

A essa altura, o empreendimento religioso já está dotado de um dinamismo, que pode se antepor às estratégias de organizações e movimentos religiosos organizados. A Igreja Universal, ao penetrar num campo religioso desde há muito tempo em funcionamento, precisou travar batalhas para desalojar concorrentes, até porque um de seus objetivos era assumir um papel que fosse o mais hegemônico possível em sua área de atuação. Sem dúvida, o seu sucesso está atrelado ao pluralismo e à competitividade da pós-modernidade. Neste sentido, Wood Jr. afirma que:

Emergem novos modelos de gestão, caracterizados pelo emprego maciço de linguagem simbólica e pela disseminação das técnicas de impressão. As organizações contemporâneas, com seus gerentes simbólicos, rituais de passagem, controle por intermédio da cultura, interação virtual e profusão de símbolos, podem ser caracterizadas como teatrais... Mais que isso, pela importância da imagem e pelo tratamento dramático que os eventos e fenômenos ganham, as organizações contemporâneas podem ser consideradas cinematográficas (2001:18).

Ritual e Teatralização do Carisma

Muito embora ainda não se possa considerar o modelo de gerenciamento adotado por Macedo na Igreja Universal como cinematográfico, em outras áreas, a Igreja, ou melhor, sua atuação religiosa, assume uma posição claramente espetacularizante. Adotando posição similar à das contrapartes afro-brasileiras que fazem de cada ritual um momento único em que se misturam espetáculo e crenças religiosas, a Universal aborda a temática da conversão e da salvação através da utilização do exorcismo enquanto artifício artístico ou performático.

Tecendo considerações acerca desta performatização, Santos comenta que:

Pretensos adeptos, até então, de seitas espíritas e, principalmente, de seitas afro-brasileiras, são induzidos pelo pastor a encarnarem em seus corpos o demônio que lhes vinha atormentando a vida. Perante a audiência, o demônio manifesta e o pastor irá tratar de dobrá-lo, de submetê-lo à sua autoridade, em nome de Jesus. Em cem por cento dos casos o sucesso é total: o endiabrado termina de joelhos aos pés do pastor (1996:111).

Considera-se a Universal uma organização espetacular em virtude de alguns aspectos característicos. O primeiro destes aspectos é a indiscutível liderança exercida por Edir Macedo que é não somente efetiva, mas traz consigo um importante conteúdo simbólico-carismático que o transforma em exemplo a ser seguido. Neste contexto, é importante recordar Justino:

O centro das atenções na Igreja Universal sempre foi o bispo Macedo. Era nosso líder espiritual. O nosso poderoso chefão. Hoje, diria que ele personificava a perfeição a mistura do Dalai Lama com Antônio Conselheiro e Don Corleone, sendo esta última, a faceta predominante (1995:28).

O aspecto imagético não é esquecido por Justino (1995), que aponta o fato de que bispos e pastores da Universal imitam obcecadamente seu líder, chorando durante orações públicas, cantando e agindo como Macedo. Ainda considerando esta situação, o autor afirma que um dos pastores era conhecido pela alcunha de Macedinho, pois entortava as mãos durante as pregações para se parecer mais com Macedo, cujas mãos são deformadas de nascença.

Além desses aspectos carismáticos, aqueles relacionados ao gerenciamento das técnicas de impressão também estão presentes no argumento exposto por Santos. Os pastores e bispos, enquanto atores organizacionais, estruturam suas ações de modo a apresentar sempre uma idêntica impressão imagética. A este respeito, Justino afirma que:

Na Igreja Universal do Reino de Deus existe uma fórmula padrão para se fazer um culto. Sempre que alguém entrasse em nossos templos, teria de ver a mesma coisa, não importando se estava em Belo Horizonte, Bogotá ou Buenos Aires. Os cultos eram feitos com gritos frenéticos dos apresentadores e participação ativa da platéia. Este espetáculo espiritual é dividido em duas partes e chega ao clímax quando são realizados os exorcismos (1996:41).

Narrativas longas e detalhadas, ilustradas por imagens simuladas dos eventos, com a constante intervenção dos protagonistas do caso, são extensas e ostensivamente mostradas durante os programas de cunho religioso apresentados pela Rede Record de televisão. Neste contexto, exorcismos televisivos e mudanças na vida dos crentes são cuidadosamente transformados em espetáculo de consumo para a população que aflui rotineiramente rumo aos templos da Igreja Universal do Reino de Deus. Some-se a isto os cultos carregados de expressões de êxtase, curas, profecias, além da freqüente ocorrência de glossalalia.

Muito embora esta última não seja o elemento distintivo do neopentecostalismo, sabe-se que a habilidade de falar línguas distintas, segundo a Bíblia (I Corintios 12), é um dos dons do Espírito Santo. Nas Igrejas Evangélicas é normalmente associada ao dom da Profecia, de maneira que os ungidos são utilizados como meio para comunicação entre divindades e humanos. Ressalte-se que esta é uma estrutura de crenças similar à existente entre os Afro-brasileiros.

Outro aspecto da liturgia iurdiana que merece análise mais detalhada é, exatamente, o ritual do exorcismo. Este se transformou, desde exercer um papel secundário, nas abordagens religiosas mais tradicionais, no centro das atenções do proselitismo religioso dos neopentecostais. Além da Universal, as denominações Igreja Internacional da Graça de Deus e Deus é Amor são exemplos de igrejas cujas bases se assentam sobre o ritual do exorcismo. Tendo em vista esta situação, recorda-se Mariano:

Se o ritual do exorcismo não é recente nos meios pentecostais, a Universal o exacerba nos cultos de libertação, concedendo ao Diabo e seus demônios, identificando as entidades e deuses das religiões afro-brasileiras e espíritas, destaque e importância sem precedentes (1999:43).

Conforme afirmação do Bispo Macedo:

A Igreja tem de agir. Já vivemos o clima da pregação protestante com Lutero; o da pregação avivalista com John Wesley e, agora, temos que sair da mera pregação pentecostal, para uma pregação plena que promova um verdadeiro avivamento do Espírito de Deus. Temos que sair por aí, dizendo que Jesus Salva, batiza com o Espírito Santo, mas também, e antes de tudo, liberta as pessoas oprimidas pelo diabo e seus anjos (1996:119).

Os rituais de exorcismo são os que exibem com maior clareza o caráter contraditório, conflituoso-simbiótico, que reveste a relação da Igreja Universal com as religiões afro-brasileiras. Pois, se por um lado, situa-se a contestação dos valores afro-brasileiros apresentados como crenças demoníacas, por outro, tem-se a aceitação e incorporação destes mesmos valores. Neste sentido, Mariza Soares afirma que:

Ao invocar os demônios para que se apresentem sob a forma de Caboclos, Pretos-Velhos etc., os pastores «acatam» todo o panteão afro-brasileiro: falam com eles, dão credibilidade à sua existência. Seria bastante ineficaz chegar para uma pessoa que durante anos recebeu um determinado guia dizendo que tais coisas não existem (1990:87).

No entanto, se não contestam a existência e o poder dos espíritos cultuados pelos afro-brasileiros, os universais tampouco parecem querer deixá-los prestar seus cultos livremente. Partindo da premissa que todos os problemas na vida de seus fiéis são provocados por feitiçaria e pela ação demoníaca das entidades cultuadas pelos afro-brasileiros, a Universal promove intensos rituais de exorcismo para os quais são convidados Exus, Pretos Velhos e Orixás a comparecer para serem expulsos, através do exorcismo, do corpo e da vida dos clientes. Este aspecto da ritualística da Igreja Universal do Reino de Deus pode ser observado na descrição abaixo, levada a efeito por Mariano:

Quando o possesso é levado ao púlpito, já com o demônio submetido à autoridade divina e amarrado para que não machuque nem prejudique mais seu «cavalo», a estrutura do ritual exorcista que se estabelece com os deuses e espíritos inimigos geralmente apresenta enredo fixo. Primeiro, o pastor entrevista o demônio para identificar seu «nome», invariavelmente uma entidade dos cultos afrobrasileiros. Segundo, pergunta como ele se apossou daquela pessoa. Terceiro, procura descobrir os males e sofrimentos que ele está provocando na vida (familiar, financeira...) da vítima. No quarto e derradeiro passo, o ritual perde o caráter de talk show com o demônio. Depois de humilhá-lo, o pastor expulsa-o em nome e para a glória de Cristo (1999:137).

Quando o possuído resiste ao exorcismo é comum que os pastores e obreiros o encaminharem para uma sala nas dependências do templo, de modo que se possa proceder a uma ação de exorcismo mais vigorosa. Durante das observações de campo, um crente possuído foi conduzido, após diversas e infrutíferas tentativas de exorcismos, a uma viatura da Policia Militar, ainda em transe extático. Supostamente, o indivíduo seria encaminhado a um hospital psiquiátrico, próximo ao templo.

No que tange à temática do exorcismo é importante observar as características do transe mediúnico, claramente assumido nos terreiros de Umbanda6 visitados, e o transe de exorcismo, usualmente apresentado pela Universal. Enquanto o transe mediúnico é parte de um detalhado ritual mágico religioso, cujo momento culminante é exatamente a incorporação da entidade. Na Igreja Universal do Reino de Deus este se processa apenas como parte de um crescendo cujo final esperado e desejado é a expulsão do demônio que atravanca a vida do fiel.

Ao som, cadenciado e quase hipnótico, dos atabaques os médiuns vão se deixando levar pela «presença» de suas entidades. Dançando e bamboleando o corpo ao ritmo dos pontos, os médiuns começam a reduzir a velocidade da ação; contrariando o ritmo dos pontos cantados, que avançam cada vez mais rápidos, provocando um certo frenesi na platéia. Então, quando menos se espera e de forma bastante abrupta a entidade incorpora seu médium que, a partir daí irá assumir posturas bastante diferenciadas. Enquanto que o transe dos pretos velhos e lento e quase tranqüilo, o transe do Exu é violento, vigoroso e mesmo assustador.

Depois de uma pequena perda de contato com o ritmo dos pontos cantados, o corpo do médium se empena e contorce de forma, às vezes, bastante assustadora e dolorosa, chegando a bater a cabeça no chão e soltando sonoras gargalhadas.

Após o momento inicial do transe, a maioria das entidades incorporadas reage e concerta, ao menos parcialmente, o corpo do médium que lhe serve de instrumento, mas mesmo assim permanecem alteradas as posturas; costas quase sempre inclinadas, como que a carregar um grande peso de pecados, mãos e braços com pouco ou nenhum movimento, dependendo da entidade e pés que se arrastam tortos pelo congá.

Tudo isto faz parte da mística de Exu, que bebendo e fumando, falando palavrões, pisando torto e dançando descadenciadamente se aproxima dos mortais, dos quais jamais se afasta verdadeiramente, que vem lhe pedir favores, quase sempre em conversas de pé de ouvido, marcadas pela voz rouca, cansada, entremeada por potentes gargalhadas e giros.

O final da gira de Exu, sempre alegre, apresenta os cânticos de despedida ou pontos de subida. As entidades incorporadas são instadas, pelo ogã, ou pelo guia chefe da casa, a irem onló, ou seja, voltarem para seu descanso, até a próxima gira, conforme podemos perceber no cântico abaixo:

Quando ele vem, vem no clarão da lua
Quando ele vai, vai no raiar do sol
Sua gargalhada é quá quá quá,
Seu Tranca Rua vem no clarão da lua

Na Igreja Universal do Reino de Deus, ao contrário, o transe é bem menos ritualizado e catártico, mas não menos performático. Aqui, instados pelos pastores a se apresentarem diante do trono de Deus, alguns fiéis começam a chorar e contorcer-se. Ao identificar os eventos, os obreiros conduzem o possesso ao altar, onde aí sim, o demônio se manifesta com toda força permitida pela performance do fiel. Usualmente, como na Umbanda, os fieis entortam o corpo todo, com voz rouca e roufenha começam a murmurar incoerentemente até que o pastor o amarra e inicia o que Mariano (1999) chamou de talk show com o diabo, que irá culminar com o exorcismo propriamente dito.

Cânticos evocativos

Além disso, inspirados na atividade e movimentação típicas dos cultos umbandistas mais tradicionais, os universais instituíram uma espécie de confrontação musical com os afro-brasileiros. Ao contrário dos cânticos dos católicos ou dos evangélicos tradicionais, normalmente longos e de difícil aprendizado, os universais se inspiraram na facilidade de memorização e nas rimas curtas dos pontos de Macumba7 para criar sua própria categoria musical: os «corinhos de poder».

Curtos, rápidos, agitados e de fácil memorização, os «corinhos de poder» são usados em um dos momentos mais especiais dos cultos da Igreja Universal, o momento do exorcismo, onde se busca colocar as crenças da Igreja Universal do Reino de Deus em posição superior às professadas pelos afro-brasileiros.

Tranca-Rua e Pomba-Gira fizeram combinação.
Combinaram acabar com a vida do cristão.
Torce, retorce, você não pode, não.
Eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração

Como é possível perceber no corinho acima transcrito, a prática litúrgica da Igreja Universal não somente reconhece e aceita a existência das entidades afro-brasileiras, como também faz delas o mote de sua ação evangelizadora. Afastar o demônio da vida do fiel é tarefa primordial nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Pode-se perceber que, na Igreja Universal, os cânticos apresentam basicamente a mesma forma rítmica dos pontos de Macumba. No entanto, a fonte inspiradora é Jesus Cristo ou o Espírito Santo.

Parte importante do ritual de exorcismo praticado na Igreja Universal, os «corinhos de poder» têm como função principal dinamizar a participação dos fiéis no culto. Diferentemente do catolicismo tradicional, em que a participação é meramente ilustrativa, na Universal, pastores, obreiros e fiéis participam de uma maratona melódico-religiosa cujo fito aparente é afastar os demônios da vida das pessoas.

Exu, como símbolo e objeto de adoração

O reconhecimento de um conflito religioso existente entre neopentecostais e afro-brasileiros torna-se bastante claro quando se observam os textos sagrados, apresentados na forma de cânticos rituais, acerca de Exus, Pombas-Giras e algumas outras entidades cultuadas pelos afro-brasileiros, tais como os Caboclos Juremeiros ou os Pretos-Velhos da Quimbanda, que representam a linha ou banda da esquerda.

Extremamente repudiados, os trabalhos com a banda da esquerda aparecem ao público, de um modo geral, através dos despachos depositados nas encruzilhadas e em manchetes de jornais sensacionalistas. Nos cultos de seitas neopentecostais observados sempre associam o Exu dos cultos de origem afrobrasileira ao demônio cristão. No entanto, é importante ressaltar que essa associação não é exclusiva dos neopentecostais e, nem mesmo criada por estes.

Conforme pontua Pierre Verger:

Exu «tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente», de modo que «os primeiros missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus» (1999:119).

Nos cultos típicos de Umbanda traçada ou cruzada, a gira de Exu é o ponto alto de cada sessão, atraindo sempre um grande número de consulentes ao terreiro. Reassumindo parte de atribuições no Candomblé, Exu se qualifica, na Umbanda, como uma divindade que pode atender a qualquer tipo de demanda do consulente, em virtude de sua própria ambivalência moral e espiritual.

Dizem que Exu só bebe é dá risada,
Mas ele é Exu, é rei das sete encruzilhadas.
A sua casa é longe, mas não tem mistério.
Ele mora na encruza, lá no cemitério.
Sua gira é forte não tem caçoada,
Depois da hora grande vai girar na encruzilhada

Bebedor e brincalhão no mundo dos mortais, Exu é poderoso rei na encruzilhada e sua magia ignora oponentes em qualquer dimensão, especialmente após a meia noite, a partir da qual se desenvolvem os trabalhos mais difíceis e violentos.

Ele passou nas sete encruzilhadas,
O vento lá só é de madrugada
A meia noite eu vi o sol a clarear
Seu Tranca Rua não promete pra faltar

Conforme pode-se perceber, no cântico acima, exu, rei das encruzilhadas e senhor dos caminhos sempre está disposto a ajudar seu consulente, de modo que sempre está disposto a cumprir o prometido, fazendo o necessário para atender a demanda solicitada. Eis aí, mais uma das características da liminar entidade que é exu: bondoso e brincalhão, às vezes até abusado em suas brincadeiras, bebedor e alegre, ele também é um trabalhador incansável a ajustar os rumos do mundo físico, através de seus trabalhos no campo do espiritual.

Dono de um grande poder e respeitado por todos, mesmo naqueles templos que não trabalham com suas linhas e falanges, exu é personagem e personalidade emblemática das performances que marcam os rituais afrobrasileiros. Como se viu anteriormente, o transe mediúnico desta entidade quase nunca é tranqüilo, ordenado e sim uma manifestação vigorosa de sensualidade, no caso das Pombas Giras, e dor penitente, no caso dos Exus. Mudanças comportamentais e danças estilizadas fazem parte desta mística, junto com roupas e padrões de linguagem.

O vestuário como instrumento de performance ritual

Além das características expostas, um dos aspectos mais marcantes de Exu é sua aparência externa. Os médiuns, quando incorporados por estas entidades, costumam vestir roupas pretas e/ou vermelhas, usar longas capas e portar tridentes e punhais, fato que também possibilita uma clara alusão ao demônio cristão, como se pode perceber no cântico abaixo.

Chegou da encruzilhada para trabalhar.
Quem quiser viver, nem queira olhar,
Seu Tranca Rua na madrugada a trabalhar.
Ele tem o seu punhal, ele tem sua cartola,
Tem um caldeirão sem fundo que queima toda hora

Além dos cânticos que lhe são alusivos, a apresentação física de Exu é surpreendente e em alguns casos assustadora, no entanto, esta vestimenta ritual é parte das influencias históricas, pois as cores de Exu, no candomblé são o preto e o vermelho.

Buscando influencia no kardecismo, os membros do culto tendem a associar estas cores, especialmente o preto e o roxo, vistas na Umbanda como sinal de evolução espiritual, como marcas de baixo desenvolvimento espiritual. Isto se confirma com as giras de outras entidades, associadas a Exu, caso de Pretos velhos Kimbandeiros e Feiticeiros, que invariavelmente apresentam traços pretos e/ou vermelhos na vestimenta.

O próprio transe de possessão por Exu representa uma categoria à parte, no processo de dramatização. Encurvado, sob o peso dos pecados da vida pregressa, mancando ou se arrastando, mãos curvadas como se vítima de artrite ou reumatismo, os Exus vão baixando no terreiro, entoando, com voz gutural, os pontos cantados de sua linha.

Usualmente, é após a doutrinação e o batismo que os Exus começam a empertigar o corpo de seus cavalos, mas raramente o fazem em sua totalidade, restando ao médium a obrigação de andar encurvado, falar arrastado e dançar, meio que manquitolando, as melodias entoadas em sua homenagem. E, muito embora não venham esboçando reações organizadas aos ataques promovidos pela Universal e outras igrejas pentecostais e neopentecostais, os afro-brasileiros não deixam de estar cientes do confronto e, mais especificamente, reagem a ele no campo simbólico, através dos pontos de Exu, por exemplo:

Botaram feitiço na encruzilhada, pra me derrubar,
Não adianta, não adianta, eu também sou de lá.
Meu pai é Ogum, meu pai é Ogum minha mãe Iemanjá,
Já pedi a Tranca Rua ele é meu compadre, ela vai me ajudar.
Você vai pagar, você vai pagar.
Agora vai e bate cabeça e pede Maleme pro povo de lá,
Aqui você tá devendo, você tá devendo e vai ter quer pagar

No entanto, no caso da Umbanda, os pontos cantados, como forma de manifestação artística, cultural e religiosa, não encerram somente idéias de ameaças e confrontos, têm também a função de transmitir uma rica herança simbólica e histórica para as gerações mais novas, além de incorporar também sutis elementos de institucionalização comportamental.

Magnani afirma que:

Uma das interpretações mais populares de Exu é Seu Zé Pilintra, de terno branco, gravata vermelha, cravo na lapela, chapéu caído na testa. Essas características compõem a figura do malandro, que resume em si todo o caráter de herói trickster desses personagens. Invocados familiarmente por compadres, representam a astúcia, o livre trânsito pelas brechas e pelo proibido, o uso de termos não sancionados pelas normas (1991:47).

Zé Pelintra representa o clássico estereotipo malandro carioca; representado por figuras da Musica Popular Brasileira, como Moreira da Silva, Bezerra da Silva, Zeca Pagodinho ou Martinho da Vila; sempre vestido de branco, tarimbado bebedor de cerveja e cachaça e pretenso passista e violeiro, seu Zé, como é conhecido, busca, quase sempre as vielas, conhecidas pela malandragem, para solucionar os problemas de seus consulentes.

Oferecendo conselhos de amor ou resultados de jogos de azar, como loteria e bicho, Seu Zé ajuda seus consulentes menos favorecidos a resolver os problemas mais contumazes: os de caráter financeiro ou afetivos. Mas Zé Pelintra é bem mais do que o malandro que sempre se apresenta nas giras de exu, conforme se pode perceber no cântico abaixo.

Pedra rolou por cima da samambaia
Por cima de Zé Pelintra balanceia, mas não cai
Seu Zé Pelintra, no morro foi batuqueiro,
Batucava noite e dia derrubando feiticeiro
Zé Pelintra e Tranca Rua, sempre foram bons parceiros
Tranca Rua na Encruza, Zé Pelintra no terreiro.

Em parceria com Tranca Ruas, Zé Pelintra redimensiona a gira de exu, ao contrário do ambiente soturno e obscuro da gira tradicional, Seu Zé traz consigo um novo elemento performático ao ambiente umbandista, na medida em que incorpora os valores sociais mais comuns às classes menos favorecidas. Mais um elemento se incorpora ao conflito entre afro-brasileiros e neopentecostais, que segue ampliando seu espectro numa direção cada vez mais espetacularizante e performática, pois, ao mesmo tempo em que é demonizado por seus adversários, os afro-brasileiros passam também a estigmatizar seus concorrentes.

A este respeito, é altamente ilustrativo um evento assistido em um terreiro de Umbanda, em Brasília, durante uma gira de Exu, na qual o Exu Tranca Rua, incorporado pela Yalorixá, critica duramente os pastores da Universal e os filhos-de-santo que teriam abandonado a casa para buscar o neopentecostalismo. Em outra fala, o mesmo Exu afirma também que apesar de criticarem duramente e se colocarem como libertadores de possessão demoníaca, através dos exorcismos apresentados no palco, são inúmeros os pastores que procuram centros espíritas afro-brasileiros para execução de serviços que vão de limpezas espirituais a abertura de caminhos.

Deste modo, pode-se perceber que, enquanto os membros do culto enfatizam o aspecto demoníaco dos cultos afro-brasileiros, estes últimos tecem suas críticas baseados, principalmente, no fato de que estes, apesar de se proclamarem superiores quase sempre recorreriam aos serviços dos afro-brasileiros para se preservarem e protegerem.

Artefatos e Oferendas

Quando se iniciaram estas reflexões, não se tinha em mente que Universais e Afro-brasileiros pudessem ter tantas características em comum, como se viu até o momento. No entanto, era de se esperar que a realidade de Brasília, uma cidade cercada de misticismo desde seu nascimento, oferecesse um amplo cabedal de informações acerca destas similaridades.

Ao contrário de outros estados e cidades, Brasília guarda no seio de sua história, bastante curta é necessário dizer, marcas distintivas de um misticismo bastante exacerbado. Cercada por movimentos ou locais associados ao misticismo, Cidade Eclética, Vale do Amanhecer e Alto Paraíso, Brasília se viu crescer num ambiente de convivência religiosa em ampla expansão.

Neste contexto, o evidente crescimento tanto de universais e outros neopentecostais, quanto de grupos místicos diferenciados não chega a surpreender. No entanto, as ações da Universal têm como marca a constante apropriação de símbolos e rituais dos outros grupos, conforme se viu anteriormente.

Este processo de apropriação se inicia, a bem da verdade, com a herança do catolicismo popular, sempre muito rico em objetos e mandingas para defender ou favorecer os fiéis. Figas, patuás e todos os tipos de misticismo sempre permearam as crenças do catolicismo popular e terminaram por levar esta influência às religiões mais populares, como a umbanda.

Daí, para inflamar os novos pentecostais foi um pequeno passo. Herdeiras de uma tradição de performance religiosa que inclui glossalalia e curas milagrosas, igrejas como Universal, Internacional e Casa da Benção, em um processo de simbiose ritualística irão se apoderar de símbolos e objetos rituais de outras religiões. No caso mais evidente, a Universal do Reino de Deus vem se apoderando não somente dos símbolos do catolicismo popular, mas também de seus próprios e principais oponentes no mercado religioso do Distrito Federal, os umbandistas e místicos, de um modo geral.

Em sua sanha para arrebanhar um numero cada vez maior de fiéis, a Universal segue, adotando um caminho que mistura misticismo e religiosidade cristã em um mesmo pacote. Oferecendo, na forma de patuás e amuletos, objetos mágicos que se comprometem a solucionar os problemas na vida dos fiéis. Das trombetas de Jericó, servem para derrubar a muralhas espirituais que cercam a vida do crente, a sapatos cirúrgicos cuja função é proteger de macumbas e feitiços os fiéis que freqüentarem cemitérios ou chutarem despachos de macumba.

Além dos anteriores, é importante ressaltar outros itens que fazem parte do cabedal de objetos mágicos comercializados pelos universais. Sacolés de água fluidificada para proteger o carro e a casa, palmilhas para escrever o nome dos inimigos e pisoteá-los e uma série de correntes, cujo objetivo é, essencialmente prender a atenção do fiel, num processo de fidelização da clientela.

Vigília dos 318 homens de Deus e a Rosa amarela, são exemplos deste processo de fidelização, que transita da performance ao comercio com relativa tranqüilidade. Se propondo a resolver os problemas dos fiéis, que vão do financeiro ao emocional, os pastores se revezam em uma pretensa vigília para desobstruir os caminhos do fiel. Ao final da vigília, entregam a cada um, inicialmente mediante uma oferta e, passando, na medida em que cessa a disponibilidade econômica dos fiéis, para os desafios, envelopes com uma cifra e um período estipulado a ser cumprido pelo fiel/cliente.

Funciona de forma similar o Jejum das Causas Impossíveis, nas quais a membresia recebe, sempre mediante uma oferta ou a promessa desta, o lenço ungido, cuja função é libertar o cliente dos encostos e demônios que atravancam sua vida. Originados das seguintes formas de obsessão:

a) hereditariedade (após a morte o encosto procura o corpo dos filhos, etc);
b) participação direta ou indireta com os encostos;
c) por maldições mandadas;
d) pela maldição dos próprios encostos (nos pontos de grande índice de acidentes);
e) envolvimento com pessoas que praticam a feitiçaria (nos locais de trabalho, escola, etc);
f) por comidas amaldiçoadas;
g) por rejeitarem a Cristo (não colocando a sua luz, então os encostos assumem)8.

Sob o argumento de que o objeto serve para materializar a fé dos fiéis, a Igreja Universal segue se apossando de crenças e símbolos oriundos do catolicismo popular, umbanda e religiões místicas, conforme se pode constatar nas afirmações de O, obreiro da Igreja:

Os lenços têm o objetivo e materializar a fé dos fiéis, pois eles precisam de algo para lembrarem do compromisso que fizeram. O homem que mais realizou milagres na Bíblia foi Paulo. Se Deus fazia milagre através de Paulo muito mais fará através dos Bispos e Pastores. Quando ao por quê de não estar escrito à palavra fé no lenço amarelo, não seis a razão, creio que seja por que aquele que é convidado ainda não tem a fé, mas passará ter quando vier buscar o lenço azul.

Em consonância com as afirmações de O, são constantes os depoimentos convocados pelos pastores, que evidenciam o sucesso das inúmeras campanhas promovidas pela Universal.

A guisa de conclusão

Teatralizando e rotinizando o carisma, os pastores da Igreja Universal do Reino de Deus assumem uma posição de superioridade em relação aos demônios que afirmam possuir o corpo do fiel e, em um processo de dramatização dos problemas da vida cotidiana, se oferecem para resolver estes problemas, nos quais os exorcismos rituais praticados pelos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus representam basicamente um movimento de guerra espiritual, um processo de demonização dos cultos de orientação afro-brasileira.

Além disso, é mister que se observe que alguns dos outros produtos, talvez a maioria deles, apresentados pela Igreja Universal do Reino de Deus como formas para se resolverem os problemas dos fiéis e consulentes, são também, rigorosamente falando, ataques ao cabedal de crenças das religiões e seitas afro-brasileiras. Como se viu anteriormente, inúmeros exemplos de artefatos foram observados na ação diária dos pastores membros do culto. É o caso dos protetores de pés, cuja propaganda televisiva, os qualifica para a destruição dos trabalhos e ebós de Macumba e feitiçaria encontrados pelo fiel.

Este é um claro estímulo ao desrespeito à liberdade religiosa garantida pela constituição, pois convence ao fiel da Igreja Universal do Reino de Deus que ele pode destruir símbolos e rituais de outra religião. No entanto, esta não é a primeira incursão dos membros do culto no campo da intolerância religiosa. Talvez não a primeira, mas com certeza a mais rumorosa ação de intolerância desencadeada contra outras religiões, foi o evento em que o Bispo Sérgio Von Helde chutou uma imagem de Nossa Senhora em rede aberta de TV para evidenciar, segundo ele, que a dita imagem não possuía nenhum poder temporal ou religioso.

Esta ação repercutiu tão mal na sociedade brasileira quanto ver, nos jornais apresentados pela Rede Globo, os pastores e obreiros da Igreja Universal saírem do Maracanã no Rio de Janeiro com sacos carregados de dinheiro e jóias doados pelos fiéis durante um grande evento público realizado pela Igreja no referido estádio de futebol. Em que pese o interesse da mídia em apresentar os evangélicos como um grupo de «obcecados por dinheiro», é fato que diversas denominações religiosas, além da Universal, mantêm uma relação um tanto ambígua com as questões financeiras dessas instituições e lideranças.

Todavia, é com os afro-brasileiros que a Igreja Universal do Reino de Deus realiza sua maior simbiose ritualística. Dos cânticos aos patuás, passando pelos exorcismos, os universais se apossam de um grande número de atitudes e símbolos tradicionalmente vinculados às religiões e seitas de origem ou inspiração africana. Ao contrário das igrejas protestantes históricas que mantêm grande parte de sua liturgia religiosa ligada ao catolicismo original, os universais aplicam às suas práticas muitos dos rituais e símbolos herdados dos afrobrasileiros. Como vimos anteriormente, na Universal, os corinhos tem como função básica estimular a participação da platéia nos rituais de exorcismo. Evocando o poder de Jesus Cristo e do Espírito Santo contra os demônios, os corinhos de poder criam um ambiente de catarse coletiva, facilitando a atuação dos pastores no sentido de pedir dinheiro aos fiéis. Conforme Mariano:

Pede para Jesus queimar o Lúcifer, o Capa-Preta, toda legião de demônios e as enfermidades. ‘Queima agora’, esbraveja. Após a expulsão do Exu Capa-Preta, o pastor diz que ela está curada em nome de Jesus e a orienta para que se dirija à obreira. Saciados com mais essa pujante vitória de Jesus, todos cantam entusiasmados. Aproveitando o clima de regozijo, o pastor pergunta quem trouxe o envelope com as ofertas (1999:132).

Tudo, neste contexto, parece indicar que os neopentecostais da Igreja Universal do Reino de Deus – apesar das pesadas críticas que fazem aos seguidores das religiões afro-brasileiras pela utilização de feitiçaria – apropriaram-se de mais um dos aspectos das crenças por eles consideradas como demoníacas, a magia, pois seus rituais estão cada vez mais marcados pelo misticismo e pela utilização de artefatos «mágicos».

Pedra da redenção em Cristo, trombetas para derrubar as «muralhas de Jericó», sacos de água abençoada para serem colocados no carro, em casa e no ambiente de trabalho, palmilha para escrever o nome dos inimigos e pisá-los representam pequena amostra do grande arsenal de artefatos aos quais se atribuem poderes mágicos de mudar a vida do fiel. A este respeito Mariano afirma que:

Universal e Internacional da Graça, indiferentes às criticas dos demais evangélicos, distribuem aos fiéis objetos ungidos dotados de poderes mágicos ou miraculosos, ato que mais uma vez as aproxima de crenças e práticas dos cultos afro-brasileiros e do catolicismo popular (1999:133).

No entanto, independentemente desta espécie de bricolage religiosa, não existe um retorno à magia entre os neopentecostais, pois estes sempre estiveram de mãos dadas com a magicização da sua concepção religiosa. Dons como glossalalia – falar e entender línguas estranhas – e profecia ou antevisão – poder ou capacidade de prever o futuro – sempre estiveram na moda entre os pastores e praticantes do pentecostalismo e neopentecostalismo mundial. Além disso, a cura divina também é atividade comum entre os evangélicos.

O que fazem os universais é a extremação destas habilidades e poderes mágicos, pois pastores e bispos nada mais são que instrumentos para a glória de Cristo e do Espírito Santo se manifestarem na vida dos fiéis. A manifestação dos dons e atributos do Espírito Santo – os dons do Espírito Santo são nove: sabedoria, conhecimento, fé, cura, operação de milagres, profecia, discernimento de espírito, variedade de línguas e capacidade de interpretálas. 9 – é resultado de sua fé e da ação dos pastores.

Enriquecimento, sucesso financeiro e profissional resultam das atitudes de fé do fiel e das ações mágicas-propiciatórias dos pastores. A vigília dos «318 homens de Deus», o pagamento dos dízimos regularmente são elementos que auxiliam a obtenção das graças desejadas, conforme se pode perceber nas afirmações abaixo, nas palavras do Bispo Edir Macedo.

Lembrar que a fidelidade a Deus deve estar acima de qualquer coisa ou circunstância. O dízimo deve ser retirado das primícias de tudo que o cristão recebe. Deixar de fazê-lo é dar oportunidade ao demônio devorador para agir novamente! Muitos que assim agiram passaram por grandes dificuldades e nunca mais conseguiram acertar suas vidas financeiras. O correto é servir a Deus em primeiro lugar, depois, aos outros.

Além disso, consoante ao mencionado anteriormente são inúmeros os depoimentos apresentados por fiéis que, afirmando ter participado de algum dos eventos promovidos pela Igreja, obtiveram dessa participação um retorno pessoal, na maioria das vezes pecuniário ou negocial. Aliás, sucesso nos negócios e na vida financeira são parte habitual do discurso virtuoso/vitorioso dos membros do culto, cuja base está assentada na Teologia da Prosperidade. Suportados nas constantes campanhas e nas performances cada vez mais elaboradas de pastores e fiéis, à frente das câmeras e de púlpitos, cada vez mais virtualizados, a universal segue em uma sanha dominadora, com intuito de controlar o mercado religioso, tanto no âmbito nacional, quanto no internacional.

 


1 Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.

2 Edir Macedo Bezerra, ou Bispo Macedo, como é conhecido no meio evangélico, carioca de Rio das Flores, fundou em 1977 a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Personalidade extremamente controvertida, Macedo é amado e adorado por fiéis w pastores de sua igreja, todavia é extremamente criticado por diversos setores da sociedade brasileira, mesmo aqueles ligados ao neopentecostalismo, pois o foco do discurso doutrinário da IURD, a teologia da prosperidade, é levado ao extremo, condicionando a prosperidade do fiel ao pagamento dos dízimos, ofertas e aquisição de objetos «encantados», tais como: «pedras da tumba de Jesus», «a água benta do rio Jordão», «a rosa milagrosa», «sal abençoado pelo Espírito Santo». Estas críticas, no entanto, não impedem Macedo e a Igreja Universal de apresentar o maior crescimento entre as igrejas neopentecostais do Brasil.

3 Jornal do Brasil, 22/10/1995.

4 «Reencantamento» é uma expressão empregada para designar a busca humana pelo mundo simbólico, transcendental, carregado de deuses que possam dotar a vida dos «desencantados», pessoas cansadas do racionalismo e do secularismo da vida moderna, de sentido e de dinamismo.

5 Dos 52 movimentos religiosos catalogados pelo ISER, no Censo Institucional Evangélico (Rubem César Fernandes, 1992), 50% deles surgiram no Rio de Janeiro, depois de 1960, incluindo-se aqui a própria Igreja Universal.

6 Umbanda é umamanifestação religiosa brasileira que mistura elementos do espiritismo kardecista, cristianismo católico, cultos afro-brasileiros e ameríndios. Distingue-se em duas linhas básicas: a Umbanda Branca, com rituais bastante semelhantes às sessões de espiritismo kardecista – em que tambores, possessões desordenadas e comportamento grosseiro dos espíritos não são permitidos; e a Umbanda Traçada ou Candomblé de Caboclo cujos rituais são a mis pura mistura brasileira de crenças ritualísticas – misturam-se orações e rituais católicos a crenças afro-brasileiras, ameríndias, espiritismo kardecista, Jurema e Toré. Na maioria dos locais as sessões aparentam ser tumultuadas com possessões ruidosas e comportamento arquetípico dos espíritos.

7 Macumbaé a denominação genérica de cultos afro-brasileiros com influências católicas e espíritas, que se desenrolam em meio a danças e cânticos rituais, ao som de instrumentos de percussão. Desenvolvidos inicialmente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, esses cultos incluem oferendas rituais de comidas e bebidas com fins mágicos. A palavra foi estendida a estas oferendas, não raro depositadas em lugares públicos e constituídas de um alguidar ou embrulho com farofa, azeite-de-dendê e restos de galinha, acompanhado de uma garrafa de cachaça, charutos e tocos de velas acesos.

8 Informações coletadas por Ronaldo Batista e Marinalva Fernandes, alunos da Universidade Católica de Brasília, em pesquisa de campo destinada a trabalho da disciplina Antropologia da Religião.

9 Extraído do site oficial da Igreja Universal do Reino de Deus. www.igrejauniversal.org.br


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