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Universitas Humanística

versão impressa ISSN 0120-4807

univ.humanist.  no.76 Bogotá jul./dez. 2013

 

Guiar e ser guiado: ou do que é feita a nossa (d)eficiência?1

Guiar y ser guiado: ¿o de lo que nuestra (dis)capacidad está hecha?

Guide and Be Guided: or from What Our (Dis) Ability is Made?

Mareia Moraes2
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil 3
marciamoraes@id.uff.br

Ronald João Jacques Arendt4
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil5
arendt.ronald@gmail.com

1Artigo de reflexão. Consideramos este um artigo de reflexão porque apresenta uma perspectiva crítica e analítica acerca das contribuições dos estudos CTS para o campo dos estudos da deficiência. O artigo recolhe os resultados de duas pesquisas "Deficiência visual e multiplicidade: variações entre eficiência e deficiência em algumas práticas de reabilitação" e "Perceber sem Ver" As duas financiadas pelo Cnpq e o Faperj.erspectiva crítica e analítica acerca das contribuições dos estudos CTS para o campo dos estudos da deficiência. O artigo recolhe os resultados de duas pesquisas "Deficiência visual e multiplicidade: variações entre eficiência e deficiência em algumas práticas de reabilitação" e "Perceber sem Ver". As duas financiadas pelo Cnpq e o Faperj.
2Doutorado em Psicologia Clínica pela PUC / SP.
3Professora Associado IV do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, atuando tanto na graduação quanto na pós-graduação (mestrado e doutorado). Financiamento de pesquisa: Cnpq (bolsa de produtividade em pesquisa Cnpq 2); Faperj.
4Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1973), mestrado em Instituto Superior de Pesquisas Psicossociais Isop pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1980) e doutorado em Instituto Superior de Pesquisas Psicossociais Isop pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1987).
5Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Interação Social, atuando principalmente nos seguintes temas: psicologia comunitária, psicologia social, teoria do ator-rede, análise institucional e construtivismo.

Recibido: 1 de febrero de 2013 Aceptado: 1 de abril de 2013


Resumen:

El artículo tiene como objetivo problematizar los límites que separan capacidad y discapacidad, específicamente en el campo de la rehabilitación de personas ciegas. Echa mano de herramientas teórico-prácticas en el campo de los estudios de ciencia, tecnología y sociedad (CTS) para indicar que en la práctica los límites entre capacidad y discapacidad son móviles, fluidos y engloban los más diversos elementos. Por esta vía, el trabajo concluye indicando que los estudios CTS abren nuevas alternativas en los estudios sobre discapacidad, poniendo en jaque el discurso de la normalización e invirtiendo en la multiplicidad de modos de ordenar capacidad y discapacidad.

Palabras clave: Discapacidad visual, Rehabilitación, Estudios CTS.

Palabras clave descriptores: Personas con discapacidad, Innovaciones tecnológicas, Rehabilitación de ciegos.


Abstract:

The article aims to problematize the boundaries between ability and disability, specifically in the field of rehabilitation of blind people. It analyzes theoretical and practical tools in the field of social studies of science and technology (SST) to indicate that in practice the boundaries between ability and disability are mobile, fluid and cover the most diverse elements. In this sense, the work concludes that the STS studies open new alternatives in disability studies, putting in question the discourse of standardization and investing in the multiplicity of modes of ordering ability and disability.

Keywords: Visual Impairment, Rehabilitation, SST Studies.

Key words plus: People with disabilities, Technological innovations, Blind rehabilitation.


Resumo

O artigo tem como objetivo problematizar as fronteiras que separam eficiência e deficiência, especificamente no campo da reabilitação de pessoas cegas. Lança mão de ferramentas teórico-práticas do campo dos estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS) para indicar que na prática as fronteiras entre eficiência e deficiência são móveis, fluidas e englobam os mais diversos elementos. Por esta via, o trabalho conclui indicando que os estudos CTS abrem novas alternativas nos estudos sobre deficiência, colocando em xeque o discurso da normalização e investindo na multiplicidade dos modos de ordenar e eficiência e deficiência.

Palavras ehave: Deficiência visual, Reabilitação, Estudos CTS.

Palavras-ehave deseritores: Antropologia Pessoas com deficiência, Inovações tecnológicas, Reabilitação.


Introdução: do "quando fico pronto" à "usina de transformação"

Nos últimos anos temos nos dedicado a realizar uma pesquisa6 com pessoas adultas que passaram pela experiência de perder a visào ou que estão em vias de perdê-la em função de alguma doença. Perder a visào é uma experiência que comporta muitas marcas, dentre elas, a ruptura com um estilo de vida, com uma certa organização corporal e sensorial na qual a visão tomava parte e tinha um papel atuante. Em nosso percurso de pesquisa temos encontrado pessoas que passam por esta experiência jã na vida adulta, seja porque sofreram algum acidente que lhes feriu os olhos, seja porque foram acometidas por alguma doença que lhes tirou a visào.

Foi numa instituição especializada em deficiência visual, situada na cidade do Rio de Janeiro/Brasil, que encontramos João7. Jovem, com 22 anos, ele havia cegado há pouco mais de um ano e estava inserido nas atividades de reabilitação oferecidas na instituição: aulas de Braille, para reaprender a 1er e a escrever; aulas de orientação e mobilidade, para reaprender a se locomover pela cidade sem fazer uso da visão, mas tendo nas mãos a bengala; aulas de atividade da vida diária, para reaprender a executar açòes simples, cotidianas, como vestir-se, amarrar os cadarços dos sapatos, arrumar a casa, entre outras açoes. Em um dos encontros que tivemos com Joào, ele nos pergunta: "E eu, quando vou ficar pronto?"

A pergunta de João pode, de um lado, ser tomada no sentido de que a reabilitação naquela instituição é pautada numa lógica de produção/produtivismo: cada pessoa tem dois anos para ali permanecer e reabilitar-se, ao final deste curso de tempo, ela deve deixar a instituição para abrir vagas para outras pessoas. A rotatividade da clientela garante o maior número de atendimentos.

De outro lado, a pergunta de João sinaliza um dos vetores que se fazem presentes nas práticas de reabilitação: o vetor de normalização (Moser, 2000]. Neste cenário, a deficiência é tomada num sentido negativo de falta de eficiência, que deve ser restaurada. Moser (2000; 2005) adverte que tomada neste sentido, a reabilitação das pessoas com deficiência pode, paradoxalmente, produzir exclusão e marginalização. Com outras palavras, a autora sinaliza que o discurso da reabilitação, organizado em torno da ambição de restaurar uma eficiência perdida, promove mais e mais marginalização, justamente pelo fato de que tal eficiência, colocada como meta a atingir é, ela mesma, inalcançável.

Desse modo, "medidas contra esta norma, as pessoas com deficiência são sempre constituídas como Outros, como deficientes e dependentes; elas nunca estarão aptas a qualificar-se como pessoas competentes e eficientes (Moser, 2000, p. 201]. Mas, seria esta a única forma de lidar com a questão da deficiência? A resposta de Moser (2000] vai no sentido justamente de tomar este discurso da normalização como algo a ser subvertido e colocado em xeque por outros discursos. Nas palavras da autora, "há sempre outros discursos que intersectam e interferem uns com outros; nas sobreposições e contradições entre eles, encontramos possibilidades de ação, interrupção e deslocamentos, e aí nós encontramos possibilidades para participar dos esforços para refigurar e rearticular o que é ser eficiente e deficiente" (Moser, 2000, p. 202).

É neste ponto que situamos o trabalho que ora se apresenta. Isto é, interessanos subverter o discurso da reabilitação na medida quem ele está voltado para práticas de normalização. E neste terreno que situamos a questão que orienta este trabalho: o que pode ser eficiência e deficiência se nos detivermos nos modos pelos quais ela é feita8 em certas práticas, situadas e locais? Em outros termos, perguntamos o que conta como eficiência ou deficiência em certas práticas de reabilitação de pessoas cegas.

A fim de prosseguirmos com os argumentos que norteiam este trabalho, há pontos que devem ser esclarecidos já de partida. O primeiro deles diz respeito ao campo da reabilitação. Sem dúvida, como Moser (2000; 2005), reconhecemos os vetores de normalização que nele se instalam, produzindo a marginalização e a alterizacão das pessoas com deficiência. No entanto, no curso de nossas pesquisas, temos notado que se tomamos a reabilitação em ação, na lida cotidiana com pessoas que se tornam cegas, podese observar que a reabilitação é também um interessante espaço de reinvenção: do corpo e de suas relações com o mundo. Isto é, os momentos em que as pessoas se engajam nas práticas de reabilitação são ocasiões de problematização e de redefinição do que uma pessoa é, do que pode ser eficiência ou deficiência.

É neste momento que novas conexões com o mundo podem ser tecidas e que as fronteiras entre eficiência e deficiência sào refeitas, reagenciadas. Como nos disse Antonio, um senhor com mais de 70 anos e que havia cegado hã pouco tempo: "Isso aqui [a reabilitação] é uma usina de transformação". Interessa-nos precisamente seguir estes momentos de recomposição de fronteiras, porque conforme salienta Haraway (1995), são estes os lugares onde são reconfigurados o que pode ser o humano, o que pode contar no mundo em que vivemos.

Um segundo ponto merece ser colocado e é de capital importância para nossas pesquisas no campo dos estudos sobre deficiência. O que queremos dizer quando falamos em fronteiras entre eficiência e deficiência? O que significa dizer que existem modos de ordenar9 (Law, 2004] o que vem a ser eficiência e deficiência?

Falar em modos de ordenar eficiência e deficiência visual nos engaja num estudo que investiga como e em que formas sõcio-materiais a deficiência é feita. Assim, a deficiência não é o que uma pessoa é nela mesma. Nem tampouco alguma coisa que é produzida por um social que, de fora, do exterior, sobre-determina o indivíduo. Lidar com modos de ordenar implica tomar o social não como substantivo, mas como verbo, como um processo precário, local, situado; implica ainda colocar o foco tanto na heterogeneidade material quanto na multiplicidade e na complexidade de tais ordenamentos (Law, 2004; 2003).

Situamos, assim, esta pesquisa na esteira daquelas empreendidas por Foucault (1972; 1987; 2000) e, posteriormente, pelo campo de estudos chamados CTS - ciência, tecnologia e sociedade10. O que nos faz situar este trabalho neste domínio é de um lado, a concepção bastante ampla de que a deficiência não é um objeto dado, é antes algo cuja existência depende de certas condições de possibilidades que se realizam materialmente. De outro lado, seguindo as pistas dos estudos CTS, interessa-nos acompanhar os modos por meio dos quais a deficiência existe, é feita em certos arranjos s ócio-materiais locais, situados, ou seja, o que visamos é seguir os diferentes modos de ordenar a deficiência visual.

No domínio dos estudos da deficiência, afirmamos que os estudos CTS sâo ferramentas importantes para refazer as fronteiras entre eficiência e deficiência. Isso porque, conforme salienta Winance (2006), os estudos CTS mostram que a (d) eficiência, ou a capacidade de agir, resulta das relações que as pessoas tem com outras entidades bastante heterogéneas. Desse modo, bengalas, pisos táteis, Braille, softwares especializados, nào sào apenas elementos que auxiliam as pessoas com deficiência. Sào actantes11 que compõem o que irá se constituir como eficiência, o que irá se constituir no que conta como pessoa eficiente. Assim, a eficiência nào é senào um efeito de certas redes, de certas alianças que conectam actantes híbridos e heterogéneos.

Um terceiro ponto a ser destacado é que a colocaçào desta questào nesses termos implica uma aposta teõrico-prática que passa ao largo de qualquer concepção essencialista da deficiência visual, seja um essencialismo de tipo naturalista que afirma a deficiência visual como a falta de uma funçào sensorial biológica, gravada no corpo. Seja um essencialismo de tipo social, que afirma que a deficiência é um efeito de impasses criados no contexto social e que levam a um sentimento de incapacidade que essas pessoas encontram no acesso à informação, ao trabalho, à educação e vários outros direitos básicos do cidadào.

Fundamentamos a formulação da questão que orienta nossa pesquisa naquilo que Mol (2002, p. 32) indica como uma guinada nos estudos no campo das ciências sociais: uma guinada de um tipo de investigação epistemológica da realidade para outro praxiográfico:

(...) se as práticas são colocadas no primeiro plano não hã mais um simples objeto passivo no meio, esperando ser visto do ponto de vista de séries intermináveis de perspectivas. Ao contrário, os objetos existem —e desaparecem— com as práticas por meio das quais eles são manejados. E desde que o manejo tende a diferir de uma prática a outra, a realidade se multiplica (...) no modo filosófico no qual eu me engajo aqui, conhecimento não é uma questão de referência, mas de manejo. (MOL, 2002, p. 5)

Nas práticas os objetos sâo feitos, isto é, eles existem por meio das práticas e nào antes delas. Isso sugere, conforme Mol (2002) salienta, que em ato - e apenas aí - alguma coisa é, alguma coisa existe. E relevante mencionar que para Mol (2002), assim como para Latour (2002a; 2002b), Despret (2004a; 2004b; 1999], Stengers (2006) e outros autores, tal concepção de prática coloca no foco o ato, a ação e os rastros que esta ação produz. Pesquisar nesse referencial implica seguir os efeitos de tais acões e não buscar os seus referentes.

Ao tratar da guinada prática nos estudos sobre ciências, Stengers (2006] apresenta uma definição do termo prática com a qual este texto se alinha. Segundo a autora

(...) a prática designa as ciências 'se fazendo', ela engloba o ajuste de instrumentos, a escritura de artigos, as relações de cada praticante com os colegas, mas também com tudo isto que e todos aqueles que contam ou poderiam contar em sua paisagem. Nada está pronto. Tudo está por negociar, por ajustar, alinhar e o termo prática designa a maneira pela qual tais negociações, ajustes, alinhamentos constringem e especificam as atividades individuais sem por isso determiná-las. (Stengers, 2006, pp. 62-3)

Assim, neste texto, tomamos como fio condutor do método de pesquisa a praxiografia, tal como proposta por Mol (2002). Partimos, pois, das práticas cotidianas de pessoas com deficiência visual, em uma instituição especializada em deficiência visual, no cenário da reabilitação. Nos últimos cinco anos realizamos uma série de entrevistas com pessoas que frequentam esta instituição e observarmos muitas das atividades ali desenvolvidas.

Além disso, atuamos naquela instituição como pesquisadores responsáveis por uma atividade de intervenção, a Oficina de Experimentação Corporal12, dirigida a adultos cegos e com baixa visào que estão matriculados em várias atividades de reabilitação. Desse modo, as narrativas que aqui apresentamos sào resultados de entrevistas, notas tomadas em diários de campo pelos pesquisadores que compõem a equipe e que são partilhadas e elaboradas coletivamente pelo grupo de pesquisa13.

Assim, a pesquisa foi realizada tendo algumas diretrizes de método:

  1. A deficiência visual foi tomada em ação, nas práticas cotidianas daqueles que vivem sem a visão e estào inscritos no setor de reabilitação de uma instituição especializada em deficiência visual, situada no cidade do Rio de Janeiro/Brasil;
  2. As entrevistas foram conduzidas em grupo, reunindo em torno de LO pessoas com deficiência visual e os pesquisadores. Os grupos se reuniam uma vez por semana, por uma hora. As falas eram anotadas e depois organizadas em formato de texto para serem debatidas e lidas no grupo de pesquisa. Importante salientar que nas entrevistas, seguindo as pistas de Mol (2008), nós não perguntávamos às pessoas suas opiniões acerca da cegueira, mas sobre as ações envolvidas no viver sem a visào. Nos interessavam os eventos e as atividades cotidianas das pessoas na lida com a cegueira. Assim, as entrevistas se articulavam com muitas das observações que fazíamos na instituição.
  3. ao seguir as ações e seus rastros, nosso método de pesquisa nos leva a tomar os outros com quem pesquisamos não como objetos passivos da pesquisa, mas como co-autores. A ambição que nos orientou foi fazer a pesquisa COM eles e não sobre eles (Moraes, 2010). Neste sentido, é necessário fazermos uma ressalva: a escrita das narrativas que compõem este texto tiveram um tratamento diferenciado. Uma delas foi lida no grupo, debatida e contou com a efetiva participação do nosso entrevistado. Já a outra não teve o mesmo tratamento uma vez que Georgia, a nossa entrevistada, depois de nos conceder a autorização para a pesquisa, deixou a instituição onde a encontramos e nós perdemos o contato com ela.
  4. Trabalhamos nossos materiais de pesquisa "como um artista que trabalha com a pintura ou com o tecido e a linha" (Mol, 2008, p. L 1). Isto é, nós cuidamos dos materiais, de modo a separar alguns deles, tece-los e articula-los a fim de compor este trabalho. Sem dúvida, a pista que nos orienta neste trabalho é aquela de Donna Haraway (1995) que nos diz que não basta afirmarmos que o mundo construído. É nossa tarefa, enquanto pesquisadores, produzir melhores relatos do mundo. Assim, nossa linha nos levou a tecer as entrevistas de modo a com elas refazer o que pode ser eficiência e deficiência, de modo a redesenhar o que conta e o que não conta no campo da deficiência visual.
  5. Tomamos como atores tanto humanos como não humanos, ou seja, seguimos os rastros daquilo que agia e produzia efeito no nosso cenário de pesquisa.

A fim de explorar a porosidade -e, logo, a possibilidade de sua redefinição- da fronteira entre eficiência e deficiência, seguimos duas histórias nas quais o que se põe em cena são duas ações interligadas: guiar e ser guiado. Estas duas ações são extremamente comuns e presentes no campo de nossa pesquisa. Pois que perder a visão coloca em cena justamente uma questão sobre como guiar-se, orientar-se no mundo, na vida cotidiana. Guiar é inclusive uma atribuição que alguns familiares e acompanhantes das pessoas cegas tomam para si. Em nosso campo de pesquisa, não foram raras as vezes que ouvimos os acompanhantes das pessoas cegas comentarem: "Eu sou os olhos dele"; "Eu tenho que leva-lo a toda parte, eu sou o guia dele".

Guiar e ser guiada na versão de Géorgia e as sucatas

Geórgia chega na Oficina de Experimentação Corporal pela primeira vez, trazida pela mãe. Ela tem 46 anos. Ficou cega aos 16 anos, em decorrência de uma doença progressiva que a acompanhava desde muito criança. Não aprendeu a ler, nem a escrever porque, segundo nos disse sua mãe, a doença nos olhos diicultava o processo de aprendizagem e depois de ter icado deinitivamente cega, passou a sair pouquíssimo de casa, já que sua mãe trabalhava fora todos os dias, saindo pela manhã e retornando para casa já à noite. Geórgia não anda na rua sozinha e se locomove sempre com a ajuda de alguém. Os dedos das mãos são encolhidos, segundo a mãe nos informa, "icaram assim porque ela se mexia muito pouco". Geórgia comenta que gosta de ouvir música, Lulu Santos, ela diz. Fala ainda que em casa ficava muito tempo sentada no sofá, ouvindo música, que era a única coisa que tinha para fazer.

Conversamos com as professoras que ensinam Geórgia a usar a bengala. Elas comentam que antes de aprender a usar a bengala, Geórgia precisa saber se movimentar, porque tem "o corpo todo duro, nào tem traquejo". Dizem que acham difícil trabalhar com Geórgia porque é insegura, tem medo das coisas e nunca andou sem a ajuda de alguém que enxergasse.

Em um dos encontros da Oficina de Experimentação Corporal, as coordenadoras propuseram uma atividade que envolvia movimentar-se no espaço a partir dos sons que eram emitidos. Assim, quando um som vinha do canto direito da sala, os participantes da Oficina deveriam se mover nessa direção; em seguida outro som, mais alto, vinha da porta de entrada da sala e eles deveriam se encaminhar para essa direção, e assim por diante, num ritmo proposto inicialmente de modo lento e que ia aumentando, tornando-se mais acelerado, com o passar do tempo14.

Durante essas atividades, Geórgia, sempre apoiando-se em alguém, não distinguia de onde vinha o som e ficava esperando ser guiada, levada até o ponto de origem do som. Parecia-nos que Geórgia articulava-se pouco com tais sons - em sua experiência com a música, ela ficava sentada e o som vinha sempre do mesmo lugar. Ela nos relatava que achava difícil perceber a direção do som e dizia que nào sabia direito como fazer isso. Comentava que as mudanças de direção também eram difíceis de serem acompanhadas e que além do mais, tinha medo de andar sem se apoiar em alguém. Ela comenta que preferia esperar que alguém a guiasse até o local de onde vinha o ruído. Pergunto se quando anda na rua não é também necessário perceber a origem do som. Ela diz que não, porque está sempre com alguém que a guia.

Em outra sessão da Oficina, ainda seguindo a mesma temática, os sons são propostos pelos participantes do grupo e não mais pelos coordenadores. Com latas e outras sucatas nas mãos, cada participante tem a sua vez de comandar a Oficina, fazendo uma sequência ritmada de sons que devia ser retomada pelos demais com palmas. Geórgia assume espontaneamente o comando. Faz uma série de sequências sonoras. Novas articulações, novos efeitos. Geórgia ao invés de ser guiada, guiava. Apropriou-se das sucatas e tornou-se regente15, articulava-se com o som, com o grupo, com suas mãos - adquiria o seu corpo (Latour, 2002b).

Quanto mais sons e ritmos ela produzia com as sucatas, mais as sucatas faziam seu corpo mover-se, afetar-se, transformar-se. Seu rosto ficou vermelho e pela primeira vez vimos os seus dentes, que icaram à mostra num farto e largo sorriso, que logo se tornou uma gargalhada. As sucatas, os sons, o grupo faziam existir ali um novo arranjo do não ver. Arranjo heterogêneo, instável. Neste arranjo, os limites entre eiciência e (de)iciência eram redistribuídos por vários atores: as sucatas faziam Geórgia reger, Geórgia regia e movia o grupo. Neste modo de ordenar a cegueira, a conexão com a sucata, com o som, com o grupo, conta. A capacidade de agir - assim como a sub-jetividade - se tornam possíveis nestas relações encarnadas, nestes arranjos. E Geórgia agia e fazia outros agirem. As sequências sonoras que ela criava eram complexas, longas e ritmadas. Talvez efeitos das músicas que por tanto tempo ouviu sentada no sofá.

Interessante notar que nestes dois episódios a distribuição da eficiência e da (de) ficiência parece ocorrer de modo distinto. No primeiro caso, a articulação de Geórgia com os sons, com o grupo parece fraca, enquanto a articulação com o guia se faz forte e é a que prioritariamente parece produzir alguma diferença. No segundo caso, as sucatas, a sequência de sons são articulações fortes no sentido de fazerem existir um certo modo de ordenar eficiência/(de)ficiência que implica uma redistribuição: de guiada, Geórgia passa a ser guia. A cegueira, que até então era ordenada como imobilidade - não anda sozinha, não sai de casa - ordena-se de outro modo. O que tais ordenamentos colocam em cena? Como eles se articulam ?

Estes ordenamentos fazem existir modos distintos de cegueira, que se sobrepõem, se articulam na medida em que eiciência e (de) iciência se distribuem por diferentes materialidades e socialidades. Há uma passagem entre esses modos de ordenar a deficiência e mais, em tais ordenamentos, materialidades e socialidades articulam-se diferentemente.

É neste sentido que Law (1999) airma que a deficiência está relacionada à questão política que consiste definir quem e o que conta nos coletivos sócio-materiais. O que está em jogo é definir quem conta ou não como ator, como agente capaz de agir, de produzir efeitos. Desse modo, o foco não está em partir a priori da distinção eficiência X (deficiência, mas antes em seguir os arranjos locais nos quais estas distinções vão sendo construídas.

Concordamos com Moser quando a autora afirma que

(...) há diferentes modos de ordenamento feitos no cotidiano das vidas das pessoas, e as pessoas deslizam e mudam entre eles. Elas são, desse modo, feitas (enacted) em múltiplos e mutáveis modos. Mas nao basta dizer isso. A questão urgente é o que isso significa... Isso implica que as pessoas estão livres para escolher e para se mover à vontade entre modos de ordenamento da deficiencia, ou pelo menos que há um jogo entre elas, e logo espaço para resistência e (alguma] ação? (Moser, 2006, p. 685).

Em outras palavras: que diferença a diferença faz?

Guiar e ser guiado na versão de Roberto e sua mãe, Maria16

Roberto frequentava a Oficina de Experimentação Corporal já fazia um ano. Além desta atividade, estava também envolvido nas aulas de orientação e mobilidade, onde aprendia a usar a bengala. Ele tinha em torno de 50 anos e havia cegado há dois anos. Durante este tempo, Roberto caminhava com dificuldade e nos relatou temer andar na rua sem o auxílio de sua mãe, Maria. Era com o ombro da mãe que ele contava para estar na rua, para fazer o trajeto da casa até a instituição, onde o encontramos. Ela o guiava, ele era guiado.

Numa de nossas entrevistas com Roberto, ele nos relatou as dificuldades que tinha com o aprendizado da bengala. Era necessário forjar um corpo capaz de ser afetado pela bengala, pelo tato, pelos sons (Latour, 2002b). Um corpo que confia no tato, nos sons, nos odores, que se choca aqui e ali com alguma coisa que a bengala não alcançou, que, aqui e ali, pergunta se o õnibus que parou no ponto é mesmo o que se espera, enfim, um corpo que precisa ir mais longe do que o alcance do braço da mãe. Era necessário ainda, incluir sua mãe neste processo, já que ela também temia que o filho saísse à rua desacompanhado. Após cegar, Roberto precisa recompor o corpo, isto é, o que estava em questão era a necessidade de (re)aprender a ser afetado pelo mundo, de refazer as conexões com o mundo sem contar com a participação da visão.

A despeito dos titubeios que a aprendizagem do uso da bengala lhe impunha, Roberto nos relatou que após vários meses de aula com a bengala, concluiu que era o momento de sair ã rua sem sua mãe, tomando nas mãos a bengala branca que inscreve em seu corpo e no mundo, de forma radical, o lugar da cegueira (Martins, 2006a). Tomou a bengala nas mãos e saiu de casa, sem informar nada a sua mãe. Ela, tendo percebido que o ilho saiu de casa, vai atrás dele, silenciosa, a vigia-lo, a cuidar para que o seu olhar seguisse protegendo o ilho dos perigos do mundo: uma queda, o encontro imprevisto com a maldade humana, um buraco na calçada, um orelhão pelo caminho. Estando Roberto sob suas vistas, ela talvez ainda estivesse a guia-lo. No ponto do ônibus, Maria observa Roberto pedindo ajuda a alguém: "Você pode me avisar quando chegar o ônibus? Sim, sim, aviso", Maria ouviu a resposta gentil. Ela seguia Roberto de perto, de modo que o toc toc da bengala no chão era audível também para ela. O ônibus chega, Roberto entra. Era o mesmo ônibus de todos os dias, o mesmo motorista, no mesmo lugar. A diferença é que Roberto chegava com a bengala.

O motorista, alegre por vê-lo mais um dia, o cumprimenta efusivamente. Roberto ouve o bom dia caloroso do motorista e ouve, logo a seguir, o silêncio da palavra não dita pelo motorista. Imediatamente Roberto se dá conta da presença de sua mãe. O motorista ia cumprimentá-la, mas nada diz, ao ver o gesto da mãe ao levar o dedo indicador à boca, pedindo ao homem silêncio e cumplicidade. Foi este silêncio que Roberto ouviu. Sua mãe, até então invisível, tornou-se visível : a palavra não dita, o gesto não visto, mas intuído, a respiração suspensa do motorista, o alívio da mãe com a cumplicidade instalada.

Tudo isso, fez com que Maria fosse visível também para Roberto. Ele aquiesceu. Consentiu com o silêncio audível da presença de sua mãe. Aquele, sem dúvida, seria um percurso inédito, pois que era o silêncio que ele ouvia, era da cumplicidade que sua mãe surgia visível. Ao chegar no ponto onde deveria descer, Roberto, avisado pelo motorista, desce do ônibus. Sabe ser visto pela mãe. Com sua bengala, ele não hesita em seguir em frente, agora ele guiando os passos de sua mãe. Pode senti-la atrás dele. Aquele olhar que lhe chega pelas costas, com o qual ele aquiesceu, talvez seja o io tênue que lhe dá coniança para seguir, agora guiado por seu tato, pelos sons, pelo toc toc da sua bengala.

Roberto podia guiar os seus passos e os de sua mãe. O olhar, que durante tantos anos o guiava, agora lhe chegava pelas costas. À frente, a bengala e o mundo que com ela se descortinava. Quando Roberto entrou na instituição onde tinha suas aulas de orientação e mobilidade, seu destino desde que saiu de casa, o porteiro alegremente o cumprimenta, rapidamente estendendo as boas vindas à Maria. A visibilidade silenciosa de Maria ganha os contornos do sonoro "Bom dia Roberto, bom dia Maria" recebido do porteiro! Maria ruboriza, Roberto pode sentir o calor que sobe as faces de sua mãe. O rubor de quem se viu descoberto no seu esconderijo! Roberto inge não saber de nada, surpreende-se: "Ué , você estava aí?" Pergunta, rindo da vergonha que a mãe não consegue esconder.

A situação se desfaz no sorriso partilhado. É que experimentar subverter os sentidos de guiar e ser guiado é vivido com alegria. Roberto experimentou guiar sua mãe com sua bengala: era ele quem ditava os caminhos a serem seguidos. Sabia, no entanto, que aquele olhar que lhe chegava pelas costas, também o guiava. A presença silenciosa da mãe, era uma presença forte. Um laço, um elo que o fazia mover-se muito mais livremente do que quando tinha em suas mãos o braço da mãe. Pois neste percurso de silêncios, de cumplicidades, gestos, bengala, ônibus, obstáculos, de limiares entre o ver e o não ver, quem guiava quem? Roberto guiava sua mãe, ou a mãe guiava Roberto?

Interferências entre modos de ordenamento da deficiência - normalização e variação

Em seus trabalhos, Moser (2006; 2005; 2000) investiga as narrativas das pessoas que se tornaram deicientes em decorrência de acidentes de trânsito na Noruega. Nessas narrativas, a autora aponta que um dos modos de existir da deficiência é aquele que a airma como algo que se inscreve no indivíduo, como uma falha que se marca em seu corpo, tomado como unidade isolada, discreta. É um modo de ordenamento da deficiência como falta, como déficit que se articula não só nas narrativas das pessoas, mas em uma série de materialidades que a autora analisa.

Documentos em prol da inclusão, da reabilitação, tecnologias as-sistivas, são materialidades importantes que a autora analisa a im de investigar quais são os ordenamentos da deficiência que tais materialidades produzem (enací). A autora investiga detidamente as políticas na Noruega em prol do oferecimento de tecnologias assistivas para pessoas deicientes, vítimas de acidentes de trânsito. Nesse cenário, ela aponta que as políticas públicas na Noruega estão voltadas a fazerem com que as pessoas com deficiência levem uma vida normal, dentro dos padrões considerados normais, que são aqueles do sujeito centrado, independente, cognitivamente competente, capaz de agir e reagir de modo eiciente às demandas do meio.

Mais precisamente, por relevantes que sejam tais políticas, o que a autora sinaliza é que elas são paradoxais, contraditórias, porque na medida em que deinem a pessoa com deficiência a partir de certo padrão considerado como normal, tais materialidades "alterizam" a de-iciência, isto é, fabricam a deficiência como falta, como déficit. Como salientamos em outro trabalho (Moraes, 2011), se analisamos o modo como a deficiência é ordenada nos documentos oiciais em prol da inclusão em nosso país, a situação não é diferente. Trata-se, como dito, de um modo de ordenar a deficiência que a produz como incapacidade. Na medida em que tais políticas estão calcadas na idéia de compensar as deficiências, elas não cessam de contribuir para normalizar a situação da pessoa com deficiência. Eis o que é paradoxal.

Paradoxo que de resto, o próprio Latour (1994) apresenta quando deine a modernidade por meio de dois conjuntos paradoxais de práticas: de um lado, as práticas de puriicação, que separam sujeito de objeto, natureza de sociedade, podemos dizer, eiciência e (de)iciência. De outro lado, as práticas de hibridação que não cessam de produzir seres híbridos, que não se encaixam naqueles pólos deinidos pela puriicação.

Assim, do mesmo modo, as materialidades nas quais se distribuem as políticas voltadas para pessoas com deficiência não cessam de instalar e reinstalar as fronteiras que separam o normal do desviante e, desse modo, fazem da deficiência o outro da normalidade, um híbrido impensável e inapreensível frente aos pólos que deinem a norma e a diferença. Desse modo, tais materialidades, acabam por ir na direção da qual pretendem se afastar: produzem modos de ordenamento da de-iciência como falta a ser compensada, reconduzida à norma.

Moser (2006) estabelece uma relação entre este argumento e aquele proposto por Star. Para esta última, segundo Moser, os padrões produzem e criam ordem para aqueles com corpos e subjetividades padronizados, mas produzem desordem, incapacitam e excluem aqueles outros com corpos e subjetividades não padronizados. Desse modo, o padrão produz seus próprios monstros: aqueles que nele não se encaixam. É interessante notar que nesse cenário a pessoa com de-iciência aparece como espetáculo, nunca se torna invisível em função de suas diferenças, de suas particularidades (Star apud Moser, 2006).

O que ocorre é que as materialidades, os arranjos materiais, que fazem agir e capacitam os corpos padronizados se tornam invisíveis, desaparecem num pano de fundo, fazendo com que tais corpos e subjetividades sejam feitos (enacted) como desengajados, independentes, capazes de agir autonomamente e independente de qualquer vínculo. Nas palavras de Moser:

Fazer-se existir como 'mente desencarnada' é uma forma requerida para encarnar-se na normalização. Mas na medida que a realidade é construída na afirmação de que há um corpo normal e universal, os corpos não-padronizados e deficientes sempre aparecerão como problemáticos e fracassarão em fazer-se existir como mentes desencarnadas [..."] Desse modo, a normalização contribui para a reprodução das diferenças e assimetrias das quais ela parece querer escapar e desfazer. (Moser, 2006, p.385)

A normalização constitui-se, portanto, como um modo de ordenamento da deficiência que a faz existir como outro, como falta. Nesse cenário parece-nos pertinente levantar algumas perguntas:

  • Como, onde e de que modo pretendemos interferir nesse processo?
  • Há como intervir nesse campo sem cair nas armadilhas das práticas de normalização?
  • Mais uma vez, retomamos a pergunta que formulamos anteriormente: que diferença a diferença faz?
  • Que diferença os estudos CTS fazem neste campo?

Certamente, desde os trabalhos de Foucault (1972; 1987; 2000), muitas das pesquisas no campo da deficiência visam desnaturalizá-la, isto é, apontar de que modo o discurso da normalização se constrói e se materializa em práticas, corpos, instituições. Os chamados Disability Studies são referência necessária nesse terreno porque politizam a questão da deficiência ao investirem na concepção de que a deficiência não é algo que está no corpo, mas sim num contexto social excludente. Tal campo de estudos é bastante vasto e heterogêneo, mas tem como uma de suas marcas recolocar a questão da deficiência não mais como um tema médico, mas sim como algo que diz respeito aos direitos humanos. Sem dúvida, esse movimento marca o século XX (Martins, 2006a; 2006b; 2006c).

Os Disability Studies caracterizam-se como movimento social, político e intelectual que ocorreu primeiramente nos países de língua inglesa e que consistiu numa insurgência das pessoas com deficiência contra qualquer concepção individualizante e biologizante da deiciên-cia. A concepção de deficiência proposta por este movimento, na esteira dos movimentos de contestação dos meados do século XX, é a de um modelo social, isto é, a deficiência longe de ser uma falta ou uma falha corporal, é o efeito de uma opressão social, de uma sociedade excludente. O que se vê, no século XX, é uma passagem de uma sintaxe biomédica, para outra, de viés político-emancipatório: a deficiência passa a ser tematizada no campo dos direitos humanos.

Os Estudos sobre Deficiência (Oliver, 1996) se insurgem precisamente contra a concepção médica de deficiência e contra a lógica causal que ela coloca em ação: na perspectiva de tais estudos, as desvantagens sociais não são causadas pelas lesões corporais, mas antes, por uma opressão social dirigida às pessoas com deficiência.

No entanto, ainda que reconhecendo a importância deste último tipo de análise, optamos neste trabalho por seguir as pistas dos estudos CTS. Isso porque, no quadro dos Disability Studies, a deiciên-cia passa a ser airmada como um fenômeno social. Dito com outras palavras, parece-nos que nesse domínio o social é tomado como a outra face do natural, o que faz com que a deficiência seja discutida no âmbito de uma oposição binária que separa Natureza de um lado, Sociedade de outro.

A aposta que fazemos nos estudos CTS nos permite recolocar a questão da deficiência em outros termos. Não se trata mais de lidar com a deficiência no seio desse binarismo moderno. Trata-se antes de explorar os diferentes modos por meio dos quais a deficiência é feita, articulando os mais díspares e heterogêneos actantes. Ou seja, se entendemos que ser deiciente não é algo que uma pessoa é, mas algo em que ela se torna, o objetivo da pesquisa passa a ser acompanhar os modos pelos quais eiciência e deficiência são distribuídos, ordenados, num conjunto de materialidades, de práticas que não cessam de produzir ordenamentos muito singulares da deficiência.

O que interessa à pesquisa é explorar as alternativas, investigar os modos locais nos quais tais ordenamentos ocorrem. Em última instância, podemos dizer que as ferramentas dos estudos CTS nos permitem colocar de novo a velha questão do que é ser humano, num marco certamente bastante distante de qualquer humanismo. Nesse sentido, ser humano não é mais do que este arranjo local, provisório, de materialidades e socialidades. A subjetividade, o corpo, são efeitos desses arranjos locais.

Assim, a aposta pragmática dos estudos CTS é de que na prática não há apenas um modo de ordenamento da deficiência, mas vários. Diferentes modos que se articulam, se sobrepõem, se contradizem. A multiplicidade é assim, um caminho para pensarmos alternativas, formas de resistir ao ordenamento da normalização. Isso porque a introdução da diferença e de novas alternativas no cenário das investigações no campo da deficiência tornam visível o que a normalização invisibiliza e desarticula.

Neste sentido, podemos dizer que enquanto os Disability Studies colocam em cena o social, tomado como o par oposto à natureza, os estudos CTS povoam o cenário da deficiência com mais e mais actantes, fazendo com que mais e mais atores, humanos e não humanos, contem na produção do que possa vir a ser a nossa eiciência ou deficiência. Em última instância, como dito, o que os estudos CTS nos permitem é refazer o que conta como humano, com suas eiciências e deficiências, locais, situadas, heterogêneas.

Considerações finais

Abrir as condições de possibilidade da deficiência implica seguir os diferentes modos nos quais a deficiência se ordena, com condições materiais e sociais distintas, diferentemente articuladas. Assim, as realidades criadas permanecem abertas precisamente porque são ordenadas a cada momento, em cada situação. Nesses locais, as pessoas são eicientes e deicientes, segundo uma distribuição de agência que é sempre encarnada, materializada numa série de atores. Neste sentido, "todos os sujeitos, eficientes e (deficientes, são fluidos e abertos, constantemente movendo-se entre posições subjetivas e articulando estes movimentos de diferentes modos" (Moser y Law, 2001, p. 9).

Os estudos CTS são ferramentas poderosas para resistir à normalização. Como pesquisadores interessa-nos interferir neste cenário sem cair nas armadilhas da normalização, sem dar força aos discursos de marginalização e incapacitação das pessoas com deficiência.

Law e Mol (1995) salientam que as narrativas têm um papel preponderante nos estudos CTS. Num mundo cuja ontologia é de geometria variável, as narrativas são modos de manejar, de lidar com a multiplicidade de materialidades e socialidades articuladas em um contexto -a lógica aqui é a do patchwork (Law y Mol, 1995, p. 288) na qual nos movemos de um lugar para outro, procurando conexões locais, sem a expectativa de um padrão único ou de uma totalidade. Assim, a metodologia é também uma questão de política ontológica (Mol, 1999; Moraes, 2010): trata-se de definir que realidades seguir.

Com este trabalho não se buscou uma narrativa última e definitiva acerca da cegueira. Melo resume esta airmação quando comenta:

A ramificação das relações, as lacunas e as incompletudes fazem parte da descrição de como os fenómenos se articulam performando uma rede. A preocupação com a consistência foi deslocada na TAR [teoria ator-rede] porque a ordenação é um processo provisório uma vez que as coisas podem estar ordenadas diferentemente em outro instante (...) a coerência é meramente contingencial, nunca uma essência, aparecendo como efeito de um quadro que se estabilizou por um momento (...) Ao colocar várias histórias, uma ao lado da outra, e ao tecer as costuras entre elas, podemos fazer emergir a diferença pela criação de novas relações, escapando da ditadura do já estabelecido. (Melo, 2007, pp. 176-177)

Com isso, perde-se a história global, a visão do todo. Apostamos com Law (1997) que existem outras possibilidades de narrar que não se resumem a uma narrativa totalizante, última e deinitiva. Ao fazer proliferar as narrativas, locais, menores, parciais, este artigo faz existir multiplicidade das cegueiras.

No caminho perde-se a grande história. Este é o custo: não temos mais a visão geral. Mas, ao mesmo tempo, criamos algo que não existia antes: interferências entre as histórias (...) cultivar várias histórias uma ao lado da outra é alterar o caráter do saber e do fazer. É tornar o saber e o fazer complexo e múltiplo (Law, 1997, p.3).

A multiplicação das narrativas é um modo de conhecer que assume a heterogeneidade do real e que, ao mesmo tempo, sublinha um processo de seleção daquele que narra, marcando o caráter situado, encarnado do conhecimento. A este respeito Haraway (2007) afirma que o conhecimento é sempre parcial, situado, conhecimento que parte de algum lugar. Para a autora, a visão geral, universal é um conhecimento de lugar nenhum. Em suas palavras "o único modo de encontrar uma visão mais ampla é estar em algum lugar em particular" (Haraway, 2007, p.684). Assim, o conhecer é algo que ocorre encarnado na heterogeneidade de condições que formam o pesquisador, ele também, efeito de um certo ordenamento de materialidades e socialidades.


Rodapé

6A pesquisa Perceber sem Ver é coordenada por Mareia Moraes. Para 1er mais sobre os resultados deste trabalho conferir: Moraes, 2003, 2010. A pesquisa foi aprovada pelo Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP] da Universidade Federal Fluminense / Hospital Universitário António Pedro.
7Os nomes das pessoas entrevistadas sào fictícios.
8O termo enact é usado por Mol (2002) para dizer que nenhum objeto existe sem estar articulado às práticas que o produzem e o fazem existir. Em ingles enact aponta para dois sentidos distintos: como encenar, representar um papel; e como fazer existir, promulgar, fazer, no sentido, por exemplo quando dizemos que "o congresso nacional promulgou (fez existir) uma nova lei" (Ver: http://dictionary.reference.com/browse/enact). Nas palavras da filósofa : "É possível dizer que nas práticas os objetos sào feitos [enacted[ (...) isto sugere também que em ato, e apenas aqui e acolá, alguma coisa é - sendo feita [being enacted]" (Mol. 2002, p32-33). Neste artigo, retomamos o sentido proposto por Mol (2002) com o verbo enact para afirmar que a deficiência visual é feita em certas práticas.
9Law (2004) utiliza a expressão "modes of ordering" para definir o social náo como substantivo, mas como verbo, como uma açào local que reúne e liga, de modo precario, elementos heterogéneos. Neste artigo, traduzimos esta expressão por modos de ordenar e, em algumas passagens, por ordenamento.
10O campo de estudos CTS é bastante vasto, reúne pesquisas em diversas áreas. Neste campo a noção de redeé afirmada como uma ontologia de geometria variável que se refere aum processo ativo de associação, no qual as entidades emergem. Assim, afirma-se que a realidade é construída, é efeito de tal processo de associação ativa. Para mais informações sobre este campo de estudos ver Law e Hassard (1999), Latour (1994) e Law (2008).
11Latour define actante como qualquer coisa que age e produz efeito no mundo. O termo é tomado de empréstimo da semiótica para fazer a distinção com a noção de ator no campo da sociologia. Neste último domínio, o ator restringe-se ao humano. Na perspectiva de Latour, o actante pode ser humano ou não humano. Cf. Latour. 2002a. 2002b. Neste artigo fazemos uso das duas palavras, ator ou actante. tomando-as como sinónimas.
12A Oficina de Experimentação Corporal tem por finalidade promover atividades de experimentação corporal que mobilizem os diversos sentidos e envolvam a experimentação sensorial com materiais de qualidades e texturas diversas. As ações a serem realizadas são elaboradas a partir de diretrizes que são elaboradas coletivamente com todos os participantes da Oficina. Assim, as intervenções a serem realizadas são pactuadas com o grupo num processo de co-construção.
13A equipe de pesquisa Perceber sem Ver. coordenada por Mareia Moraes, é formada graduando s e pós-graduandos em psicologia e recebe financiamento dos seguintes órgãos: Cnpq, Faperj. UFF/ PRO EX. UFF/Prograd.
14Ressaltamos que tais atividades foram propostas a partir de impasses surgidos em encontros anteriores da Oficina os quais apontavam que uma das questões fundamentais para quem perde a visão era reconhecer a direção do som e orientar-se no espaço a partir deste referencial.
15Agradecemos a Carolina Manso por estas observações.
16O texto a seguir foi escrito por nós. a partir do relato que nos fez Roberto. Depois de escrito, o texto foi lido para Roberto, que concordou com o seu teor.


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