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Universitas Humanística

Print version ISSN 0120-4807

univ.humanist.  no.77 Bogotá Jan./June 2014

 

Disputas e diálogos em torno do conceito de "ações afirmativas" para o ensino superior no Brasil1

Disputas y diálogos en torno al concepto de "acciones afirmativas" para la educación superior en Brasil

Disputes and Dialogues around the Concept of "Affirmative Actions" for Higher Education in Brazil

Luanda Sito2
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil3
luandasito@gmail.com

1Este artigo de reflexão apresenta resultados parciais de uma pesquisa de doutorado, intitulada "Políticas de escritas afirmativas: estudo sobre as estratégias de estudantes cotistas para lidar com as práticas de letramento académico", desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (processo n°. 2012 - 01311-7). Parte da pesquisa se ocupa em interpretar dois casos de implementação de políticas de ação afirmativa no ensino superior latinoamericano (Brasil e Colômbia), observando suas conexões com linguagem e identidade.
2Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: luandasito@gmail.com.
3Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Recibido: 22 de julio de 2013 Aceptado: 23 de septiembre de 2013


Resumen

En este artículo me detengo en la polémica generada en el contexto de expansión de la educación superior brasileña, por medio de la medida de cuotas para estudiantes negros e indígenas en la Universidad, para observar lo que revelan los discursos sobre las concepciones de acciones afirmativas. Para ello, analizo dos manifiestos entregados al Congreso Nacional, en el año de 2006, por parte de intelectuales brasileños que sentaron su posición públicamente en relación a la política de cuotas. El análisis, orientado por una concepción de lenguaje bakhtiniano, muestra que el concepto de "acciones afirmativas" apareció en disputa: en el primero, es tomado como una medida racista y desigual; en el segundo, se entendió como una medida de deconstrucción del racismo. Al caracterizar ese debate en el escenario brasilero, se buscó contribuir en la construcción de un panorama regional sobre la cuestión racial y sobre las acciones afirmativas en el contexto latinoamericano.

Palabras clave: Acciones afirmativas, Cuotas, Educación superior, Negros, Indígenas.

Palabras clave descriptores: Educación superior, Negros-identidad racial, Indígenas, Brasil.


Abstract

In this article I reflect on the controversy generated in the higher education expansion context in Brazil by the quotas measure for black and indigenous students at the University, to see what the discourses reveal about the perceptions of affirmative actions. To do this, I analyze two manifestos delivered to the National Congress in 2006 by Brazilian intellectuals who laid their position publicly in relation to the quota policy. The analysis, guided by a conception of Bakhtinian language, shows that the concept of "affirmative action" appeared in dispute: first it is taken as a racist measure and it is percieved as unequal while on second place it is understood as a measure of racism deconstruction. By characterizing the debate in the Brazilian scenario, I sought to contribute to the construction of a regional overview on race and affirmative actions in the Latin American context.

Keywords: Affirmative Actions, Quotas, Higher Education, Black People, Indigenous People.

Key words plus: Higher Education, Black-racial Identity, Indians, Brazil


Resumo

Neste artigo, detenho-me na polémica gerada no contexto de expansão do ensino superior brasileiro, por meio da medida de cotas para estudantes negros e indígenas na Universidade, para observar o que revelam os discursos sobre as concepções de ações afirmativas. Para isso, analiso dois manifestos que foram entregues ao Congresso Nacional, no ano de 2006, por intelectuais brasileiros que se posicionaram publicamente em relação à política de cotas. A análise, orientada por uma concepção de linguagem bakhtiniana, mostra que o conceito de "ações afirmativas" se mostrou em disputa: no primeiro, é tomado como uma medida racialista e desigual; no segundo, é entendido como uma medida de desconstrução do racismo. Ao caracterizar esse debate no cenário brasileiro, busco contribuir para a construção de um panorama regional sobre a questão racial e sobre as ações afirmativas no contexto latino-americano.

Palavras-chave: Ações afirmativas, Cotas, Ensino superior, Negros, Indígenas.

Palavras-chave descritores: Ensino superior, Black-identidade racial, Indígena, Brasil

doi:10.11144/Javeriana.UH77.ddet


Neste artigo4, detenho-me na polémica gerada no contexto de expansão do ensino superior brasileiro por meio da medida de cotas5 para estudantes negros e indígenas na Universidade para observar o que revelam os discursos sobre as concepções de ações afirmativas no Brasil. Para mostrar discursos envolvidos na polémica das cotas, selecionei dois manifestos produzidos no auge do debate sobre a reserva de vagas no ensino superior do Brasil. Escritos por intelectuais que se posicionaram (contra ou a favor) em relação à política, os documentos imprimem um conjunto de argumentos que estiveram presentes no debate e, por isso, ajudam a compreender o que estava em disputa nessa discussão.

No ano de 2006, intelectuais brasileiros posicionaram-se de modo coletivo na esfera pública sobre as cotas para negros e indígenas nas universidades. Para isso, escolheram o género discursivo "manifesto" para se direcionar ao Congresso Nacional brasileiro com a finalidade de intervir na votação de dois projetos de lei. Considero os manifestos como géneros do discurso (Bakhtin, 2003), enunciados constituídos historicamente com uma estrutura composicional e um estilo normatizado que circula, em geral, na esfera política, e tem por objetivo tornar pública uma demanda de interesse geral, dizer publicamente as exigéncias de um grupo social. Com propósitos políticos bem delineados, esses Manifestos também são foco de estudos no campo da sociologia (Anhaia, 2013) por apresentarem diferentes retóricas e teses que denunciam os perigos ou os ganhos que essa política representa à ordem estabelecida. Na abordagem desse artigo, vou enfocar os sentidos em disputa e em diálogo nesse debate.

O primeiro Manifesto foi publicado por um grupo contrário a política de cotas, intitulado "Todos tém direitos iguais na República Democrática", e foi entregue ao Congresso Nacional no dia 30 de maio de 2006 com 115 assinaturas. Em resposta a esse documento, um grupo de apoiadores da política redigiu o segundo Manifesto, intitulado "Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial", para defender a política de reserva de vagas e o Estatuto da Igualdade Racial.

Eles entregaram aos congressistas no dia 03 de julho de 2006 com 390 assinaturas. Os autores de ambos os manifestos tinham o propósito de influenciar a avaliação desses congressistas que votariam o mérito de dois projetos de lei dessa instância pública: o Projeto de Lei de Cotas (PL 73/1999, na Casa de origem)6 e o Projeto de Lei Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000, na Casa de origem)7.

Para analisar em minúcia esses dois Manifestos, estruturei este artigo em quatro seções: na primeira, introduzo o tema da desigualdade racial no Brasil para situar o cenário das ações afirmativas para o ensino superior; na segunda, apresento os conceitos teóricos que sublinharão a análise; na terceira, analiso os dois manifestos; e, na quarta, concluo com algumas implicações do debate para a implementação das políticas no campo académico.

Políticas afirmativas e desigualdade racial no ensino superior brasileiro

A demanda por ações afirmativas no ensino superior brasileiro começou há alguns anos... A democratização das universidades, como um instrumento de reversão da desigualdade racial, já estava presente na agenda dos Movimentos Sociais Negros e Indígenas desde pelo menos a década de 19808 (Santos, 2005). Mas foi em 2001 que o evento "III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas de Intolerância Correlatas", sediado na cidade de Durban, na África do Sul, se tornou catalisador para a implementação dessas políticas no cenário latino-americano.

Ao tomar as ações afirmativas como "políticas públicas que visam corrigir uma história de desigualdades e desvantagens sofridas por um grupo racial (ou étnico), em geral frente a um Estado nacional que o discriminou negativamente" (Carvalho, 2004, p. 51), os países que assinaram o documento final, intitulado "Plano de Ação de Durban", como o Brasil, se comprometeram com a realização de ações que diminuíssem a desigualdade racial em suas populações. Esse compromisso impactou diretamente os Estados latino-americanos, que até então se viam como democracias raciais ao compararem-se com o sistema de apartheid da África do Sul ou as leis segregacionistas dos Estados Unidos.

A presença do racismo, em países como o Brasil e a Colômbia, vem sendo há décadas tema de pesquisas na área das ciéncias sociais. Nessas sociedades, as descrições das práticas do racismo o revelam como um fenómeno contraditório: por um lado, há um discurso que busca invisibilizar e negar a discriminação racial; e por outro, a coexisténcia de números elevados de desigualdade em termos de renda, trabalho, terra e educação entre as populações negras e indígenas em comparação com a população branca dos países acima citados (Wade, 1997; Soler e Pardo-Abril, 2008; Mosquera e Rodríguez, 2009).

Na Conferéncia de Durban, ativistas sociais expuseram os números das desigualdades raciais da população brasileira, tão alarmantes que questionavam a "estimada" imagem da democracia racial em nosso país. A população brasileira, segundo os dados do IBGE9 de 2010, está distribuída da seguinte forma pelo critério de raça/cor10: branca 47,7% (91.051.646); parda 43,1% (82.277.333); preta 7,6% (14.517.961); amarela 1,1% (2.084.288) e indígena 0,43% (817.963). Porém, ao olharmos os dados da distribuição da população nos níveis de ensino da educação básica e superior, vemos que a variável raça/ cor não se distribui equanimemente nos diferentes níveis de ensino, influindo negativamente na trajetória escolar da população preta, parte a indígena11. Dados do Indicador de Analfabetismo Funcional -INAF (Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro, 2011) mostram a distribuição desigual nos diferentes níveis de ensino para as populações branca e negra12.

No caso do ensino superior, por exemplo, em 2000 —quando a população branca era de aproximadamente 51% e a população negra chegava a 47% da população brasileira—, o percentual de universitários entre os brancos era de 12%, enquanto entre a população preta e parda era de apenas 3% (quatro vezes menor). Após quase uma década de políticas afirmativas, no senso de 2010, há uma ampliação da população universitária brasileira em todos os grupos. A população negra (50,7% da população brasileira) quase triplicou sua representação entre os universitários brasileiros, enquanto a população branca quase dobrou seu percentual. Para a população indígena, segundo dados analisados por Baniwá e Hoffman (2010), há cerca de 6.000 jovens na Universidade, o que representaria cerca de 0,75% de sua população. Esse aumento geral da população universitária, contudo, ainda não reduziu significativamente a diferença entre os grupos. Pelos números apresentados, ainda se mantém uma super-representação da população branca no ensino superior versus uma sub-representação das populações indígenas e negras.

Ao demonstrar essas desigualdades no acesso à universidade, ativistas e intelectuais reivindicaram que o Estado brasileiro assumisse responsabilidades na construção de uma maior equidade no ingresso ao ensino superior13. Após a III Conferéncia de Durban, um dos primeiros resultados foi o fato de a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) se tornar a primeira universidade pública a implementar ações afirmativas por reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escolas públicas no país. Dois anos depois, a primeira universidade federal —a Universidade de Brasília (UnB)— adotou o sistema de reserva de vagas para jovens negros e destinaria 10 vagas por ano para estudantes indígenas em seus cursos. Essas duas experiéncias foram alvo de muitas críticas, o que motivou um cenário de profícuo debate sobre qual o papel da Universidade e sobre o racismo na esfera académica. A experiéncia de ações afirmativas que eu vivenciei, no período mais caloroso do debate, ocorreu em 2007, em uma das principais universidades federais do sul do Brasil. A partir desse período14, um grande número de universidades federais e estaduais elaborou programas de ingresso diferenciado para grupos vulneráveis, fazendo uso de sua autonomia universitária.

Uma análise com enfoque discursivo

O Brasil foi qualificado durante o século XX como uma democracia racial, porque pessoas de diferentes identidades raciais supostamente conviviam em harmonia e sem a instituição de leis segregacionistas. Isso reiterava a negação de qualquer denúncia de ato ou expressão racista que conformou um contexto de negação das desigualdades geradas pela variável da "raça/cor'. Nesse contexto, para analisar os discursos racistas acredito que é importante a construção de um aparato teórico crítico que assuma a necessidade de desvelar valores racistas.

A polémica instituída com a demanda por política de reserva de vagas para estudantes negros e indígenas mobilizou discursos sobre as identidades étnicorraciais do Brasil. Isso porque a todo tempo, respondemos a discursos com os quais interagimos nas e das mais diversas maneiras, discursos constituídos de maneira multissemiótica. Esse emaranhado de discursos torna a palavra, ou o signo, prenhe de sentidos e, ao mesmo tempo, aberto para novos sentidos, o que constrói um encadeamento infinito de discursos que respondem a outros discursos. Em meio a essas respostas, percebemos o quanto somos sujeitos constituídos em um emaranhado de discursos15. Em outras palavras, como nos diz Bakhtin e Volochinov (1995),

compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idéntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra. (Bakhtin e Volochinov, 1995, p. 33-4)

Pela linguagem, os sujeitos constituem-se e revelam suas visões sobre o mundo que vivem. Essa compreensão de linguagem, que toma por base as ideias do Círculo de Bakhtin, compreende a forma linguística como uma arena que ganha sentido no contexto ideológico de sua enunciação. Ao enunciarnos, projetamos uma posição do sujeito no mundo. Assim, esses enunciados revelam nosso lugar, nosso tempo e as maneiras de interação com nossos interlocutores. Nossos lugares e tempos são inscritos em um contexto histórico e marcados por nossas construções de sentidos e valores. Nas palavras de Bakhtin, "a concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva" (Bakhtin e Volochinov, 1995, p. 103). Tomando essas discussões como orientação, é possível afirmar que os manifestos, aqui em análise, são realizações discursivas em um contexto real, no qual os autores, ao dizerem, se inserem politicamente no mundo.

Estamos sempre dialogando com outros já ditos, e posicionando-nos em relação a eles, seja resistindo, apropriando-os ou reelaborando-os. Conforme mostra o contexto de produção dos manifestos, ambos respondem a discursos anteriores e com objetivos claros de tomar posições no mundo: o primeiro se contrapunha a políticas com recorte racial, e o segundo se opunha ao primeiro manifesto, defendendo essas políticas. Esses textos mobilizavam diferentes discursos e argumentos que foram importantes no emaranhado dos discursos que constituíam a polémica das ações afirmativas. Logo, nessa relação com o discurso do outro, podemos manté-lo como um discurso de autoridade, sem tomá-lo como nosso, ou podemos torná-lo um discurso internamente persuasivo, submetendo-o aos nossos propósitos. E é nesse processo de tornar o discurso do "outro" como parte do próprio discurso que se constitui a apropriação, entendida como um processo do falante tornar própria a palavra do outro, de dar seu próprio acento valorativo ao discurso do outro: um processo gradual, que mobiliza diferentes práticas dos sujeitos e que envolve relações identitárias.

Com o objetivo de compreender os discursos racistas que estão no cenário da polémica sobre as ações afirmativas, lanço mão da Análise Crítica do Discurso por ser uma perspectiva teórica que investiga os modos em que se constroem as relações de (abuso) de poder, de dominação e de desigualdade, com o propósito de teorizar e mostrar essas construções na linguagem. Sua abordagem de revelar as estruturas de poder para desconstruí-las se alinha ao meu propósito de compreender os documentos em análise neste artigo. Como destaca van Dijk (2008), trata-se de um posicionamento explícito que objetiva "compreender, desvelar e, em última instância, opor-se à desigualdade social" (2008, p. 113).

No que tange à metodologia, essa abordagem também apresenta conceitos úteis para análises discursivas ao desvelar estruturas do discurso racista em diferentes campos, como a mídia e a educação. Ao observar que a variável raça/cor é um fator de hierarquização e desigualdade social, busco entender a organização dos discursos que refletem valores negativos para os grupos afrodescendentes e indígenas. O trabalho de Silva e Rosemberg (2008) mostra como a mídia sustenta e produz um racismo estrutural e simbólico, analisando textos de literatura, literatura infanto-juvenil, cinema, imprensa, televisão e livro didático. Os autores indicam quatro características do racismo brasileiro: i) a sub-representação de negros nos diversos meios midiáticos; ii) o silenciamento das mídias sobre as desigualdades raciais; iii) o tratamento de brancos como representantes naturais da espécie; iv) as representações de homens e mulheres negras eivadas de estereotipias e vinculadas a papéis sociais negativos ou desvalorizados. Para eles, essa produção se constitui pela veiculação de um discurso sustentado em trés elementos: a naturalização da superioridade branca, a naturalização das ações de discriminação dos negros e indígenas e a manutenção do mito da democracia racial.

A reprodução desses discursos racistas pode ser visto no âmbito educacional e universitário, ao percebermos a manutenção de um distanciamento das esferas de formação frente às desigualdades raciais do país. Além de uma afiliação ao discurso da democracia racial, as instituições formativas parecem não reconhecer seu papel na reprodução dos imaginários racistas que permanecem na sociedade atualmente. Como destacam Soler e Pardo-Abril (2008), é necessário:

[...] por um lado, [promover] a urgente transformação das realidades discursivas, que no final acabam sendo as realidades da prática social, o que implica, em primeira instância, revelar as estruturas e as estratégias discursivas que legitimam práticas excludentes —como o racismo— e, por outro lado, talvez mais importante, gerar ações de diversos tipos, principalmente pedagógicas, que contribuam a transformar a totalidade das práticas sociais. (Soler e Pardo-Abril, 2008, p. 198)

Esta é uma das principais críticas dos segmentos que defendem a política de reserva de vagas para negros e indígenas nas universidades.

Nessa direção, acredito que a desconstrução do racismo é uma tarefa das diferentes instituições do Estado, dentre as quais a Universidade pode ter um papel protagonista.

Discursos sobre as políticas de cotas no Brasil

A análise detalhada de discursos sobre as cotas nos revela singularidades do debate racial brasileiro. Para mostrá-lo, organizei esta seção em duas partes: em um primeiro momento, farei uma exposição mais geral da forma em que foi estruturada a argumentação dos textos, para que se possa reconhecer os argumentos em jogo, na qual se convencionou chamar "a polémica das cotas". Em um segundo momento, detenho-me em apresentar alguns sentidos em torno de conceitos-chave no debate, como "ação afirmativa", "igualdade" e "república democrática". Para enfocar os argumentos, dialogo com a proposta do livro "A retórica da intransigéncia" (Hirschman, 1992) para analisar as argumentações tecidas nos manifestos. As trés teses de Hirschman sintetizam os argumentos utilizados em diferentes períodos históricos por aqueles que se opunham à implementação de políticas progressistas ocorridas nos últimos trés séculos. A partir da análise de diferentes teóricos que se opunham às medidas políticas focadas, o autor categoriza as retóricas da seguinte forma:

[...] a tese da perversidade [alega que] qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem económica, social ou política só serve para exacerbar a situação que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformação social serão infrutíferas, que simplesmente não conseguirão 'deixar uma marca'. Finalmente, a tese da ameaça argumenta que o curso da reforma ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa realização anterior. (p. 15-16)

Em seguida, ele faz a ressalva de que "tais argumentos não são propriedade exclusiva dos 'reacionários" (p. 16). Eles também podem ser invocados por grupos que se oponham ou apresentem críticas a alguma política nova recentemente colocada em vigor. Nesse sentido, detalho o percurso da argumentação em ambos os manifestos, destacando as teses categorizadas por Hirschman (1992): da perversidade, da futilidade, e da ameaça; para mostrar os diálogos entre seus discursos.

Observando os argumentos

No caso em análise, o manifesto "Todos tém direitos iguais na República Democrática" é construído em cinco parágrafos e destinado "ao congresso nacional, seus deputados e senadores". Seu objetivo é pedir a esses representantes políticos que recusem os projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) em nome de uma República Democrática. Sua primeira frase evoca o princípio da igualdade constitucional para denunciar que ambos os projetos de lei se contrapõem a ele: "o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira". O argumento forte desse manifesto é de que "este princípio encontra-se ameaçado de extinção" devido aos projetos.

No parágrafo seguinte, os objetivos dos projetos de lei são apresentados pelos autores como uma política que "implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público". Sua aprovação, segundo eles, promoveria um acesso a direitos com base na cor da pele. Ao argumentar que essas políticas podem "racializar" a sociedade, os autores se aproximam da tese de Hirschman da "ameaça", quando afirmam que essas políticas ameaçariam uma igualdade já instituída entre os cidadãos.

Depois da apresentação de sua posição sobre as ações afirmativas, no terceiro parágrafo utilizam uma estratégia argumentativa de defensiva, somando suas vozes às vozes contrárias como uma maneira de antecipar possíveis contra-ataques e, com isso, desconstruir os argumentos contrários. A seguir, os autores refutam o argumento dos "defensores" dizendo que "esta análise não é realista". Pela argumentação presente no manifesto, a justificativa é que "políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo" e que inclusive poderiam "produzir o efeito contrário", ou seja, intensificá-lo. As argumentações utilizadas neste parágrafo se afiliam às teses da futilidade e da perversidade, respectivamente. Afiliados à primeira, podemos dizer que os autores caracterizam os projetos como medidas baseadas em análises ilusórias, como o seria a própria invenção da raça, o que impossibilitaria a geração de algum impacto social. E, afiliados à segunda tese, os autores constroem um caráter perverso para as políticas afirmativas, ao categorizá-las como propulsoras daquilo a que elas se destinam reverter: o racismo. A conclusão desse parágrafo é que "a verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade".

No quinto parágrafo, dois tipos de argumentação entram em jogo. A tese da ameaça é novamente endossada, quando se esboça a hipótese de que "a invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo", invenção que ocorreria com a aprovação dos projetos de lei. Junto a esta tese, os autores elaboram o argumento da futilidade, afirmando que os projetos de lei não serviriam para diminuir as desigualdades raciais, porque eles "ainda [iriam] bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades".

Ao articular argumentos que se contrapõem à política de cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, os autores mobilizam as trés teses da retórica da intransigéncia (Hirschman, 1992) de modo a deslegitimar a implementação dessas políticas. Nesse jogo, articulam argumentos presentes no debate das cotas que ilustram uma gama variada de justificativas para sua contraposição. Desse modo, os Manifestos expressam valores que se refletem nesses discursos e, conforme Anhaia (2013) também observa em sua dissertação, isso os torna "importantes documentos para estudos sobre a política e sobre a sociedade brasileira" (p. 176)

A questão posta no último parágrafo do texto está no cerne do debate sobre as políticas —"Qual Brasil queremos?"—, sinalizando que há uma disputa pelo imaginário de nação brasileira entre grupos ideologicamente antagónicos: para os contrários aos projetos de lei, o desejo de nação é por "um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião"; onde "se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante"; e onde "todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer". Esses enunciadores finalizam o Manifesto ecoando o discurso "I have a dream", de Martin Luther King, o que os aproxima daqueles que desejam um país sem racismo; logo, buscam construir uma identidade discursiva de não racistas.

Nesse percurso argumentativo, o texto apresenta indícios de como os autores se enunciam e, ao mesmo tempo, se diferenciam dos "outros", aqueles que apoiam na política, construindo suas identidades discursivamente. Enquanto o "nós" busca "uma sociedade sem discriminação pela raça/cor", afiliada ao sonho de M.L. King; o "eles" são os que defendem "a invenção das raças oficiais", são aqueles que querem criar uma racialização na sociedade brasileira.

O segundo Manifesto, intitulado "Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial", é constituído por 11 (onze) parágrafos e possui uma extensão maior que o primeiro. Uma justificativa para isso é que no debate das cotas, este é o grupo que defende uma política que não é reconhecida no senso comum. Ou seja, além de estarem respondendo a argumentos do primeiro Manifesto, vislumbram legitimar-se frente a discursos mais dominantes, como o discurso de negação da desigualdade racial no Brasil. Para a análise do segundo Manifesto, vou apresentar os argumentos do texto e analisar com mais detalhe a enunciação dos sujeitos no décimo parágrafo, quando há uma oposição explícita aos discursos do Manifesto anterior. O ponto principal é entender como os sujeitos estão caracterizando a si próprios e aos outros, e por meio de quais argumentos isso ocorre.

O segundo Manifesto inicia com a seguinte afirmação: "a desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas". Os autores citam a Constituição brasileira de 1891 e a inserem como exemplo de um instrumento legal que, anteriormente, "facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os cidadãos". No segundo parágrafo, definem como racismo estatal "o padrão brasileiro de desigualdade racial" que "foi reproduzido e intensificado na sociedade brasileira ao longo de todo o século vinte". Nesse momento, apresentam dados estatísticos do IPEA16 que demonstram a desigualdade por raça/cor, conforme este trecho: "por 4 gerações ininterruptas, pretos e pardos tém contado com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à saúde, menor índice de emprego, piores condições de moradia, quando contrastados com os brancos e asiáticos".

No terceiro parágrafo, os autores destacam o protagonismo na luta "impulsionada" pelos jovens negros e indígenas nas universidades frente a esse quadro de exclusão - como a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 1995. Também descrevem outras diversas ações institucionais que foram desenvolvidas ao longo das duas décadas passadas com foco na desigualdade racial, para mostrar que "a justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram ressonância nos últimos governos".

Nos parágrafos quarto e quinto, os autores enquadram o projeto de lei das cotas nas universidades como uma medida de ação afirmativa, a qual definem como "um mecanismo importante na construção da igualdade racial, uma vez aqui que as ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já se efetivam em inúmeros países multi-étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil". Seguem explanando, em um longo parágrafo, os impactos da desigualdade racial no espaço académico, e concluem que o "quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo". Também apresentam números de sub-representação da população negra na Câmara, no Senado e nas universidades. Por fim, os autores constroem o argumento de que a medida de cotas é consoante ao princípio constitucional da igualdade, justificando que a construção de uma igualdade que saia das letras constitucionais (igualdade de direito ou formal) e transforme-se em uma igualdade de fato (igualdade material) requer a reversão do quadro de assimetrias por raça/cor que estrutura a sociedade brasileira.

Os dois parágrafos que seguem concentram respostas aos discursos contrários à política de cotas. A seguir, o sexto parágrafo enfoca a igualdade como uma construção. Para os autores, o fato de haver mais de 30 instituições com alguma medida de ação afirmativa com recorte étnicorracial é visto como "[estar] no caminho da construção dessa igualdade étnica e racial". No sétimo parágrafo, os autores respondem ao discurso de "que haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades" com a implementação das cotas, argumentando que "as políticas de inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas", "muito distante desse panorama alarmista" prenunciado pelos contrários à política, não intensificou o racismo, já que "os casos de racismo que tém surgido após a implementação das cotas tém sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades académicas" e, além disso, eles tém sido tratados "com transparéncia e eficácia maiores do que havia antes das cotas." Ainda afirmam que "a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário". Argumento que refuta a tese da ameaça traçada no primeiro Manifesto.

No oitavo parágrafo, os dados estatísticos analisados servem para construir um argumento mais objetivo de que ambos os projetos de lei são uma "medida ainda tímida", porque "incidiria em apenas 2% do total de ingressos no ensino superior brasileiro". Após mostrar essa "timidez" da reserva de vagas, no parágrafo seguinte, os autores equacionam os projetos de lei das cotas e do Estatuto, mostrando ambos como complementares para "esse movimento por justiça" para que haja uma garantia mínima de acesso da população negra. Para eles, "é necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada".

E é apenas no décimo parágrafo que mencionam explicitamente o Manifesto ao qual respondem, introduzindo com um destaque de que gostariam de "fazer uma breve menção ao documento contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial". Os autores posicionam-se como "nós" e afirmam acreditar que "a igualdade universal dentro da República não é um princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada", respondendo a primeira frase do primeiro Manifesto. E definem novamente as ações afirmativas como um instrumento legal legítimo, já que é uma "figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar essa meta". Concluem o Manifesto, "conclamando" aos "nossos ilustres congressistas" para que aprovem os projetos com a "máxima urgéncia", de maneira mais formal que o primeiro Manifesto como uma estratégia de sensibilizar os leitores.

Nesse parágrafo, elaboram discursivamente suas afiliações de forma mais incisiva ao exporem os projetos do "eles" e do "nós" que estão em disputa. Neste caso, enquanto o "nós" posiciona-se como um grupo plural de combate ao racismo por acreditar que "a igualdade é algo a ser construído", o "eles" é construído como membros de uma elite, coniventes com o racismo. Logo, o "nós", do segundo Manifesto, constrói sua identidade no discurso afiliado aos grupos negros e indígenas, como sua parte integrante.

Por fim, o argumento de defesa das ações afirmativas responde às definições de "igualdade" e de "república democrática" do primeiro Manifesto. Em cada uma das expressões, o uso das mesmas palavras em ambos os Manifestos revela ideologias diferentes que se expressam na variabilidade dos sentidos desses signos. As palavras são uma arena que servem de espaço para uma luta entre posições ideológicas (Bakhtin e Volochinov, 1995), por isso passo a detalhar essas disputas de sentidos na arena das palavras.

Observando unidades menores do discurso

Neste segundo momento, destaco os efeitos de sentidos criados em torno de quatro conceitos-chave presentes nos Manifestos: "ação afirmativa", "igualdade", "dados estatísticos" e "república democrática". Esses conceitos estão associados às principais divergéncias nos argumentos envolvidos na polémica da política de cotas, tais como: a aceitação ou não da desigualdade racial e o reconhecimento da necessidade de elaborar políticas específicas para populações negras e indígenas.

No Manifesto contrário aos projetos de lei das cotas e do Estatuto há uma negação da desigualdade racial no Brasil, já que eles não reconhecem a raça/cor como geradores de desigualdade. Na Tabela 1, selecionei excertos do Manifesto para mostrar na materialidade linguística como esses sentidos são construídos.

Os autores atribuem à "ação afirmativa" os verbos "implantar", "estabelecer" e "criar" uma divisão racial, construindo sentidos vinculados à instituição de uma racialização, já que raças não existiriam. Inclusive o uso do termo "raça" entre aspas indica que ele é parte de um discurso do outro e não dos autores do Manifesto. Esse efeito de sentido provoca uma tergiversação dos fatos, já que as pessoas se reconhecem e são reconhecidas cotidianamente no Brasil por uma raça/ cor. Além disso, essas identificações são valorizadas ou estigmatizadas a depender da categoria de raça/cor reconhecida. Ao enunciar que a política é "a invenção de raças oficiais", outro processo utilizado no discurso do manifesto contrário à política de cotas foi a nominalização (Fairclough, 2001) - estratégia discursiva que invisibiliza os agentes e apaga o processo de ação, no caso, as disputas pela noção de raça, transformando-o em um nome. Ao fazer isso, tornam a disputa em algo dado, apagando a existéncia da raça, o que se contrapõe a diferentes pesquisas (como Silva e Rosemberg, 2008; López, 2009; Rodrigues, 2012) que descrevem as relações sociais na sociedade brasileira bastante racializadas.

O segundo conceito —"igualdade"— é entendido como um princípio constitucional a ser seguido, portanto as ações afirmativas o ameaçariam. Ao caracterizar "o princípio da igualdade política e jurídica" como um "fundamento essencial da República", os autores não associam a república a uma noção de justiça. O foco é que sejamos iguais do ponto de vista jurídico e político, silenciando a auséncia de uma igualdade de fato.

No argumento dos "dados estatísticos", os autores do primeiro manifesto salientam que os defensores das cotas utilizam dados do IPEA para mostrar a desigualdade racial. Contudo, não analisam esses dados (que são de uma fonte reconhecida) e ainda os nomeiam como "classificações estatísticas gerais", o que gera um efeito de desle-gitimação de um dos argumentos contrários que se propunha objetivo. Ao realizar isso, fragmentam os fatos históricos relacionados a essas populações, ocultam a proporção da desigualdade entre brancos e não brancos, e deslocam o tema das assimetrias étnicorraciais do foco da argumentação.

Ao afirmar que o único meio de a "república democrática" combater a exclusão social é por políticas universalistas, novamente os autores orientam a discussão para a desigualdade social, pois não reconhecem a raça/cor como um fator que provoca exclusão. Por ter um foco turvado, amparado pelo senso comum —como pode ser visto no tom da expressão "a verdade amplamente reconhecida"—, a solução que visualizam também não vai ao encontro da eliminação do racismo e da desigualdade racial. Eles acabam defendendo propostas de caráter universalistas, com base apenas na classe social.

De modo geral, retomando as categorias da Análise Crítica do Discurso, o Manifesto analisado revela as seguintes estratégias utilizadas para a negação do racismo: i. a ocultação dos atores e das práticas dos grupos discriminados, como a própria reivindicação das cotas; ii. a tergiversação e a fragmentação de fatos históricos relacionados a essas populações, iii. assim como a manutenção do mito da democracia racial.

No segundo Manifesto, de defesa das cotas, há de início a intenção de explicitar a desigualdade racial e, em especial, responder as estratégias de negação do racismo do Manifesto anterior. É possível perceber na argumentação uma busca por evidenciar os atores e as práticas dos grupos discriminados, como historicizar a reivindicação pelas cotas; recuperar fragmentos que narrem fatos históricos da perspectiva das populações discriminadas, e apresentar muitos dados estatísticos. A estratégia utilizada teve como intuito desconstruir o "outro" como legítimo para demandar o veto aos projetos de lei, enquadrando-os como representantes de uma elite, ou seja, esses não representariam uma pluralidade popular. A seguir, apresento na Tabela 2 uma síntese com as definições dos conceitos em análise:

Neste Manifesto, o conceito de "ação afirmativa" é representado como uma medida que impede a reprodução da desigualdade racial e promove sua desconstrução. Elas são associadas à justiça e à ampliação de acesso a direitos. A legitimidade da política é construída internacionalmente ao vincular-se à "figura jurídica criada pelas Nações Unidas", que reconhece as ações afirmativas. A oposição com a posição ideológica do Manifesto anterior, que delineia a ação afirmativa como criadora da diferença, está vinculada a um entendimento diferente sobre a igualdade entre os cidadãos.

Diferentemente do Manifesto anterior, a "igualdade" é entendida como algo a ser construído, "uma meta a ser alcançada". Há um pressuposto de que há pelo menos dois valores ideológicos em disputa para essa mesma palavra: "igualdade de direito" e "igualdade de fato". A primeira seria apenas impressa na lei, enquanto a segunda seria a concretização da igualdade de condições na vida real dos cidadãos. Logo, o instrumento de ação afirmativa está a serviço de construir uma igualdade de fato.

Os autores incorporaram "dados estatísticos" de uma instituição reconhecida - o IBGE, em seu texto, de modo a legitimar o argumento de que os números "expressam, sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica com os negros e os índios". Ainda que tenham sido desconsiderados no Manifesto anterior, os estudos estatísticos sobre a desigualdade racial tém sido muito importantes para revelar sua dimensão e poder desvelar os argumentos que negam o racismo.

O último conceito, "república democrática", está associado à justiça e à construção de uma igualdade por meio de ação afirmativa. Esse argumento reconhece que, "se o Estado continuar utilizando os mesmos princípios ditos universalistas com que tém operado até agora na distribuição de recursos e oportunidades para as populações que contam com uma história secular de discriminação" (Carvalho, 2004, p. 51), o resultado será a perpetuação das desigualdades raciais. Nesta concepção, há outra divergéncia fulcral com o argumento do Manifesto anterior: para este grupo, é um equívoco a adoção apenas de políticas universalistas.

A análise desses conceitos desvela outra disputa que está em jogo: há dois projetos de Brasil. Entre as duas visões sobre a identidade nacional, uma se propõe a reconhecer seu racismo para eliminá-lo; enquanto a outra escolhe conviver com ele no siléncio, mantendo a ordem do discurso que está posta.

Essas visões também se refletiram em uma Audiéncia Pública no Supremo Tribunal Federal para o julgamento da constitucionalidade da política de cotas com recorte racial em universidades17. Em análise detalhada dos discursos desse julgamento, o pesquisador em políticas educacionais, Jesus (2011), reitera que para aqueles que se contrapunham à constitucionalidade era importante conservar a imagem de uma nação "Arco-Íris". Por outro lado, para os intelectuais que defendem o recorte racial nas políticas afirmativas, a crença é de que "somente com a explicitação das bases modernas nas quais se fundam as desigualdades no Brasil, seria possível conceber as alternativas políticas mais adequadas à necessária reinvenção do Brasil" (Jesus, 2011, p. VII).

De acordo com Jesus (2011), o que está em jogo na disputa pela (i)legitimidade na implementação de ações afirmativas para populações vítimas de racismo é uma disputa por qual projeto de Brasil nós queremos, questão exposta no primeiro Manifesto. Para uns, é um projeto de Brasil esboçado desde os anos 193018, lendo as desigualdades raciais pela categoria de classe, sem reconhecer que o fator raça/ cor tem dificultado o acesso de grande parte da população aos direitos humanos. Para outros, entre os quais me incluo, o projeto de Brasil é explicitar a persisténcia de uma noção social de raça, legitimada por uma ideologia da superioridade essencial de brancos em relação aos demais grupos raciais. Para este coletivo, o silenciamento do racismo não acabaria com a desigualdade por raça/cor, mas, pelo contrário, ele reforçaria a naturalização de um racismo que é expresso na linguagem de uma ideologia da mestiçagem. Ideologia que oculta uma valorização do branqueamento que a subjaz, como bem demonstrou Munanga (1999).

Nesta seção, analisei os discursos dos principais argumentos da polémica das cotas e o quanto o debate foi polarizado. Com base nessas divergéncias de sentidos que dialogaram nos Manifestos analisados, proponho na próxima seção apontar algumas implicações desse debate para o cenário académico.

Implicações do debate para a implementação das políticas de cotas

Como uma analista do discurso, assumo que é ao desvelar as ideologias que subjazem aos argumentos expostos que podemos tensionar e, quiçá, romper as relações assimétricas entre as diferentes culturas. A análise dos documentos e de seus contextos de produção possibilitou mostrar os sentidos de "ações afirmativas" que são disputados nos debates. Eles refletem posicionamentos ideológicos dos atores envolvidos na política. Essa disputa gerou um entrave no avanço de planejamento das políticas afirmativas.

Por acompanhar o processo de implementação das políticas de cotas no ensino superior brasileiro, eu gostaria de destacar que essa polarização ocupou um grande espaço na discussão. Isso provocou um debate mais centrado na dimensão do ingresso ao ensino superior do que na permanéncia estudantil. Parece que a dicotomia "cotas sim ou não" invisibilizou questionamentos, estudos e políticas necessárias para a dimensão do planejamento e da implementação da política.

Se ações afirmativas fossem compreendidas como políticas de interculturalidade, poderiam ter promovido uma reflexão no âmbito das assimetrias entre os conhecimentos no espaço académico. Para explicar melhor esse ponto, evoco a análise de Maher (2007), sobre o contexto de educação indígena brasileiro, para destacar que a implementação de uma política intercultural só é consistente quando está baseada em um tripé da politização, da lei e do cuidado da educação das relações entre os diferentes atores. Como a autora sintetiza: "o empoderamento de grupos minoritários é, parece-me, decorréncia de trés cursos de ação: (1) de sua politização; (2) do estabelecimento de legislações a eles favoráveis; e (3) da educação do seu entorno para o respeito à diferença" (p. 257). No debate sobre as cotas, a atenção maior ainda está no aparato legal (reduzido ao ingresso). Isso parece ter fragilizado tanto a reflexão sobre as formas de recepção dos estudantes que ingressam pelas ações afirmativas e sua politização quanto sobre a educação do entorno, ou seja, dos demais atores da Universidade.

Para Silva e Silvério (2003), já estaria em curso a primeira delas, com o ingresso significativo de jovens negros, indígenas e de classes populares para redimensionar as atividades de produção académica, em outras palavras, descolonizar a Universidade (Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007). Nessa direção, acredito que as reflexões acerca da interculturalidade e da linguagem, que tém sido invisibilizadas nesse debate, possam criar espaços para promover a tal revisão nas formas de produção de conhecimento, apontada tanto por Silva e Silvério (2003) quanto pelos Estudos Descoloniais (Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007).

Apesar das lacunas, gostaria de finalizar destacando o vasto campo de pesquisas nesta área. Afinal, a política foi aprovada e algumas centenas de jovens negros e indígenas vém ingressando a cada ano nas universidades públicas brasileiras. Com isso, a demanda por repensar o papel da universidade segue atual; e dentro desses questionamentos se abrem espaços para que reconheçamos que o discurso do espaço académico é "un tipo de discurso construido desde lo social y al que —como sabemos— no todos acceden fácilmente." (Zavala, 2011, p. 55). Desses novos espaços, podemos acompanhar como esses estudantes estão sendo acolhidos no ambiente académico, incluindo os desafios que envolvem as práticas de linguagem, e ouvir os aportes que esses novos atores podem trazer à produção de conhecimento.


Rodapé

4Uma primeira versão deste texto foi apresentada em uma comunicação oral no Simpósio "Cuestiones Raciales en la era del Multiculturalismo. Perspectivas desde Colombia y América Latina", coordenado pela Profa. Dra. Mara Viveros, durante o XIV Congreso de Antropología en Colombia - La construcción de la Nación desde una perspectiva antropológica, ocorrido em Medellín, de 23 a 26 de outubro de 2012. Agradeço a Vera Rodrigues e a Paula De Grande os comentários valiosos a este texto desde sua primeira versão.
5Neste artigo, usarei as expressões reserva de vagas e cotas como similares, referindo-me a políticas de ação afirmativa que instituíram a reserva de um percentual do total de vagas para estudantes negros e indígenas em universidades públicas brasileiras.
6Sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em 29 de agosto de 2012. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/presidenta-dilma-sanciona-lei-de-cotas-sociais/. Acessado em 10.jul.2013.
7Projeto de Lei 6.264/2005, de autoria do senador Paulo Paim (do Partido dos Trabalhadores), aprovado no Senado em 2005.
8Com a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, em agosto de 1986, e com a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida, realizada no dia 20 de novembro de 1995, ambas em Brasília-DF.
9O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é a instituição responsável pela realização do Censo nacional. No quesito da raça/cor, o IBGE trabalha com a autodeclaração dos entrevistados e utiliza cinco categorias para autoidentificação - amarelo, branco, indígena, pardo e preto (estes dois últimos são agregados, para fins de análise, na categoria negro), embora nas interações cotidianas há uma gama mais variada na nomenclatura das identificações étnicorraciais. Página: www.ibge.gov.br
10É importante lembrar que a identidade racial está relacionada às concepções de raça de cada sociedade, concepções construídas socialmente. Munanga (2003) nos adverte que "o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam", logo "os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa" em todos os espaços e tempos. Destaco que a relevância de compreender o conceito de raça como uma construção sociohistórica está em não tomar as características atribuídas aos sujeitos (devido a suas raças) como algo intrínseco a eles, mas sim como algo ensinado e aprendido nas relações sociais a partir dos discursos que se organizaram sobre as raças em cada sociedade.
11Os estudos de Hasenbalg e Silva (1990) e Henriques (2001) contribuem para uma análise histórica da persistência dessas desigualdades raciais na trajetória escolar.
12Para fins de análise da desigualdade racial, utilizamos a categoria "negra" para agregar as populações "preta" e "parda", de acordo com as categorias do IBGE.
13Para acessar a uma vaga no ensino superior público brasileiro é necessário realizar exames com conteúdos das disciplinas da educação básica elaboradas pelas universidades - o chamado "vestibular". Como há um número pequeno de vagas nas universidades públicas para um público crescente de candidatos, passar no vestibular é uma disputa acirrada. Dessa forma, o vestibular das universidades públicas tornou-se um exame extremamente excludente.
14Em 2012, houve uma Audiência Pública no Supremo Tribunal Federal para julgar a constitucionalidade da política de reserva de vagas nas universidades. A aprovação da constitucionalidade das políticas afirmativas fomentou a aprovação da Lei 12.711 de 2012, que instituiu a reserva de 50% das vagas das universidades federais para estudantes de escola pública, e dentro dessa reserva destinar um percentual para estudantes pretos, pardos e indígenas de acordo com a proporção da população do estado.
15Entendo discurso como a produção de enunciados em um contexto real, eivada de sentidos sociohistóricos que refletem e refratam os valores dos interlocutores e do contexto em que é produzido. Sua produção pode conjugar diferentes linguagens e ser veiculada em diferentes suportes (papel, tela, vídeo, etc).
16O Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) é uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros. As pesquisas do Ipea são reconhecidas nacionalmente e seus trabalhos disponibilizados para a sociedade por meio de inúmeras e regulares publicações e seminários. Página: www.ipea.gov.br
17Em março de 2010, houve uma Audiência Pública no Supremo Tribunal Federal para julgar a constitucionalidade do sistema de cotas raciais em universidades, considerada constitucional por unanimidade em abril de 2012. Ver mais em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=118350 e http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=205659. Acessados em 10.jul.2013.
18Entre as obras de construção da identidade brasileira como harmoniosa racialmente, a mais clássica foi o romance "Casa Grande e Senzala" (1933), de Gilberto Freyre. Nos estudos posteriores, esse romance foi lido como uma metáfora da democracia racial brasileira.


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