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Investigación y Educación en Enfermería

Print version ISSN 0120-5307

Invest. educ. enferm vol.32 no.2 Medellín May/Aug. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL/ ORIGINAL ARTICLE/ARTÍCULO ORIGINAL

A Voz da criança que vive com o HIV / AIDS sobre as implicações na sua vida cotidiana

The voice of children who live with HIV on implications of the disease in their daily life

La voz del niño con VIH / SIDA sobre sus implicaciones en su vida cotidiana

Joel Kuyava1; Eva Neri Rubim Pedro2

1Enfermeiro. Mestre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre - RS, Brasil. email: jkuyava@yahoo.com.br.

2Enfermeira. Doutora. Professora Associada da Escola de Enfermagem UFRGS, Porto Alegre - RS, Brasil. email: evapedro@enf.ufrgs.br.

Fecha de Recibido: Octubre 31, 2013. Fecha de Aprobado: Febrero 10, 2014.

Artículo vinculado a investigación: A voz da criança que vive com hiv/aids sobreimplicações no seu cotidiano.

Subvenciones: ninguna.

Conflicto de intereses: ninguno.

Cómo citar este artículo: Kuyava J, Pedro ENR. The voice of children who live with HIV on implications of the disease in their daily life. Invest Educ Enferm. 2014;32(2): 317-325.


RESUMO

Objetivo. Conhecer a partir da voz da criança que vive com HIV/AIDS as implicações na sua vida cotidiana. Metodologia.Estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa, realizado entre novembro de 2012 a março de 2013 com a participação de cinco crianças com HIV/AIDS, com idades entre 11 a 12 anos, vinculados à Organização Não Governamental "Mais Criança" do município de Porto Alegre/RS/Brasil. A informação, coletada por meio de uma entrevista semiestruturada, foi submetida a análise temática de conteúdo. Resultados. Se evidenciaram duas categorias: Temores cotidianos da criança com AIDS, e Experiências: o conhecimento vivido. Em relação ao cotidiano as crianças relatam que não têm uma vida diferente aos dos demais; não deixam de fazer suas atividades diárias enquanto vivem com o HIV/AIDS e têm que tomar a medicação. Manifestar ter expectativas positivas para o futuro. Conclusão.As crianças com HIV/AIDS vivem uma situação complexa permeada com conflitos graves. No entanto, sua infância é similar aos de outras crianças sem a doença. Os profissionais da saúde, e em especial enfermagem, precisam desenvolver estratégias para o fortalecimento de um vínculo que possibilite à criança e a sua família a manifestação de seus sentimentos, que contribua na condução do processo de viver com esta doença.

Palavras chaves: criança; síndrome de imunodeficiência adquirida; hiv; enfermagem.


ABSTRACT

Objective. To determine the effects of HIV/AIDS on the daily lives of HIV-infected children, based on their responses to a semi-structured interview. Methodology. This exploratory descriptive study with a qualitative approach was carried out from November 2012 to March 2013 among five children with HIV aged 11 to 12 years. The children were registered at the non-governmental organization "Mais Criança" in Porto Alegre/RS/Brazil. Data were collected using semi-structured interviews, and the results were submitted to thematic analysis. Results. The analysis of content identified two categories: fears in daily life of the child with HIV and experiences: lived knowledge. With regard to daily life, the children reported no difference in their lives compared with the lives of other children because they can take part in any activities they want if they are taking their medicines. They seemed to have positive expectations about the future.Conclusion. Children with HIV/AIDS live in a complex situation with severe conflicts. However, their childhood is similar to that of other children without the disease. Health professionals, especially nurses, need to develop strategies to strengthen the bond with these children and their families in order to give them the opportunity to express their feelings and to cope better with living with the disease.

Key words: child; acquired immunodeficiency syndrome; hiv; nursing.


RESUMEN

Objetivo. Conocer a partir de la voz del niño con VIH/SIDA las implicaciones que esta presenta en su vida cotidiana. Metodología.Estudio exploratorio descriptivo con abordaje cualitativo, realizado de noviembre de 2012 a marzo de 2013 con la participación de cinco niños con VIH/SIDA, con edades entre 11 a 12 años, vinculados a la Organización No Gubernamental "Mais Criança" del municipio de Porto Alegre/RS/Brasil. La información se recolectó mediante una entrevista semiestructurada, la cual fue sometida a análisis temática de contenido. Resultados. Se evidenciaron dos categorías: Temores cotidianos del niño con SIDA, y Experiencias: el conocimiento vivido. En relación con lo cotidiano, los niños relataron que no tenían una vida diferente a la de los demás, no dejaron de hacer sus actividades diarias y, por supuesto, tuvieron que tomar la medicación. Manifiestaron tener expectativas positivas para el futuro. Conclusión. Los niños con VIH/SIDA viven una situación compleja permeada con conflictos graves. Sin embargo, su infancia es similar a la de los deás niños. Los profesionales de la salud, y en especial enfermería, necesitan desarrollar estrategias para el fortalecimiento de un vínculo que posibilite al niño y a su familia la manifestación de sus sentimientos, que contribuya en la conducción del proceso de vivir con esta enfermedad.

Palabras clave: niño; síndrome de inmunodeficiencia adquirida; vih; enfermería.


INTRODUÇÃO

O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) se apresenta nos dias de hoje como um grande problema de saúde, e a cada dia mais e mais pessoas se infectam pelo vírus, apesar de que no Brasil, frequentemente são lançadas nos meios de comunicação várias campanhas, e também, há políticas institucionalizadas orientando sobre essa situação. Em 2011 o número de pessoas vivendo com HIV no mundo chegou a 34 milhões, destas, 3,4 milhões são crianças com menos de 15 anos.1 No Brasil, de 1980 até 2012 os casos de HIV notificados chegaram a 656.701 mil casos, sendo que destes, aproximadamente 15 mil casos (14.807) são de crianças menores que treze anos de idade.2 A epidemia de HIV/aids configura-se um dos mais sérios problemas contemporâneos de saúde pública, apresentando alto grau de morbimortalidade e perspectivas de um contínuo crescimento e propagação em todos os continentes. As possibilidades de controle dessa pandemia ainda parecem remotas, apesar do desenvolvimento de novas terapias e do esforço mundial na busca de uma vacina eficaz contra a infecção.3

As crianças vivendo com o HIV/aids constituem uma população heterogênea no que se refere à forma e idade em que ocorreu a transmissão, com consequências para suas condições clínicas, imunológicas, psicossociais, culturais e histórico de tratamento. Hoje, tem-se a primeira geração de crianças e adolescentes vivendo com o HIV/aids desde o nascimento e com todas as repercussões que a doença acarreta, entre elas, a necessidade de utilização contínua de medicações. Nessas situações, é fundamental, considerar as implicações dessa situação para a vida das crianças.4 As crianças que vivem com HIV/aids estabelecem um vínculo duradouro com os profissionais que as assistem e com o serviço de saúde. Nesse longo convívio, há os períodos estáveis e aqueles geradores de medo, angústias e incertezas, tanto para ela quanto para a equipe e família. Em um estudo sobre as vivências da criança com HIV e seus familiares foi identificado que as idas e vindas ao posto de saúde é para elas um momento de bem estar, pois é o tempo e espaço que têm para falarem abertamente sobre a doença com os profissionais, despojando-se dos sentimentos de vergonha e preconceito.5 Portanto, esses momentos podem ajudar no esclarecimento de dúvidas assim como gerar muitos outros medos e angústias e ainda há, a necessidade de espaços para essas crianças poderem manifestar como fazem para viver bem, ou mesmo, o que fazem para suas vidas serem boas apesar de tudo.

Entende-se que as relações familiares, manifestações de sentimentos, percepções de seus medos e fantasias podem influenciar no seu cotidiano e, portanto, ouvir das próprias crianças a sua percepção, pode contribuir para o avanço e produção do conhecimento na enfermagem seja em nível nacional ou mesmo internacional.

Diante disso a questão de pesquisa desse estudo foi a seguinte: O que a criança que vive com HIV/aids relata sobre as implicações da sua condição no seu cotidiano? Para tanto o objetivo do estudo é conhecer a partir da voz da criança que vive com HIV/aids as implicações no seu cotidiano. Percebe-se a necessidade de se estudar essa parcela da população buscando conhecer, a partir, de seus próprios olhares, como é sua (com)vivência com a aids no intuito de olhar para as necessidades podendo criar estratégias para proporcionar uma vida com mais qualidade.6

METODOLOGIA

Realizou-se um estudo exploratório descritivo, com abordagem qualitativa na sede da Organização Não-Governamental (ONG) Mais Criança em virtude do reconhecimento de seu trabalho junto à população acometida pelo HIV no município de Porto Alegre/ RS/ Brasil, bem como, por representar uma instituição destinada ao apoio, educação preventiva e assistência psicológica e socioeconômica de crianças e adolescentes, e suas respectivas famílias, que vivem com aids. A ONG Mais Criança, atualmente, desenvolve suas atividades junto a 78 famílias e acompanha, aproximadamente, 100 crianças e adolescentes com HIV/aids, com idades entre 0 a 19 anos, sendo um cenário extra-instituições de saúde propício à realização do presente estudo. à ONG Mais Criança estão vinculadas crianças e famílias dos mais variados serviços de saúde do município de Porto Alegre, sendo que dessa maneira, apresenta uma clientela bastante diversificada e representativa, de modo geral, de diferentes instituições de cuidado, classes sociais e bairros de Porto Alegre.7

Os participantes deste estudo foram cinco crianças, com idade entre 11 e 12 anos, sendo um menino e quatro meninas, que apresentaram condições de transmitir informações de modo independente, sem auxilio do cuidador. Esse número de deve a várias situações limitantes como, a dificuldade em conseguir marcar dias e horários disponíveis para as mães devido a fatores como o calor que fazia no verão, o cuidado aos outros filhos ou mesmo a despreocupação com o estudo. Outro fato que dificultou o número de crianças, foi que se tratando de uma faixa etária limitada, muitas crianças que frequentam a ONG, não tinham a idade esperada, eram crianças muito pequenas. Além disso, como foi previsto a coleta em fins de período escolar, justamente por se acreditar que em férias, se obteria maior probabilidades de visitas das crianças à ONG, ocorreu o contrário. No entanto, o material coletado nas entrevistas, ao serem transcritos e submetidos à análise, permitiu evidenciar que os mesmos atendiam ao objetivo proposto. Sabe-se que em entrevistas com crianças, as particularidades das falas devem ser levadas em consideração.

A seleção dos participantes foi intencional e realizada por meio de um contato prévio com a presidente da ONG que indicava as crianças que preenchiam os critérios de inclusão, ou seja, crianças que vivem com HIV/aids que conheciam seu diagnóstico, usavam medicação antirretroviral no mínimo há seis meses, vinculadas à ONG Mais Criança, e que aceitariam participar do estudo sendo autorizadas pelos pais ou responsáveis legais. A coleta das informações ocorreu por meio de uma entrevista, semiestruturada que se denominou nesse estudo de 'bate-papo', pois as crianças gostam de falar e de contar coisas sobre as suas vidas cotidianas de modo informal. O roteiro foi elaborado levando-se em consideração a idade da criança, as características da etapa do desenvolvimento, as questões relativas à terapia antirretroviral e as implicações da doença na vida das crianças. Tentou-se da maneira mais simples possível, adequar ao entendimento e linguagem infantil.

Durante a entrevista, o bate papo foi conduzido de maneira informal e intermediado por atividades de escolha da criança sendo que o mais evidente foi mesmo uma conversa informal sobre atividades diárias, preferências por esportes, time de futebol, tipo de brincadeiras, o que esperavam fazer nas férias entre outros aspectos. As questões bioéticas foram respeitadas e empregadas conforme as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa em Seres Humanos, conforme a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.8 O Termo de Consentimento Livre Esclarecido aos pais ou responsável legal pelas crianças foi elaborado assegurando o direito a informações sobre a pesquisa, à participação voluntária e a autorização para publicação dos dados e foi assinado em duas vias, uma ficando com o responsável e outra com o pesquisador. O anonimato das crianças foi garantido e as mesmas receberam como denominação a letra S (de sujeito) e um número conforme a sequência das entrevistas (1, 2..), no caso S1, S2, S3, S4 e S5. O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da UFRGS sendo aprovado sob o número 109.049. Salienta-se não haver nenhum conflito de interesse neste estudo.

RESULTADOS

A análise das informações, por meio da análise temática de conteúdo evidenciou duas categorias: Temores no cotidiano da criança com aids e Experiências: o conhecimento vivido.

Temores no cotidiano da criança com aids

Nas falas os temores apontados pelas crianças fazem parte da sua vida e estão relacionados principalmente ao preconceito e a discriminação, ao sigilo e ocultamento e aos sentimentos negativos em relação a doença ou ao uso da medicação antirretroviral. Os mesmos permeiam o seu dia a dia, e são identificados como algo que muitas vezes não é considerado bom, que elas precisam ocultar sua condição de seus amigos ou familiares ou quando são solicitadas a explicarem alguma situação, o uso de medicação, por exemplo, negam sua patologia, e utilizam outras doenças consideradas menos agressiva para justificar, como observado nas falas: Sabem, mas eles me perguntaram o que eu tinha e eu disse que tinha Asma (S1;Não, ninguém sabe. Eu não conto pra ninguém (S2); Eu não conto pra ninguém (S5). Outro tema relacionado diretamente com o temor é o preconceito e a discriminação, que ainda fazem parte do cotidiano das crianças que vivem com HIV/aids, observa-se a seguir: Eles me chamam de aidética, e isso é muito ruim ...(S4); Todo mundo me chama de coisa no colégio (S5).

As expressões aidética e coisa apesar de serem emitidas por outras crianças, seus colegas e pares de convívio, transmitem mesmo que de forma muitas vezes inconsciente, o que lhes são transmitidos por adultos, de quem ouvem e reproduzem. A busca por artifícios, ou a comparação da aids em relação outras doenças como a tuberculose, mostra que o sujeito com HIV/aids tenta encontrar um refúgio no que não lhe é conhecido, mais popular, para repassar aos outros de que não é tão ruim assim o que ele tem, como expressado pelo S3 na fala a seguir: (...) eles deixam as pessoas de lado. Porque na verdade é como se tivesse tuberculose. Não tem tanto problema assim (...) Ainda tem muito preconceito (S3.)

O uso das medicações está associado ao estar bem, a tristeza, assim como não ficar doente ou então não correr o risco de morrer, como observado nas falas: Eu sei que é uma coisa ruim e que eu tenho que tomar, senão eu vou ficar doente e vou parar no hospital e não é legal (...) Quando as pessoas falam do meu pai. Porque ele morreu faz pouco tempo Ele tinha a doença também, e isso me deixa triste (S3); ou ainda no que o uso da medicação pode interferir nas suas atividades diárias como (...) quando eu tenho que parar tudo pra tomar (S2), ou seja, parar de brincar, interromper o que estava fazendo, foi referido como algo que atrapalha a sua vida cotidiana. Aqui aparece a dualidade de interpretações que as crianças são capazes de vivenciar. Precisa tomar, tem que tomar, mas ao mesmo tempo ocorre uma limitação que se dá pela interrupção de momentos, muitos deles de significação expressiva da vida da criança como parar de brincar por exemplo.

Experiências: o conhecimento vivido

Nessa categoria agruparam-se as situações que estão presentes no cotidiano das crianças e que de certa forma trazem implicações no seu modo de viver como por exemplo, o uso regular das medicações, as expectativas em relação ao futuro, as rotinas como ir a escola, as brincadeiras entre outras experiências as quais fazem parte da vida dessas crianças e que de certa forma configuram-se como relevantes para o seu viver com essa patologia e todas as circunstâncias que lhes são afetas.

Em relação ao uso das medicações ficou evidente que a apresentação dos remédios, a palatabilidade e a interrupção da rotina ainda é o que mais predomina para estes sujeitos, como se observa nas falas a seguir: Antes eu tomava Kaletra, aquele líquido e aí eu vomitava todo o remédio ele era horrível (S1); Eu escondia os remédios em baixo da máquina de lavar da minha mãe, porque eu não gostava de tomar(...) por causa do gosto ruim eu sentia ânsia de vômito (S1); Eu não me sinto muito bem! Parece que ele tranca na garganta. E eu me sinto incomodada (...) (S2); Ele gruda na garganta e tem gosto ruim (S3).

Observa-se que nos depoimentos das crianças a palatabilidade, ou seja, o gosto da medicação ainda é um entrave na melhora da adesão aos antirretrovirais e por consequência um aumento na sua sobrevida e qualidade de vida. Ao não aderirem em virtude de não aceitar o gosto e também devido aos efeitos colaterais das medicações, as infecções oportunistas, a piora da clínica, interferem sim no desenrolar de suas vidas, seja retirando a criança do seu contexto por hospitalizações, ou mesmo tornando-a vulnerável a outros agravos ou ainda deixando-a fatigada e abatida impedindo suas atividades cotidianas como ir a escola, participar de brincadeiras, passeios entre outras. Nas falas observa-se ainda que o gosto da medicação faz com que, o fato de ter que tomar uma medicação no mínimo duas vezes por dia seja um grande problema para eles, gerando uma sensação ruim e por muitas vezes uma negação em usar. Essa negação ficou clara na fala do S1 quando afirmou que escondia as medicações com a finalidade de não ter que tomar.

Em relação ao cotidiano das crianças, nas falas foi observado que tudo é dito como normal. Quando questionadas sobre suas rotinas e dia a dia, a condição de viver com HIV/aids ou tomar as medicações não interfere no que diz respeito as suas atividades: É tudo normal (...) (S2); É tudo normal (...) Eu sou bem tranquila (S5).

Essas evidências foram constatadas quando foi questionado às crianças como é a rotina de ir à escola, no sentido de quais as atividades desenvolvidas que poderiam gerar um cansaço físico, como por exemplo, as brincadeiras no período de intervalo, de correr, jogar subir escadas entre outras atividades. Verificou-se que essas atividades não trazem prejuízo para as crianças, pois elas continuam desenvolvendo sua rotina física sem interferência, ou sem que elas tenham percebido, que em algum momento a doença ou as medicações podem alterar essa situação: Não fico cansado com nada (...) (S1); Quando eu vou no parque. Lá eu corro bastante, ando de balanço(...) (S2); Gosto de brincar(...) Na escola é tranquilo, é bom (S3).

As crianças referem que gostam de brincar como qualquer outra, e que o fato de terem que conviver com o HIV não as impede de levar uma vida normal, como na fala do S2 quando questionado sobre o que lhe deixa feliz responde que ir ao parque e correr bastante.

Constata-se a seguir que por mais que eles refiram que seu dia a dia é normal, o fato de ter que parar alguma atividade para ter que tomar as medicações é considerado como algo ruim, e que interfere diretamente no seu cotidiano: E eu me sinto incomodada (...) porque eu tenho que parar tudo pra ir tomar os remédios e isso é ruim (S2); É muito ruim ter que tomar porque eu não gosto de ter que tomar todos os dias (S3); Eu tenho que parar tudo pra ir tomar os remédios (S5).

Como observado nas falas a seguir, as crianças que vivem com HIV/aids, pensam em ter um futuro trabalhando nas mais diversas áreas, sem qualquer tipo de diferenciação. Quando questionadas sobre qual a profissão que gostaria de exercer no futuro, as respostas foram semelhantes às de crianças sem nenhuma patologia: Ser jogador de futebol (S1); Garçonete, num mercado, arrumando as coisas (S2); Professora ou médica (S4). As crianças com HIV/aids desenvolvem uma profunda busca por artifícios que poderiam servir de estratégia para não serem vistos como diferentes. Elas são capazes de adequar seu modo de viver em virtude da aceitação dos outros.

DISCUSSÃO

Temores no cotidiano da criança com aids

O termo qualidade de vida é norteada pela busca do conforto e o bem estar. Vários são os significados do termo, que é composto de conhecimentos, experiências individuais e coletivas, levando em consideração os diferentes cenários sociais e culturais.9 Partindo desse definição, essa categoria evidenciou a percepção das crianças sobre a sua posição em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, ou seja, seu cotidiano.

O silenciamento e sua repercussão na vida das crianças associadas a sua condição de saúde, nessa etapa da vida, principalmente na escola, que, para a maioria deles, é o espaço social mais frequentado deve ser refletido. Fica evidente a necessidade de ações que promovam o melhor viver na vida da escola para essas crianças que lidam com o medo da discriminação e de serem rotuladas.10 Apesar de muitos esforços da busca de desconstruir a imagem estigmatizada, a aids e a as formas de contaminação do HIV ainda são associadas à adoção de comportamentos não aceitos socialmente.11

Ainda nesta questão, a omissão da condição de seropositividade, por exemplo, pode servir como estratégia, em alguns momentos, para evitar as situações de discriminação e processos de estigmatização, que são processos de desvalorização dos sujeitos, que produzem iniquidades sociais e reforçam aquelas já existentes. A convivência com a condição de portador leva crianças e jovens e seus cuidadores a evitarem contextos que podem oferecer problemas de estigmatização.12

Essas formas dos colegas se dirigirem a essas crianças hoje é conhecida como bullyng e deve ser estudada e discutida nos vários cenários por onde transitam as crianças como escola, família, amigos entre outros. Pelas expressões demonstradas por essas crianças ficou evidente que elas silenciam sobre isso e se envergonham. Fica evidente que o contexto social e familiar tem papel preponderante na transmissão de valores as crianças. O sentido social do preconceito é pejorativo, em que o que o outro tem como opinião sobre alguém ou algum assunto, é admitido e indiscutível. Sendo assim essa opinião é transmitida culturalmente e, consequentemente, internalizada pelas pessoas que são influenciadas em seus modos de agir.13

A manifestação de sentimentos de tristeza e medo além da sensação de que a qualquer momento podem ficar doentes fazem com que surja o receio de revelar sua condição a família e a rede de relações temendo os julgamentos aos quais será submetido. Todos esses sentimentos acrescenta-se ao próprio preconceito ligado a uma doença ainda associada e marcada por estigmas e estereótipos.14

Ao relatar que podem ser deixados de lado, já denota o medo de ser diferenciado pelo grupo, de não ser aceito. Então encontram para si próprios, uma justificativa. Na sua percepção, dizer que tem tuberculose, que no passado era uma doença também muito grave e incurável e sobre a qual provavelmente já tiveram conhecimento, lhes permite acreditar que aos olhos dos outros, sua doença tem que ser vista como não muito grave, e nem muito com muito problema.

Conforme observado na fala da criança acima, na intenção de manter a condição de viver com HIV/aids, para a sociedade deve-se manter oculto através de outras doenças escondendo a origem da infecção e as situações moralmente indesejáveis, bem como justificando o uso prolongado dos medicamentos.15

Sabe-se que as pessoas que vivem com HIV/aids, convivem diariamente com o medo de adoecer em virtude de alguma complicação causada pela doença ou de até mesmo morrer. Isso se justifica principalmente pelo fato de esta patologia estar muito associada a morte. Embora hoje a aids seja considerada uma doença com características de cronicidade, ainda é vista por muitos como uma doença limitante e responsável pela abreviação da vida.16

Experiências: o conhecimento vivido

O sabor dos medicamentos é sem dúvida um grande fator que dificulta a adesão medicamentosa. A indústria farmacêutica vem manifestando sua preocupação em lançar no mercado medicamentos mais específicos e adaptáveis ao uso em crianças como, por exemplo, o tamanho dos comprimidos e tipo de fórmulas. Recentemente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no Brasil, aprovou o antirretroviral Raltegravir que terá nova apresentação, serão tabletes mastigáveis de 25mg e 100mg, com a finalidade de facilitar o tratamento de crianças de dois a 12 anos de idade infectadas com HIV.17

Sabe-se que muitos indivíduos que vivem com HIV/aids escondem os frascos de medicação antirretroviral ou trocam as embalagens, falam de sua infecção como sendo outra doença ou buscam esconder seu tratamento para não serem reconhecidos como quem tem HIV/aids.18 O normal para eles diz respeito ao fato de não ter influencia nas suas rotinas, principalmente no dia a dia, como o ir à escola, brincar com os amigos e todas as outras atividades que poderiam gerar um desgaste físico ou até mesmo psicológico em função do HIV.

Para as crianças com HIV/aids a percepção de normalidade pode influenciar na adesão medicamentosa, uma vez que não se sentem doentes, o que demonstra o seu viver com uma situação de dualidade, ou seja, viver com a doença e viver normal. A ausência de sintomas pode interferir na percepção e gravidade da doença e, consequentemente, ser um fator sentir-se normal.19

Essas respostas demonstram que as crianças têm uma percepção diferente da condição em que vivem em relação, por exemplo, aos adultos, que se colocados na mesma situação. Provavelmente em se tratando de adultos, poderíamos encontrar mais relatos de desânimo, ou mesmo queixas de depressão, ou ainda a demonstração de sentirem-se sem forças muitas vezes para continuar. Nesse caso sabe-se que crianças portadoras de doenças crônicas ou mesmo graves apresentam uma maturidade precoce. A doença crônica impõe modificações na vida da criança e sua família, exigindo readaptações frente à nova situação e estratégias para o enfrentamento. Esse processo depende da complexidade e gravidade da doença, da fase em que eles se encontram e das estruturas disponíveis para satisfazer suas necessidades e readquirir o equilíbrio.20

As expectativas entram nessa categoria como importantes questões relativas à vida e ao desenvolvimento das crianças. Elas, como qualquer criança, têm desejos e aspirações em relação ao seu futuro. Não é levado em consideração por elas, o fato de terem uma doença ainda incurável e que poderia interromper essas aspirações futuras.

Nessa questão, entra a capacidade de resiliência das crianças, visto que diante de desafios, ameaças e nesse caso de uma situação considerada desfavorável por muitos, a criança simplesmente consegue desenvolver uma condição básica e positiva para adaptar-se a essa nova condição, buscando bons resultados apesar de muitos fatores que poderiam ameaçar seu desenvolvimento.21,22 A concepção de resiliência em pessoas que vivem com HIV/aids contribui para acabar com o estigma e preconceito, podendo desmistificar a questão de que bem estar e qualidade de vida são estados contraditórios e incongruentes com a vida dessas pessoas.23 A situação de viver com HIV/aids é de extrema adversidade, principalmente para os adultos, porem no caso específico de crianças, pode ser interpretada como fonte potencial para mudança e para novas oportunidades diante da vida.24

Por meio deste estudo, ficou evidente que em relação ao cotidiano das crianças, elas relatam que não têm uma vida diferente das demais crianças, não deixam de fazer suas atividades diárias em virtude de ter que conviver com o HIV/aids ou ter que tomar as medicações, por mais que essa questão ficou evidenciada como uma implicação no seu modo de vida. A interrupção ou mesmo a necessidade de adiar uma atividade em função de ter que tomar as medicações antirretrovirais, já está introjetada no seu viver, e apesar disso, elas convivem bem. As crianças do estudo demonstraram enfrentar na escola, na roda de amigos, na rua e até mesmo no seu próprio núcleo familiar estes preconceitos e discriminações, o que certa forma interfere no seu cotidiano. Os sentimentos negativos gerados por esses temores pode comprometer o seu viver diário, levando-as a rejeitar o tratamento, ou mesmo não aderir de forma efetiva, comprometendo muitas vezes uma melhora ou até mesmo de piora nos sintomas. Essas questões ficaram evidentes quando as crianças do estudo afirmaram omitir sua condição de viver com HIV/aids para os demais, afim de evitar esses tipos de sentimentos negativos, uma vez que pode-se perceber que a aids está ainda associada a morte. Para as crianças, ocultar sobre sua condição alem de manter o preconceito e a discriminação longe, é uma forma de não divulgar que eles irão conviver com uma doença por toda sua vida sem cura ainda e que muitas pessoas e até mesmo familiares acabaram morrendo por alguma complicação causada pelo HIV.

Considera-se importante o papel do profissional da saúde, e principalmente do enfermeiro, no que se refere buscar compreender, auxiliar e principalmente dar voz a essas crianças. O enfermeiro, muitas vezes é a refer&ecirda em ouvir, ajudar, e principalmente não criticar ou julgar a situação que está sendo vivenciac;ncia para essas crianças, tanto pelo tipo de aproximação que faz com eles e seus familiares, como pela disponibilidade demonstrada. A pesquisa não esgotou a temática, mas possibilitou muitos outros questionamentos que podem servir de foco para novas investigações e implementações de ações de cuidado para essa população nas instituições de saúde e ensino com um número maior de sujeitos.

As limitações foram superadas, principalmente no que diz respeito ao número de sujeitos, a partir do momento em que se fez uma leitura prévia do material coletado e se verificou que o conteúdo para ser analisado seria suficiente para atingir o objetivo do estudo. Por fim o estudo em questão possibilitou o conhecimento do que é considerado, a partir da voz das crianças o seu viver com HIV/aids, uma vez que foi evidenciado situações diárias relacionadas a seu bem-estar como suas preocupações, expectativas e aquelas relacionadas a sua saúde. Sabe-se que estudos na infância e com a infância são de tendência assistencial e de natureza clínico-epidemiológica,25 com pouca ênfase nas questões relativas às implicações socioculturais, comportamentais e emocionais das crianças.

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