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Investigación y Educación en Enfermería

Print version ISSN 0120-5307

Invest. educ. enferm vol.33 no.3 Medellín Sep./Dec. 2015

https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n3a20 

ARTÍCULO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE / ARTIGO ORIGINAL

 

doi:10.17533/udea.iee.v33n3a20

 

A enfermagem na atenção primária ao cuidar de mulheres em situação de violência de gênero

 

Women's primary care nursing in situations of gender violence

 

Enfermería en la atención primaria de salud y el cuidar de las mujeres en situación de violencia de género

 

Fernanda Visentin1; Letícia Becker Vieira2; Ivana Trevisan3; Elisiane Lorenzini4; Eveline Franco da Silva5

 

1Enfermeira. Faculdade Nossa Senhora de Fátima. Caxias do Sul/Brasil. email: fervisentin@gmail.com.

2Enfermeira, Doutora. Professora, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre/Brasil. email: lebvieira@hotmail.com.

3Enfermeira, Mestre. UFRGS. Porto Alegre/Brasil. email: ivanatrevisan@yahoo.com.br.

4Enfermeira, Mestre, Doutoranda. UFRGS. Porto Alegre/Brasil. email: elisilorenzini@gmail.com.

5Enfermeira obstetra, Mestre. Professora, Faculdade da Serra Gaúcha. Porto Alegre/Brasil. email: evelinefranco@yahoo.com.br.

 

Fecha de Recibido: Febrero 7, 2015. Fecha de Aprobado: Abril 15, 2015.

 

Artículo vinculado a investigación: Violência de gênero: atuação de enfermeiros de Unidades Básicas de Saúde de um município da Região Nordeste do Rio Grande do Sul

Subvenciones: Ninguna.

Conflicto de intereses: Ninguno.

Cómo citar este artículo: Visentin F, Vieira LB, Trevisan I, Lorenzini E, Silva EF. Women's primary care nursing in situations of gender violence. Invest Educ Enferm. 2015; 33(3):556-564

 


RESUMO

Objetivo.Identificar as ações realizadas pelo/a enfermeiro/a da atenção primária a saúde para mulheres em situação de violência doméstica. Metodologia. Exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa. Os participantes foram 17 enfermeiros que trabalhavam em Unidade Básica de Saúde em um município do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e processamento de informação foram realizados utilizando a técnica de análise de conteúdo de entrevistas. Resultados. Ao agir no contexto da violência o/as enfermeiros/as descrevem alguns elementos e estratégias que eles utilizam e que permitem o reconhecimento e ação para combater a violência, que são: o acolhimento e empatia, estabelecimento de um vínculo de confiança entre profissional e mulheres, diálogo e escuta atentiva. As limitações mencionadas pelos participantes foram: a falta de formação profissional para resolver a situação, o sentimento de falta de preparo, falta de tempo para a carga de trabalho, a dificuldade do profissional em reconhecer e lidar com a violência dado sua complexidade, baixa resolutividade da rede de atendimento, e a sensação de impotência profissional frente à gravidade e complexidade que envolve a violência. Conclusão. Os participantes não são adequadamente preparados para cuidar de mulheres em situação de violência doméstica. é necessário que esta questão seja abordada na formação dos profissionais de enfermagem.

Palavras chave: cuidados de enfermagem; atenção primária à saúde; cônjuges; violência contra a mulher.


ABSTRACT

Objectives. Identify the actions conducted by primary health care nurses for women in situations of domestic violence. Methodology. Exploratory-descriptive study with a qualitative approach. Participants were 17 nurses who worked in the Basic Health Unit in a city in the interior of Rio Grande do Sul, Brazil. The data was collected through semi-structured interviews and the information processing was performed using the interview content analysis technique. Results. By acting in a context of the violence, the nurses describe some elements and strategies they use that allow recognition and action to combat violence, namely: acceptance and empathy, establishing a bond of trust between the professional and the woman, dialogue, and intent listening. The limitations mentioned by participants were: lack of professional training to address the situation, feeling of unpreparedness, lack of time for the workload, the professional’s difficulty in recognizing and dealing with violence given its complexity, low efficiency of the service network, and the sense of professional impotence against the gravity and complexity involved in violence. Conclusion. The participants are not adequately prepared to care for women in situations of domestic violence. It is necessary that this issue be addressed in the training of nursing professionals.

Key words: nursing care; primary health care; spouses; violence against women.


RESUMEN

Objetivo.Identificar las acciones tomadas por las enfermeras de atención primaria de salud a las mujeres en situación de violencia de género. Metodología. Estudio exploratorio-descriptivo con abordaje cualitativo. Los participantes fueron 17 enfermeros que laboraban en la Unidad Básica de Salud de una ciudad del interior de Río Grande do Sul, Brasil. Los datos se recolectaron mediante entrevistas semi-estructuradas; el procesamiento de la información se realizó con la técnica de análisis de contenido. Resultados. Al actuar en el contexto de la violencia de género, el personal de enfermería describe algunos elementos y estrategias que utiliza y que le permite el reconocimiento y la actuación para enfrentarla, estos son: la acogida y la empatía, el establecimiento de un vínculo de confianza entre profesional y la mujer, el diálogo y la escucha con atención. Las limitaciones que mencionaron los participantes fueron, entre otras, la falta de formación profesional para enfrentar la situación, la sensación de falta de preparación, la falta de tiempo por la sobrecarga de trabajo, la dificultad del profesional para reconocer y hacer frente a la situación de violencia de género dada su complejidad, la baja eficiencia de la red de servicios, y el sentido de impotencia profesional contra la gravedad y la complejidad involucrada en este tipo violencia. Conclusión. Los participantes no están adecuadamente preparados para el cuidado de la mujer en situación de violencia de género. Es necesario, entonces, que esta temática sea abordada en la formación del profesional de enfermería.

Palabras clave: atención de enfermería; atención primaria de salud; esposos; violencia contra la mujer.


 

INTRODUÇÃO

A violência tem grande magnitude e transcendência mundial, com raízes macroestruturais, representando um problema histórico, social, sendo um problema de saúde. Encontra-se diluída na sociedade, é polimorfa, multifacetada e apresenta diversas manifestações que se interligam, interagem, realimentam-se e se fortalecem.1 A violência física e sexual contra a mulher é um problema de saúde pública que afeta a mais de um terço de todas as mulheres do mundo, tratando-se de um problema de saúde global com proporções endêmicas.2 A violência de gênero constitui-se por todo e qualquer ato que implique em danos físicos, morais, sexuais e/ou psicológicos que causem constrangimentos à mulher, tanto na esfera privada quanto na pública. Tal definição está ancorada no conceito analítico de gênero, que designa comportamentos femininos e masculinos a partir de elementos socioculturais que os indivíduos carregam consigo de seus antepassados.3 A violência de gênero resulta em graves consequências para a saúde física e mental das mulheres. Estudo transversal, realizado na Colômbia com 150 mulheres com histórico de violência, mostra que sintomas depressivos e dor crônica foram apresentados em 74% e 42% das participantes, respectivamente.4

Atualmente, no Brasil contabiliza-se 4.4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que o coloca no 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. No Estado do Rio Grande do Sul, em 2012, morreram 93 mulheres vítimas de violência doméstica, são mais de duas mulheres mortas por semana. No ranking de homicídios femininos o Estado do Rio Grande do Sul ocupa o 18º lugar, com o registro de 226 casos para 100 mil mulheres.5 O setor saúde caracteriza-se como uma porta de entrada para o atendimento das mulheres em situação de violência.6 Nesse contexto, os profissionais de saúde ocupam um lugar estratégico na identificação da violência, bem como na assistência à saúde dessas mulheres e seu encaminhamento a serviços especializados.7 Sendo os serviços de atenção primária à saúde fundamentais na detecção da violência contra as mulheres, porque têm grande cobertura e contato com as mulheres, podendo reconhecer e acolher o caso antes de incidentes mais graves. Para isso, requer profissionais preparados e capacitados para prestar uma assistência integral e resolutiva às mulheres.8

No que diz respeito ao cuidado às mulheres em situação de violência de gênero, o enfermeiro deve estar capacitado para atender essas mulheres de maneira empática, buscando oferecer uma atenção humanizada e uma escuta qualificada, tornando possível a confiança mútua entre o profissional de Enfermagem e a mulher que está nessa situação, para que ela consiga discorrer sobre a ocorrência de agressão. A partir dessa aproximação, o enfermeiro, juntamente com a mulher e a equipe multiprofissional, podem elaborar um plano estratégico para o combate, enfrentamento e prevenção a recorrência da violência na vida da mulher.9 Destaca-se assim a importância da atuação do enfermeiro/a no contexto da violência de gênero na atenção primária. Tais reflexões conduziram o presente estudo, o qual teve como questão norteadora: quais ações o enfermeiro realiza no cuidado à mulher em situação de violência de gênero e quais limitações são enfrentadas neste contexto? E, como objetivo: identificar as ações realizadas pelo/a enfermeiro/a da atenção primária a saúde ao cuidar de mulheres em situação de violência.

Quando se atinge o conhecimento de que a violência é um grave problema de saúde pública, principalmente na atenção primária, que necessita de profissionais especializados, destacando o enfermeiro dentro da equipe multiprofissional, além de uma rede de apoio qualificada, torna-se possível aplicar as medidas de enfrentamento para a violência. A produção do conhecimento na Enfermagem visa fortalecer e esclarecer os conceitos, definições de ações e elaborar estratégias de gestão relativas à temática violência de gênero. Assim acredita-se que a atuação do enfermeiro dentro deste contexto pode contribuir para a identificação precoce, ações de prevenção, assistência de qualidade e combate à violência contra as mulheres.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, com abordagem qualitativa, que foi realizado em dez Unidades Básicas de Saúde (UBS) da rede de atenção primária à saúde de um município do interior do Rio Grande do Sul - Brasil. Participaram do estudo 17 enfermeiros/as, que foram selecionados aleatoriamente e que atendiam aos critérios de inclusão: exercer função de enfermeiro/a; possuir experiência mínima de três meses na Atenção Primária à Saúde. Os critérios de exclusão foram: estar afastado/a do trabalho no período da coleta de dados; estar trabalhando temporariamente, como substituto ou não fazer parte da equipe de saúde da UBS. Para determinação do número de participantes foi utilizada a amostragem por saturação, na qual se interrompe a coleta de dados com determinado número de sujeitos quando se constata que novas entrevistas passam a representar uma quantidade de repetições em seu conteúdo.10

A produção dos dados ocorreu no período de setembro a outubro de 2012, por meio da técnica de entrevista semiestruturada. As entrevistas foram conduzidas pela autora principal, a partir de um roteiro elaborado pelas pesquisadoras, composto por questões sobre a atuação dos/as enfermeiros/as no contexto da violência de gênero, ações e ferramentas que os mesmos utilizam no atendimento à mulher em situação de violência, conhecimento sobre políticas e leis que tratam do assunto e se os mesmos/as sentem-se capacitados/as para este atendimento. Atentou-se para o ambiente da entrevista, sendo este uma sala reservada, no próprio local laboral do entrevistador, onde não houvesse interrupções. Naquele momento, era apresentado o termo de consentimento livre e esclarecido - TCLE e assinando pelas participantes. Não houve recusas de participação na pesquisa.  Esta pesquisa seguiu os preceitos éticos da Resolução 466/2012,12 com aprovação no Comitê de ética em Pesquisa da Faculdade Nossa Senhora de Fátima/RS (nº. 104.425 e Certificado de Apresentação para Aprovação ética: 04541112.7.0000.5523). Para a manutenção do sigilo foi utilizado um código com letra E (entrevistada) e numeral ordinário em ordem crescente na identificação dos participantes (E1, E2, ..., E17). As entrevistas tiveram tempo médio de duração de trinta minutos, foram audiogravadas e posteriormente transcritas para análise de conteúdo, que se constituiu de três etapas: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.11 Para a interpretação procurou-se articular o material estruturado das entrevistas à literatura correlata ao objeto de estudo. Na análise foram destacadas as palavras que formaram os núcleos de sentidos, compondo duas categorias: Ações desenvolvidas por enfermeiro (a) no cuidado á mulher no contexto da violência de gênero e as limitações na atuação de Enfermagem frente à violência de gênero.

 

RESULTADOS

Os participantes deste estudo caracterizaram-se por ter idade entre 25 e 57 anos, três do sexo masculino e 14 do sexo feminino. Quanto ao tempo de atuação profissional variou entre quatro meses e 21 anos. Verificou-se que apenas um não possuía pós-graduação lato sensu, sendo os demais pós-graduados/as nas seguintes áreas: Administração dos Serviços de Enfermagem e Saúde da Família.

Ações desenvolvidas por enfermeiro (a) no cuidado à mulher no contexto da violência de gênero

No que diz respeito à ação de identificação da situação de violência os/as enfermeiros/as referiram a dificuldade da mulher em verbalizar sobre a violência, de forma que o tempo de relação/vínculo e envolvimento com a mulher permite aproximação a esse contexto vivencial: Nós enfermeiros, às vezes, sabemos do problema, porque a Agente Comunitária de Saúde visualiza muitas coisas na visita domiciliar e nos relata, porque percebemos na fala dela, a gente visualiza na expressão dela de que tem algo a mais! Mas ela não verbaliza, ela não se abre, ela não fala (E01); Às vezes até quando se faz o exame preventivo de câncer uterino, sabe? Às vezes elas se abrem um pouco mais, porque aí tu vai até ver o corpo delas, tu vai examinar, com tempo, porque é muito difícil elas chegarem e dizerem assim espontaneamente: 'aí eu fui violentada, eu sofri abuso, ai eu sofri violência'... é difícil! (E02); Uma mulher em situação de violência, para você identificar vai algum tempo de conversa, você tem que pescar durante a sua conversa com ela, porque não é uma coisa assim que sai espontâneo (E11).

Ao atuar no contexto da violência o/as enfermeiros/as descrevem alguns elementos e estratégias utilizados que permitem o reconhecimento e a atuação no enfrentamento da violência sendo eles, o acolhimento e a empatia; estabelecimento de vínculo e confiança entre profissional e mulher; além do diálogo e escuta atentiva: Com certeza, a parte técnica é muito importante, mas se você não for capaz de acolher o próximo de maneira empática, a mulher não irá se abrir para nosso cuidado [...] (E03); Todas as pessoas que chegam, elas passam pelo acolhimento, e a mulher vítima de violência, muitas vezes vem por outras queixas, vem procurar consulta médica ou vem conversar porque ela está com uma queixa ginecológica ou porque está com um problema com o filho na escola, tem que ouvir ela, acolher! (E01); No primeiro momento é acolher e ver o que precisa ser resolvido primeiro! (E17); Enquanto realmente ela não tiver confiança no profissional ela não abre a realidade da vida dela para você (E11); Quando eu tenho um vínculo com a mulher! Como eu tenho com a maioria, eu faço a visita e converso com ela e vejo o que é que está acontecendo (E16); Ouvir a mulher, saber ouvir e não fazer de conta que está ouvindo! Porque aí você não está capacitado (E03); A conversa sempre é muito aberta! Muitas delas falam como uma confissão pra nós, não como uma denúncia (E04); O atendimento é principalmente de orientação. Então, a gente faz a escuta, dá a orientação. A gente procura escutar o que ela tem e a partir daí eu colocar para ela o que ela tem disponível, que possa ajudá-la (E15).

Os/as enfermeiros/as também referiram que os encaminhamentos para os serviços de referência são partes integrantes do atendimento à mulher em situação de violência. As falas respaldam a assertiva: Fizemos a notificação no SINAN [Sistema de Informação de Agravos de Notificação], e encaminhamos para a delegacia da mulher. é assim que se faz (E10); Busca-se sempre encaminhar, se for caso de agressão física tem a Brigada Militar pra fazer o boletim de ocorrência, quando é violência sexual a gente tem que encaminhar para o Hospital de referência para atendimento, conforme a necessidade e o tipo de violência que acontece (E08).

Limitações na atuação de Enfermagem frente à violência de gênero

As limitações apontadas pelos enfermeiros/as na atuação no contexto da violência de gênero envolvem: a carência de capacitação profissional para lidar com o tema sinalizado pelo sentimento de despreparo; a falta de tempo por sobrecarga de trabalho; a dificuldade do profissional em reconhecer e lidar com a situação de violência dada a complexidade; a baixa resolutividade dos serviços da rede de atendimento; e sentimento de impotência profissional frente à gravidade e complexidade que envolve a violência: Não me sinto capacitada, não! Porque o ensino é muito deficitário nessa questão ainda na graduação. Acho que vi, só vagamente, sem se falar em atendimento humanizado. Me sinto despreparada! (E03)

No acolhimento inicial eu me sinto capacitado, mas eu não me sinto muito capacitado em alguns encaminhamentos, porque eu não tenho o conhecimento de todos os encaminhamentos possíveis e como agir nesta situação, é um problema muito complexo, envolve filhos, família, justiça (E06); Não me sinto capacitada! Eu acho que faltaria mais capacitação na forma de abordagem com ela. A gente vai muito pela nossa forma de trabalhar, mas não sei como abordar, a melhor forma de fazer com que ela traga o assunto e como efetivamente ajuda-la (E12); Precisamos estar disponível para ouvir e às vezes a gente não consegue. A falta de tempo, não é? Que a gente está sempre cheio de coisas para fazer, bastante trabalho, tu acaba não dando tudo o que tu tem para aquele atendimento (E09); Muitas vezes a situação do enfermeiro é pacata, muitas vezes é fingir que não está enxergando a situação pela dificuldade. A situação acaba sendo mascarada por outras situações, mas a questão da violência em si acaba sendo assim, maquiada (E11); As dificuldades são que a gente nem sempre vê tanta resolutividade no serviço (E14); Tenho dificuldade quanto ao convencimento delas da denúncia. Porque elas já ouviram relatos de outras mulheres, ou já fizeram. Que elas vão lá e fazem um documento, ou alguma coisa, que a pessoa tem que manter distância não é assim bem na prática (E05); é a impotência dos profissionais. Você quer atuar de uma maneira mais rápida, tu queres fazer com que ela denuncie e ela não quer. Enfim, esta é uma dificuldade (E13).

Identifica-se na fala dos/as enfermeiros/as que as limitações para o cuidado às mulheres em situação de violência inscrevem-se em questões profissionais de processo de trabalho e institucionais no que diz respeito à baixa resolutividade nas ações em rede e na vida das mulheres.

 

DISCUSSÃO

No presente estudo os/as enfermeiros/as sinalizam a dificuldade das mulheres em verbalizarem as situações de violência vivenciadas em seus lares. Segundo estudiosos o sentimento de culpa e de vergonha, o isolamento e, principalmente, o estigma parecem ser os grandes obstáculos para que a mulher verbalize sobre tal situação. De forma que uma experiência estigmatizada resulta da vergonha de serem reconhecidas pela sociedade como mulheres espancadas e maltratadas pelos parceiros íntimos e, portanto, se encontrariam em uma situação de inferioridade e de desvantagem social.13 O Ministério da Saúde do Brasil reconhece a importância da atenção primária à saúde no processo de identificação de mulheres em vivência de violência e, também, defende que o vínculo estabelecido entre as pessoas/famílias/grupos e profissionais/equipes favorece a construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde, o que facilita a promoção à saúde e a prevenção de agravos.14

Os profissionais do estudo em tela referiram à importância de estabelecimento de vínculo e uma relação permeada de confiança entre mulher e profissional para que a mulher possa romper com o estigma e verbalizar sobre a situação vivenciada. Tal achado corrobora com estudo que indica o vínculo dos profissionais como uma condição para escuta e relato da violência.15 Para desenvolver as ações de cuidado às mulheres em situação de violência os enfermeiros lançam mão de alguns elementos facilitadores como: a escuta atentiva, a empatia e o vínculo no acolhimento dessas mulheres, como um dispositivo técnico-assistencial do serviço de saúde. O acolhimento é entendido como uma postura e prática que promove a construção da relação de confiança e compromisso dos usuários com as equipes e os serviços, objetivando as respostas resolutivas aos problemas identificados através da escuta. Esse pressuposto é a base para uma prática assistencial mais assertiva à mulher em situação de violência.15

Na busca da resolução, ou até mesmo da identificação de situação de violência, é necessário que se utilize da escuta qualificada a fim de obter maiores informações sobre as condições de saúde, moradia, educação, entre outras, desta mulher e de seu núcleo familiar. Com base no diálogo aberto e de confiança entre profissional e usuária estabelece-se um vínculo possibilitando a identificação através das falas da mulher, assim estabelecendo a porta de entrada para o diagnóstico e para tomada de medidas preventivas juntamente com esta mulher.16,17 Nas falas dos participantes constata-se que a escuta qualificada consiste em uma importante ferramenta para a atuação do enfermeiro no contexto da violência de gênero. Esta habilidade possibilita compreender a mulher para além dos sinais de lesões físicas, uma vez que permite a identificação das marcas psicológicas geradas pela violência.18 Ademais, ressalta-se que é por meio do acolhimento de enfermagem que se aplica a escuta qualificada, este é o principal instrumento que se tem para perceber as situações que estão envolvidas na ocasião da violência, permitindo, com o vínculo criado entre o enfermeiro e a mulher, a resolução do problema.9,19

De acordo com os resultados deste estudo, os/as enfermeiros/as reconhecem que é necessário ter empatia pela mulher no diagnóstico da violência. A empatia é um dos mecanismos do atendimento humanizado e faz-se necessária para possibilitar o tratamento das queixas físicas, construção do vinculo, oportuniza uma atenção eficaz, gerando os encaminhamentos, orientações e possivelmente prevenir a recorrência de outras violências. Pois se entende que para poder compreender os motivos que levaram a mulher à situação de violência e por vezes permanecer nesta situação seja necessário que o profissional tenha como objetivo compreender as experiências e sentimentos do usuário do serviço de saúde.20 No entanto, a atenção à mulher em situação de violência vai além do atendimento humanizado. Pois, conforme os/as enfermeiros/as deste estudo relataram a mulher em situação de violência dificilmente procura a UBS em busca de auxílio para sair da situação de violência. Estudos afirmam que na maioria das vezes a mulher procura a UBS para consultas médicas, muitas vezes recorrentes, com queixas ginecológicas, cefaleia, ou até mesmo para busca auxílio na resolução de algum problema de saúde de um familiar, e a partir destas estratégias acabam revelando seu problema.21

Por vezes a violência, por ocorrer frequentemente, passa despercebida pelos profissionais de saúde, ocasionando na continuação e na ocorrência de novos casos, fazendo com que os programas criados para a erradicação da violência não se perpetuem, pela subnotificação dos casos, pelo descaso dos profissionais, pelo despreparo dos mesmos e até mesmo pela falta de procura e de confiança das usuárias aos serviços de saúde na busca por auxílio, defasando os cofres públicos em decorrência da não aplicação correta da verba disponibilizada para prevenção da violência.8 Além da abordagem iniciada pelo atendimento humanizado, os enfermeiros revelaram que sua atuação no contexto da violência de gênero se dá por meio dos encaminhamentos da mulher para a rede de atendimento. No entanto, o enfermeiro enfrenta na sua atuação o desafio de mostrar a esta mulher seus direitos e os subsídios para a mesma conseguir enfrentar tal situação. Nesse enfrentamento o enfermeiro deve buscar recursos com todos os profissionais capacitados de outras áreas para auxiliá-lo na resolução dessa situação. A tomada de decisão e resolução dos casos de violência requer que vários setores estejam envolvidos, como a área da saúde, assistência social, segurança pública, educação, setores da justiça, psicologia, dentre outros.19

Ressalta-se que o direcionamento para os serviços de apoio se dá conforme a necessidade da mulher e do tipo de violência na qual foi acometida. Sabe-se que para o funcionamento de uma rede de atendimento é necessário ter equipes capacitadas e serviços bem estruturados para dar o auxílio necessário para resolução, prevenção e reinserção social da mulher e do agressor. Nesse sentido existem as casas-abrigo, centros de referência, juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, defensorias da mulher, centros de reabilitação e educação do agressor, entre outros. Essa rede de atendimento deve estar articulada entre serviços governamentais, não governamentais e comunitários a fim de evitar que a mulher se sinta desprotegida e proporcionando um atendimento qualificado e direcionado a ela.19 Além do direcionamento para a rede de atendimento, alguns participantes referiram utilizar a ficha de notificação compulsória do SINAN, que é um documento preenchido em casos de suspeita ou confirmação de violência. A notificação compulsória é obrigatória a todos os profissionais de saúde médicos, enfermeiros, odontólogos, médicos veterinários, biólogos, biomédicos, farmacêuticos e outros no exercício da profissão, bem como os responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e particulares de saúde e de ensino (Artigo 7º).22 Destaca-se a importância do papel dos profissionais de saúde, responsáveis não só pelo cuidado com as mulheres em situação de violência, mas também pela produção de informações úteis no combate a esse problema.

Com o intuito de incentivar a adoção da notificação nos serviços, no ano de 2011 foi publicada uma portaria que define a notificação compulsória de doenças, agravos e eventos, incluindo a violência à mulher, em todo o território brasileiro e estabelece o fluxo, critérios e responsabilidades dos profissionais.23 Estudo realizado no Sul do Brasil aponta certo descaso do serviço de vigilância quanto à implementação da notificação e do registro no sistema, não considerado como prioridade, e subestimando a realidade do contexto da violência.15 Neste estudo verificou-se, a partir dos depoimentos dos entrevistados, que a falta de tempo para uma atenção humanizada e o próprio despreparo para este tipo de atendimento constituem-se como limitadores da atuação do enfermeiro e contribuem para a subnotificação dos casos de violência. Estudos afirmam que as subnotificações são decorrentes do despreparo dos profissionais de saúde, da falta de tempo para um atendimento minucioso, da escassez de informações relacionadas à sistematização da assistência nesses casos, entre outros.21 Além disso, sabe-se que questões étnicas, raciais, pré-conceitos, seja pela equipe ou pela própria mulher, a subordinação ao companheiro, são fatores que influenciam diretamente nas subnotificações.8 Outro aspecto limitador da atuação de enfermagem ao cuidar das mulheres em situação de violência que foi apontado pelos participantes refere-se o quanto as mulheres conseguem expor-se em busca e aceitação do auxílio dos enfermeiros e da rede de apoio. Isso revela que, além de depender do olhar diferenciado do enfermeiro, as mulheres necessitam de certa conscientização dos seus direitos de cidadania. Para isto é necessário que se apresente a estas mulheres as maneiras que possuem de sair dessa situação. Entende-se que o melhor encarregado disso seria o enfermeiro, que está incluído na área de abrangência da residência dessa mulher, através do vínculo que se cria entre a comunidade e a UBS.

A realidade constatada neste estudo é de que os/as enfermeiros/as não se sentem capacitados/as para cuidar de mulheres em situação de violência. Geralmente, o/a enfermeiro/a é o/a profissional de referência nas UBS, juntamente com a equipe de enfermagem mantém contato mais próximo com os usuários. A partir desse vínculo e de medidas preventivas obtém o atendimento necessário para cada agravo. Com base nessa premissa, é nas unidades que geralmente começam-se as políticas de prevenção, combate e enfrentamento dos agravos à saúde e o enfermeiro é o principal articulador destas24.

Entende-se que para prestar uma atenção humanizada e qualificada é necessário que haja constantes capacitações a todos os profissionais que atuam na unidade de saúde, que existam boas condições nas instalações da unidade, além de equipamentos suficientes. No entanto, para obtenção da eficácia do atendimento é necessário planejamento das ações que irão ser ofertadas aos usuários além de adoção de medidas conjuntas entre profissionais da saúde e usuário para concretização dos objetivos do planejamento.6 Quando se atinge o reconhecimento de que a violência é um grave problema de saúde pública, que necessita de profissionais especializados e de uma rede de apoio composta por profissionais qualificados, torna-se possível aplicar as medidas de enfrentamento para a violência. Dessa forma, faz-se com que se entenda que é necessária a construção e aplicação de estratégias já preconizadas pelas políticas de combate e enfretamento da violência por meio dos profissionais de saúde, mas para tornar isso possível deve haver ferramentas e educação continuada que permitam a aplicação dessas políticas.18 O conhecimento dos limites e das potencialidades da prática assistencial dos/as enfermeiros/as são questões que subsidiam o planejamento de ações que transformem e fortaleçam as fragilidades evidenciadas, incluindo assim a revisão do modelo assistencial e das diretrizes que pautam as práticas de cuidado em saúde e enfermagem.

Conclui-se neste estudo que existe uma necessidade de criar espaços para que enfermeiros reflitam sobre sua atuação profissional ao cuidar de mulheres em situação de violência apontando potencialidades e limites que precisam e podem ser superadas com fortalecimento da rede de atendimento às mulheres, inclusão de capacitações e educação permanente nos processos de trabalhos dos/as enfermeiros/as. A abordagem da temática na formação profissional do enfermeiro/a e espaços de capacitações nos serviços permitirá melhor preparo profissional para o cuidado à mulher. Os resultados devem ser interpretados considerando algumas limitações. O estudo apresenta apenas a visão dos/as enfermeiros/as, o que indica uma importante identificação dentro do processo assistencial, mas os demais profissionais de saúde também podem devem ser acessados para compreensão das ações de cuidado às mulheres na atenção primária à saúde. Também é preciso destacar que os resultados são restritos a um único município. Sugere-se o desenvolvimento de novos estudos sobre esta temática, em outros cenários, utilizando-se outros métodos. Espera-se que estes resultados contribuam para a prática assistencial da enfermagem, instigando o aperfeiçoamento das atividades diárias que o enfermeiro desempenha no contexto da violência de gênero.

 

REFERÊNCIAS

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