SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 issue1Patient education among nurses: bringing evidence into clinical applicability in IranWhen to search for birth care: mothers narratives author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Investigación y Educación en Enfermería

Print version ISSN 0120-5307

Invest. educ. enferm vol.34 no.1 Medellín Jan./Apr. 2016

https://doi.org/10.17533/udea.iee.v34n1a17 

ARTÍCULO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE / ARTIGO ORIGINAL

 

doi:10.17533/udea.iee.v34n1a17

 

Notificação de violência contra crianças e adolescentes em uma instituição de proteção no sul do Brasil

 

Reporting of violence against children and adolescents in a protective institution in southern Brazil

 

Notificación de la violencia contra los niños y adolescentes en una institución de protección en el sur de Brasil

 

Priscila Arruda da Silva1; Valéria Lerch Lunardi2; Valéria Lerch Lunardi3; Simone Algeri4; Tamara Souza5

 

1Enfermeira, Doutora. Universidade Federal do Rio Grande - FURG-/RS - Brasil. email: patitaarruda@yahoo.com.br

2Enfermeira, Doutora. Professora, FURG. email: vlunardi@terra.com.br

3Doutor em Administração. Professor, FURG. email: . glunardi@furg.br

4Enfermeira, Doutora. Professora FURG. email: salgeri@terra.com.br

5Psicóloga. Instituição de acolhimento Casa do Menor em Rio Grande/RS - Brasil. email: tamarasouza88@gmail.com

 

Fecha de Recibido: Junio 9, 2015. Fecha de Aprobado: Diciembre 4, 2015.

 

Artículo vinculado a investigación: Notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes como exercício de poder e resistência

Subvenciones: Bolsa de Doutorado - FAPERGS/CAPES.

Conflicto de intereses: Ninguno.

Cómo citar este artícu lo: Silva PA, Lunardi VL, Lunardi GL, Algeri S, Souza T Reporting of violence against children and adolescents in a protective institution in southern Brazil. Invest Educ Enferm. 2016; 34(1): 152-161

 


RESUMO

Objetivo.Analisar as notificações de violência contra crianças e adolescentes, no período compreendido entre janeiro de 2009 e maio de 2014 em uma instituição de proteção do município do Rio Grande, RS. Métodos. Trata-se de um estudo descritivo e documental, de abordagem quantitativa em que foram analisados 800 prontuários do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), a partir da elaboração de um instrumento de pesquisa contendo as variáveis de estudo. Resultados. A 44.5% das notificações encaminhadas aos órgãos de proteção foi realizada pelos familiares e a evidência de sinais fisicos foi o motivo que as desencadeou (34%). O desligamento por abandono das famílias é bastante presente na instituição (36.9%), corroborando possivelmente a manutenção do ciclo de violência. Conclusão. Os resultados desse estudo mostram que embora tenham ocorrido avanços em relação à notificação pelos familiares, destaca-se que o número de notificações realizadas pelo setor saúde e educação ainda se mostra reduzido, reforçando, assim, a necessidade de ações mais efetivas e articuladas desses setores.

Palavras chave: enfermagem; notificação de abuso; violência na família.


ABSTRACT

Objectives.This study aimed to analyze the reports of violence against children and adolescents in the period between January 2009 and May 2014 in a municipality protection institution of Rio Grande, RS. Methods. This is a descriptive and documentary study with a quantitative approach that analyzed 800 medical records of Specialized Reference Center for Social Assistance (CREAS), from the development of a research instrument containing the study variables. Results. The results show that 44.5% of the notifications sent to the protection of organs were carried out by family members and evidence of physical signs was the reason that triggered them (34%). The dismissing by abandonment of families is very present in the institution (36.9%), which possibly supports the maintenance of the cycle of violence. Conclusion. The results of this study show that although there were improvements regarding the notification by the family, the number of notifications made by the health and education sectors are still reduced, thereby increasing the need for more effective and articulated actions in these sectors.

Key words: nursing; mandatory reporting; domestic violence.


RESUMEN

Objetivo.Analisar las notificaciones de violencia contra niños y adolescentes en el período comprendido entre enero de 2009 a mayo de 2014 en una institución de protección del municipio do Rio Grande, RS. Métodos. Se trata de un estudio descriptivo y documental de abordaje cuantitativo en el que fueron analizados 800 prontuarios del Centro de Referencia Especializado en Asistencia Social (CREAS), a partir de la elaboración de un instrumento de investigación que contenía las variables de estudio. Resultados. El 44.5% de las notificaciones remitidas a los organismos de protección fueron realizadas por los familiares y una proporción pequeña fue reportada por las instituciones de salud y por las escuelas (4% cada una). La evidencia de signos físicos de violencia fue el principal motivo que desencadenó la denuncia (34%). El desligamiento por el abandono de las familias fue bastante frecuente en la institución (36.9%), corroborando posiblemente el mantenimiento del ciclo de violencia. Conclusión. Los resultados de este estudio muestran que el número de notificaciones realizadas por los sectores salud y educación son muy reducidas, y que se necesitann acciones más efectivas y articuladas de estos sectores para la atención.

Palabras clave: enfermería; notificación obligatoria; violencia en la familia.neoplasia


 

INTRODUÇÃO

A violência contra crianças e adolescentes, pelas suas repercussões na vida de milhares de vítimas, tem se destacado como um problema grave de saúde coletiva. Inúmeras sequelas físicas, emocionais e psicológicas decorrentes da violência podem tornar-se irreparáveis, manifestar-se na fase adulta, tais como ansiedade, depressão, visão pessimista, problemas de relacionamento, além da reprodução da violência que colabora para sua perpetuação.1-3 Pode-se compreender a extrema necessidade de evitar os atos violentos, uma vez que suas sequelas atingem dimensões e gravidade expressivas. A grande proporção de sequelas físicas associadas às psicológicas, alerta para a necessidade não somente de prevenção da violência e tratamento das vítimas, mas também da notificação dos casos às autoridades competentes, a fim de que seja rompido seu ciclo.4

 A crescente necessidade de tornar visível o problema que chega às diversas instâncias que lidam com crianças e adolescentes vitimadas, as debilidades estruturais do sistema de proteção e as dificuldades dos profissionais na assistência e acompanhamento das vítimas, tem contribuído para a recidiva e agravamento dos casos, pela ausência de implementação de medidas protetoras, como a notificação de situações de violência.5 Este fato exige dos profissionais e gestores que lidam com o fenômeno da violência, em suas áreas de atuação, a contribuição para o enfrentamento do problema, uma vez que tem sido uma das demandas mais alarmantes na rotina dos serviços que tem como foco a criança e o adolescente. Dessa forma, os espaços, sejam eles, sociais, educacionais e de saúde desempenham papel fundamental na implementação das estratégias necessárias frente a essa problemática, por se apresentarem como locais propícios à revelação e à notificação dos casos.6

De acordo com a legislação brasileira, todas as modalidades de violação aos direitos da criança e do adolescente são plausíveis de notificação, seja violência física, psicológica, sexual ou negligência. Essa obrigatoriedade está devidamente qualificada na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Legislação Penal Brasileira.7,8 Mais recentemente, por meio da Portaria MS/GM nº. 104/2011, a violência foi incluída na relação de doenças e agravos de notificação compulsória em todo o território nacional, ou seja, passou a ser um agravo de notificação universal em todos os serviços de saúde do Brasil.9 Há que se destacar que, comparado a outros países, a obrigatoriedade da notificação da violência é recente no cenário brasileiro. Nos Estados Unidos, desde o final da década de 1970, todo o território americano já havia estabelecido a notificação compulsória dos casos de violência contra crianças e adolescentes, apesar dessa ação não seguir uma padronização, variando de acordo com as leis e políticas específicas de cada estado. Ainda, em diferentes países, sites específicos são disponibilizados para orientar os profissionais sobre como acessar a legislação e outros recursos de informações obrigatórias.10

A notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, entretanto, justifica-se não apenas por sua exigência legal, mas, principalmente, por tratar-se de uma questão ética, que envolve pessoas em situação de vulnerabilidade que suportam a violência silenciosamente por não conseguirem se desvencilhar da relação de dominação sofrida. Para Foucault, "as relações de dominação podem ser entendidas como uma relação de violência que age sobre um corpo, ela força, ela submete, ela destrói, ela fecha todas as possibilidades, não tem, portanto junto a si, outro pólo, senão aquele da passividade".11:243

O município do Rio Grande, por se constituir em uma cidade portuária com uma população estimada em 207 mil habitantes12, caracteriza-se como especialmente vulnerável a situações de violação da infância e da juventude. Dados do mais recente mapeamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais brasileiras - 2013/2014 revelam o crescente aumento no seu número, destacando o Rio Grande do Sul como o segundo estado com mais pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes, ficando atrás apenas de Minas Gerais. Possivelmente, o grande fluxo de pessoas tem favorecido a criação de pontos de exploração sexual na rodovia de acesso ao município.13 Assim, este estudo surge na tentativa de estabelecer uma visão geral sobre as notificações de violência realizadas no município, o qual permitirá um melhor conhecimento sobre o fenômeno. A notificação de violência e acidentes, somente em 2009, passou a integrar o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Apesar do município avançar em termos de crescimento populacional, especialmente para atender à demanda de desenvolvimento econômico pela expansão do polo naval , existe somente um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), implantado desde 2001 no municipio, um dos pioneiros na implantação desse serviço, no Rio Grande do Sul, o que justifica a escolha dessa instituição para a realização desse estudo.

Equacionar a problemática da violência contra crianças e adolescentes exige o comprometimento de todos, seja dos profissionais que lidam com essa situação nos seus locais de trabalho, como educadores e profissionais da saúde, dos serviços de retaguarda, como Polícia Civil, Conselhos Tutelares, Juizado da Infância e da Juventude, assim como da sociedade. Sendo assim, mostra-se relevante questionar: Quem tem realizado a notificação? Qual(is) motivos tem levado a sua realização? Como tem evoluido os casos de violência contra crianças e adolescentes encaminhados ao serviço especializado no municipio onde o estudo foi desenvolvido? Nessa perspectiva, esse estudo tem como objetivo analisar as notificações de violência contra crianças e adolescentes, no período compreendido entre janeiro de 2009 e maio de 2014 em uma instituição de proteção do município do Rio Grande, RS.

 

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa descritiva e documental, de abordagem quantitativa, desenvolvida no CREAS, no município do Rio Grande/RS. O serviço conta com uma equipe formada por profissionais psicólogos, assistentes sociais, educador social e auxiliar administrativo. Nele, são atendidas famílias (vítimas e responsáveis), através do encaminhamento dos casos pelo Conselho Tutelar ou de denúncias de vizinhos, escolas, serviços de saúde. Após o recebimento da criança e/ou adolescente e seu responsável na instituição, é aberto seu prontuário, sendo realizada sua avaliação psicossocial pelos profissionais do serviço, a partir da qual a vítima e sua família passam a receber acompanhamento psicossocial do serviço. Constatando-se a necessidade de intervenção de profissionais da saúde, por comorbidades e/ou sequelas relacionadas à violência, os casos são encaminhados a quem de direito.

A amostra foi composta por 800 prontuários abertos entre 1º de janeiro de 2009 a 31 de maio de 2014, envolvendo crianças e adolescentes, vítimas de violência intrafamiliar, com idades entre zero e 18 anos. Como critérios de exclusão, foram considerados todos os prontuários de pessoas que se encontram fora da faixa etária estipulada; registros efetuados antes de 2009 e vítimas de violência extrafamiliar. Os dados foram coletados por um único examinador, no período compreendido entre janeiro de 2014 e maio de 2014, a partir da elaboração de um instrumento de pesquisa contendo as variáveis de estudo, referentes à notificação: procedência, motivo da notificação e a evolução dos casos na instituição. A partir do armazenamento dos dados em planilhas do tipo Excel®, sua análise foi realizada através da estatística descritiva, utilizando-se o software estatístico Statistical Package for the Sciences SPSS versão 17.0. Assim, foram identificadas quantitativamente através de frequência simples as variáveis especificas em relação a notificação como sua origem, motivo que levou à notificação e evolução dos casos. Também foram realizadas possiveis relações entre as variáveis notificador e motivo que levou à notificação, notificador e evolução dos casos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa sob o número 105/2013.

 

 

RESULTADOS

No período estabelecido para a coleta, foram registradas 800 notificações de violência intrafamiliar praticada contra crianças e adolescentes no CREAS, sendo identificadas sua procedência, motivo da notificação, e a evolução dos casos atendidos na instituição. A maioria das notificações de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes encaminhada aos órgãos de proteção são realizadas pelos familiares (44.5%), conforme mostra a (Tabela 1). Observa-se, também, o Disque 100 (27.3%) e a Denúncia Anônima ao Conselho Tutelar (13.9%), respectivamente, como os recursos mais utilizados pelas pessoas para denunciar a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, possivelmente, pelo fato de não haver necessidade de revelação de sua identidade. Embora a denúncia Anônima ao CT tenha originado a notificação, é importante ressaltar que todas as notificações são repassadas ao Conselho Tutelar.

Em contrapartida, as instituições de acolhimento foram identificadas neste estudo como locais onde menos pessoas notificaram situações de violência, de modo semelhante, às escolas e instituições de saúde (Estratégia de Saúde da Família, Centro de Atenção Psicossocial, Núcleo de Apoio a Saúde da Família e Hospitais). Assim, pode-se enfatizar a necessidade de uma maior articulação desses setores com a rede de proteção à criança e ao adolescente, já que a escola se caracteriza como um local privilegiado para a detecção de possíveis evidências da violência, assim como os serviços de saúde por se constituirem em um local procurado por muitas vítimas, seja explicitamente, ou não, em decorrência da prática de violência.

No que se refere aos motivos que justificaram a notificação da violência praticada contra crianças e adolescentes, 34% foram devido à identificação de sinais físicos apresentados pelas vítimas e, em 32% dos casos, pelo comportamento apresentado pela criança.

Quanto a relação entre o notificador e seus motivos para buscar os órgãos de proteção e realizar a notificação, constatou-se que a grande maioria foi motivada pelos sinais físicos apresentados pelas vítimas, destacando-se o Disque 100, a própria vítima e as Instituições de saúde, com 40.4%, 55.9% e 45.5% respectivamente. Em contrapartida, 62.2% das notificações realizadas pelas instituições de acolhimento e 34.4% dos familiares foram motivados pelo comportamento da criança, conforme apresentado na (Tabela 1).

Tabela 1.

Em relação à evolução dos casos de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes encaminhados ao CREAS, 36.9% dos casos foram desligados da instituição por abandono. Em 25.1% dos casos, os familiares ainda estão em atendimento no serviço de proteção e 21.8% tiveram alta. Já 16.2% das notificações foram consideradas como infundadas, conforme (Tabela 2).

Quanto a relação entre o notificador e a evolução dos casos, os resultados apontam que, do total das notificações realizadas através de denúncia anônima ao CT, 41.4% foram desligados da instituição por abandono ao tratamento, assim como as notificações realizadas pelo Disque 100 (36.7%), familiares (34.6%), Instituições de Saúde (48.5%) e pela vítima (44.1%).Em contrapartida, 40% das notificações realizadas pela escola evoluíram para alta e 61.5% dos casos notificados pelas Instituições sociais estão em andamento.

Tabela 2.

 

 

DISCUSSÃO

A notificação da violência contra crianças e adolescentes é um compromisso legal de todos os cidadãos. O ato de notificar possibilita, sobretudo, o conhecimento dos casos pelos órgãos competentes, e dessa forma, permite que ações sejam implementadas na tentativa de romper com as situações de violação de direitos e garantir a proteção de crianças e adolescentes.14 Defende-se que a notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes constitui-se em uma manifestação de exercício de poder do denunciante. Nesta perspectiva, o poder é concebido como uma estratégia, portanto não é um privilegio que alguém possui ou transmite.15 Assim, é preciso salientar que, na perspectiva de rede de proteção contra a violência, todos exercem influência não somente no que tange à sua interrupção como também para a sua manutenção.

O notificador é o elemento chave que torna pública a violência e deve ser considerado um ator importante na rede de proteção à criança. Sendo assim, no presente estudo, constatou-se que, em 44.5% dos casos, os familiares foram os notificantes. Dados semelhantes foram encontrados por Costa, Santana, Carvalho et al,16 ao investigarem o perfil da vitimização sexual de crianças e adolescentes, tendo constatado que a violência sexual foi denunciada com maior frequência pela mãe da criança ou do adolescente (29.9% dos casos), pelo pai (20.8%) e por outros parentes (25%). O "Disque 100" e a denúncia destacaram-se como o segundo e o terceiro principal veículo de captação das notificações, corroborando com pesquisas que apontam o anonimato como importante estratégia de identificação e viabilização das denúncias.5,17 O anonimato garante o não envolvimento com o caso e preserva a identidade do denunciante. Hoje, o Disque 100 atua como principal instrumento para as denúncias de violações dos direitos humanos, no país, contribuindo significativamente para o "retrato" da violência contra crianças e adolescentes e a construção de políticas públicas.18,19

Por outro lado, a falta de detalhamento das informações pode dificultar a obtenção de dados que contribuam para a confirmação e elucidação dos casos. Dados incorretos ou incompletos, não contemplando as informações necessárias, assim como denúncias falsas são os problemas que mais tem dificultado o andamento dos casos que chegam ao Disque 100.19

Outros setores, como a saúde e a educação, foram associados à origem da notificação, no estudo, apesar de ter sido baixo o seu número de notificações, mesmo frente à sua obrigatoriedade e à aplicação de multas em casos de omissão da notificação. No caso das instituições de saúde, o seu número de notificações foi bastante aproximado ao número de notificações realizadas pela própria vítima, o que merece certo destaque, uma vez que o Ministério da Saúde tem investido em capacitações para que os profissionais enfrentem o problema da violência.9 Percebe-se, assim, que crianças e adolescentes tem também rompido o silêncio, possivelmente, fortalecendo-se, vencendo medos e culpas para revelar/notificar os episódios vividos e demonstrar resistência a quem lhes tem violentado.

Considera-se que a revelação/notificação da violência contra crianças e adolescentes constitui-se, sim, em uma relação de resistência15 do notificador contra o agressor e uma tentativa de ruptura de ciclos de violência. Pesquisas realizadas em outros países não se mostraram diferentes dos resultados deste estudo. No Canadá, apenas 10% das comunicações enviadas para os serviços de proteção foram relatadas por trabalhadores da saúde.20 Nos EUA, em pesquisa envolvendo as unidades federativas, foi constatado que 66,6% dos casos suspeitos de maus-tratos não foram comunicados aos órgãos de proteção, pelos profissionais com obrigação legal de notificar.21 Na Jordânia, investigação com 400 dentistas verificou que 50.0% suspeitaram de alguma forma de abuso; no entanto, apenas 12.0% notificaram suas suspeitas.22 Esses dados sugerem que o ato de notificar a violência contra crianças e adolescentes ainda não se configura como uma prática usual na rotina dos profissionais do setor saúde, mesmo em países onde a notificação foi estabelecida há aproximadamente 40 anos e os sistemas de atendimento são mais aprimorados.

A notificação da violência como manifestação de um saber e exercício de poder, resistência e liberdade, favorece a proteção e defesa das pessoas vulneráveis envolvidas nessa situação, principalmente a criança e o adolescente, vítimas de violência, além da responsabilização dos agressores. Para realizar tal ação,portanto, faz-se necessário que as enfermeiras e demais profissionais de saúde optem pelo enfrentamento da situação, apesar dos possíveis riscos envolvidos, rompendo com pactos de silêncio que ainda tem alimentado a impunidade e um ciclo vicioso, expondo vítimas de violência a um sofrimento desnecessário, de forma continua. As instituições de saúde apresentaram maior percentual de notificações relacionadas à presença e identificação de sinais físicos, corroborando com outros estudos nacionais e internacionais que mostram um aumento significativo do número de notificações de violência física e sexual, o que pode ser justificado pela evidência de lesões, indicando assim a existência de uma possível violência.23-25 Cabe ressaltar que as instituições de acolhimento e a escola tiveram os maiores percentuais de notificação relacionados ao comportamento da criança, constatando-se 62.2% e 34.3%, respectivamente. A escola se constitui um local privilegiado para identificar e notificar os casos de violência pelos indicadores físicos, emocionais e comportamentais apresentados pela criança e/ou adolescente, assim como as instituições de acolhimento, pelo fato de o profissional compartilhar um tempo maior com as vítimas, o que favorece sua observação e identificação de possíveis indícios de violência.

Considerando-se que a informação é matéria prima para o conhecimento e essencial para a tomada de decisão, os resultados desse estudo demonstram uma aparente falta de cultura institucional de valorização dos registros A precariedade da informação sobre as ações de notificação realizadas por diferentes setores como a Saúde, Assistência Social e a Educação apontam para um problema que deveria ser enfrentado. A análise da evolução dos casos mostra um percentual considerável de desligamento das famílias por abandono, corroborando com outros estudos que mostram a dificuldade de adesão das famílias ao acompanhamento. Geralmente, os responsáveis frequentam os serviços especializados devido à recomendação ou exigência das autoridades; em alguns casos, buscam o tratamento apenas em decorrência de um mandato judicial.26 Assim, é interessante salientar que o alívio do sofrimento vivido pelas crianças e adolescentes não depende somente do tratamento fornecido pelos profissionais da rede de atendimento especializado, mas também da atuação dos responsáveis pelas crianças e adolescentes. Desse modo, não se poderia questionar a existência de uma omissão dos responsáveis no atendimento necessário às vítimas? A quem cabe o ônus dessa omissão quando se tem uma lei que garante, às vítimas, o tratamento? Autores destacam a resistência dos profissionais em notificar os casos pela descrença na atuação efetiva dos órgãos responsáveis e pela inexistência de uma estrutura suficiente para atender a demanda.2,27Entretanto, observa-se, através dos achados, que dos 800 casos notificados de violência e encaminhados ao CREAS, em 36.9% constata-se o abandono do tratamento pelos familiares, possivelmente, apoiando, assim, a manutenção do ciclo de violência, podendo agravar consequências advindas do não tratamento, como, a reincidência e, até, a morte da vítima.

Ao relacionar a evolução dos casos com o notificador, os resultados mostram um número considerável de desligamento por abandono em praticamente todas as categorias de notificadores, com exceção da escola que teve um percentual maior de alta do tratamento, em 40% das notificações realizadas. Esses achados mostram a necessidade de um maior envolvimento dos profissionais que trabalham em diferentes setores, em prol de um único objetivo, ou seja, a proteção das crianças e dos adolescentes, de modo que a morte não seja a finalização de uma história de violência que poderia ter sido evitada, caso os indicadores de violência tivessem sido percebidos ou considerados com a seriedade que a gravidade do caso requeria. Considerando o número de notificações avaliadas como infundadas (130), cabe salientar que o aumento destas notificações incrementa a demanda para as agências de proteção, pois a elas cabe investigar cada uma dessas situações. Diante disso, dispensar tempo para esse fim impede seu cuidado de casos mais graves e verdadeiros.6

Conclusão. Analisar as notificações da violência contra crianças e adolescentes possibilitou compreender que, embora o silêncio possa ainda se fazer presente em muitas situações que envolvem a violência no espaço familiar, observam-se evidências de mobilização dos familiares e da sociedade no enfrentamento do fenômeno. Embora tenham ocorrido avanços em relação à notificação pelos familiares, destaca-se que o número de notificações realizadas pelo setor saúde e educação ainda se mostra reduzido, reforçando, assim, a necessidade de ações mais efetivas e articuladas desses setores, uma vez que são espaços relevantes de proteção à criança e ao adolescente e de revelação da violência. Nesse sentido, ainda, faz-se necessária uma maior conscientização, tanto da sociedade como dos profissionais envolvidos no atendimento à população infanto-juvenil, sobre a responsabilidade e o compromisso ético envolvidos na notificação do fenômeno da violência.

Assim, esse estudo pode contribuir para um melhor comprometimento das instituições formadoras e qualificadoras, no preparo dos profissionais em relação ao fenômeno da violência contra crianças e adolescentes, com o objetivo de subsidiar a criação de políticas públicas para o seu combate, assim como para mostrar a importância da sociedade no enfrentamento desse fenômeno. Da mesma forma, conhecer o motivo que levou a notificação pode direcionar a elaboração de estratégias que possibilitem aos notificadores reconhecer melhor os indicadores de violência, como indicadores físicos na vítima, comportamento da vítima e caracteristicas da família, a fim de que outras modalidades de violência também sejam notificadas. Por último, conhecer a evolução dos casos de violência atendidados no CREAS pode reforçar a importância da rede de atendimento, através de ações integradas bem como a capacitação dos agentes para melhor atender as famílias, garantindo assim um serviço de fato resolutivo. Investimentos por parte do poder público em medidas educativas, preventivas e protetoras das crianças e famílias que vivem em situação de violência também são necessárias para que se possa avançar no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. Os resultados desse estudo demonstram a importância da notificação, mas também reforçam que não bastam intervenções focadas a partir da ocorrência e notificação, pois trata-se de um problema que requer o desenvolvimento de ações coletivas, organização da rede de atendimento à crianças e adolescentes e, principalmente, efetividade e interação de diferentes setores comprometidos com as políticas sociais, educacionais e de saúde.

Quanto às limitações do estudo, os resultados apresentados dizem respeito somente aos registros de casos denunciados nas instâncias de referência, possivelmente não retratando sua real incidência no município como um todo, considerando o repertório de dificuldades, mundialmente conhecidas, para a identificação e a notificação de cada caso de violação perpetrada em crianças e adolescentes.

 

 

REFERÊNCIAS

1.Norman RE, Byambaa M, Rumma D, Butchart A, Scott J, Voss T. The Long-Term Health Consequences of Child Physical Abuse, Emotional Abuse, and Neglect: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLOS Med. 2012; 9(11):1-31.         [ Links ]

2.Flaherty EG, Schwartz K, Jones RD. Child abuse physicians: Coping with challenges. Eval Health Prof. 2013; 36(2):163-73.         [ Links ]

3.Kalmakis KA. Adverse childhood experiences: towards a clear conceptual meaning. J Adv Nurs. 2014; 70(7):1489-501.         [ Links ]

4.Pietrantonio AM, Wright E, Gibson KN, Allfred T, Jacobson D, Niec A. Mandatory reporting of child abuse and neglect: Crafting a positiveprocess for health professionals and caregivers. Child Abuse & Neglec. 2013; 37(1):102-9.         [ Links ]

5.Oliveira JR, Costa MC, Amaral MTR, Santos CA, Assis SG et al. Violência sexual e co-ocorrências em crianças e adolescentes: estudo das incidências ao logo de uma década. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 19(3):759-71.         [ Links ]

6. Brasil. Ministério da Saúde. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: 2010.         [ Links ]

7.Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado. Subsecretaria de edições técnicas, 2008.         [ Links ]

8. Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: 2006.         [ Links ]

9.Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde.         [ Links ]

10. Lima MCCS, Costa COM, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC et al. Atuação profissional da atenção de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev. Baiana de Saúde Pública. 2011; 35(spe):118-37.         [ Links ]

11. Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H; Rabinow P. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. P. 231-49.         [ Links ]

12.Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). População estimada município do Rio Grande [Internet]. (cited 12 Nov 2014). Available from: http://www.cidades.ibge.gov.br/         [ Links ]

13. Childhood Brasil. 6º Mapeamento de Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras [Internet]. 2014. (cited 20 Nov 2014). Available from:http://www.namaocerta.org.br/pdf/Mapeamento2013_2014.pdf         [ Links ]

14.Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2012; 17(9):2305-17.         [ Links ]

15.Foucault M. A hermenêutica do sujeito. In: Zahar J (Ed). Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1997.         [ Links ]

16. Costa MC, Carvalho RC, Santana MA, Silva LM, Silva MR. Evaluation of the National Program of Evaluation of the National Program of Integrated and Referential Actions (PAIR) to confront the child and adolescents sexual violence, in Feira de Santana, Bahia State, Brazil. Ciênc Saúde Col. 2010;15(2):563-74.         [ Links ]

17.Nowakowsk E, Mattern K. An Exploratory Study of the Characteristics that Prevent Youth from Completing a Family Violence Diversion Program. J Fam Violence . 2014; 29(2):143-9.         [ Links ]

18.Vieira MS, Grossi PK, Gasparotto GP. Os desafios do CREAS no enfrentamento das expressões da violência sexual contra crianças e adolescentes em Porto Alegre. Soc Debate. 2013; 19(2):132-51.         [ Links ]

19. Bernardes LF, Moreira MIC. Metodologia de intervenção do disque 100: perspectivas e desafios. In: Souza SMG, Moreira MIC. Quebrando o silêncio: disque 100 - Estudo sobre a denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Brasília. Secretaria de Direitos Humanos - SDH/PR; Goiânia: Cânome Editorial; 2013.         [ Links ]

20.Tonmyr L, Li YA, Williams G, Scott D, Jack SM. Patterns of reporting by health care and non-health care professionals to child protection services in Canada. Pediatr Child Health. 2010; 15(8):e25-e32.         [ Links ]

21.Sedlak AJ, Mettenburg J, Basena M, Petta I, McPherson K, Green A, et al. Fourth National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS-4): Report to congress. Washington: US Department of Health and Human Resources, Administration for Children and Families; 2010.         [ Links ]

22.Sonbol HN, Abu-Ghazaleh S, Rajab LD, Baqain ZH, Saman R, Al-Bitar ZB. Knowledge, educational experiences and attitudes towards child abuse amongst Jordanian dentists. Eur J Dent Educ. 2012; 16(1):e158-e165.         [ Links ]

23. Sinha M. Family violence in Canada: A statistical profile, 2011. Component of Statistics Canada catalogue no. 85-002-X; 2013 (cited 2 Nov 2014). Available in:http://www.statcan.gc.ca/pub/85-002-x/2013001/article/11805-eng.pdf .         [ Links ]

24. Silva MCM, Britto AM, Araujo AL, Abath MB. Caracterização dos casos de violência física, psicológica, sexual e negligências notificados em Recife, Pernambuco, 2012. Epidemiol Serv Saúde. 2013; 22(3):403-12.         [ Links ]

25. Moreira GAR, Vieira LJES, Deslandes SF, Pordeus MAJ, Gama IS, Brilhante AVM. Fatores associados à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na atenção básica. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 19(10):4267-76.         [ Links ]

26.França RMS, Ferreira MDM. Os direitos humanos de crianças e adolescentes no Centro de Referência Especializado da Assistência Social. Emancipação. 2013; 13(2): 267-79.         [ Links ]

27. Edwardsen EA, Dichter ME, Walsh P, Cerulli C. Instructional Curriculum Improves Medical Staff Knowledge and Efficacy for Patients Experiencing Intimate Partner Violence. Mil. med. 2011; 176(11):1260-62.         [ Links ]

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License