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Investigación y Educación en Enfermería

versão impressa ISSN 0120-5307

Invest. educ. enferm vol.34 no.2 Medellín jun. 2016

https://doi.org/10.17533/udea.iee.v34n2a05 

ARTÍCULO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE / ARTIGO ORIGINAL

 

doi:10.17533/udea.iee.v34n2a05

 

Subalternidade de gênero e vulnerabilidade de mulheres à violência doméstica

 

Gender subordination in the vulnerability of women to domestic violence

 

Subordinación de género y vulnerabilidad de las mujeres a la violencia doméstica

 

Laura Christina Macedo Piosiadlo1; Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca2

 

1Enfermeira, Doutora. Professora, Universidade Federal do Paraná, Brasil. email: lcmapiosiadlo@usp.br

2Enfermeira, Doutora. Professora titular, Universidade de São Paulo. email: rmgsfon@usp.br

 

Fecha de Recibido: Mayo 14, 2015. Fecha de Aprobado: Abril 28, 2016.

 

Artículo vinculado a investigación: Avaliação da vulnerabilidade de mulheres à violência doméstica: uma proposta utilizando indicadores de subalternidade de gênero na familia.

Subvenciones: CNPQ.

Conflicto de intereses: Ninguno.

Cómo citar este artículo: Piosiadlo LCM, Fonseca RMGS. Gender subordination in the vulnerability of women to domestic violence. Invest. Educ. Enferm. 2016; 34(2):261-270.

 


RESUMO

Objetivo.Criar e validar um instrumento que identifique a vulnerabilidade de mulheres à violência doméstica por meio de indicadores de subalternidade de gênero na família. Métodos. Criou-se um instrumento composto por 61 frases indicadoras de subalternidade de gênero na família. Após avaliação de 10 juízas, foram validadas 34 frases. Aplicou-se a versão validada em 321 usuárias de serviços de saúde de São José dos Pinhais (Estado de Paraná, Brasil) juntamente com a versão validada em português do Abuse Assessment Screen (AAS) (para fins separação do grupo amostral - o grupo "SIM" foi composto por mulheres que sofreram violência e o grupo "NÃO" foi composto por mulheres que não sofreram). Os dados foram analisados quantitativamente por meio de testes de análise exploratória, análise fatorial e checagem de consistência interna. Resultados. A análise identificou dois fatores: F1 - composto de frases relacionadas a manutenção da casa e da estrutura familiar; F2 - frases intrínsecas à relação entre o casal. Nas frases que reforçam a subalternidade, as médias dos fatores foram mais altas para o grupo que respondeu SIM a uma das questões identificadoras de violência. Conclusão. O instrumento criado é capaz de identificar mulheres vulneráveis à violência doméstica utilizando indicadores de subalternidade de gênero, podendo ser uma ferramenta importante tanto para enfermeiros quanto para demais profissionais da equipe multidisciplinar, na organização e planejamento de ações voltadas para a prevenção da violência contra a mulher.

Palavras chave: violência contra a mulher; análise de vulnerabilidade; saúde pública; identidade de gênero; estudos de validação.


ABSTRACT

Objectives.To create and validate an instrument that identifies women's vulnerability to domestic violence through gender subordination indicators in the family. Methods. An instrument consisting on 61 phrases was created, that indicates gender subordination in the family. After the assessment from ten judges, 34 phrases were validated. The approved version was administered to 321 health service users of São José dos Pinhais (Estado de Paraná, Brasil), along with the validated Portuguese version of the Abuse Assessment Screen (AAS) (for purposes of separating the sample group - the "YES" group was composed of women who have suffered violence and the "NO" group consisted of women who had not suffered violence). Data were transferred into the Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) software, version 22, and quantitatively analyzed using exploratory and factor analysis, and tests for internal consistency. Results. After analysis (Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) statistics, Monte Carlo Principal Components Analysis (PCA, and diagram segmentation), two factors were identified: F1 - consisting of phrases related to home maintenance and family structure; F2 - phrases intrinsic to the couple's relationship. For the statements that reinforce gender subordination, the mean of the factors were higher for the group that answered YES to one of the violence identifying issues. Conclusions. The created instrument was able to identify women who were vulnerable to domestic violence using gender subordination indicators. This could be an important tool for nurses and other professionals in multidisciplinary teams, in order to organize and plan actions to prevent violence against women.

Key words: violence against women; vulnerability analisys; public health; gender identity; validation studies.


RESUMEN

Objetivo.Crear y validar un instrumento que identifique la vulnerabilidad de las mujeres a la violencia doméstica mediante indicadores de subordinación de género en la familia. Métodos. Se creó un instrumento que consta de 61 frases indicadoras de la subordinación de género en la familia. Después de la evaluación de 10 jueces, se validaron 34 frases. Se aplicó a 321 usuarias de los servicios de salud de São José dos Pinhais (Estado de Paraná, Brasil) la versión validada al português de Abuse Assessment Screen (AAS) -para efectos de la separación del grupo de muestra - el grupo "Sí" estaba compuesto por mujeres que han sufrido la violência; el grupo "NO", de quienes no la sufrieron-. Se estudiaron los datos en forma cualitativa a partir de pruebas de análisis exploratorios, análisis factorial y comprobación de consistencia interna. Resultados. El análisis identificó dos factores: F1- compuesto por frases relacionadas con el mantenimiento de la casa y de la estructura familiar y F2 - Frases intrínsecas a la relación entre la pareja. El promedio en las frases que refuerzan la subordinación en los factores fueron mayores para el grupo que responde Sí a las preguntas identificadoras de violencia. Conclusión. El instrumento creado es capaz de determinar las mujeres vulnerables a la violencia doméstica utilizando indicadores de subordinación de género. Em este sentido, puede ser una herramienta importante tanto para enfermeiros como para los demás profesionales del equipo multidisciplinar en la organización y planeación de acciones para prevenir la violencia contra las mujeres.

Palabras clave: violencia contra la mujer; análisis de vulnerabilidad; salud pública; identidad de género; estudios de validación.


 

INTRODUÇÃO

A violência é um problema de saúde que afeta a sociedade provocando mortes, lesões e traumas físicos, emocionais e espirituais, interferindo significativamente na qualidade de vida das pessoas. No que se refere à violência contra a mulher, estudos tem apontado alta procura de mulheres vítimas de violência de gênero por atendimento nos serviços de atenção básica à saúde.1-3 No Brasil, os serviços de atenção básica à saúde, nos moldes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), são espaços privilegiados para identificar a vulnerabilidade das mulheres para violência doméstica, uma vez que atuam como porta de entrada para o sistema de saúde, estão amplamente espalhados por todo o território nacional e têm condições para que as enfermeiras criem vínculo com as usuárias. Trabalhar sob a ótica da vulnerabilidade contribui para a renovação das práticas de saúde coletiva e de enfermagem ao privilegiar a análise no plano do coletivo, estruturando-se em um referencial ético-filosófico que busca a interpretação crítica dos dados. Essa perspectiva analítica amplia o horizonte para além da abordagem que se restringe à responsabilidade individual, que é empregada tradicionalmente.4 Entretanto, a falta de preparo da equipe para lidar com a violência doméstica, a dificuldade das mulheres de falar sobre o assunto e dos profissionais em lhes perguntar, as limitações técnicas e éticas da assistência fazem com que essa vulnerabilidade para violência fique mascarada e seja tratada entre as queixas de cunho biológico.5

A violência contra a mulher aparece na agenda da saúde devido ao movimento feminista, que pressionou e continua a pressionar o setor saúde, para que atue ativamente e dê respostas concretas não apenas para o tratamento das lesões e traumas provenientes da violência, mas agindo nas causas, por meio de uma pauta positiva de ações.6 Especificamente sobre a violência contra a mulher, o Ministério da Saúde reconhece que as desigualdades sociais, econômicas e políticas estruturais entre homens e mulheres, a diferenciação rígida de papéis, as noções de virilidade ligadas ao domínio e à honra masculina são fatores da violência de gênero.7 No Brasil, mesmo com as melhorias na qualidade de vida, persistem sérias desigualdades de gênero que sustentam a subalternidade de gênero. A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios de 2011 revela que as mulheres continuam ingressando no mundo do trabalho fora de casa, elevando sua escolaridade e tendo menos filhos, mas a articulação entre os papéis femininos e masculinos aponta diferenças de inserção no mercado de trabalho entre homens e mulheres, expressas pelas diferenças nas taxas de atividade e de desocupação. O nível de ocupação em 2009 (percentagem de pessoas ocupadas em relação ao total de pessoas) para as mulheres era de 46.8% e para os homens 67.8%, a taxa de desocupação era de 11.1% para as mulheres e 6.2% para os homens e a distribuição da PEA (população economicamente ativa) era de 43.9% para as mulheres e 56.1% para os homens.8

Com base na hipótese de que quanto maior a subalternidade, mais vulnerável estará a mulher à violência doméstica, surge a pergunta: como identificar a vulnerabilidade para a violência doméstica contra a mulher, antecipando-se ao problema antes que a situação violenta chegue aos serviços de saúde sob a forma de agressões e morte? Para responder a questão, desenvolveu-se um trabalho com o objetivo de criar e validar um instrumento que identifique a vulnerabilidade de mulheres à violência doméstica por meio de indicadores de subalternidade de gênero na família.

 

METODOLOGIA

Os estudos do Grupo de Pesquisa "Gênero, saúde e enfermagem", da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, credenciado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq - Brasil - e, em cujo escopo foi produzida a tese que deu origem a este artigo, trabalha o conceito de violência de gênero como uma construção histórico-social, decorrente das desigualdades geradas por diferenças existentes na construção da masculinidade e da feminilidade na sociedade androcêntrica que vivemos. Isto amplia a visão do fenômeno para compreender a determinação do processo e a sua articulação com outros fenômenos da realidade, entre eles, a subalternidade de gênero no cenário familiar. Esta foi uma pesquisa metodológica ou seja, voltada para a criação de instrumentos para a coleta de dados, com objetivo de melhorar a confiabilidade e validade de uma ferramenta9, desenvolvida junto às usuárias da rede de serviços de Atenção Básica da Prefeitura Municipal de São José dos Pinhais, situado no Estado do Paraná, Brasil. O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa sob o protocolo 00898212.6.0000.5392.

Criação e validação da primeira versão do instrumento. Para criar o instrumento foram utilizados os resultados obtidos por Okabe,10 que, partindo dos indicadores de avaliação das (des)igualdades na família de Goldani,11 encontrou práticas e representações cotidianas de subalternidade de gênero na família (Tabela 1).

Tabela 1.

A partir dos discursos de mulheres que viveram situações de violência doméstica, entrevistadas por Okabe,10 foram selecionadas uma ou mais frases temáticas que poderiam apontar para a reiteração da concepção hegemônica vigente de subalternidade de gênero ou para a superação dessa concepção. Com 61 frases, abrangendo a maioria dos indicadores, foi criado um questionário sobre subalternidade de gênero na família, que foi avaliado por 10 juízas. São juízesindivíduos considerados capacitados para analisar o conteúdo, a apresentação, a clareza e a compreensão do instrumento, a fim de validá-lo. Também podem checar se as questões contidas no instrumento são representativas do domínio do conteúdo que se pretende medir. A validade do conteúdo se refere ao domínio de um construto ou universo que fornece a base para formulação de questões que representam adequadamente o conteúdo.12,13 Para esta pesquisa as juízas foram escolhidas por conveniência, levando-se em consideração os seguintes critérios: ser docente da área de saúde coletiva ou saúde da mulher, pesquisadora da área ou enfermeira que atue no atendimento às mulheres. Encaminhou-se o material a ser avaliado por e-mail pedindo que opinassem sobre: 1) se a frase era ilustrativa do indicador a que se referia e se descrevia de forma explícita uma realidade vivida por uma mulher cotidianamente. 2) apresentação, clareza e compreensão da frase. Foram consideradas validadas as 34 frases onde a concordância entre as juízas foi superior a 80%.

Elaboração e validação do segundo instrumento. Após a validação das juízas, foi elaborado um segundo instrumento, a ser testado com mulheres, para verificar a relação entre a subalternidade de gênero na família e a ocorrência de violência doméstica, composto por três partes: 1) identificação das respondentes; 2) questionário para identificação da vulnerabilidade para violência doméstica por meio da subalternidade de gênero; 3) questionário sobre vivência de situações de violência (versão validada para a língua portuguesa do Abuse Assessment Screen-AAS).14  No questionário para identificação da vulnerabilidade para violência doméstica por meio da subalternidade de gênero as respostas eram registradas em uma escala de Likert, com variação de 1 a 4. Antes de responder, as mulheres recebiam a seguinte orientação "Responda: 1 - Se nunca acontece com você, não tem nada a ver com a sua vida ou com o que você pensa; 2 - Acontece muito raramente, ou é um pouco parecido com o que acontece com você ou com o que você pensa; 3 - Acontece com certa regularidade, ou é bem parecido com o que acontece com você ou com o que você pensa; 4 - Acontece sempre, com muita frequência, ou é exatamente igual ao que acontece com você ou com o que você pensa".  Após um teste piloto e, com base na estimativa da média populacional, definiu-se que a amostra deveria ser composta de, no mínimo, 320 mulheres. A coleta ocorreu nas Unidades de Saúde do município de São José dos Pinhais, Paraná, Brasil, durante o intervalo de espera para atendimento, em sala reservada para este fim. À época, o município era dividido em cinco Regionais de Saúde e a quantidade de mulheres entrevistadas em cada Regional de Saúde foi proporcional ao tamanho da população residente na área. Os critérios de inclusão foram: ter 18 anos ou mais, estar vivendo uma relação afetiva ou ter passado por esta experiência ao menos uma vez na vida, ter filhos, ter procurando o serviço de saúde por qualquer motivo, aceitar participar do estudo e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Compilação dos dados e validação estatística. Os dados foram tabulados em planilha do programa Microsoft Excel® para Windows®, versão 7 e transpostos para o software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 22. Por meio de análise exploratória foram constatados casos omissos, casos extremos e distribuição das variáveis. Retirando os casos omissos e extremos, a amostra foi reduzida de 323 para 321 mulheres. Posteriormente, passou-se à análise fatorial (AF), identificando as dimensões separadas da estrutura e determinando o grau em que cada variável é explicada em cada dimensão, atingindo-se assim os dois principais usos da AF, resumo e redução de dados. Optou-se por usar a AF, pois ela auxilia a seleção de um subconjunto representativo de variáveis ou mesmo a criação de novas variáveis que substituam as originais, mantendo seu caráter original. Em resumo, a AF é uma técnica de interdependência nas quais todas as variáveis são simultaneamente consideradas, cada variável relacionada com todas as outras, empregando ainda o conceito da variável estatística, a composição linear de variáveis. Na AF, as variáveis estatísticas (fatores) são formadas para maximizar o poder de explicação do conjunto.15 Para checar a consistência interna foi usada a análise Kaiser-Meyer-Olkin (KMO).

Elaboração do instrumento final. Após as análises estatísticas ficaram validadas 25 frases correspondentes a 15 indicadores de subalternidade de gênero na família, capazes de captar a vulnerabilidade para violência de gênero no ambiente doméstico intrafamiliar.

 

RESULTADOS

Os dados referentes à identificação das usuárias mostraram que elas tinham em média 39 anos, eram casadas ou viviam em união estável, cristãs, tinham em média dois filhos, haviam cursado apenas o ensino fundamental, trabalhavam em atividades relacionadas ao cuidado de casas ou estabelecimentos comerciais como faxineiras, diaristas, empregadas domésticas, auxiliares de serviços gerais ou eram ligadas ao setor de comércio (balconistas, caixas, vendedoras), embora boa parte não exercesse atividade remunerada. A maioria (57.9%) reconheceu que já havia sofrido algum tipo de violência física ou psicológica pelo menos uma vez na vida e os agressores mais citados foram: marido ou namorado (31.5%), ex-maridos ou ex-namorados (24.1%), outros (8.0%).

Validação estatística

Quanto à distribuição dos itens do instrumento, por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk, verificou-se que todos os itens apresentam uma distribuição não normal (p > 0.05). Contudo, a análise de componentes é robusta para esse tipo de violação de pressuposto. A análise KMO de 0.85 mostrou que a matriz apresentava alta fatorabilidade. A análise K1 (autovalor igual ou superior a 1) sugeriu a existência de até nove componentes, contudo a análise paralela, calculada pelo software Monte Carlo PCA indicou a existência de, no máximo, quatro componentes e o diagrama de sedimentação indicou a presença de até três componentes.

A análise Principal Axis Factoring - PAF (Fatoração de eixo principal) do instrumento para extração de dois, três e quatro fatores para comparação dos resultados, com rotação Oblimin, normalização de Kaiser e exposição de cargas fatoriais acima de 0.3 foi realizada e a análise da consistência interna dos itens, para a extração tanto de quatro fatores quanto de três fatores, indicou que apenas os dois primeiros fatores apresentavam alfa de Cronbach satisfatórios (valores acima de 0.8). O valor de alfa de Conbrach serve para demonstrar a consistência interna do item. Quanto mais próximo de 1, maior a consistência interna daquilo que está sendo avaliado.16 No Fator 1 permaneceram frases que reforçam a subalternidade (13 das 16) e relacionadas à manutenção da casa e da estrutura familiar, nas áreas de produção interna e externa, correspondentes aos indicadores: conciliação entre família e trabalho; reorganização profissional pós-casamento ou nascimento dos filhos; poder de decisão sobre as despesas da casa, uso do tempo pessoal e gastos, educação dos filhos; responsabilidade sobre o sustento familiar, tarefas domésticas e filhos. No Fator 2 ficaram agrupadas as frases que dão ideia de superação da subalternidade (sete entre nove) e ligadas à relação conjugal: significado de casamento, viuvez, infidelidade, divórcio e pessoa divorciada. Das nove frases que não se encaixaram em nenhum dos dois Fatores, sete representam a superação da subalternidade. Cinco das nove frases que não se encaixaram em nenhum dos Fatores e relacionam-se à rede social e aos apoios familiares (Tabela 2).

Tabela 2.

Com base nos escores obtidos, foram analisados os resultados dos escores fatoriais do instrumento desagregado por respostas obtidas no Abuse Assessment Screen AAS.14 Separando-se as respondentes de acordo com a resposta dada à primeira pergunta do AAS "Você já foi alguma vez maltratada emocionalmente ou fisicamente por seu parceiro ou alguém importante para você?", as maiores médias estão ligadas ao grupo que afirma ter sofrido violência ao menos uma vez na vida. No Fator 1, para o grupo que diz nunca ter sofrido violência é 1.70 enquanto a média do grupo que afirma ter sofrido violência, sobe para 2.31. Também há diferença na média do Fator 2 (3.12 para o grupo que respondeu não e 3.45 para o grupo que respondeu sim), o que se reflete na média do Fator Geral (2.72 para o grupo que respondeu sim; 2.22 para o grupo que respondeu não).

Para o grupo de mulheres que reconhecem ter sofrido agressão física nos últimos doze meses, a média do Fator 1 é mais alta (2.63 para as que responderam sim e 2.01 para as responderam não), porém, a média do Fator 2 é mais baixa (3.26 para o grupo que respondeu sim e 3.32 para o grupo que respondeu não). Separando-se a amostra entre as que responderam sim ou não à pergunta: "Neste último ano (12 meses), alguém forçou você a ter atividades ou relações sexuais?", no grupo das mulheres que responderam sim, a média para o Fator 1 é 3.14 e para o Fator 2 é 3.49, enquanto para as mulheres que afirmam não ter sofrido violência sexual as médias para o Fator 1 e para o Fator 2 são 2. 03 e 3.31 respectivamente.

Agrupando-se as respondentes entre as responderam sim ou não à pergunta: "Você tem medo do seu parceiro ou de alguém listado acima?" (a lista inclui marido, ex-marido, namorado, estranho, outro) as médias dos Fatores 1 e 2 ficam em 2.60 e 3.58 para as que responderam sim e 1.94 e 3.26 para as que responderam não. Considerando que os valores das médias do Fator 1 - composto por frases que exemplificam situações cotidianas que reforçam a subalternidade de gênero na família - são sempre mais altos para os grupos que responderam sim - que reconhecem ter sofrido algum tipo de violência - é possível relacionar a subalternidade de gênero à violência doméstica contra a mulher.

No Fator 2, composto por frases referentes à superação da subalternidade, as médias das mulheres que referem ter sofrido violência também são mais altas (com uma exceção, o grupo das que reconhecerem ter sofrido agressão nos últimos doze meses). Entretanto, as frases do Fator 2 são mais subjetivas e descrevem a opinião das mulheres sobre determinados assuntos (Não dá pra viver de aparência...; Infidelidade não tem perdão...; Na viuvez quando o amor é grande a gente fica triste...). Assim, ao concordarem com essas frases é possível imaginar que as entrevistadas reconheçam a necessidade de superar a subalternidade, mas não que a tenham superado.

O produto final do processo de construção e validação do questionário para identificação da vulnerabilidade para violência doméstica por meio da subalternidade de gênero na família é um instrumento com frases divididas em dois grupos: No grupo 1 agrupou-se frases que apontam a subalternidade de gênero e no grupo 2 ficaram agrupadas as frases que apontam a superação da subalternidade (Tabela 3):

Tabela 3.

 

DISCUSSÃO

Apesar de os estudos de gênero buscarem ampliar e diversificar o conhecimento sobre as relações entre homens e mulheres, indicando como o processo de determinação social tem resultado na desigualdade de poder, pesquisa em bases de dados não apontaram nenhum estudo que comprove a relação entre subalternidade de gênero e ocorrência de violência doméstica. Os resultados encontrados neste trabalho mostram que as mulheres assumiram funções que antes eram tidas como masculinas (Sou eu quem pago todas as contas da casa, inclusive as dele...), mas o inverso ainda não recíproco (Mesmo estando desempregado meu marido não fica com as crianças pra eu trabalhar). Isto reforça que a subalternidade de gênero está intrinsecamente ligada à vulnerabilidade para a violência doméstica e mostra que as mulheres que sofrem violência doméstica, ainda que reconheçam a necessidade de romper com a subalternidade de gênero, não conseguem.

é importante salientar que a violência não é um traço de personalidade relacionado aos sexos masculino ou feminino, muito menos que características genéticas determinam que os homens sejam mais violentos e mulheres mais frágeis e submissas, portanto, subalternas. O que se defende neste trabalho é que a característica violenta vai se conformando com a construção do gênero, que por sua vez está atrelada ao modo de viver e sobreviver em cada sociedade e, a construção social dos gêneros tem reservado um papel de subalternidade à mulher que a deixa mais vulnerável à violência doméstica. O Estado tem pautado suas normatizações e intervenções na atenção à saúde, no sentido de manter a força de trabalho, reduzindo as necessidades em saúde ao que se expressa a partir do desgaste físico, no âmbito biológico, o que referenda a não-conscientização dos sujeitos sobre os determinantes do processo saúde-doença a que estão submetidos.18 Os profissionais de saúde precisam desenvolver técnicas de abordagem que ultrapassem o cuidado com as lesões para dar respostas adequadas às situações de violência de gênero. é necessário olhar para a violência de gênero na perspectiva do plano coletivo, estruturando-se em um referencial ético-filosófico que busca a interpretação crítica dos dados, pautando-se na categoria gênero e distanciando a análise da violência contra a mulher daqueles modelos que restringem a responsabilidade individual e à causalidade. Só assim as práticas em saúde constituirão estratégias que possibilitem a conscientização e o empoderamento das mulheres, no sentido de reconstruir as relações pautadas na equidade de gênero, superando a subalternidade.17

Conclusões Ao criar e validar questionário para identificação da vulnerabilidade para violência doméstica por meio da subalternidade de gênero na família, comprova-se que é possível identificar as mulheres vulneráveis à violência doméstica, por meio de indicadores de subalternidade de gênero, entretanto, não houve tempo para capacitar a equipe multiprofissional para o uso do instrumento. Por não haver outros trabalhos relacionando a subalternidade de gênero à violência doméstica contra a mulher, mais pesquisas são necessárias. Futuros estudos também poderão explorar a capacitação dos trabalhadores em saúde, em especial as enfermeiras, para o uso deste questionário nos serviços de atenção básica, a fim checar se o uso do instrumento é útil para o planejamento de intervenções individuais ou coletivas.

 

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