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Investigación y Educación en Enfermería

Print version ISSN 0120-5307On-line version ISSN 2216-0280

Invest. educ. enferm vol.34 no.3 Medellín Dec. 2016

https://doi.org/10.17533/udea.iee.v34n3a09 

Articles

Relatos de coerção e manifestação do imaginário social da loucura por familiares e usuários da saúde mental no momento da internação

Belisa Vieira da-Silveira1 

Amanda Márcia dos-Santos-Reinaldo2 

1 Nurse, MSc . Professor, College of Education of Minas Gerais, Brazil. email: belisavs@yahoo.com.br

2 Nurse, PhD. Associated Professor, Federal University of Minas Gerais, Brazil. email: amsreinaldo@enf.ufmg.br.


Resumo

Objetivo.

Compreender o imaginário social da loucura e sua manifestação no momento do encaminhamento para a internação de usuários da saúde mental por seus familiares.

Métodos. Estudo de caso, de natureza qualitativa, realizado em um serviço de saúde mental na cidade de Belo Horizonte, Brasil. A coleta dos dados se deu por meio de observação não-participante e por entrevistas com roteiro semiestruturado a 8 usuários do serviço. Os dados foram analisados mediante análise de conteúdo proposta por Bardin.

Resultados. Os resultados indicam que o discurso do louco ainda é negado e não tem espaço, devido ao imaginário social da loucura. Assim, a internação aparece como uma solução para a família, uma vez que esta não entende o processo de adoecimento mental, concebendo o doente como vagabundo. Como o discurso do louco não é reconhecido, a demanda da família impera e torna-se coercitiva.

Conclusão.

A conclusão deste estudo é que o imaginário social da loucura ainda está associado à desrazão e inadequação social do sujeito em sofrimento psíquico, o que leva familiares a decidirem pela internação psiquiátrica hospitalar.

Palavras chave: coerção; hospitalização; transtornos mentais; serviços de saúde mental; pesquisa qualitativa.

Abstract

Objective.

To understand the social imaginary of madness and its manifestation at the time of referral to hospitalization of users of mental health by their families.

Methods.

Case study, qualitative, conducted in a mental health service in the city of Belo Horizonte, Brazil. Data collection was through non-participant observation and interviews with semi-structured to eight service users. Data were analyzed using content analysis proposed by Bardin.

Results.

The results indicate that the mad man speech is still denied and has no space due to the social imaginary of madness. Therefore, the hospital appears as a solution for the family, since they do not understand the mental illness process, designing the patient as bum. Since the mad man speech is not recognized, the family’s demand prevails and becomes coercive.

Conclusion.

The conclusion of this study is that the social imaginary of madness is still associated with unreason and social inadequacy of the subject in psychological distress, which leads families to choose the hospital psychiatric hospitalization.

Key words: coercion; hospitalization; mental disorders; mental health services; qualitative research.

Resumen

Objetivo.

Comprender el imaginario social de la locura y su manifestación en el momento de hospitalización de los pacientes de salud mental por sus familias.

Métodos.

Es un estudio de caso, de naturaleza cualitativa, llevada a cabo en un servicio de salud mental de la ciudad de Belo Horizonte, Brasil. La recolección de información se realizó por observación no participante y de entrevistas semiestructuradas a ocho usuarios de los servicios. Los datos se analizaron mediante análisis de contenido propuesto por Bardin.

Resultados.

Los hallazgos indicaron que el discurso del loco sigue siendo negado y no tiene espacio debido al imaginario social de la locura. Por lo tanto, la hospitalización se presenta como una solución para la familia que no entiende el proceso de la enfermedad mental, considerando al paciente como un vagabundo. Como el discurso del loco no es reconocido, la demanda de la familia prevalece y se convierte en coercitiva.

Conclusión.

El imaginario social de la locura aun está asociado con la irracionalidad y la inadaptación social del sujeto en sufrimiento, que lleva a las familias a decidirse por la hospitalización psiquiátrica.

Palabras clave: coerción; hospitalización; transtornos mentales; servicios de salud mental; investigación cualitativa.

Introdução

O imaginário de uma sociedade é algo imponderável, difícil de precisar no tempo e espaço a sua origem e elaboração, mas é real em sua complexidade e “materialidade”. Há uma força social que emana do imaginário, uma construção mental coletiva, que perpassa o indivíduo, mas que não se encerra neste, ultrapassa-o.1 Por ser coletivo, o imaginário é partilhado, compartilhado e repassado culturalmente. O imaginário funciona como um recolhedor de memória, experiência, afeto e percepção sobre o cotidiano. Tal percepção do indivíduo em relação a si mesmo e a terceiros determina o pertencimento a um grupo social e, de forma contraditória mas complementar, detecta os inimigos e contraventores desse imaginário social.2

Se o imaginário social diz respeito ao coletivo, as peças individuais que o constroem se aproximam, ligam-se: o imaginário é cimento social. Assim, permeado por afeto, por aspectos racionais e irracionais, o imaginário origina uma imagem, que fundamentará as práticas.1 Por exemplo, o imaginário social de um louco faz o louco ser o que é. Pior, por sua elaboração histórica, cria e mantém a imagem segregadora da loucura e corrobora com as práticas institucionais. O louco torna-se inapto. O imaginativo torna-se real. O reconhecimento da diferença e a desvalorização do sujeito louco por ser diferente alicerçam a construção social do estigma e do preconceito, marca presente na vida das pessoas em sofrimento mental e historicamente construída. O marco legal da reforma psiquiátrica brasileira foi a Lei 10.2016 de 2001 que redirecionou a política de saúde mental no país, mas apenas em 2011 foi criada a rede de atenção psicossocial, apesar de existirem iniciativas de serviços em rede realizadas nesse espaço temporal e dos movimentos posteriores à tramitação e aprovação da lei. Cabe lembrar que a reforma psiquiátrica brasileira é fruto de um movimento social de determinados setores específicos da sociedade e não político, o que marca sua singularidade.3

A portaria 3088/2011 que criou a rede de atenção psicossocial no país, também definiu a reabilitação psicossocial como referencial teórico que sustenta as suas ações, no entanto apesar de serem marcos legais que regulamentam por força de lei como, onde, quando e porque a mudança na concepção do cuidado a pessoa em sofrimento mental, seria ingênuo pensar que por força de lei a reorganização do modelo assistencial implica na mudança do imaginário social em relação a figura do louco, independente do cenário de cuidado em que ele se insere, pois trata-se de uma construção história que foi tecida em diferentes contextos no país e no mundo.4-6 A partir dessa compreensão e análise de fatos históricos da reforma psiquiátrica brasileira ainda em curso, e fragilizada por questões políticas, os sujeitos com transtorno mental vivem em um limbo simbólico, algo nesses indivíduos gera a incompreensão e leva à diferenciação, onde não há lugar para expressar seus desejos, demandas e discurso.6-7 Se, de acordo com o imaginário social predominante sobre a loucura, não há discurso para o louco, como esse sujeito manifesta seus desejos e demandas perante a sociedade?

Entende-se por demanda as “necessidades” de um sujeito, particulares do indivíduo, devendo ser, portanto, manifestas, de modo singular, frente a uma situação de crise, de dificuldade. No âmbito da saúde mental, a interpretação da demanda do sujeito em sofrimento é complexa. Como diferenciar se a demanda, de fato, é do sujeito ou imposta por terceiros.8 Tal diferenciação e identificação da demanda se dão no momento do acolhimento ao sujeito. Assim, os técnicos de referência - enfermeiro, psicólogo, psiquiatra - precisam escutar primeiramente o paciente para, somente depois, ouvir o relato familiar. O enfermeiro, por prestar o cuidado direto e por passar mais tempo perto do paciente na instituição, é um profissional privilegiado para construir a demanda junto com o sujeito em sofrimento. Comumente, em saúde mental, as conversas extra consultório, por não serem identificadas como consultas formais, fazem com que o paciente se sinta mais confortável para apresentar a sua subjetividade, sua demanda, contrapondo a demanda familiar. Entretanto, se a relação enfermeiro-paciente estiver calcada no imaginário da loucura, o que resta é tornar a demanda de terceiros, supostamente, a demanda do sujeito em sofrimento. Assim, se for imposta por terceiros, como o portador de transtorno mental pode ter um posicionamento autônomo frente à própria vida?

A demanda expressa consiste em uma teia de aspectos subjetivos e objetivos, relacionados à história de vida do sujeito, suas interações sociais e condições de existência. Assim, as demandas são fruto de uma construção social, que envolve todas as vertentes desse processo: o próprio usuário, bem como, sua família e os profissionais que acolhem essa demanda.8 A construção da demanda se dá pelas ações cotidianas vivenciadas pelo sujeito, sendo que, se cada um vivencia uma situação de forma distinta, a demanda, por conseguinte, só pode ser única, particular. Não é possível que um terceiro apresente a demanda de outro indivíduo.8) Apesar de imaginário social e demanda serem construídos socialmente, o primeiro é uma elaboração coletiva, enquanto, a demanda é individual. A pressão do coletivo, muitas vezes, sufoca o individual. Nesse caso, torna-se quase natural ao portador de transtorno mental sucumbir ao histórico imaginário social a respeito da loucura e conformar-se em ter seus desejos e “demandas” expressos por terceiros.

Se a demanda é singular, mesmo que construída socialmente, é o portador de transtorno mental quem deveria decidir o modo de procurar o serviço de saúde, o porquê procurá-lo. Quando outra pessoa decide pelo usuário, privando-o de sua autonomia, há a manifestação das demandas desse terceiro o que pode coincidir ou não com as do usuário. Assim, o delineamento do plano terapêutico não será baseado nas reais demandas do usuário, mas nas inquietações e dificuldades de outrem. Frente ao exposto, o artigo objetiva compreender o imaginário social da loucura e sua manifestação no momento do encaminhamento para a internação de usuários da saúde mental por seus familiares.

Métodos

Trata-se de um estudo de caso de abordagem qualitativa, que, por sua natureza, o foco se dá em fenômenos contemporâneos vinculados a algum contexto real.9) O estudo foi realizado de 2011 a 2013 em um Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) situado no município de Belo Horizonte/MG. Tal serviço atende a uma população superior a 400 mil habitantes, possui 8 leitos para hospitalidade noturna e acolhe diariamente, em média, 50 pacientes em regime de permanência dia. No que tange à estrutura física, além dos 6 consultórios para atendimento individual, o CERSAM possui uma ampla área externa, passível de ser utilizada na realização de atividades esportivas e/ou oficinas e um jardim interno no qual já foram ofertadas oficinas de jardinagem. O serviço oferece atendimentos individuais e em grupo para os familiares dos pacientes, de modo a inseri-los no tratamento, auxiliá-los na compreensão das nuances que perpassam a saúde/doença mental e diminuir/alterar o imaginário social da loucura.

Os dados foram coletados por meio de entrevista com roteiro semi-estruturado aos usuários do serviço e por observação não-participante da dinâmica do CERSAM (1- Você já foi encaminhado a serviços de psiquiatria? Como foi o encaminhamento? Como você se sentiu?; 2- Como e com quem você veio para o CERSAM na última admissão? Como você se sentiu sendo trazido dessa forma?; 3- Você gostaria de ter sido trazido de outra forma? Qual?; 4- Como você vê o CERSAM nessa sua internação? Você já o percebeu de outra forma?; 5- Qual o tratamento proposto a você? Qual a sua percepção desse tratamento?; 6- Quais atividades você desempenha no CERSAM? Com que frequência você as realiza? Como você se sente em participar dessas atividades?; 7- Você acha que o modo como foi trazido influencia no seu envolvimento com o tratamento proposto? Como/Por quê?). Foram entrevistados 8 pacientes do serviço que serão identificados como P1, P2, ..., P8 e as notas de observação serão identificadas como NO. Esses pacientes possuem, em média, 9 anos de acompanhamento no CERSAM. Para a determinação do número de participantes do estudo utilizou-se o critério de saturação dos dados.10 Posteriormente, os dados foram analisados, conforme análise de conteúdo proposta por Bardin.11) Neste artigo, serão abordadas as seguintes categorias com as suas respectivas subcategorias: “Família em Saúde Mental” e “Velhos hábitos nunca saem de moda” (Desrespeito Legitimado e a Loucura Intimida). Em relação aos princípios éticos, o estudo foi aprovado: ETIC 539/11 e Parecer 0539.0.203.410-11A. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Quais influências a família pode estabelecer na vida dos portadores de transtorno mental?: Ela não entende que eu sou doente mental, minha família não entende. (...). Então, eles acham que eu sou um vagabundo, sou um desonesto (...). A família tem dificuldade de entender que quando eu estou bem, eu estou bem, mas não é porque eu estou bem que eu sarei não, que eu estou curado não, porque não tem cura, tem tratamento [P21]. O discurso da família torna-se o discurso do paciente; a demanda da família sufoca, anula e torna-se a demanda do portador de transtorno mental: Porque lá a família interrompia muito o meu tratamento, porque eu não tinha voz, a família no hospício é que tem voz no lugar da gente (...). Todas as vezes que eu internei no hospital psiquiátrico foram as minhas tias que me levaram. Chegavam lá e falavam assim, ela está assim, assim, aí davam um jeito de me internar [P31].

Como o discurso do louco não entra na roda simbólica aceita, não é só a família que anula e transpõe a demanda do portador de transtorno mental: Tortura é ficar teimando. Tortura é: Você tem isso? Eu não tenho e eles falam, tem sim! P32], Aí o Paulo, do SAMU, falou assim... algema ele porque ele está super alterado, ele pode me agredir. Aí eu falei, eu estou bem, estou tranquilo, espera um pouco... Pode me algemar, está tudo bem para mim, se quer apertar, aperta mais. P22]. O embate discursivo e simbólico entre o suposto ser-saber (sociedade) e o ser-objeto-não saber (louco) impacta e tensiona as ainda possíveis relações sócio-afetivas dos portadores de transtorno mental: Acho horrível, porque minha mãe ela, ela me expõe muito. O Natal para mim acabou. Eu não quero voltar para casa, eu estou decepcionada por causa disso [P1]; Eu sou a mesma pessoa que eu era antes, só que minha mulher foi me enchendo a paciência até a hora que eu não aguentei mais. São 50 anos de tormentos, de trocar as palavras, para pisar, para ofender, para humilhar e tudo [P6].

O imaginário social da loucura, reproduzido vivamente pela família, faz parte da construção do imaginário social do próprio portador de transtorno mental frente ao sofrimento psíquico: Senti medo dos pacientes daqui (referindo-se ao CERSAM) [P51]; E quando eu cheguei aqui eu fiquei nervoso, porque eu nunca tinha lidado com tantas pessoas com problemas mentais mais graves. E isso me deixou agitado [P41]. Assim, o diferente assusta... E a loucura ainda mais: Usuária do CERSAM se aproxima e começa a conversar comigo e com outros dois usuários. A paciente fala que ela não é gente, é um animal, por ter pêlos no corpo. Se bicho não usa roupa, ela que é bicho também não deveria usar roupa. Os outros dois usuários se assustam, saem e um comenta ‘O que é isso, essa aí é louca demais [NO1].

Na busca pela normalidade, até o tratamento medicamentoso escancara a anormalidade difundida pela sociedade: Porque me dá vergonha. Viver na casa dos outros é muito ruim, eu urinei na cama. O remédio é tão forte que eu não acordo para fazer xixi. Eu fico chateada [P52]. Entre normal e patológico, a aparência social se assemelha ao real da loucura: Plantonistas comentam sobre a aparência de uma paciente em permanência dia: Está vendo a J.? Olha a altura do cabelo dela, está igual uma leoa. Ela fincou o pente na cabeça, quando ela faz isso... pode saber, é hospitalidade noturna na certa [NO2]. Uma semana depois, a técnica de referência dessa paciente comenta: Você viu como J. está melhor? Tirou o pente da cabeça, o cabelo está mais ajeitado e as roupas estão limpas. Já está quase pronta para sair da hospitalidade noturna [NO3]. Discurso e coerção sociais confundem, até mesmo, profissionais da saúde que deveriam recuar perante o ideal de loucura e avançar no respeito aos direitos humanos dos sujeitos em sofrimento: Aí foram uns caras fortes que entraram, me amarraram. Inclusive, na minha opinião, (pausa), criminoso. Terrível, muito ruim [P42]; Mas teve uma vez, esse ano, que minha mãe chamou a polícia e a polícia foi truculenta e o pessoal do SAMU foi truculento comigo, não gostei. Porque eu falei que ia pegar cigarro e ele me pegou pela calça aqui, como se fosse um marginal [P23]; O SAMU já me ameaçou de ficar entubada se eu não fosse. O SAMU faz isso com a gente. Me senti péssima. Quando eu cheguei aqui (CERSAM), eu me senti liberta [P33].

Discussão

O percurso do portador de transtorno mental na sua vida, normalmente, é interpelado por construções inesperadas, por exemplo, a crise, ou por sujeitos que trilham, paralelamente, essa trajetória junto com o sujeito em sofrimento, em especial, familiares. Essa nebulosidade frente ao transtorno mental ocasiona uma dificuldade da família em compreender o caráter multifacetado do sofrimento. Assim, conforme apresentado por P21, a família, às vezes, assume um comportamento de descrença frente ao tratamento. Por que em alguns momentos o sujeito, seguindo a terapêutica traçada, fica bem e, em outros momentos, entra em crise. O que gera receio e instabilidade. A família concebe o transtorno mental como um fenômeno incurável, imprevisível e incontrolável, e, portanto, complicado de ser manejado no convívio social. Assim, a internação emerge como um alívio, uma solução temporária à descontinuidade da normalidade, uma transferência de responsabilidade para a equipe de saúde.12 A internação emerge como uma resposta ao imaginário social, uma solução para a demanda familiar. Enquanto a demanda da família é aceita, a autonomia do sujeito é negada.

Entende-se por autonomia, a capacidade de um sujeito decidir, livremente, acerca das suas próprias ações e delinear a sua trajetória de vida. De modo similar, o conceito de felicidade, de acordo com a filosofia grega, transita pela boa fortuna, excelência frente ao eu e às potencialidades decisórias desse eu. Em outras palavras, é “ser senhor de si”. Transpondo os conceitos de autonomia e felicidade para o âmbito da saúde: é o domínio dos indivíduos no que tange à demanda, aos determinantes de sua própria saúde.13 De acordo com o imaginário social da loucura, exposto anteriormente, a crise psiquiátrica é a rua sem saída para o sujeito em sofrimento. Na ausência da crise, ainda é aceitável discutir o restabelecimento de laços sociais. Porém, quando os indícios da crise aparecem, despertam o simbolismo da desrazão e da perda da capacidade decisória.

O louco, sujeito da desrazão, do inesperado, é expropriado da sua capacidade de expressão, dos seus desejos e percepções. Não há inserção no discurso.14 Apreendendo o discurso enquanto fala, ao negar o poder da palavra ao sujeito, nega-se o próprio empoderamento de vida a esse indivíduo. Sujeito sem discurso e sem poder, torna-se mero objeto para o outro, tornando-se alvo do discurso e do poder e da demanda alheia. Indivíduos com transtorno mental tendem a ser desqualificados em seus depoimentos, inclusive, por profissionais de saúde. Há uma crença pessimista sobre sua capacidade de reconhecer as implicações do problema e a necessidade do tratamento. Não raro, é tido como incapaz, sendo seu ponto de vista dispensável.15

Para além da negação do discurso, o imaginário social da loucura se faz tão presente que, mesmo nos dias atuais, o louco ainda e também é visto, por enfermeiros, como um indivíduo imprevisível, violento, mais propenso a cometer delitos.16 Tal estereótipo negativo, vinculado ao imaginário, impacta diretamente no tipo de assistência prestada pela enfermagem. Assim, ao conceber o louco como violento, as contenções físicas e/ou químicas tornam-se o primeiro recurso “terapêutico”, anulando o discurso e vínculo entre enfermeiro-paciente. As falas de P32 e P22 apontam a necessidade dos profissionais de saúde abordarem o sujeito em sofrimento psíquico, de fato, como um sujeito e não objeto perante o outro. Assim, é necessário que o enfermeiro, durante a graduação, tenha disciplinas que proporcionem uma nova visão a respeito desse sujeito e do adoecimento, para diluir o imaginário social cristalizado acerca da loucura.

A diluição do imaginário proporcionaria, por exemplo, um acolhimento, pelo enfermeiro, da subjetividade do portador de transtorno mental, considerando a demanda desse indivíduo, e não da família, como apresentado pelos participantes do estudo. Discurso do louco seria circulante e não enclausurado no próprio indivíduo, conforme construção imaginária histórica. Desde a Idade Média, o discurso do louco é aquele que não pode circular no mesmo espaço dos outros discursos. Por não ser considerada verdadeira, a palavra proferida pelo louco não pode ser acolhida e escutada pelos demais, é nula. O discurso da loucura configura-se um ruído distorcido, constantemente silenciado e sem valor.17 O que não é reconhecido como plausível e aceitável, vira fenda simbólica, que será preenchida por imaginário e demanda de terceiros. De modo curioso e, aparentemente, contraditório, mesmo sem valor, é pelo discurso do sujeito que se estabelece e reconhece a loucura. A exclusão e segregação iniciam-se pelo próprio discurso, é ele que delimita o limite da razão para a desrazão.17

Diz-se que o isolamento pelo discurso foi superado e que, atualmente, o louco é ouvido, mas qual o real objetivo dessa escuta? Deu-se a possibilidade de fala a P22 e P32 e, teoricamente, ambos foram escutados. Palavras foram escutadas, mas a razão das palavras foi sobreposta a uma suposta desrazão dos indivíduos que a proferiram. Mais uma vez, imaginário sobrepõe subjetividade. Demanda é sinônimo de hetero-subjetividade. A escuta qualificada pode ser mascarada por um saber dominante, voltado para identificar elementos de normalidade ou anormalidade. De modo camuflado, a escuta censura o discurso e continua sendo foco de segregação, coerção, norteada por um saber-verdade, pelo discurso da verdade. Há três sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade.17

Os três sistemas minimizaram os discursos de P22 e P32. Ao dizer que não tem algo e o outro afirmar, em nome do sujeito, que tem, a palavra foi dita, porém negada e proibida aos ouvidos do outro. Procurou-se no discurso de P22 e P32 aspectos que possibilitassem a segregação que a própria loucura legitima e, por último, a vontade de verdade do outro, atravessou o discurso, pondo em voga o desejo e direito de um saber-poder frente à loucura. Um saber-poder institucionalizado na sociedade.14) A busca pela institucionalização do portador de transtorno mental reflete uma sobrecarga significativa da família. A presença de um louco dentro de casa força a família a alterar sua rotina de vida. Há, na convivência com o louco, um esgotamento físico e mental do familiar que se sente carregando o fardo da loucura sozinho.18

É nesse contexto que o familiar procura o hospital psiquiátrico e pede para que o portador de transtorno mental seja internado. Esse pedido, mais próximo de uma súplica, consiste em uma tentativa da família se reorganizar, descansar, se sentir livre de um problema, aparentemente, sem solução.18 O que a princípio se configura como uma demanda de socorro, com o passar do tempo, torna-se um problema esquecido e resolvido. O papel do portador de transtorno mental na família e os espaços que eram destinados a ele são reorganizados na ausência desse indivíduo. A família se reorganiza a partir da ausência do louco que, ao sair da internação, torna-se presença indesejada e deslocada do ambiente familiar.

Nos hospitais psiquiátricos é a família que determina o momento adequado para a internação, mediante a sua dificuldade em lidar com a crise, conforme explicitado por P31. O contato da família com os profissionais da saúde se dá nesse momento de delegação da guarda e dos cuidados à instituição, em alguns casos, pela coerção, sem o consentimento do sujeito em sofrimento. Nesse momento, o afastamento da família é desejado por ela própria e pelo próprio doente.12 Se a família não compreende a condição do adoecimento e do sofrimento decorrente desse adoecimento, como irá apreender o momento da crise e escutar a demanda do sujeito? Nesse momento delicado para ambos os lados da díade família - portador de transtorno mental, respeitar a individualidade e o espaço do outro se torna difícil.

Desrespeitar a diferença vira hábito, prática socialmente aceita e respaldada pelo imaginário. Mudar atitudes e pensamentos exige um investimento grande de quem se propõe a conhecer o novo. Manter o que já é estabelecido e conhecido é bem mais fácil e menos doloroso. Os efeitos do discurso e do imaginário social sobre a loucura nos indivíduos “normais”, não é novidade, é fato corriqueiro. Entretanto, seriam esses mesmos efeitos desencadeados nos próprios portadores de transtorno mental? Que o medo e o sentimento de estranheza acerca da loucura estão presentes na sociedade é fácil de se compreender. Entretanto, o portador de transtorno mental apresentar esse mesmo sentimento de alheamento ao se deparar com a loucura do outro escancara o poder do imaginário social sobre os indivíduos.

Pelos relatos dos pacientes P41 e P51 percebe-se que eles não se reconhecem na loucura alheia. Da mesma forma que a sociedade coloca a loucura como pertencente a uma realidade paralela, o louco, ao vislumbrar no outro algo de sua própria subjetividade, assume a mesma postura do imaginário social. A imagem refletida por esse espelho devolve uma figura familiar, porém distorcida. A loucura intimida. Essa estranheza do próprio sujeito em sofrimento em relação à loucura se dá devido às experiências que esse indivíduo desenvolveu em relação ao próprio sofrimento mental. Por vivências pessoais angustiantes, o sujeito sabe, com propriedade, que a loucura desencadeia mudanças significativas do outro perante o doente. Assim, essas vivências provocam, de modo inconsciente, distorções na forma como o portador de transtorno mental vê a si mesmo e como ele se posiciona no mundo.19 O sujeito em sofrimento sabe a reação das outras pessoas ao rótulo da loucura e as perdas progressivas de status, do autogerir a própria vida. Há a deteriorização da identidade do sujeito, tornando-se alvo de manipulações, de demandas alheias.19

Frente às constantes perdas e subjugações provenientes das experiências com a doença, o portador de transtorno mental, ao presenciar a loucura do outro, manifesta a mesma estranheza da sociedade, reproduz o imaginário e o discurso social. Mesmo compreendendo a doença que possui, ele não quer pertencer e se reconhecer nessa categoria estigmatizada imposta pela loucura. A sociedade espera que o portador de transtorno mental se porte e comporte de determinada maneira. Essa expectativa frente ao transtorno mental reflete na maneira como a doença é vivenciada e manifesta pelo doente. Assim, o indivíduo tenta expressar a sua angústia considerando as formas culturalmente mais aceitáveis.19

A loucura não é aceita pela sociedade. Para um adulto, independente da causa, urinar na cama, conforme explicitado por P52, também não é um fenômeno socialmente aceito. Daí emerge o estranhamento em relação ao próprio corpo, ao próprio comportamento. A inquietação não é devido ao intenso sofrimento, mas sim, devido ao julgamento do outro em relação a si próprio. Assim, portador de transtorno mental começa a estabelecer parâmetros de normalidade para conseguir enfrentar e atender às imposições do imaginário social. É uma tentativa, extrema, de pertencer ao discurso vigente.

Manter-se arrumado e com boa higiene, por si só, indica a lucidez e o equilíbrio emocional de um indivíduo. Apresentar-se desarrumado em um serviço de saúde mental é aceitável mediante os parâmetros de normalidade do local, porém, esses parâmetros não são os mesmos estabelecidos e consagrados pela sociedade.19 Ademais, desorganização na aparência reflete o nível de desorganização psíquica do indivíduo e o tanto que este se encontra deslocado do discurso. Denota-se que a aparência consiste em uma variável importante na caracterização do estado de normalidade da pessoa antes do adoecimento, durante e em sua recuperação.19 É entre o normal e o patológico que o outro se impõe e expõe as fragilidades do doente mental.

O modo como o indivíduo “opta” por se tratar configura tipos distintos de coerção. Quando a decisão não compete ao indivíduo, há uma coerção informal, é dizer, forçado por pressão, conforme explicitado por P42 e P23. A decisão de se tratar também pode ser por coerção involuntária, quando o indivíduo é pressionado a se tratar, mediante ameaças de sanções negativas, exemplificado pelo relato de P33.20 Independente do tipo de coerção e por quem é realizada, a prática apresenta-se como a configuração do imaginário social e da demanda de terceiros. O ambiente familiar e o laço social não remetem segurança. Interessante notar, no relato de P33, que a ela se sentiu liberta no CERSAM. Mesmo considerando o sofrimento e angústia ao ser ameaçada por profissionais do SAMU, um serviço de saúde não deveria representar segurança e, muito menos, liberdade a um indivíduo. Esses sentimentos deveriam estar presentes na casa da paciente, no trabalho, nos relacionamentos interpessoais, ou seja, em espaços sociais desvinculados da saúde.

Percebe-se que, nos relatos de P42, P23 e P33, houve coerção no momento em que foram abordados pelas equipes de atendimento à emergência e segurança pública. A coerção se dá quando existe um paternalismo, um sentimento de responsabilidade frente a um indivíduo ou mediante uma avaliação social com o intuito de prevenir ou reduzir comportamentos indesejáveis.20) Ressalta-se o caráter preventivo das práticas coercitivas, ou seja, de antecipar um fenômeno ainda não manifesto. A coerção pode ser, portanto, caracterizada como um tipo de violência, uma vez que afeta a integridade física, mental e moral do agredido, acarretando em um enfraquecimento da qualidade de vida e saúde desse indivíduo. Em uma análise ampla, a violência social desvela estruturas de dominação estabelecidas.21

A violência emerge como um fenômeno histórico-social, representativo das concepções e ideologias construídas por uma sociedade no decurso do tempo.21 Assim, utiliza-se a crise psiquiátrica como um artifício para validar coerção, demanda, discurso e imaginário social, não do portador de transtorno mental, mas de terceiros.

A conclusão deste estudo é que o imaginário social da loucura ainda está associado à desrazão e inadequação social do sujeito em sofrimento psíquico. Esse imaginário atuante impera nos familiares, que percebem o portador de transtorno mental como incapaz e permanentemente em crise, decidindo por encaminhá-lo para uma internação psiquiátrica hospitalar que para serviços substitutivos conforme preconizado pela Reforma Psiquiátrica.

Apesar das limitações desta pesquisa, como: não ser um estudo que faz parte de uma série histórica que possa ser comparado a outros momentos da política de saúde mental no país, o fato de ter sido realizado em apenas um local da rede de serviços e de não ter estudos semelhantes que abordem o tema para comparar o fenômeno em outros contextos, é possível tecer algumas considerações acerca da temática. Os avanços referentes à rede de atenção em saúde mental são notórios, porém, percebe-se que, fora desse circuito substitutivo assistencial, ainda vigora o imaginário de que o portador de transtorno mental não tem nada a dizer e, portanto, não precisa existir em sua singularidade e subjetividade. Talvez, o maior desafio atual e futuro seja, de fato, permitir a existência desse sujeito, para que suas demandas apareçam e se tornem discurso social.

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Recebido: 30 de Outubro de 2015; Aceito: 31 de Agosto de 2016

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