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Investigación y Educación en Enfermería

Print version ISSN 0120-5307On-line version ISSN 2216-0280

Invest. educ. enferm vol.35 no.1 Medellín Jan. 2017

https://doi.org/10.17533/udea.iee.v35n1a03 

Articles

Processo educativo em cuidados paliativos e a reforma do pensamento

Karen Knopp de Carvalho1 

Valéria Lerch-Lunardi2 

Priscila Arruda da Silva3 

Tânia Cristina Schäfer-Vasques4 

Simone Coelho-Amestoy5 

1 Nurse, Ph.D. Assistant Professor, Universidade Católica de Pelotas - UCPel, Brazil. email: knoppcarvalho@hotmail.com

2 Nurse, Ph.D. Professor, Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Brazil. email: vlunardi@terra.com.br

3 Nurse, Ph.D. Junior Postdoctoral scholarship/ CNPQ, Brazil. email: patitaarruda@yahoo.com.br

4 Nurse, Ph.D. student. Universidade Federal do Rio Grande -FURG. email: taniacristina9@yahoo.com.br

5 Nurse, Ph.D. Assistant Professor, UFPel. email: simoneamestoy@hotmail.com


Resumo

Objetivo.

Conhecer as contribuições do processo educativo em Cuidados Paliativos na graduação, para atuação profissional das enfermeiras no cuidado de pacientes na terminalidade.

Métodos.

Pesquisa qualitativa, com análise temática discursiva, fundamentada na teoria da complexidade de Morin. Participaram sete enfermeiros egressos e seis enfermeiros docentes de um curso de Graduação em Enfermagem.

Resultados.

Evidenciaram-se rupturas e a construção de novas formas de pensar e de cuidar de pacientes na terminalidade, destacando-se que esse paciente necessita ser cuidado com terapias para alívio dos seus sinais e sintomas até sua morte, enfocando a qualidade de vida; ter valorizados seus aspectos psicossociais e espirituais.

Conclusão.

O processo educativo em cuidados paliativos parece essencial aos enfermeiros, como forma de organizar e sistematizar o cuidado dos pacientes. É indispensável que os programas de Enfermagem também promovam aos estudantes o desenvolvimento da consciência da complexidade do ser humano e a sua relação com os múltiplos aspectos biopsicossociais e espirituais.

Palavras chave: educação em enfermagem; doente terminal; cuidados paliativos

Abstract

Objective.

To know the contributions of the educational process in Palliative Care during the undergraduate level for the professional action of nurses in the care of patients at the end of life.

Methods.

This is a qualitative research, with discursive thematic analysis, based on Morin’s theory of complexity. It was attended by seven newly-trained nurses and six nursing teachers from a Nursing Undergraduate Course.

Results.

It has found disruptions and the development of new ways of thinking and caring for patients at the end of life, highlighting that these patients should be treated with therapies to mitigate their signs and symptoms until death, focusing on quality of life; moreover, their psychosocial and spiritual aspects should be appreciated.

Conclusion.

The educational process in palliative care seems to be essential for nurses, as a way of organizing and systematizing patient care. It becomes indispensable that nursing programs also provide the students with the development of the awareness of the complexity of the human being and its relationship with the multiple biopsychosocial and spiritual aspects.

Key words: education, nursing; terminally ill; palliative care

Resumen

Objetivo

. Conocer las contribuciones del proceso educativo de cuidados paliativos realizado en el pregrado para el trabajo profesional de las enfermeras en el cuidado de pacientes con enfermedad terminal.

Métodos.

Investigación cualitativa con el análisis temático discursivo fundamentado en la teoría de la complejidad de Morin. Los participantes fueron siete enfermeros graduados y seis profesores del curso de graduación en Enfermería.

Resultados

. Se evidenciaron rupturas y la construcción de nuevas formas de pensar y cuidar a los pacientes con enfermedad terminal, destacándose que estas personas necesitan ser cuidadas con terapias para el alivio de los signos y síntomas hasta la muerte, por lo que el cuidado debe centrarse en el mejoramiento de la calidad de vida, valorando sus aspectos psicosociales y espirituales.

Conclusión.

El proceso educativo en cuidados paliativos fue fundamental en la forma de organizar y sistematizar la atención de estos pacientes. Es indispensable que los programas de Enfermería también promuevan en los alumnos el desarrollo de la consciencia de la complejidad del hombre y su interrelación de los múltiples aspectos biopsicosociales y espirituales.

Palabras clave: educación en enfermería; enfermo terminal; cuidados paliativos

Introdução

Cuidado Paliativo (CP) caracteriza-se como a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento.1 Esses cuidados podem e devem ser oferecidos no curso de qualquer doença crônica potencialmente fatal. Pretendem garantir uma abordagem que melhore a qualidade de vida de pacientes e suas famílias, na presença de problemas associados a doenças que ameaçam a vida, mediante prevenção e alívio de sofrimento pela detecção precoce e tratamento da dor ou de outros problemas físicos, psicológicos, sociais e espirituais, estendendo-se, inclusive, à fase de luto. (1-3 Nessa perspectiva, os doentes que requerem CP caracterizam uma problemática de enorme impacto social e de importância crescente em termos de saúde pública. No Brasil, ainda não há uma estrutura de CP adequada às demandas existentes, tanto do ponto de vista quantitativo quanto do qualitativo. (4 Dentre as dificuldades para utilização dos CP, no Brasil, está a forma como os profissionais da saúde compreendem o processo de saúde-doença, a morte e o morrer. O progresso técnico científico da saúde não só aumentou a esperança de viver mais e melhor, como também gerou situações difíceis e complexas com relação ao final de vida.5,6

A ciência prioriza a busca da saúde e da cura, entendendo a morte como falha e derrota. Em doenças com desenvolvimento lento e com mau prognóstico, o tratamento pode ser mais sofrido do que a doença, podendo ocorrer condutas obstinadas que se caracterizam pela continuidade de tratamentos de cura, mesmo quando essa não é mais possível, levando a uma morte medicamente lenta e prolongada, acompanhada de sofrimento.7,8) Nesse sentido, não é possível pensar a possibilidade de efetiva utilização dos CP sem pensar e repensar a formação dos profissionais da saúde no cuidado das pessoas em processo de morte e de morrer. Ao ser pesquisado como os CP têm sido utilizados nas categorias de trabalho de medicina, serviço social, psicologia e enfermagem, evidenciou-se que os enfermeiros referem sentir-se despreparados para lidar com pacientes que estão em processo de morrer e de morte. Esse despreparo contribui para uma comunicação inadequada com o doente que está morrendo, pois, por vezes, os enfermeiros evitam conversar com o paciente, ou lhe dão desculpas e promessas de recuperação que não são verdadeiras.9

Em estudo realizado com enfermeiras que atuam em uma unidade de CP, essas afirmaram reconhecer como fundamental, para um cuidado efetivo a pacientes com câncer e em CP, avaliar adequadamente a dor do paciente. Entretanto, referem dificuldades para essa avaliação, tanto pela sua falta de conhecimentos, como pela falta de protocolos específicos para a enfermagem na avaliação da dor do doente com câncer.10) Assim, a partir de uma contextualização da realidade brasileira em CP, acredita-se na necessidade de reformular a forma como essa temática predominantemente tem sido abordada na educação dos enfermeiros. Pensando, a partir da complexidade proposta por Morin, quando declara que a superação da crise em que se encontra a humanidade deve ser buscada a partir da educação, mediante uma reforma do pensamento, através de uma reforma do ensino, é possível refletir que a missão do ensino não é transmitir o mero saber, mas uma cultura que permita compreender a condição humana e que ajude a viver, favorecendo um modo de pensar aberto e livre.11

Na perspectiva do pensamento complexo, considera-se que não é suficiente que o tema CP esteja presente em uma disciplina ou como um conteúdo a ser desenvolvido em uma disciplina; é necessário que os princípios que embasam essa filosofia de cuidados estejam presentes de forma transversal nos currículos de graduação durante toda a formação do enfermeiro. Dentre esses princípios, é possível visualizar aptidões e domínios como a sensibilidade para lidar com o humano, compreendendo os diferentes aspectos que envolvem o processo de morrer; o respeito à autonomia do doente; habilidades para o diálogo e para lidar com sentimentos e emoções desencadeados; a solidariedade; o compromisso social; a ética; o trabalho coletivo transversal e interdisciplinar, a aceitação da morte como processo da vida e o conhecimento para o manejo de sintomas e controle da dor. (11) Assim, entende-se que a possibilidade de um processo educativo em CP só terá espaço se os paradigmas predominantes da universidade forem questionados e repensados, possibilitando o exercício do pensamento. Morin11) propõe uma reforma na educação que leve à reforma do pensamento, e a reforma do pensamento à reforma da educação na universidade.

Acredita-se, portanto, que o conhecimento de como o processo educativo, em um curso de graduação em enfermagem que oferece uma disciplina de CP, tem influenciado a prática profissional dos enfermeiros, pode contribuir para o cuidado na terminalidade, para o fortalecimento da necessidade de inserção dos CP nos currículos de enfermagem, bem como para a identificação de possíveis lacunas que possam ser fortalecidas nesse processo educativo. Diante do exposto, buscando qualificar o cuidado de pacientes que necessitam de CP, emergiu a seguinte questão de pesquisa: Como o processo educativo do enfermeiro em CP, na graduação, contribuiu para sua atuação no cuidado de pacientes na terminalidade? Sendo assim, objetivou-se nesse estudo conhecer as contribuições do processo educativo em CP, na graduação, para atuação profissional do enfermeiro no cuidado de pacientes na terminalidade.

Métodos

A pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa, embasando-se na complexidade de Morin. Foi desenvolvida no Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Católica de Pelotas. Foram informantes do estudo 13 sujeitos: 7 enfermeiros egressos do curso em estudo, que cursaram a disciplina de CP e que atuam no cuidado a pacientes na terminalidade e 6 enfermeiros docentes que atuam em disciplinas com aproximação à temática terminalidade e CP. Os sujeitos concordaram em participar do estudo, consentiram a gravação das entrevistas e a divulgação dos dados analisados nos meios científicos. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista semiestruturada, realizando-se um contato prévio com os sujeitos, informando-os acerca dos objetivos da pesquisa e, mediante seu aceite, foram agendados dia, local e hora para a realização da entrevista individual, conforme suas disponibilidades. As entrevistas, registradas por gravador de voz, enfocaram a abordagem da temática morte, terminalidade e CP na formação, o preparo e dificuldades vivenciadas no cuidado de pacientes na terminalidade, entre outras. Os depoimentos dos egressos foram identificados pela letra E e dos docentes pela letra D. A fim de assegurar o anonimato dos informantes do estudo, não se utilizou outra identificação nas falas. A análise dos dados seguiu a análise textual discursiva. Primeiramente foi realizada a unitarização dos dados, mediante a fragmentação das entrevistas em unidades de significado. Após esses foram categorizados e organizados na produção de uma estrutura textual construída pelas categorias e subcategorias, a qual contemplou a descrição e a interpretação dos dados, expressas por meio das produções escritas. (12 Os aspectos éticos foram respeitados, garantindo-se a proteção dos direitos humanos, consoante às recomendações da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande, conforme o parecer Nº 97/2013.

Resultados

A partir da análise dos dados, foram construídas as seguintes categorias: O processo educativo de CP e rupturas em um modo de pensar o cuidado na terminalidade e a reforma do pensamento e os CP, apresentadas a seguir.

O processo educativo de CP e rupturas em um modo de pensar o cuidado na terminalidade

O processo educativo em CP contribuiu para a construção de espaços de reflexão acerca das questões que envolvem o cuidado de pessoas com doenças que ameaçam a vida e de mau prognóstico. Os egressos enfatizaram seu processo de aproximação aos pressupostos da filosofia de CP, tais como, a necessidade de melhorar e manter a qualidade de vida e de influenciar positivamente o curso da doença, como percebido nesse depoimento: Um caso que foi muito marcante na minha atuação foi uma paciente de 45 anos. Ela fez uma necrose intestinal e ficou com o intestino muito curto; então, ela se manteve no hospital durante uns dois meses com nutrição parenteral e ela, a partir de desses dois meses, tomou a decisão que iria parar tudo e iria para casa ficar com a filha. Foi muito chocante para toda a equipe; nós não aceitamos, na verdade, na época essa conduta; e quando, então, eu estudei um pouco mais sobre cuidados paliativos, assim que eu entendi, que naquele momento ela tinha esse direito. A aceitação veio pra mim mais quando eu fiz a disciplina, até então eu não conseguia entender. Hoje, eu consigo; hoje, eu entendo, na verdade, que pra ela o permanecer aqui por um tempo indeterminado, com uma nutrição parenteral não estava lhe proporcionado uma vida com qualidade. Ela não tinha a relação da família; a filha, mesmo, tinha podido vir aqui uma única vez; uma menina de cinco anos. Então, hoje, eu entendo, mas na época eu tive, assim, bastante dificuldade (ECP).

Salienta-se que melhorar a qualidade de vida em CP significa priorizar o doente em sua subjetividade, respeitando seus desejos e necessidades, mantendo a convivência com seus familiares, controlando os sintomas e, com isso, melhorando o curso da doença. Ainda, demonstraram que o processo educativo em CP parece ter possibilitado espaço para reflexão sobre o cuidado na terminalidade e a importância do profissional ajudar o paciente a compreender sua doença, a discutir acerca do processo de sua finitude e a tomar decisões importantes para viver melhor o tempo que lhe resta, como observa-se no seguinte depoimento: Eu tinha dificuldade assim [...], Eu costumo dizer que a disciplina realmente mudou muito; eu tinha, inclusive, dificuldade mesmo em aceitar a morte; até a forma de pensar em aceitar a minha morte ou a de um familiar mudou depois que eu fiz a disciplina de Cuidados Paliativos. Mudou, a forma como a gente conversava sobre apoiar a pessoa, o paciente como um todo, ajudá-lo a entender, a aceitar, a se preparar, eu acho que isso faz com que a gente tenha uma resistência menor ao fato morte (ECP).

De modo semelhante, os docentes foram mobilizados pelas manifestações dos estudantes a não apenas a refletir e inserir a temática da terminalidade e de CP nas disciplinas, mas, também, a se fortalecer e a se instrumentalizar para participar mais ativamente desse processo educativo para o cuidado na terminalidade: A partir do momento em que a disciplina foi posta no currículo e que os alunos começaram a cursar, os alunos que tinham passado, começaram a fazer essa demanda e foi onde surgiu a necessidade, no meu caso, de eu me apropriar de conhecimento, porque os alunos começaram a trazer essas questões. Então, meio que por obrigação, eu comecei a buscar mais isso. E aí eu vejo que realmente os alunos trazem a necessidade de se discutir cuidado paliativo nas diferentes disciplinas e eu acho que a gente acaba fazendo, mas mais dentro do hospital (D). Eu sempre tento abordar na disciplina de Saúde da Criança a questão da terminalidade, porque eu acho que a terminalidade tu tem que pensar assim como tu pensa o nascimento. Então, não tem como, pra mim, isso já está em mim, então eu sempre abordo. Ontem, foi uma aula, até para os alunos, que eles ficaram meio chocados. Eu trabalhei a saúde da criança focada em oncologia pediátrica, porque, cada vez mais, a gente tem mais criança com diagnóstico de câncer... porque eu acho que é importante se formar pra esse mercado que absorve, que precisa de pessoas que tenham sensibilidade pra compreender esse processo e que consigam lidar com isso, que não fujam, que desenvolvam habilidades pra também lidar com a terminalidade de crianças. Então, eu trago todas as questões do tratamento, da abordagem, dos diagnósticos, dos diagnósticos de enfermagem, durante o processo de tratamento, quimioterápico, radioterápico, cirúrgico e aí, depois, o que eu coloco que, em torno de setenta, oitenta por cento dos pacientes, das crianças com diagnóstico de câncer evoluem para cura, mas de vinte a trinta evoluem para a terminalidade. Então, no final, eu trago toda questão do cuidado paliativo com essa criança que o diagnóstico evolui pra terminalidade (D).

Apesar do reconhecimento da terminalidade e de que a cura não é mais o propósito das ações dos trabalhadores de saúde e de enfermagem, pode-se perceber manifestações de desconforto pela não utilização de medidas de reanimação cardiopulmonar em um paciente terminal; na referência de choro, ao discutir essa temática; assim como no sentimento de obrigatoriedade do docente de buscar instrumentalização para o cuidado na terminalidade. Essas manifestações de sofrimento parecem refletir o quão fortemente está inscrito, em entrevistados, o paradigma biomédico. Eu, quando eu fiz a cadeira de Cuidados Paliativos, eu era uma que dizia que tinha que reanimar o paciente, que onde já se viu, aquilo ali era uma vida: parou, tem que ir lá chamar o médico, tentar reanimar. Depois, no dia-a-dia, tu vais vendo que não tem mais o que fazer, que tu vai prolongar o sofrimento do paciente. Tu vai reanimar o paciente e, daqui a pouco, o paciente vai parar de novo, não tem o que fazer! Que chegou a hora do paciente; mas eu demorei muito tempo para aceitar isso. Conversando com a professora, ela foi me dizendo que tem coisas que a gente não pode fazer. Que chega, num determinado ponto, que não depende mais de ti. Então, o que a gente tem que fazer? A gente tem que dar aquele suporte para o paciente, o melhor pro paciente. Mas depois dali não tem o que a gente fazer. Então, eu, no início, foi muito complicado, eu chorava nas aulas de Cuidado Paliativo (ECP).

Nesta perspectiva, o cuidado na terminalidade ainda se constitui em desafio, pois a educação dos enfermeiros prioritariamente visualiza a morte como derrota profissional. A construção do conhecimento para o cuidado na terminalidade na graduação possibilitou, de forma mais sistemática e enfática, aos egressos de um processo educativo em CP), questionar, e colocar sob dúvida, o como vem ocorrendo o cuidado na terminalidade, permitindo-lhes visualizar e implementar outras possibilidades, tais como, de que quando a cura da doença não parece mais possível, torna-se importante priorizar terapias que não causem mais desconforto do que a própria doença, com o objetivo de promover conforto e um fim de vida digno: “Reconhecimento de que é um período em que a gente não está mais buscando a cura”. Se a gente não tivesse essa disciplina, talvez, eu não saberia como agir; trataria ele com a mesma condição de um paciente que tem condições de reabilitação... que não é aquela questão de tu trazer saúde pra ele, mas trazer condições desse paciente ficar bem, sentir-se bem, despedir-se disso -vida de forma agradável- (ECP).

Assim, rupturas com o sistema de ideias da cultura ocidental e do modelo biomédico que envolvem a morte e o morrer foram evidenciadas nos depoimentos dos entrevistados; dentre essas, estão o reconhecimento quanto à incerteza da cura ser atingida, mudando, na medida que a doença progride, a perspectiva da cura para a perspectiva do cuidado; de que o paciente na terminalidade precisa ser cuidado pela utilização de terapias para alívio dos sinais e sintomas, para que possa viver bem até o momento de sua morte; da necessidade de considerar os aspectos psicossociais e espirituais do paciente. Essa perspectiva do cuidado salienta-se no depoimento a seguir: Fazer meio que as vontades dele né? Deixar o familiar junto com ele, não ficar restringindo muito os familiares, fazer os cuidados com relação à dor [...] principalmente com relação à dor. Claro, tem que cuidar a parte de alimentação, da nutrição, né? Além da pele, a integridade, tudo, só que o principal é o cuidado com a dor e a parte da espiritualidade, no sentido de que a preparação dele com relação a isso aí, né? Porque ninguém está preparado pra morte, né? (ECP).

A reforma do pensamento e a os CP

A discussão de CP para o cuidado na terminalidade permitiu o estranhamento de práticas normalizadas nas instituições hospitalares, tais como, não dispensar medidas de cuidado que são rotineiramente oferecidas a pacientes com perspectiva de cura, podendo estar negligenciando o cuidado ao paciente em processo de morrer e de morte, como pode ser observado na fala de ECP: A gente vê. Assim, por exemplo, já teve casos de eu ver dizerem assim: ’Ah não.. aquilo ali é SPP ou... é cuidados... é.. paciente que vai morrer, não sei o que; daqui a pouquinho a gente vai ali dar um remédio’. Mas é um ser humano igual, né? Assim, a compreensão das necessidades de pacientes na terminalidade parece ter permitido uma atuação diferenciada e voltada para a manutenção do bem-estar do paciente, no atendimento dos aspectos biológicos, até a sua morte: Eu peguei um paciente na clínica médica que estava em fase terminal; a gente o tratava como um paciente normal. O que é tratar normal? Ah, não fazia diferença, porque ele está em fase terminal, não dar..., o paciente tá com falta de ar, ah tá em fase terminal, deixa ficar com falta de ar, entendeu! Eu vou lá, vou trocar o oxigênio dele, dar uma qualidade melhor para o paciente, suporte melhor pra... Ele vai falecer, mas vai falecer, mas não deixar ali, isso aí, Deus o livre... dar uma qualidade de vida melhor, na verdade, de morte melhor (ECP).

Os enfermeiros que cursaram, na sua graduação, a disciplina de CP, relatam mudanças na sua forma de pensar, para o cuidado na terminalidade, reconhecendo a relevância e a necessidade de considerar os aspectos psicossociais, conversando com o paciente acerca das questões da morte e do morrer, apoiando-o e contribuindo para que fechamentos que permitam uma morte digna, possam ser realizados: Com relação ao paciente, eu converso com ele, se ele não tem alguma vontade, se tem alguém com quem ele brigou há muito tempo atrás e se ele quer ver, se não quer ver, essas coisas... se ele tinha algum lugar que queria ir.... Teve um paciente que eu entrei mais em contato. Aí, eu estava sempre na volta dele, conversando, né? Perguntando coisas pra ele, lembrando de coisas, dos filhos dele, de como é que era com os filhos dele, aquela função. Por que também é uma coisa que... é o momento de refletir sobre a vida também, né? (ECP).

A partir das discussões proporcionadas na disciplina de CP, e de acordo com os depoimentos, cada indivíduo parece construir e reconstruir, a partir de suas concepções, percepções e vivências, o conhecimento para o cuidado na terminalidade. Foram identificados, nos discursos, valores presentes na filosofia de CP e que consideram a complexidade do cuidado na terminalidade, indo além do corpo doente, tais como, a necessidade de cuidar o indivíduo em sua integralidade, considerando os aspectos psicossociais e espirituais e o reconhecimento da finitude da sua vida. Nessa perspectiva, o cuidado realizado a pacientes na terminalidade ocorre de diferentes formas, oportunizando sua discussão e reflexão: Quando o próprio paciente tá lúcido, consciente, ele consegue conversar, a gente abre um espaço para que ele conte a história dele... na grande maioria das vezes, no meu ponto de vista, ele não aceita a terminalidade ou morte, porque ninguém aceita assim, de uma hora para a outra. Então, a gente procura conversar com ele; eu já tive alunos que tiveram um sucesso muito grande em relação a isso, que conseguiram falar inclusive de espiritualidade com esses pacientes. O próprio paciente abriu essa perspectiva dele, que ele estava pronto, que um dia ele sabia que ia morrer, que acreditava muito em Deus, que tinha um lugar melhor pra ele, mas que ele tinha que passar por algumas coisas aqui e ele tinha que terminar. Isso; e é claro que a gente, dentro desse propósito, nós não exploramos a religião das pessoas, mas, sim, aquela concepção de melhora, mesmo que essa melhora seja a morte (D). Ainda, os depoimentos dos docentes, ao destacarem a importância de considerar o paciente em sua integralidade; o interesse em conhecer quem foi esse sujeito hoje doente, conhecendo sua história, para que se possa cuidá-lo mais adequadamente, demonstram, também, um resgate da valorização da humanidade que compõe o sujeito, para além do biológico.

Discussão

Os processos educativos precisam focar não em cabeças cheias, mas em cabeças bem feitas, ou seja, as que desenvolvem uma aptidão geral para situar e abordar os problemas. Essa aptidão relaciona-se ao questionamento, à dúvida, à “capacidade de repensar o pensamento”, de problematizar. (11:22) Frequentemente, a instrução aniquila a curiosidade; assim, utilizar a aptidão geral significa apropriar-se de outra perspectiva educacional, que encoraje, que instigue para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época. A cabeça bem feita deve ter, também, a capacidade de ligar saberes, dando- lhes sentido. Dessa forma, um objeto, ao ser estudado, não pode ser isolado de seu contexto, o que Morin, utilizando-se dos conceitos da biologia, denomina de pensamento ecologizante, no sentido em que situa todo acontecimento, informação ou conhecimento em relação de inseparabilidade com o seu meio ambiente - natural, cultural, social, econômico e político. Essa perspectiva permite perceber, também, relações e inter-retro-ações entre cada fenômeno em seu contexto, relações de reciprocidade entre o todo e as partes, buscando compreender como uma modificação local repercute sobre o todo e como uma modificação no todo repercute sobre as partes.11

Mesmo que rupturas tenham sido evidenciadas, percebeu-se, em alguns depoimentos, manifestações que ainda denotam resistência na completa aceitação da filosofia de CP para o cuidado na terminalidade. Essas rupturas com o pensamento dominante são possíveis, na visão do pensamento complexo, quando se reconhece que os erros, a incerteza e a ilusão fazem parte dos problemas cotidianos, sendo fundamental, para a reforma do pensamento, aprender a lidar com eles.13 O modelo de atenção à saúde vigente no Brasil e a organização dos cursos de graduação em enfermagem ainda estão predominantemente pautados no paradigma biomédico. Esse modelo, diferentemente, unidimensionaliza o conhecimento ao absolutizar a dimensão do curar, desenvolvendo a ilusão de que a cura deve ser sempre buscada, independentemente das suas reais possibilidades. Da mesma forma, o cuidado parece estar centrado no corpo doente, e não no indivíduo.

O princípio hologramático do pensamento complexo possibilita compreender a percepção da morte como derrota profissional. O holograma traz a ideia de totalidade; o menor ponto da imagem contém a quase totalidade da informação do objeto representado; assim, quando se vê um holograma, não se consegue dissociar a parte e o todo. A parte está no todo, da mesma forma que o todo está na parte.14 Assim o paradigma biomédico está fortemente inscrito culturalmente nos enfermeiros que conhecem, pensam e agem a partir dele, pois cada indivíduo, em sua singularidade, contém de maneira hologramática o todo do qual faz parte e que, ao mesmo tempo, faz parte dele. Nessa perspectiva, a cultura ocidental, também inscrita em enfermeiros e em docentes, possui a crença de que uma medicina de qualidade é aquela que provê o melhor e o mais moderno tratamento diagnóstico, com a expectativa de que sempre existirão melhores modalidades no futuro, fortalecendo-se, assim, a esperança de que hoje a cura não é possível, mas, talvez, amanhã seja, devendo ser sempre buscada, mesmo em situações extremas e que acarretem profundo sofrimento ao doente.15,16

Sabe-se que o conhecimento não é uma cópia da realidade, mas uma tradução que se reconstrói por meio da percepção. A percepção de cada enfermeiro é a tradução e a reconstrução de sinais captados e codificados pelos sentidos. Dessa forma, a percepção representa a visão de mundo, a sua subjetividade, composta tanto por medos como por desejos, de cada sujeito entrevistado, de modo que está sujeita a erros. Os medos e desejos que envolvem a complexidade da finitude multiplicam os riscos de erro, pois ao mesmo tempo em que a morte é biológica, está impregnada de cultura e essa, predominantemente, nega a nossa mortalidade.14 Observa-se o avanço nas tecnologias da ciência e uma pobreza no trato das questões fundamentais da humanidade.14 Entretanto os enfermeiros egressos e que cursaram a disciplina de CP, ao relatarem estranhamento de práticas normalizadas nas instituições hospitalares, demonstram o desenvolvimento de sua sensibilidade para identificar que esses pacientes precisam ser cuidados, para uma morte digna, pelo resgate às questões humanitárias. Problematizar, estranhar-se com fatos diários, com relações instituídas, intrigar-se com o que se considera natural, demonstra a necessidade de se rever racionalidades impostas pela sociedade e também pela própria construção dos sujeitos, trabalhadores de enfermagem.17 Ainda, o reconhecimento da mortalidade permite o enfrentamento da incerteza da vida, traduzida pelo destino incerto de cada indivíduo, reconhecendo os limites do conhecimento. Por mais que se tenha evoluído nas descobertas para a cura de doenças e o manejo de doenças crônicas, mantendo a qualidade de vida do indivíduo, algumas, ainda, são incuráveis e com mau prognóstico, impossibilitando o controle pelos programas de tratamento de cura. O enfermeiro, durante sua formação, precisa aprender a lidar com essas incertezas e aparentes insucessos, desenvolvendo habilidades para traçar estratégias, a partir das necessidades de cuidado de cada paciente. A estratégia procura continuamente reunir as informações colhidas e os acasos encontrados durante o percurso do cuidado em saúde.11

Entende-se que lidar com as incertezas no cuidado em saúde é reconhecer que todo tratamento, uma vez iniciado, é imprevisível quanto aos seus resultados, pois se insere num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuado, que podem desviá-lo de seus fins (a cura e, até, levar a um resultado contrário ao esperado (a morte).13 O exercício do pensamento, a partir da filosofia de CP, possibilitou ao discente refletir acerca da complexidade e multidimensionalidade do paciente em processo de morrer e de morte, considerando, além das necessidades biológicas, as dimensões social, psicológica, familiar e espiritual, reconhecendo que não são isoladas, porém são interdependentes. É preciso desenvolver as aptidões do estudante para considerar a condição humana do paciente, que pode ser compreendida pela construção da consciência de que cada indivíduo pertence à espécie humana, sendo, simultaneamente, um ser cósmico, físico, biológico, cultural, cerebral, espiritual.11

Como limitações desse estudo, identifica-se a não inclusão de outras categorias de profissionais da saúde. A interdisciplinaridade é um dos princípios dos cuidados paliativos, assim, produzir novos estudos acerca das relações entre esses profissionais pode contribuir para a construção de estratégias no cuidado de pacientes na terminalidade, possibilitando uma morte digna. Ainda, a realização de outras pesquisas em cursos de enfermagem que investiguem experiências de processo educativo em cuidados paliativos pode contribuir para uma melhor compreensão e entendimento dessa temática.

A conclusão deste estudo mostra que o processo educativo em uma disciplina de CP tem contribuído para o cuidado de pacientes na terminalidade. Evidenciou-se a construção de novas formas de pensar e de cuidar de pacientes que vivenciam o processo de morrer e de morte. Dentre essas novas formas de pensar, destacam-se, como mais relevantes, que o paciente na terminalidade necessita ser cuidado pela utilização de terapias para alívio dos seus sinais e sintomas, para que possa viver bem até o momento de sua morte, enfocando a qualidade de vida; a necessidade de considerar e valorizar os aspectos psicossociais e espirituais desse paciente; e, ainda, o estranhamento e desconforto quanto à não utilização de medidas de cuidado e conforto. O trabalho demonstra, ainda, que o processo educativo em CP parece essencial para os enfermeiros como profissionais que cuidam de pessoas em todo seu ciclo vital, em situações de saúde e de doença, de vida e de morte, principalmente se considerarem questões tão presentes atualmente relacionadas ao desenvolvimento da ciência e ao consequente prolongamento de tratamentos de cura de pacientes na terminalidade, mediante meios considerados desproporcionais e extraordinários, acarretando extremo sofrimento a esses doentes, aos seus familiares e, até, a profissionais que os atendem.

Para uma formação educativa para o cuidado na terminalidade, considerando o modo como a terminalidade e a morte são comumente percebidas e vivenciadas na cultura ocidental, é necessária a existência de espaços mais organizados e sistematizados, para o desencadeamento de dúvidas e questionamentos para refletir acerca das questões que envolvem a morte e o morrer. Nesse sentido, para rupturas com o paradigma biomédico e avanços na qualidade do cuidado na terminalidade, considera-se imprescindível o desenvolvimento da consciência da complexidade do homem e da interligação dos múltiplos aspectos biopsicossociais e espirituais. É fundamental que o ensino seja orientado para a construção da consciência de que todos esses componentes são importantes e precisam estar envolvidos no cuidado.

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Recebido: 25 de Fevereiro de 2016; Aceito: 31 de Janeiro de 2017

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