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Lingüística y Literatura

Print version ISSN 0120-5587

Linguist.lit.  no.63 Medellìn Jan./June 2013

 

FERRÉZ. DEUS FOI ALMOÇAR. SÃO PAULO: PLANETA, 2012, 239 PÁGS.

 

Para os críticos e leitores que acompanham a trajetória literária de Ferréz, não há como ler Deus foi almoçar (Planeta, 2012) sem ter em mente seus romances anteriores, especialmente Capão pecado e Manual prático do ódio. A comparação é inevitável e pode até gerar certa frustração quando se percorre as primeiras páginas, pois logo se percebe que o livro exige um outro olhar. Neste novo romance a escrita foge a tudo que o autor havia explorado antes: a injustiça social, as drogas e a violência física não são mais o foco; os personagens são em número reduzido; a linguagem não tem nada do dialeto suburbano e das gírias, pelas quais o autor alimentava apreço e era conhecido até então; nem mesmo o ritmo ágil e dinâmico das narrativas embaladas pelo rap aqui encontra eco; enfim, o estilo se apresenta completamente diverso. No entanto, encontramos em algumas passagens deste romance um tom bastante próximo ao de outra obra de Ferréz, seu livro de contos Ninguém é inocente em São Paulo, marcado por um estilo mais leve, reflexivo e poético.

Se, como o autor afirma, trata-se de um romance psicológico, não é difícil ao leitor deduzir o diagnóstico: depressão. Ao mapearmos as ações e reflexões do personagem, vemos um homem que vai gradativamente evoluindo em um quadro depressivo, até chegar ao colapso. Talvez o distúrbio psíquico que leva à prostração física e ao abatimento moral do personagem justifique o ritmo arrastado e a fragmentação que se fazem presentes nos primeiros capítulos, quase desestimulando o leitor de seguir adiante. Um hábil encontro de forma e conteúdo, em que a leitura simula o estado de espírito do personagem. Contudo, a partir da metade do livro, a narração muda de tom, começa a crescer, ganhar intensidade e a adquirir mais sentido, prendendo, finalmente, a atenção e instigando a leitura.

Ainda que se pretenda um romance psicológico, esta obra de Ferréz não deixa também de ser realista. Contudo, diferentemente de seus livros anteriores, em vez do propósito de retratar a realidade da periferia e de uma coletividade em Deus foi almoçar, Ferréz apresenta a realidade vivida internamente por um único personagem, Calixto, que se mantém alheio a tudo que o cerca, quase que em uma realidade paralela. Se, por um lado, nesse romance, não há a espetacularização da violência, que tanto atrai leitores, por outro, há a possibilidade de identificação com as angústias do personagem. Mas, para além dessa constatação, o que há de comum com os romances anteriores? Em uma tentativa de resposta, pode-se mencionar o tom fatalista que predomina ao não indicar possibilidades de fuga para seu protagonista. A narração parece ser necessária para justificar a morte, a morte que o personagem procura desde as primeiras páginas, já que "a vida não interessa a ninguém" (p. 142).

Sem conseguir se recuperar do trauma da separação e, principalmente, do fato de ter de viver apartado da filha - com a qual mantém uma ligação poética que pode ser mencionada como um dos pontos altos do livro -, Calixto é um homem que se debate diante da desilusão com a vida e, como consequência, cultiva a solidão e a misantropia. Distanciando-se cada vez mais de seu único amigo, quando não se refugia no ambiente deteriorado de sua casa, entrega-se à rua, onde vivencia experiências um tanto quanto bizarras, que só fazem ferir sua autoestima e sua masculinidade, aumentando sua prostração.

Se os laços sociais são importantes para a constituição de um ser, na medida em que é em relação à família, ao trabalho e às relações afetivas que o indivíduo se identifica e se reconhece, em Deus foi almoçar, acompanhando passo a passo a perda de referências e o esfacelamento total do personagem. Por um lado, Calixto tenta se apegar às poucas pessoas com quem esbarra em sua perambulação pelas ruas, por outro, percebe que as tentativas são insuficientes para preencher o vazio afetivo que o consome e que ele tenta aplacar com fantasias, sonhos e delírios. O amor que alimenta pela vizinha, uma senhora que lava insistentemente a calçada de casa, revela-se, afinal, nada mais que a carência do amor maternal.

Como alternativa para estruturar seu romance e construir a narração, Ferréz lança mão de um narrador autodiegético, que orienta assim, as intercalações temporais da narrativa, ora no presente, ora no passado. A confusão do narrador, que alterna a narração em primeira e em terceira pessoa, tumultua também a percepção do leitor, mas não se dá por acaso. O que temos é um narrador-personagem que dialoga consigo mesmo, enquanto rememora alguns eventos relevantes dos últimos momentos de sua vida e de seu passado, refletindo sobre eles, para então, depurá-los (e editá-los), enquanto se põe a escrever um livro de histórias infantis, que o personagem deixa para sua filha por ocasião de sua morte.

Em uma mostra de desapego, em vários momentos, o narrador tece críticas ao colecionismo, personificado na pessoa do amigo Lourival. Enquanto, em vida, a acumulação de objetos parecia algo inútil para ele, ao final, após atravessar o "portal", tem-se uma nova reflexão - que deixa o leitor em suspensão - forçando a rememoração de todo o romance. No que seria uma experiência de além-morte, Calixto se depara com inúmeras gavetas, as quais guardavam, em cada uma, como em uma coleção, um objeto de sua vida, pleno de significações afetivas e construções subjetivas - do boletim da escola às fotos com sua filha. Esta imagem faz lembrar a exposição sobre Clarice Lispector, montada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em 2008. Em uma das salas montadas, repleta de gavetas em todas as paredes, cada gaveta acondicionava um objeto pessoal, um fragmento da memória da autora, surpreendendo os que se punham a abri-las e iam, como num quebra-cabeças, montando uma biografia sentimental de Clarice. É assim que, finalmente, as palavras do personagem Seu Roberto fazem sentido: "As coisas só existem quando a gente acredita nelas" (p. 36).

Para concluir, não podemos deixar de comentar a intenção declarada por Ferréz com este livro, que é fugir um pouco do rótulo de marginal, mostrando que pode e sabe fazer diferente, ou seja, que tem liberdade para falar de outros temas e não apenas da violência e da periferia. Neste livro, parece ter alcançado seu objetivo, até pelo fato de ter seu trabalho reconhecido e publicado por uma grande editora. No entanto, apesar de mostrar habilidade ao estruturar esse romance, fica a impressão de que ele acaba caindo nas mesmas armadilhas e esquemas empregados pelos autores da elite - que ele tanto critica em seus discursos públicos -, como se disso dependesse fazer parte do "clube". Infelizmente, o discurso político de Ferréz não parece ter muito eco aqui. Não obstante a crítica recorrente ao sistema, que o autor sempre coloca, em Deus foi almoçar, os personagens principais são todos brancos. Não há, por exemplo, problematização de questões raciais ou de gênero - assim, a ex-mulher de Calixto, é muito mais retratada por suas qualidades ao cuidar da casa do que por suas capacidades intelectuais. Caberia, ainda, refletir sobre a forma abjeta como as várias prostitutas que aparecem ao longo do romance são representadas.

Não se pode deixar de registrar que há também no livro capítulos narrados pela perspectiva dos outros personagens, dos quais, destaca-se o capítulo 51, narrado por Carol, ex-esposa de Calixto, em que a visão dela dos fatos é apresentada ao leitor. Como o próprio Ferréz citou em entrevista, esse detalhe trata-se de um ensaio em direção a um novo projeto de livro, em que a protagonista será uma mulher. Fica a expectativa, então, de que ele consiga amadurecer mais o olhar em relação a esses problemas.

Laeticia Jensen Eble
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil