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Lingüística y Literatura

versão impressa ISSN 0120-5587

Linguist.lit.  no.72 Medellìn jul./dez. 2017

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n72a02 

Lingüística

UMA APLICAÇÃO DA MORFOLOGIA CONSTRUCIONAL PARA A LÍNGUA LATINA: O CASO DAS CONSTRUÇÕES X-ĀRĬU *

A CONSTRUCTIONAL MORPHOLOGY’S APPLICATION FOR LATIN: THE CASE OF X-ĀRĬU CONSTRUCTIONS

Natival Almeida Simões Neto1 

Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura

1Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Brasil nativalneto@gmail.com


Resumo:

Este artigo faz uma interpretação da polissemia das palavras instanciadas pelo esquema X-ārĭu, a partir dos pressupostos teóricos da Morfologia Construcional e da Linguística Cognitiva. O corpus de análise foi coletado no Dicionário Escolar Latino-Português, de Faria (1994), de onde se obtiveram 246 instanciações por esse esquema. Os resultados apontaram duas categorias lexicais (adjetivo e substantivo) e cinco grupos de afinidade semântica (qualidade, agente, objeto, local, quantidade), representados por esquemas, e que se subdividiram em subgrupos, abordados por meio de subesquemas.

Palavras-chave: Derivação sufixal; Polissemia; Latim; Morfologia Construcional; Linguística Cognitiva

Abstract:

This article is an interpretation of the polysemy of words instantiated by X-Ariu scheme, based on the theoretical assumptions of Constructional Morphology and Cognitive Linguistics. The corpus was collected in Dicionário Escolar Latino-Português, of Faria (1994), from which it obtained 246 instantiations for this scheme. The results showed two lexical categories (adjective and noun) and five groups of semantic affinity (quality, agent, object, locative, quantity), represented by schemes, subdivided into subgroups addressed by subschemas.

Keywords: Suffix derivation; Polysemy; Latin; Constructional Morphology; Cognitive Linguistics

1. Considerações iniciais

No que toca à morfologia derivacional da língua portuguesa, um dos sufixos mais produtivos na formação de novos vocábulos é o -eiro. Esse sufixo tem origem no latim ārĭu, que gerou também o sufixo -ário, que, diferentemente do -eiro, se mostra menos recorrente nas formações de novas palavras, o que talvez justifique o interesse maior dos morfólogos em estudar o primeiro, ao passo que o segundo recebe uma atenção bastante discreta.

Em uma rápida pesquisa na Plataforma Lattes, base de registro de cientistas brasileiros e/ou atuantes no Brasil, fez-se uma busca de trabalhos monográficos (trabalhos de conclusão de curso, monografias de cursos de aperfeiçoamento/especialização, dissertações e teses) acerca dos dois sufixos da língua portuguesa e registrou-se apenas um trabalho que trate exclusivamente sobre o -ário: a dissertação de mestrado de Souza (2006), intitulada “Formações X-ário no português do Brasil: um estudo sobre a produtividade lexical”. Isso não é dizer que não possam ser encontrados artigos como o de Viaro (2006) e o de Simões Neto e Soledade (2015), que fizeram incursões sobre esse formativo na história da língua portuguesa.

O -eiro, por sua vez, é estudado com mais frequência. Na mesma perspectiva de busca, destacam-se as dissertações de mestrado de Botelho (2004), Marinho (2004), Pizzorno (2010) e Simões Neto (2016). Há também a tese de livre-docência, Almeida e Gonçalves (2005), Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998), Rio-Torto (2008), Simões Neto e Soledade (2014), Soledade (2013), de Tavares da Silva (2014) e Viaro (2011), além de artigos e capítulos de livros de Rocha (1998), entre outros.

Um ponto que aproxima a maioria dos estudos do -eiro e do -ário é a tendência aos recortes sincrônicos que não fazem remissão à origem dos referidos afixos, o -ārĭu latino. Em relação a esse sufixo, existem poucas descrições sistemáticas, sendo Viaro (2011) e Simões Neto (2016) alguns dos poucos autores que se lançaram a uma interpretação aprofundada do seu funcionamento, a fim de entenderem melhor o comportamento morfossemântico das formas derivadas na língua portuguesa.

Neste artigo, faz-se uma interpretação da polissemia das palavras formadas com esse sufixo na língua latina, a partir dos pressupostos teóricos da Morfologia Construcional (MC) e da Linguística Cognitiva (LC). Tendo isso em vista, feitas essas breves considerações iniciais, neste trabalho, constam: (i) a seção 2, com breves considerações sobre a MC; (ii) a seção 3, com a descrição da metodologia e constituição do corpus; (iii) a seção 4, com a análise empreendida; (iv) a seção 5, com as considerações finais; (v) as referências, por fim.

2. Breves palavras sobre a Morfologia Construcional

A MC é um modelo de interpretação da organização do léxico que vem sendo defendida por Geert Booij e que, embora sugerido desde meados de 2005, tem seu ápice com a publicação do livro Construction Morphology (2010). Nessa obra, o autor se baseia no conceito de construção defendido por Goldberg (1995), no âmbito da Gramática das construções: uma construção deve ser entendida como um pareamento de forma, função e significado.

Na proposta de Goldberg (1995), mais voltada para a sintaxe, assume-se uma associação entre os padrões de estruturação e os seus significados. De maneira sucinta, pode-se entender que a polissemia, por exemplo, deixa de ser um fenômeno exclusivo do léxico, mas também concernente à sintaxe e à morfologia. Assim, as construções com o verbo dar em português, como dar um beijo em Maria, dar para o namorado, dar uma festa para os amigos, dar uma estudada, dar uma de João sem braço, são polissêmicas não só pelos vários sentidos do verbo dar, mas também pelos padrões de seleção de argumentos e os significados que se associam a eles. Além disso, Goldberg (1995) assume que: (i) essas construções estão associadas por relações de herança que se estabelecem por metonímia, metáfora, entre outros mecanismos de extensão de sentido e; (ii) o significado das construções não é a soma das suas partes constituintes.

Boa parte desses princípios construcionais é assumida por Booij (2010). Em se tratando de morfologia, o autor entende que a polissemia nem é um fenômeno que caracteriza as palavras individualmente, nem é uma propriedade dos afixos, uma vez que esses não pareiam forma, significado e função, logo não é uma construção. A polissemia está relacionada a um grupo de palavras que comungam padrões fonológicos, semânticos e lexicais. Exemplificando, entende-se que a polissemia não é uma propriedade que afeta chaveiro, jardineira, cuscuzeiro, sombreiro, entre outras palavras, individualmente. Nessa hipótese, a polissemia está relacionada a um padrão de construção que envolve: (i) a forma, por meio das relações entre o corpo fonológico da palavra primitiva (input), do afixo e da palavra derivada (output), sendo relevante também a etimologia nesse aspecto; (ii) a função, com base nas relações entre a categoria lexical do input e a categoria lexical do output, sendo a do output uma informação imprescindível na descrição2, ao passo que a do input pode ser dispensada em alguns casos e; (iii) o significado, que se apresenta por meio de categorias que hierarquiza as relações entre um significado mais geral e um mais específico.

No modelo de Booij, os padrões de construção morfológica são representados por esquemas, como o que se pode ver nas representações de (01) a (03), que tratam, respectivamente, das construções adjetivas X-al -presidencial, ministerial, gramatical, legal, normal-, das substantivas X-dade -felicidade, maldade, bondade, cordialidade, familiaridade- e das substantivas X-dor -vendedor, corredor, seguidor, curtidor, vibrador, apagador, provador, coador-.

(01) <[[XSi] al]A ↔ [RELATIVO a SEMSi]A>

(02) <[[XAi] dade]S ↔ [QUALIDADE RELACIONADA a SEMAi]S>

(03) <[[XVi] dor]S ↔ [AGENTE RELACIONADO a SEMVi]S>

O esquema em (01) organiza o conjunto de palavras sufixadas em -al, forma fonológica recorrente na construção. Quanto ao aspecto funcional, a categoria lexical do input é sempre um substantivo, ao passo que a do output é sempre um adjetivo. Em relação ao significado, o esquema instancia sempre adjetivos de caráter relacional, uma vez que cultural e matrimonial, por exemplo, em que se pese o contexto, podem ser parafraseados como ‘relativo à cultura’ ou ‘relativo ao matrimônio’. No esquema (02), observa-se uma sistematização das palavras construídas com o sufixo -dade, que são quase sempre substantivos abstratos advindos de adjetivos, cujo significado caracteriza, geralmente, uma qualidade.

No esquema (03), por fim, observa-se que há um significado de agente, no que se diferencia dos esquemas anteriores, em que as noções são mais abstratas. O esquema X-dor instancia formações deverbais, podendo ter variados significados, como agente, objeto ou locativo. Entretanto, o esquema representado só dá conta dos agentes. Porém, mesmo precisando um grupo de afinidade semântica, como é o dos agentes, essa categoria pode apresentar polissemia, exigindo que essa seja representada por meio dos subesquemas, Essa relação entre esquemas e subesquemas caracteriza o chamado léxico hierárquico, proposto por Booij. Assim, no caso das construções agentivas X-dor, tem-se um esquema dominante de agentes, além dos esquemas de objetos e de locativos, e, dentro do esquema de agente, há pelo menos dois subesquemas: agentes profissionais e agentes habituais.

Cabe ressaltar, acerca do modelo construcional aplicado à morfologia, que, no Brasil, autores como Gonçalves e Almeida (2014), Gonçalves (2016), Soledade (2013), têm aplicado esse modelo aos dados de língua portuguesa em perspectiva sincrônica e/ou diacrônica. As observações e ressalvas feitas por esses autores são de fundamental importância para o aprimoramento do modelo em questão e para o desenvolvimento deste trabalho. Espera-se que o artigo que ora se apresenta contribua para sinalizar novas questões. A seção de análise detalhará, com mais clareza, alguns novos desafios.

3. Metodologia e constituição do corpus

Para a coleta dos dados, escolheu-se como fonte o dicionário bilíngue Dicionário Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria (1994), que possui 577 páginas com verbetes em latim traduzidos para o português. O uso desse tipo de dicionário em uma abordagem sobre a língua latina, seja para o ensino, seja para a pesquisa, apresenta certas barreiras. Longo (2006), em sua dissertação de mestrado, intitulada Ensino de latim: problemas lingüísticos e uso de dicionário, se voltou para essas questões.

No capítulo O dicionário de latim como instrumento de recepção escrita, Longo (2006) começa se perguntando sobre o motivo que faz as pessoas consultarem um dicionário e, imediatamente, responde que deva ser a busca por definições semântico-referenciais das palavras, mas admitindo que uma consulta desse tipo possa fornecer também “informações sobre usos, ortografia, classe gramatical e, dependendo de sua tipologia, até dados sobre pronúncia e etimologia” (Longo, 2006, p. 39).

Essa busca pelo semântico-referencial se torna esquizofrênica, em se tratando de um dicionário latim-português, como observa Longo (2006). Uma vez que se assuma a funcionalidade de esse tipo de dicionário viabilizar informações que traduzam, na língua de chegada (o português), um conceito que se expressava na língua de partida (o latim), nem sempre é possível se proceder dessa forma, pois, como lembra a autora, tendo o conhecimento sobre a língua latina ficado restrito à recepção escrita, e também considerando a impossibilidade de se acessar, diretamente, a realidade social da época, as informações dadas por esses dicionários não têm o mesmo nível de praticidade que um dicionário da língua contemporânea.

A coleta realizada para esta pesquisa listou as palavras, sem levar em consideração o período ao qual se vincula o texto dado como abonação. Nesse sentido, não há compromisso com questões relacionadas à datação, nem o estabelecimento de um quadro semântico-evolutivo dentro da língua. Optou-se, portanto, por uma listagem mais unificada em que os vocábulos encontrados integram o acervo do latim, sem entrar em maiores detalhes.

Quanto às configurações formativas, foram consideradas, para a constituição do corpus, as seguintes construções:

a. X-ārĭa, -ae

b. X-ārĭum, -ī

c. X-ārĭus, -a, -um

d. X-ārĭus, -ī

Tomadas essas bases, chegou-se a um corpus constituído de 246 palavras derivadas pela construção X-ārĭu no latim. Essas formas foram catalogadas no programa Microsoft Excel 2007 e, com o uso da ferramenta Filtro, foram organizadas, considerando as seguintes informações: (i) palavra derivada atestada; (ii) classe de palavra; (iii) significado da palavra derivada; (iv) palavra primitiva; e (v) significado da palavra primitiva.

Por fim, as formas coletadas foram analisadas e categorizadas em subesquemas construcionais, seguindo os pressupostos da MC e da LC. As palavras foram agrupadas conforme a sua categorização semântica, que será explicitada na próxima seção.

4. Análise dos dados

Os trabalhos que abordam o sufixo -eir- em perspectiva histórica ou diacrônica, quase sempre, fazem menção à forma etimológica latina -ariu. Isso pode ser visto nas descrições/interpretações de Marinho (2004), Said Ali (1964), Nunes (1969), Viaro (2011), entre outros, que destacam que a principal função desse sufixo era formar, em latim, adjetivos de valor relacional. Isso é dizer que o -ariu, no princípio, atuava como os sufixos portugueses -ar (familiar, escolar), -eo (arbóreo, ósseo), -al (artesanal, comercial), que Basílio (2004) considera como semanticamente vazios, pois, em tese, cumpririam apenas a função de transcategorizar substantivos em adjetivos. Essa observação sobre o significado/função das construções adjetivais X-ārĭu, além de sugerir o ponto de partida da análise a ser empreendida, aponta para a necessidade de tratar separadamente essas construções e as construções substantivas, atendendo aos princípios das propriedades essenciais delineadas por Booij (2010): a hipótese do PCU, nesse caso.

No corpus, das 246 construções X-ārĭu, 111 são adjetivais, sendo possível atestar o significado de qualidade relativa em 107 delas. Entre os exemplos desse primeiro grupo, estão: argentārĭus (relativo à prata), aquārĭus (relativo à água), auxiliārĭus (relativo a socorro, auxílio), coronārĭus (em forma de coroa), ferrārĭus (de ferro, relativo ao ferro), fructuārĭus (relativo aos frutos), frumentārĭus (relativo aos cereais, trigo), graphiārĭus (relativo aos estiletes), judiciārĭus (relativo à justiça). Vê-se aqui que o corpus confirma a ideia de que a construção X-ārĭu se assemelha a outras construções do português (X-ar, X-al, X-eo), por não inserir, nas palavras instanciadas por esse subesquema, uma qualificação apreciada ou depreciada, como a que se vê em construções com outros sufixos latinos, como X-ōsu (invidiōsus,-a,-um: invejoso) e X-entu (cruentus, -a, -um: cruel, sanguinário, desumano).

As outras quatro formações foram classificadas como qualidade ressaltada, pois o significado parece se estender para além do relacional, inserindo, nessas palavras construídas, um aspecto mais pleno de qualificação/avaliação. Os exemplos encontrados no corpus para essa categoria foram refractārĭus (rebelde), ridiculārĭus (bobo), sanguinārĭus (de sangue; sanguinário) e singulārĭus (isolado). Note-se que, em três desses casos, os inputs refrāctus (particípio passado do verbo refrīngo: quebrar, arrombar, reprimir, abater, conter, destruir), ridicŭlus (risível, jocoso) e singulāris (isolado, solitário, singular) já apresentam aspecto avaliativo, pois são adjetivos ou, morfologicamente, se aproximam de tal classe (caso do particípio passado), e o sufixo -ariu parece ter apenas um valor de ressalte, como quer Marinho (2004) para certeiro e grosseiro, ou de modalização, como querem Almeida e Gonçalves (2005) para essas mesmas construções. No caso de sanguinārĭus, há uma polissemia atuante na própria palavra, permitindo que ela ora tenha um significado relacional (equivalente a sanguíneo em português), ora tenha um significado ressaltado (caso de sanguinário).

Chamam a atenção o número de ocorrências predominantemente adjetivas de X-ārĭu e a tendência a um aspecto mais neutro da qualificação, tendo, ao que parece, a noção com acréscimo de intensidade e pejoratividade ainda uma tímida expressividade no latim. Assim, os esquemas desses dois primeiros significados atestados, nos termos de Booij, podem ser representados como na figura 1.

Figura 1 Subesquemas de qualidades das construções X-ārĭu 

A partir da figura 1, é possível notar que, nos esquemas instanciadores de adjetivos, optou-se pela não especificação da categoria do input, pois foram registradas formações, a partir de substantivos concretos (tignum/tignārĭus), substantivos abstratos (valētūdō/ valetudinārĭus), substantivos próprios (Taenărus/ taenārĭus), adjetivos, bases participiais (refrāctus/refractārĭus), verbos (onĕrāre/onerārĭus) preposições (extrā/extrārĭus), numerais (quadragēnī/quadragenārĭus) e advérbios (temĕrĕ/temerārĭus). Em termos quantitativos, têm-se os resultados na tabela 1.

Tabela 1 Categorias lexical nas construções X-ārĭu adjetivais 

Os números expressos na tabela 1 sinalizam que, em se tratando de adjetivos X-ārĭu , há uma propensão maior à formação a partir de substantivos. Isso, além de corroborar os relatos históricos sobre a destacada função de transcategorização do tipo substantivo → adjetivo, como sinalizou Viaro (2011), mostra que a categoria substantivo já era a base preferencial nessas formações, desde o seu significado inicial, estendendo-se para outros significados e mantendo-se até o português contemporâneo, como apresentado no trabalho de Simões Neto e Soledade (2014).

Sobre as construções X-ārĭu adjetivais, é preciso fazer ainda três considerações. A primeira diz respeito à relação entre os subesquemas qualidade relativa e qualidade ressaltada. A proposta de representação de esquemas e subesquemas elaborada por Booij precisa ser repensada, para que venha a dar conta de aspectos relevantes atinentes à contraparte semântica que não estão sendo contemplados nos moldes esquemáticos booijianos. Isso é perceptível quando se nota que o modelo não tem permitido explicitar um conjunto de relações que se estabelecem entre ‘esquemas e esquemas’, ‘esquemas e subesquemas’ e ‘subesquemas e subesquemas’. No caso dessas construções adjetivais X-ārĭu, o fato de ser classificado como uma qualidade ressaltada, em nada, impede de se presumir uma qualidade relativa. O exemplo de sanguinārĭus ajuda a clarear esse entendimento, uma vez que, a depender do significado (de sangue; ou sanguinário), a palavra pode ser instanciada por qualquer um dois subesquemas, mas é importante observar que o significado ressaltado sanguinário não deixa de ser relativo a algo expresso pela base.

Assim, uma representação ideal dessa relação está formulada na figura 2, a seguir. Essa proposição foge ao escopo do que se vê nos postulados de Booij, mas, aparentemente, consegue captar a possibilidade de uma qualidade relativa passar a qualidade ressaltada, por mecanismos variados de extensão de sentido.

Figura 2 Outra representação dos subesquemas de qualidade das construções X-ārĭu 

O segundo ponto ainda a ser considerado sobre as construções X-ārĭu adjetivais está na constatação de que há palavras que, embora representadas como adjetivos no dicionário e aqui classificadas como relativas, apresentam significados germinais para outros subesquemas, como se pode ver com clitellārĭus (que traz albarda de carga), consillārĭus (que dá conselhos), oraculārĭus, (que profere ou emite oráculos), promptuārĭus (onde se guarda, onde se conserva fechado, e daí, prisão) e taenārĭus (tenário, de Tênaro, da Lacônia, de Esparta).

Esses casos mostram que as informações de agentividade (tanto no sentido de ‘trabalho’ quanto de ‘hábito’), locatividade e origem, que, frequentemente, são expressas pelas construções X-ārĭu substantivas já podiam ser percebidas, de certa forma, em algumas construções adjetivas. Nesse sentido, os limites entre as categorias lexicais de substantivo e de adjetivo nas construções X-ārĭu são muito tênues, o que mostra que a categoria lexical do output deve ser abordada com mais flexibilidade em algumas construções, tal como acontece com a categoria do input em algumas análises.

Ainda sobre esses casos destacados, há de se pensar a relevância do significado do input em algumas dessas formações, pois parece haver uma espécie de extensão de sentido que se presume ou herda da palavra base, e isso não obrigatoriamente faz com que o significado relacional deixe de ser constatado. Isso é dizer, por exemplo, que, em taenārĭus, dado o fato de a base ser Taenărus, uma cidade, pode-se presumir uma especificação do significado relacional, estendendo-o metonimicamente para uma relação de origem, interpretando-se essa palavra como um possível gentílico.

Algo parecido pode ser visto em clitellārĭus, cuja base clitēllae (albarda, carga (de animal)) se refere a uma sela própria para resguardar o lombo dos animais de carga. Nota-se que o adjetivo correspondente a essa base apresenta um significado para além do relacional, especificando-se uma relação de função. Apesar da importância de se destacarem esses casos, considerando-se a baixa frequência desse tipo de ocorrências, não se viu a necessidade de depreensão de subesquemas adjetivais com esses significados, optando-se por considerar essas formações como instanciações do subesquema de qualidade relativa e, ocasionalmente, classificando duplamente essas construções. Diante disso, mantém-se o esquema proposto na figura 1, uma vez que o significado relacional não é perdido de vista.

A terceira e última consideração a ser feita sobre os adjetivos formados pelo esquema X-ārĭu toca à relação que esses estabelecem com as instanciações geradas pelos esquemas substantivais. Constatou-se, no corpus, que há 47 adjetivos com substantivos correspondentes. São exemplos os pares mulierārĭus, a, um (de mulher) e mulierārĭus (homem que gosta de mulheres, mulherengo), operārĭus, a, um (relativo ao trabalho, de trabalho, de trabalhador) e operārĭus (trabalhador, operário) e vestiārĭus, a, um (relativo à vestimenta) e vestiārĭum (guarda-roupa, vestiário).

A observação dessas aproximações ajuda a ratificar as hipóteses levantadas por autores como Marinho (2004) e Viaro (2011) a respeito do processo de recategorização pelo qual as construções X-ārĭu passaram ainda no latim, deixando de formar somente adjetivos para formarem também substantivos. Para esses autores, o significado de agente profissional é o primeiro que decorre dessa extensão categorial e está relacionado a um processo de elipse sintática. Os agentes profissionais eram inicialmente expressos por um SN, com um termo genérico, como servus ou faber, e um adjetivo de valor relacional, como os X-ārĭu. Com o passar do tempo e o aumento da frequência e regularidade de uso, os termos genéricos são suprimidos e as palavras X-ārĭu passam a englobar semanticamente o agente, daí são vistos casos, como servus coquinarius (‘servo da cozinha’) → coquinarius (‘cozinheiro’) e faber ferrarius (‘fabricante de ferro’) → ferrarius (‘ferreiro’).

Viaro (2006, 2011), embora reconheça a primazia do agente profissional nesse processo, admite que esse, logo, passou a conviver com outros tipos de agentes, como os habituais. Pizzorno (2010), por sua vez, tomando como base os dados analisados por Marinho (2004), sugere que o subtipo agente habitual não era atestável no latim e os fatores recorrência e habitualidade são características da LP contemporânea, assim, pode-se inferir que, para essa autora, somente os agentes profissionais estavam presentes na língua latina3. No corpus aqui analisado, foram encontradas 139 construções X-ārĭu substantivas, das quais, 94 foram instanciadas pelo esquema de agente, o qual, por sua vez, se subdivide em cinco subesquemas: (i) agentes profissionais; (ii) agentes habituais; (iii) agentes circunstanciais; (iv) agentes beneficiários; e (v) agentes vegetais.

A opção por abordar esses cinco subtipos de agente advém do entendimento de que há características sutis que permitem diferenciar um do outro. Com isso, não se quer estender demais a polissemia, para que não se corra o risco de, nos termos de Soares da Silva (2010), ‘puxar a polissemia para cima’, criando um esmiuçamento demasiado, como fez Viaro (2011), ao mesmo tempo em que não parece interessante ‘puxar a polissemia para baixo’, como fizeram Rocha (1998) e Simões Neto e Soledade (2014), ao resumir a categoria ‘agente’, deixando de considerar nuances de significados que pedem melhores subespecificações. Assim, os subesquemas de agentes se diferenciam conforme as informações dadas no quadro 1.

Quadro 1 Especificação dos tipos de agentes 

Nos dados vinculados ao esquema de agente, o subesquema profissional foi o mais produtivo e instanciou 65 palavras, entre as quais estão: ampullārĭus (fabricante ou vendedor de frascos), aquārĭus (aguadeiro); cubiculārĭus (servo do quarto de dormir), elementārĭus (pedagogo), frumentārĭus (negociante de trigo), operarĭa (operária), quasillārĭa (fiandeira) e utriculārĭus (tocador de gaita de foles). Na sequência, em termos de quantidade, vêm os agentes habituais, com 20 instanciações: admissārĭus (garanhão, reprodutor, homem lascivo), consillārĭus (conselheiro), glabārĭa (mulher que gosta de escravos imberbes), micārĭus (homem que vive de migalhas), mulierārĭus (mulherengo), puellārĭus (que ama os jovens).

Com menor produtividade, os subesquemas de agentes circunstanciais e de agentes beneficiários instanciam, respectivamente, 6 e 3 construções. Como exemplos de agentes circunstanciais, registram-se as palavras adversārĭa (adversária), valetudinārĭus (doente), verbenārĭus (aquele que leva um ramo sagrado) e vicārĭus (substituto). Já os agentes beneficiários foram vistos em beneficiārĭus (soldado que deve a sua promoção a alguma pessoa), duplicārĭus (duplicário, soldado que tem soldo dobrado) e vicesimārĭus (recebedor do imposto de vintena). Os agentes vegetais, por fim, não foram vistos no dicionário de Faria (1994), entretanto, para que não se cometa o equívoco de dizer, apenas tomando como norte o corpus aqui recortado, que tal significado não existia no latim, usam-se os seguintes dados hipotéticos apresentados por Marinho (2004): ?pirarius (pereira), ?ficarius (figueira), ?nucarius (nogueira) e ?persicarius (pessegueiro).

Uma representação do esquema geral de agente, com base nas formulações de Booij, é proposta na figura 3 (abaixo)4. Destaque-se o fato de que o subesquema dos agentes vegetais está com um tracejado pontilhado, recurso gráfico utilizado para sinalizar que, embora o significado existisse na língua latina, não foi atestado no corpus. Note-se também que a categoria lexical da base se mostra uma propriedade anulável nesse esquema geral, sendo especificado somente no subesquema agente vegetal, que tem sempre como base substantivos que, nesses casos, designam as frutas e/ou flores geradas pela árvore em questão.

Figura 3 Subesquemas de agentes das construções X-ārĭu 

Mais uma vez, torna-se necessário fazer críticas ao modelo de Booij, no sentido de esse não dar conta das relações que os subesquemas estabelecem entre si. No corpus, foram observados casos de agentes que geraram dúvidas se deveriam ser categorizados como profissionais ou habituais, sendo, em geral, duplamente classificados. São os casos de effractārĭus (o que rouba, arrombando portas), falsārĭus (falsário, falsificador) e testamentārĭus (o que altera testamento, falsificador de testamentos). Destaque-se, nesses casos, a avaliação depreciativa e o caráter ilícito das atividades, que, segundo Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998) e Marinho (2004), são características que ajudam a diferenciar as categorias de agentes profissionais e de agentes habituais, uma vez que só o segundo grupo as apresenta.

Ainda que se aceite tal postura, nada impede que effractārĭus, falsārĭus e testamentārĭus possam ser categorizados como agentes profissionais, pois, em todas essas atividades, demanda-se esforço físico, conhecimento e técnica, além de ser possível, por meio delas, ter remuneração e garantir subsistência. Diante de tal fato, fica-se diante de uma tricotomia sobre qual postura assumir: (i) aceitar a primazia semântico-histórica dos agentes profissionais, assumida por Marinho (2004) e reassumida por Almeida e Gonçalves (2005, 2006) e Pizzorno (2010), e colocar o agente profissional como protótipo do qual, pelo entendimento de que toda profissão/atividade envolve hábito/rotina, se gera o significado de agente habitual; ou (ii) concordar com Soledade (2017, no prelo) que, interpreta a categoria agente profissional como um subconjunto dos agentes habituais, uma vez que considera que “a passagem do aspecto habitual para o profissional depende de conceptualizações decorrentes das necessidades, dos interesses e das experiências dos indivíduos e das culturas em cada momento histórico.” (Soledade, 2017, p. 13), assim, do ponto de vista experiencial, é possível observar que certas profissões nascem de hábitos rotineiros, como o corredor amador passando a corredor profissional; ou ainda (iii) concordar com ambas as visões, destacando-se que o movimento é sempre metonimico, expressando uma relação parte-todo ou continente-conteúdo.

Opta-se, aqui, por assumir a terceira hipótese que reúne as duas visões. A partir do que se vê no corpus, as construções X-ārĭu designadoras de agentes profissionais eram as mais frequentes, confirmando a primazia histórica desse significado (Marinho, 2004). Do ponto de vista do fluxo histórico, a hipótese de Almeida e Gonçalves (2006) de que o fator frequência/hábito/rotina, no exercício dos agentes profissionais, tenha sido o elemento focalizado para a extensão que gerará a segunda subcategoria de agente mais produtiva, a habitual, parece aplicável aos dados. Ao mesmo tempo, não se pode negar o argumento de Soledade (2017), que visualiza uma relação metonímica entre os dois subesquemas, uma relação de conjunto parte-todo, em que o sentido mais geral (hábitos) embute o mais específico (profissão), seguindo o fluxo cognitivo. Essa tendência se mantém, como se pode ver em algumas construções X-eir- do português contemporâneo, como blogueiro, que, antes se referia ao usuário frequente do blog e se profissionaliza, ao ponto de se tornar o meio de subsistência de algumas pessoas.

Diante desses argumentos, uma representação ideal dos subesquemas está na figura 4, que mostra o fluxo histórico do agente profissional passando a agente habitual, mas reconhecendo também a possibilidade de um agente habitual se profissionalizar e se tornar um agente profissional, seguindo o fluxo cognitivo, de se ir do geral para o mais específico.

Figura 4 Relação entre os subesquemas de agentes profissionais e de agentes habituais nas construções X-ārĭu 

É preciso expressar também a proximidade entre as relações entre agentes circunstanciais e agentes beneficiários, considerando a possibilidade de os beneficiários poderem ser conceptualizados como pormenorizações dos circunstanciais, no sentido de que especifica, com base na ideia de benefício, uma situação decorrente de um contexto circunstancial e pontual. A representação ideal, para esses casos, está na figura 5.

Figura 5 Relação entre os subesquemas de agentes circunstanciais e de agentes beneficiários nas construções X-ārĭu 

A partir das figuras 4 e 5 e das críticas feitas às representações esquemáticas no modelo construcional de Booij (2010), faz-se, na figura 6, uma possível representação da rede polissêmica do significado agentivo nas construções X-ārĭu, explicitando as relações metonímicas do tipo parte-todo ou continente-conteúdo que se estabelecem entre habitual e profissional e entre circunstancial e beneficiário

Figura 6 Relações entre quatro subesquemas de agentess nas construções X-ārĭu 

Observa-se que, na figura 6, não foi contemplado o subesquema de agente vegetal e isso não quer dizer que ele não deve ser representado, com base nas visões que se estendem para além do que formulou Booij. Partindo das assunções de Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998) de que o grupo dos agentes vegetais possa ser considerado um espraiamento metafórico dos agentes profissionais, sugere-se que essa extensão metafórica seja tratada como na figura 7.

Figura 7: Relação metafórica entre os subesquemas de agentes profissionais e de agentes vegetais nas construções X-ārĭu 

Explicados os subesquemas de agente, há duas possibilidades para a escolha do próximo esquema dominante: (i) seguir o fluxo semântico-histórico proposto por Marinho (2004), em que os locativos se mostram como o segundo grupo de afinidade semântica com maior produtividade na recategorização das construções X-ārĭu; ou (ii) seguir a proposta de Viaro (2006, 2011), que sugere que algumas designações de objetos funcionais são metaforizações de agentes profissionais5 e que o significado locativo seria uma extensão do significado especificado de objeto recipiente. Tomando como norte a visão de Viaro (2006, 2011), mais pelas relações semânticas que delineia e menos pelo caráter evolutivo-sequencialista que defende, opta-se por primeiro discutir os subesquemas de objetos, representados na figura 8.

Figura 8 Subesquemas de objetos das construções X-ārĭu 

Cabe destacar que, na observação de Marinho (2004), sobre os dados de língua latina, não são atestadas formações com significado de objeto. Mais uma vez, isso não quer dizer que o significado não existisse, pois, nos dados levantandos para essa pesquisa, há, ao menos, 8 palavras instanciadas por esse esquema maior, sendo: (i) quatro recipientes: caldārĭum (caldeira, estufa), graphiārĭum (estojo para guardar estiletes), vaporārĭum (estufa que conduzia o vapor para os banhos quentes) e vestiārĭum (guarda-roupa, vestiário); (ii) dois utensílios: calendārĭum (livro de contas) e commentārĭum (livro de notas ou apontamentos, notas, memoriais); (iii) duas máquinas6: actuārĭa (navio ligeiro) e onerārĭa (navio de carga).

Em relação à representação esquemática na figura 8, vale ainda ressaltar que somente o subesquema de máquina não apresenta especificação da categoria lexical da base, sendo o substantivo actus (fato de estar em movimento) e o verbo onĕrāre (carregar, onerar), os respectivos inputs de actuārĭa e onerārĭa.

Mesmo com pouca produtividade, o significado de objeto já existia no latim e o subesquema de recipiente é o que tem mais instanciações. Embora Viaro (2011) proponha que esse significado tenha dado base aos significados locativos, nos dados, vê-se que o esquema dominante dos locativos tem 22 instanciações, ou seja, um número significativamente maior que o das instanciações referentes a objetos. Se a hipótese de Viaro (2011) de que há uma focalização metonímica no objeto recipiente que o permite conceber como locativo fosse aqui assumida, far-se-ia necessário ignorar o fator produtividade (recorrência, frequência, nesse contexto) para sustentar essa interpretação da relação entre os esquemas. Contudo, como dito acima acerca dos esquemas referentes à noção objeto, a noção locativa parece ser projetada diretamente da noção agentiva, uma vez que na formulação de esquemas agentivos perpassam esquemas imagéticos que acionam “uma cena de evento, ou seja, de alguém (ou algo) que age em algum lugar, de algum modo, sobre um dado objeto, produzindo alguma coisa”7 (Almeida e Gonçalves, 2005, p. 7), desse modo, a noção locativa já se impõe de forma bastante direta, sobretudo no sentido de “local onde se faz/ocorre”.

Por outro lado, os locativos que podem ser associados à noção recipiente dos objetos, descritos aqui como “local onde há”, provavelmente também se originam da projeção metafórica que toma o local pelo agente “pessoa que guarda/que tem posse de” > “lugar que guarda/que tem posse de”. Além disso, considerando o substantivo gallinārĭus, -ī, que originalmente acionava o valor agentivo “criador de galinhas” e que passou a significar “lugar onde há, onde se criam as galinhas” pode-se admitir um percurso metonímico que incide sobre as próprias instanciações e não sobre o conjunto deles (esquemas e subesquemas). Assim, locais são tomados pelos agentes que ali trabalham, “vou na costureira” ou “fui na cabelereira” são construções que evidenciam a propriedade dessas ilações.

No que toca à polissemia desse esquema, concebem-se dois significados, representados por subesquemas: um em que o local designado tem um aspecto mais recipiente e/ou reunidor, e outro em que o local tem um caráter funcional mais geral. Em português, seria como a diferença que se estabelece entre um canavial (lugar onde há muita cana) e um provador (lugar onde se prova roupa), por exemplo. Essa diferença semântica é retratada na figura 9.

Figura 9 Subesquemas de locativos das construções X-ārĭu 

Em relação aos subesquemas apresentados na figura 9, nota-se que o significado de local recipiente (local onde há) é visto em 16 formações, ao passo que 6 palavras designam lugares de caráter mais funcional/relacional (local onde se faz algo relacionado a). Do subesquema mais produtivo, instanciam-se aerārĭa (mina de cobre), arenārĭa (areal), aviārĭum (galinheiro; viveiro de aves), ferrārĭa (mina de ferro), ulmārĭum (olmedo) e veterārĭum (adega para vinho velho). O subesquema menos produtivo, por outro lado, instancia compendiāria (caminho mais curto), emissārĭum (escoadouro), fumārĭum (lugar onde se expõe alguma coisa ao fumo), spolārĭum (lugar onde se despojavam os gladiadores mortos), vigillārĭum (casa da guarda, guarita).

Na conceptualização de esquemas de recipientes, existe uma expectativa de que a base seja um substantivo que designe o que está sendo guardado. Entretanto, nota-se, a partir da representação na figura 9, que não houve especificação da categoria do input para esse subesquema. Embora os substantivos, tenham sido tomados como base em 12 das 16 formações, houve quatro casos em que adjetivos funcionaram como input, casos de promptārĭum (prisão; input: promptus, a, um - ao alcance de, fácil, cômodo), secretārĭum (lugar retirado; conselho privado; input: sēcrētus, a, um - separado, afastado de, particular) e veterārĭum (adega para vinhos velhos; input: vetus, a, um - velho), o que justifica a anulação da categoria do input.

O último esquema encontrado nas construções X-ārĭu do corpus foi o de quantidade. Na hipótese de Viaro (2011), esse significado decorre de uma metonímia do significado de local recipiente, focalizando o conteúdo. Essa hipótese é bastante provável, uma vez que se encontram formações que parecem coadunar tanto a noção de quantidade quanto a de locativo, como arvoredo (lugar onde há muitas árvores; aglomerado de árvores) e galinheiro (lugar onde se criam galinhas; conjunto de galinhas). Em se tratando dos dados do corpus, entretanto, o significado de quantidade não foi visto em palavras com essa configuração semântica, mas verificou-se a polissemia do esquema dominante, que foi dividido em dois subesquemas: noção coletiva e medida/quantia, como se pode ver na figura 10.

Figura 10 Subesquemas de quantidade das construções X-ārĭu 

O subesquema de noção coletiva instancia duas formações: aerārĭum (erário; tesouro público) e pulmentārĭum (massa para engordar aves domésticas; iguarias). Embora mais evidente em aerārĭum, a palavra pulmentārĭum pode ser interpretada também como uma instanciação desse subesquema, uma vez que, seguindo as pistas aparentes dadas pelo significado da base (pulmēntum: iguaria; manjar), pode-se assumir que a massa designada reunia iguarias em sua composição. Para que não se fique somente no plano intralinguístico, cabe uma explicação dada por Ornellas e Castro (2010), que refletiu sobre os hábitos alimentares do povo romano que, segundo a autora, era

um povo rústico nas suas origens, em cuja alimentação quotidiana, alegadamente frugal (em consonância com os tão apregoados mores saudáveis e austeros dos velhos romanos), predominam as leguminosas, as hortaliças - entre as quais impera a couve - e os cereais, primeiro sob a forma de papas (puls) o acompanhamento mais usual da refeição daí o conduto ser denominado pulmentarium e só posteriormente sob a forma de pão, que começou por ser um alimento das camadas abastadas. (Ornellas e Castro, 2010, p. 74)8

A partir dessa citação de Ornellas e Castro (2010), pode-se depreender que pulmentārĭum não era necessariamente um alimento das aves, mas também dos humanos, e consistia em um preparado (noção coletiva) de cereais que se apresentava sob a forma de uma papa. Com base nisso, do ponto de vista, da descrição linguística, podem-se estabelecer duas vias interpretativas que dependem do modo como se concebe a informação. A primeira é considerar um esquema de alimento, mesmo que improdutivo, focando-se no que se apresenta como resultado, ou concentrar-se na noção coletiva de que seja um preparado de cereais, e colocá-lo em um esquema de quantidade. Como já apresentado, optou-se aqui pela segunda via.

O outro subesquema de quantidade se mostrava mais produtivo no latim e diz respeito a um conjunto de palavras que designam quantias (impostos, taxas e multas) ou unidades de medidas. Os oito exemplos de instanciações são: calceārĭum (dinheiro para calçado dado aos soldados), cerārĭum (imposto para a cera), clavārĭum (gratificação dada aos soldados para as tachas dos sapatos), heminārĭum (presente do conteúdo de uma hemina9), linguārĭum (multa por ter falado demais), milliārĭum (marco milionário), ostiārĭum (imposto sobre as portas) e salārĭum (quantia paga aos soldados para comprarem o sal).

A fim de encerrar a abordagem sobre as construções X-ariu substantivas, apresenta-se abaixo, na figura 11, um esquema geral onde se tenta fazer uma síntese, da polissemia das construções X-ariu, dentro do escopo do modelo de Booij já que seria impossível, na representação dos subesquemas, com a coindexação especificada, fazer algo parecido. Do lado de cada significado, há o número de ocorrências/palavras atestadas no corpus.

Figura 11 Esquema geral das construções X-ārĭu substantivas 

Considerações finais

O trabalho apresentado refletiu a polissemia das construções X-ārĭu, na perspectiva da Morfologia Construcional. Sabe-se que, entre as teorias linguísticas contemporâneas, a diacronia não tem ganhado um papel destaque, o que faz com que a maioria dos trabalhos desenvolvidos se oriente para um recorte sincrônico e contemporâneo. Entretanto, há usos linguísticos contemporâneos que só podem ser compreendidos em uma abordagem histórica e, muitas vezes, olhar para a língua em períodos mais remotos pode ajudar a melhor compreender a língua contemporânea.

Se os resultados encontrados neste trabalho forem cotejados com os trabalhos realizados sobre as construções X-ário e X-eiro do português, ver-se-á que a grande maioria dos significados identificados pelos autores para as construções contemporâneas encontra correspondência na língua latina. Assim, entende-se que a polissemia nas construções morfológicas deve ser considerada como um fenômeno historicamente constituído e as pesquisas na área de morfologia da língua portuguesa não devem dispensar a observação do latim.

Ainda que o fenômeno da mudança na perspectiva da Morfologia Construcional venha sendo abordada por alguns autores, sobretudo no que toca às mudanças de estatuto morfológico, este estudo tem um caráter inovador, ao centrar em uma análise sistemática de um corpus representativo da língua latina. É preciso, portanto, que outros autores se lancem a tal desafio, aprimorando, cada vez mais, as relações aproximativas entre a Morfologia Construcional, a Linguística Cognitiva e a Linguística Histórica

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1Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Um enfoque construcional sobre as formações X-eir-: da origem latina ao português arcaico”, defendida no dia 29/04/2016, no Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia. O projeto contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

2Booij (2010) trabalha com a hipótese do Produto Categorial Único (PCU), defendida por Aronoff (1976). Assim, ao representar uma construção, se as classes dos produtos forem diferentes, mesmo que os significados sejam relacionáveis, deve-se representar em esquemas diferentes. Isso é dizer que verdadeiro, interesseiro e grosseiro devem ser separadas, em termos de descrição, de carteiro, banheiro e aguaceiro, pois, enquanto o primeiro grupo envolve adjetivos, o segundo diz respeito a substantivos.

3É importante relembrar que a autora considera as árvores e arbustos em uma categoria ‘VEGETAL’, desfazendo-se da ideia de ‘agentes vegetais’, seguida por outros autores.

4Nas representações esquemáticas aqui propostas, optou-se por incluir nas marcações do esquema dominante uma letra e, nos subesquemas, uma letra combinada com um número. No caso da figura 3, há o (a), simbolizando o esquema dominante, e nos subesquemas, há (a1), (a2), etc. Essa prática não decorre de uma recomendação de Booij, tendo sido aqui incorporada para dar conta de serem feitas associações mais amplas com os demais esquemas e subesquemas, bem como, permitir uma melhor explicitação das relações semânticas, de caráter metafórico ou metonímico, que perpassam a composição dos subesquemas.

5Essa visão é compartilhada por Botelho (2004) e Soledade (2013), dentro de outros paradigmas teóricos.

6Em relação ao subesquema máquina, cabe ressaltar que esses dois casos ainda se encontram bem relacionados à projejão de adjetivos para a posição de substantivo, tendo advindo de navis actuaria e navis oneraria. Destaca-se também que esse subesquema não parece ter se tornado um modelo produtivo para designação de máquinas com o sufixo –ário ou –eir–.

7Grifos nossos.

8Grifos nossos.

9hēmīna: “medida de capacidade correspondente a meio sextarius” (Faria, 1994, p. 249) .

Recebido: 12 de Outubro de 2016; Aceito: 24 de Fevereiro de 2017

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