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Lingüística y Literatura

Print version ISSN 0120-5587On-line version ISSN 2422-3174

Linguist.lit.  no.77 Medellìn Jan./June 2020  Epub Nov 02, 2021

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n77a21 

Estudios literarios

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: O EXCEDENTE DE VISÃO EM FUNES, O MEMORIOSO, DE JORGE LUÍS BORGES

THE INABILITY OF FORGET AND THE EXCESS OF VISION IN FUNES, THE MEMORIUS, BY JORGE LUIS BORGES

Leandro De Bona Dias1  * 

Mário Abel Bressan Júnior2 

1Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL (Brasil) debona12@hotmail.com

2Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL (Brasil) marioabelbj@gmail.com


Resumo:

Esta investigação analisou as questões sobre a memória e o esquecimento em Funes, O Memorioso, de Jorge Luis Borges, com base em Bergson (2009), Halbwachs (1990) e Le Breton (1999), entre outros para discutir estes temas. Além disso, a leitura do protagonista baseou-se no conceito de Mikhail Bakhtin do excesso de visão. Os resultados da análise mostraram que a memória no texto de Borges se constrói por um contato intenso com a imaginação e também que o excesso de visão testifica que Funes, à medida que ganha uma capacidade extraordinária para recordar, perde a capacidade necessária para esquecer.

Palavras-chave: memória; literatura; excedente de visão; Jorge Luís Borges

Abstract:

This research analyzed the issues of memory and oblivion in Funes the Memorious, by Jorge Luis Borges, based on Bergson (2009), Halbwachs (1990) and Le Breton (1999), among other authors to discuss these issues. In addition, the main character’s reading was based on Mikhail Bakhtin’s concept of excess vision. The results of the analysis showed that the memory in Borges’ text is built by intense contact with the imagination and also that the excess of vision testifies that Funes, as he gains an extraordinary ability to remember, loses the ability to forget.

Key words: memory; literature; excess of vision; Jorge Luis Borges

1. Introdução

A frase acima, escrita no centro de uma página em branco, inaugura o livro de Manoel de Barros Memórias inventadas (2003). A provocação da ideia paradoxal desse conjunto de palavras serve como ponto de partida para a reflexão que proporá neste artigo acerca da memória no conto Funes o memorioso, do escritor argentino Jorge Luís Borges. O objetivo aqui é o de analisar o texto de Borges tendo como referência autores como Henri Bergson (1999), Maurice Halbwachs (1990) e David Le Breton (2009) a fim de investigar de que modo as relações entre memória e esquecimento surgem no conto em questão. Além disso, será proposta a leitura da personagem principal, o próprio Funes, a partir do conceito de excedente de visão utilizado pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin e explorado por Katerina Clark e Michael Holquist (2008). A escolha de Borges como objeto de análise não é feita por acaso, visto que o autor argentino «[...] escreve críticas sobre livros que nunca foram escritos e cita, em digressões eruditas, profusão de livros de todas as épocas e literaturas, metade reais, metade imaginários» (Vieira, 2007, p. 141). Como é característico de seu estilo, o contista pôs em questão o jogo sempre tenso entre ficção e realidade-não por acaso Ficções é o título do livro de contos em que Funes, o memorioso vem a ser publicado-, convidando seu leitor à dúvida. Nas seções que seguem abaixo procura-se explorar essas questões.

2. Memória, afetividade e morte

O conto que é foco desta análise foi publicado originalmente por Jorge Luís Borges em 1942 no periódico La Nación e depois editado no livro Ficções (1944); nele o narrador fala, a partir de seu ponto de vista, sobre seu encontro com Ireneo Funes, um uruguaio que aos dezenove anos, após cair de um cavalo, fica aleijado, mas percebe, ao recobrar a consciência, que sua memória se torna prodigiosa, sendo capaz de lembrar-se de cada detalhe de tudo o que vê.

Esta análise é iniciada com a primeira linha do conto: «Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar ese verbo sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo derecho y ese hombre ha muerto) [...]» (Borges, 1994, p. 115). Neste pequeno trecho, tem uma afirmação, alguém morreu, e uma informação a respeito da memória desse alguém. Logo em seguida se saberá que essa pessoa é Funes. Interessante notar o uso do verbo recordar, de origem latina1 e que significa «trazer de volta ao coração», etimologia próxima da de «decorar, saber de cor, ou seja, saber de coração». Nesse sentido, o coração é compreendido como órgão ligado à memória ou à capacidade de lembrar. É possível depreender daí o papel da afetividade como condição importante para a recordação. A esse respeito, o francês David Le Breton dirá, em texto publicado em 1999, que:

Um homem que pensa é sempre um homem afetado, alguém que reúne o fio de sua memória impregnada de certo olhar sobre o mundo e sobre os outros. [...] As emoções traduzem a ressonância afetiva do acontecimento de maneira compreensível aos olhos dos outros. Sua proveniência não é exclusivamente individual: ela é uma consequência íntima, ocorrida na primeira pessoa, de um aprendizado social, em primeiro lugar, e de uma identificação com os outros, em segundo lugar (Le Breton, 2009, pp. 116-117).

Tem, portanto, um narrador afetado pela memória de seu encontro com Funes; acontecimento que o impulsiona a escrever o relato que ora é analisada. A ressonância de que fala Le Breton pode ser constatada na quantidade vezes, cinco ao todo, em que a palavra recordar é utilizada neste mesmo primeiro parágrafo.

Prosseguindo a leitura, é descoberto que o relato que esta sendo lido foi encomendado: «Me parece muy feliz el proyecto de que todos aquellos que lo trataron escriban sobre él; mi testimonio será acaso el más breve y sin duda el más pobre, pero no el menos imparcial del volumen que editarán ustedes» (Borges, 1994, p. 116). O realismo fantástico, traço característico da obra de Borges, que flerta em seus textos com os limites entre o real o imaginário, sugere a edição de um livro com depoimentos sobre a vida de Funes. É interessante o procedimento utilizado pelo autor argentino para ancorar a narrativa de seu conto: a construção de um livro de memórias sobre alguém que está morto. Destaca-se a partir daqui a peculiaridade desse tipo de escrita.

Na conferência proferia em 1969 e intitulada A morte do autor, Michel Foucault (2014) fez a distinção entre o autor como pessoa real, e o autor enquanto função social. Para ele, com algumas exceções2, o autor enquanto função social prescinde do autor enquanto sujeito físico. A questão da autoria é tomada por Foucault considerando as relações do sujeito com o discurso, com os modos como ele se inscreve em determinados discursos ao mesmo tempo em que deles desaparece como pessoa ao desempenhar a função-autor. Bem, ao analisar a ideia do filósofo francês, Giorgio Agamben (2007) chama a atenção para outro texto de Foucault, chamado A vida dos homens infames. Nele estão os registros de homens que foram internados por motivos infames. O autor italiano atenta para o fato de que as vidas descritas nesse arquivo estão, de fato, representadas, registradas, no entanto: «[...] o gesto com o qual foram fixadas parece subtraí-las para sempre de toda possível apresentação, como se elas aparecessem na linguagem apenas sob a condição de continuarem absolutamente inexpressas» (Agamben, 2007, p. 59). Retomando agora o trecho do conto que deu início a esta argumentação, observa-se que o tipo de texto em que se insere o relato do narrador, um livro sobre as impressões de outras pessoas sobre o finado Funes, opera da mesma forma que o exemplo de Agamben, afinal o narrador diz sobre a quantidade de encontros que teve com Funes: «Más de tres veces no lo vi [...]» (Borges, 1994, p. 116). A respeito disso, Maurice Halbwachs afirma, em trabalho publicado em 1990, que:

É depois da morte de alguém que a atenção dos seus se fixa com maior força sobre sua pessoa. É então, também, que sua imagem é a menos nítida, que ela se transforma constantemente, conforme as diversas partes de sua vida que evocamos. Em realidade, nunca a imagem de um falecido se imobiliza. À medida em que recua no passado, muda, porque algumas impressões se apagam e outras se sobressaem, segundo o ponto de vista de onde a encaramos, isto é, segundo as condições novas onde ela se encontra quando nos voltamos para ela (Halbwachs, 1990, p. 74).

Considerando o que acima expus, a vida de Funes estaria sendo, neste hipotético compêndio que reúne os relatos daqueles que o conheceram, ao mesmo tempo expressa e aprisionada. Se saberá quem é Funes, mas o se saberá por intermédio de um narrador que relata sobre o que recorda. E seria possível ao narrador outra espécie de recordação que não a sua própria? O mesmo Halwbachs (1990, p. 25) disse que, sobre um evento ou situação, «[...] a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios». À primeira vista essa declaração pode sugerir algo com um solipsismo, mas a memória, na concepção desse autor, será sempre um jogo entre individualidade e coletividade. Em seu livro A memória social (1990), ele mostra de que modo as recordações são afetadas pelos grupos sociais aos quais se pertence e com os quais as pessoas se relacionam. Por isso, para ele «[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós» (Halbwachs, 1990, p. 26).

A partir de o trecho acima e se fora aplicada essa ideia ao conto de Borges, se verá que o narrador, embora escreva o relato de seu encontro com Funes contando apenas com a ajuda de sua própria experiência, esta não está circunscrita a si mesma. Ou seja, as memórias que o narrador possui sobre Funes envolvem, não apenas o próprio Funes, o que já bastaria para comprovar o ponto, como também outros personagens que vão surgindo ao longo do conto. Dentre outros, serão citados apenas duas personagens que são considerados mais relevantes por ajudarem a construir impressões no narrador sobre Ireneo por meio de comentários que precederam seus encontros com Funes. O primeiro deles é o primo com quem cavalgava quando viu Funes pela primeira vez: «Me dijo que el muchacho del callejón era un tal Ireneo Funes, mentado por algunas rarezas como la de no darse con nadie y la de saber siempre la hora, como un reloj» (Borges, 1994, p. 117). Estabelece-se aqui, por meio da inserção do comentário feito pelo primo do narrador, a dimensão cronométrica de Funes. Mais à frente no conto, outra personagem importante na construção do relato do narrador é a mãe de Funes, que assim recebe o visitante do filho: «En el decente rancho, la madre de Funes me recibió. Me dijo que Ireneo estaba en la pieza del fondo y que no me extrañara encontrarla a escuras, porque Ireneo sabía pasarse las horas muertas sin encender la vela» (Borges, 1994, p. 117). Dentro dessa perspectiva, é possível relacionar o modo como a memória se constitui ao modo como a própria identidade é construída. Esta, segundo o pensamento de Mikhail Baktin, é dialógica e se dá a partir da alteridade, por meio daquilo que difere que é outro (alter): «A alteridade define o ser humano, pois o outro (grifo da autora) é imprescindível para a sua concepção [...]» (Barros, 2005, p. 28).

Em síntese, a seção que agora conclui buscou justificar o modo como a memória se insere no contexto do conto de Borges e de como a afetividade e as relações com os grupos ou pessoas envolvidas nas tramas desta memória do narrador ajudam a tecer a sua narratividade.

3. Memória e ficção, o corpo que lembra

Antes de mostrar alguns exemplos da prodigiosa memória que justifica o epíteto contido no título do conto aqui estudado, é preciso pontuar que o narrador tem consciência da falibilidade de sua memória, visto que afirma:

No trataré de reproducir sus palabras, irrecuperables ahora. Prefiero resumir con veracidad las muchas cosas que me dijo Ireneo. El estilo es remoto y débil; yo sé que sacrifico la eficacia de mi relato; que mis lectores se imaginen los entrecortados períodos que me abrumaron esa noche (Borges, 1994, p. 120).

O modo como se dirige aos leitores de seu texto, é à maneira de um convite à imaginação. E é retomada aqui à frase de Manoel de Barros: «Tudo o que não invento é falso». O narrador de Borges desiste, de antemão e declaradamente, de utilizar o discurso direto para representar, no seu relato, a conversar que tivera com Funes na noite em que se encontraram no escuro quarto dos fundos onde o jovem uruguaio passava seus dias. Diante da impossibilidade de fazer voltar palavra por palavra do que foi dito, aquele que conta a história opta por narrar utilizando sua voz, falha e imprecisa, em vez de simular um discurso direto que buscasse trazer a voz fantasmagórica de Funes de volta a vida, pois, como já foi dito anteriormente, o narrador fala de um morto.

Outro ponto que surge na citação acima é o do dualismo entre realidade e ficção, e que se assemelha a outro, entre idealismo e realismo. A esse respeito, Henri Bergson (1999), na introdução de seu livro Matéria e Memória, publicado pela primeira vez em 1896, afirmou que não se pode reduzir o mundo nem à matéria em si, às coisas em si mesmas, nem à representação, ao modo como são percebidos. Desse modo, seu estudo se dedicou a investigar qual a relação entre essas duas coisas, o corpo, que percebe, e a matéria, que é percebida. Em determinado momento de sua obra a memória é assim descrita:

Em suma, a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas [...] (Bergson, 1999, p. 31).

A memória aparece aqui como um dispositivo indispensável à percepção, posto que realiza uma operação delicada entre a consciência individual de um objeto e sua materialidade no mundo. Colocando de outra forma, e adicionado à discussão o ponto de vista de Stuart Hall (2003), se diz que é a linguagem, e, portanto também a memória que por ela é construída, o modo pelo qual dá sentido das coisas no mundo, uma vez que «As relações sociais têm que ser “representadas na fala e na linguagem” para adquirir significado» (Hall, 2003, p. 161).

É importante pontuar que a adoção dessa postura frente ao dualismo ficção e realidade não deve jogar, mais uma vez, a um perspectivismo último, ou seja, a percepção do objeto, embora o componha, não é capaz de, por si modificá-lo. Assim, o fato a percepção própria não ser capaz de compreender a presença de uma porta de vidro não impedirá que os leitores se choquem contra ela ao tentar ultrapassá-la. De qualquer maneira, dirigindo-se agora ao que se entende por ficção, utiliza-se aqui conhecido trecho do já clássico texto O direito à literatura, de Antonio Candido, no qual o autor, ao tocar nesse assunto, disse:

Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. [...] Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance (Candido, 2011, pp. 176-177).

Dessa maneira, a ficção é compreendida como um componente da realidade, tendo em vista que esta é percebida também de modo ficcional, e esse modo de perceber impele a agir de determinada maneira porque, recorre-se novamente à Candido, a arte, como a memória e a percepção:

[...] é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra [ou consciência neste caso] em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais (Candido, 2006, p. 30).

Por isso, tomando emprestada a fala do autor, pretende-se aqui demonstrar como o narrador de Borges exemplifica este jogo, não excludente, entre memória e imaginação, entre o que é percebido e o que é recordado, tendo em vista que «Há uma relação entre a leitura e o real porque há uma relação entre a leitura e os sonhos [...]» (Piglia, 1985, p. 7). Funes, em sua incapacidade de esquecer, torna-se incapaz também de imaginar, de sonhar, de dormir: «Le era muy difícil dormir. Dormir es distraerse del mundo; [...]» (Borges, 1994, p. 123). Essa inabilidade para esquecer converte-se, mais à frente, em uma inabilidade de pensamento, visto que se pensa por meio da linguagem e enunciar é esquecer.

Ainda nesse contexto, é importante considerar o fator da corporeidade, visto que, como já pensara Henri Bergson:

De fato, observo que a dimensão, a forma, a própria cor dos objetos exteriores se modificam conforme meu corpo se aproxima ou se afasta deles, que a força dos odores, a intensidade dos sons aumentam e diminuem com a distância, enfim, que essa própria distância representa sobretudo a medida na qual os corpos circundantes são assegurados, de algum modo, contra a ação imediata de meu corpo. [...] Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles (Bergson, 1999, p. 15).

Como se viu, o corpo desempenha um importante papel no modo como se percebe as coisas. E é esse mesmo corpo que irá depois narrar para os demais a sua experiência e a sua memória de determinada percepção. Não se pode esqueçer que a conversa que o narrador tem com Funes ocorre em meio à escuridão: «Me parece que no le vi la cara hasta el alba; creo rememorar el ascua momentánea del cigarrillo. La pieza olía vagamente a humedad» (Borges, 1994, p 119). Como o trecho demonstra, o corpo do narrador sente a umidade do quarto, lembra-se da faísca do isqueiro e rememora o encontro de forma quase fantasmagórica, certamente afetado pela lembrança de uma voz incorpórea. Funes converte-se em som para somente ao amanhecer ganhar um rosto: «Entonces vi la cara de la voz que toda la noche había hablado. Ireneo tenía diecinueve años; había nacido en 1868; me pareció monumental como el bronze, más antiguo que Egipto, anterior a las profecías y a las pirámides» (Borges, 1994, p 124). Com o amanhecer o sonho se desvanece, os dados biográficos de Funes são registrados: dezenove anos, data de nascimento. No entanto, o narrador, já afetado, torna-se incapaz de ver a sua frente um garoto com menos de duas décadas de vida. Funes converte-se em bronze.

Retomando o exemplo que deu origem a esta seção, tem-se um narrador que alerta, desde o início, da imprecisão de seu relato, visto que ele jamais poderá recordar as exatas palavras ditas no seu encontro com Funes. Compara-se este procedimento ao de uma tradução nos termos de Eduardo Viveiros de Castro, para quem:

Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro, ao presumir uma univocalidade originária e uma redundância última - uma semelhança essencial-entre o que ele e nós «estávamos dizendo» (Viveiros de Castro, 2005, p. 153).

Embora fale do ponto de vista da comparação entre sistemas culturais, a ideia do antropólogo parece adequar-se ao procedimento que o narrador de Borges adota. Dessa forma, a narração do encontro com Funes é uma tradução do passado, e exatamente por isso, como já foi lido acima, não poderá escapar ao equívoco, que é aqui tomado não como erro, mas como a própria maneira, a única, pela qual é possível acessar, no presente, a memória desse encontro. A esse respeito, recorre-se a um exemplo extraído do conto O imortal, no qual Borges apresentou um manuscrito que narra a jornada de uma personagem em busca do lugar onde viveriam pessoas imortais. Após revisar seu texto, a personagem percebe algo de falso no que escreveu: «Ello es obra, tal vez, del abuso de rasgos circunstanciales, procedimiento que aprendí en los poetas y que todo lo contamina de falsedad, ya que esos rasgos pueden abundar en los hechos, pero no en su memoria» (Borges, 1994, p. 149). A memória, portanto, opera por meio do esquecimento, sendo este não um empecilho, mas a própria condição de possibilidade da enunciação de uma memória. Isto posto, dedico a seção seguinte à discussão do conceito de excedente de visão e à sua aplicação na análise da memória de Funes.

4. O excedente de visão em Funes

Como já foi dito anteriormente, procede-se agora aos exemplos da prodigiosa memória de Funes. Começará com a narração do acidente que sofreu:

Me dijo que antes de esa tarde lluviosa en que lo volteó el azulejo, él había sido lo que son todos los cristianos: un ciego, un sordo, un abombado, un desmemoriado. [...] Diecinueve años había vivido como quien sueña: miraba sin ver, oía sin oír, se olvidaba de todo, de casi todo. Al caer, perdió el conocimiento; cuando lo recobró, el presente era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memorias más antiguas y más triviales. Poco después averiguó que estaba tullido. El hecho apenas le interesó. Razonó (sintió) que la inmovilidad era un precio mínimo. Ahora su percepción y su memoria eran infalibles […]

Dos o tres veces había reconstruido un día entero; no había durado nunca, pero cada reconstrucción había requerido un día entero. Me dijo: Más recuerdos tengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo. […] Y también, hacia el alba: Mi memoria, señor, es como vaciadero de basuras [...]

En efecto, Funes no sólo recordaba cada hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces que la había percibido o imaginado (Borges, 1994, pp. 120-122)

Conta-se, por ora, apenas com os exemplos acima. A partir deles é possível ver concretizada em Funes a utopia já há muito sonhada: a da memória total, descrita assim por Paul Ricoeur (2007, p. 40) «Uma ambição, uma pretensão está vinculada à memória: a de ser fiel ao passado». Ora, ao descrever a si próprio como um cego, um surdo, um desmemoriado, Funes demonstra compartilhar dessa mesma visão à respeito da memória. O esquecimento é por ele entendido como falha. No entanto, chamo atenção para o trecho do conto em que se lê: «Mi memoria, señor, es como vaciadero de basuras» (Borges, 1994, p. 121). Aqui, e em outros momentos do conto, pode-se perceber um tom de lamento que acompanha essa incapacidade de esquecer. Recomeça ao tema do esquecimento adiante, mas por ora é preciso questionar essa memória infalível de Funes. Para isso recorrer-se-á Mikhail Bakhtin e à ideia de excedente de visão.

Katerina Clark e Michael Houquist (2008) esmiúçam em seu texto A arquitetônica da respondibilidade um dos conceitos chave no pensamento de Bakhtin, o de respondibilidade, ou seja, o de que cada um, tendo em vista o lugar único que ocupa na existência, precisa ser responsável/respondível por cada ação que desempenha. Para tornar mais explícito esse argumento é necessário dizer que, para Bakhtin, o self, ou seja, aquilo que designa «eu», é incapaz de existir senão na relação com tudo aquilo que «não sou eu». De modo grosseiro, se podería dizer que «eu» só posso ser eu porque existem outros que não posso chamar de «eu». Daí a importância da dialogia, conceito também fundamental na obra do filósofo russo. Assumindo essa perspectiva, que se assemelha à de Bergson, se chegará à conclusão de que cada um ocupa um lugar único no tempo e no espaço, e que de onde se está se podem ver coisas que são impossíveis de serem vistas por qualquer outro. Nas palavras e Clark e Holquist:

Enquanto eu estou aqui, você tem que estar ali; eu posso estar com você neste momento, porém a situação parecerá diferente a partir dos lugares únicos que eu e você ocupamos nela. Nós dois estamos juntos e, no entanto, à parte. Podemos trocar fisicamente de lugar. Mas entre o momento em que você ocupa o lugar onde eu estava e eu ocupo a posição onde você estava, terá decorrido algum tempo, ainda que seja uma fração de segundo. E como a situação anterior não pode ser repetida, nós nunca vemos ou conhecemos as mesmas coisas (Clark & Holquist, 2008, p. 94).

O excedente de visão seria, portanto, aquilo que somente alguém, do próprio ponto de vista é capaz de ver, e que é negado ao outro, que ocupa outro lugar na existência, e que é cego quanto a isso que uma pessoa, do lugar onde está, vê. Desse modo, pode-se acrescentar ainda que «Você pode ver coisas às minhas costas, como uma pintura ou nuvens que passam, mas estão ocultas à minha visão, enquanto eu posso ver coisas das quais você, de sua localização, não tem visão [...]» (Clark & Holquist, 2008, p. 95). Aplicando esse conceito ao conto de Borges, afirma-se que Funes não possui, como declara uma memória, infalível, pois lhe escapa o excedente de visão do outro. Falta àquilo que é rememorado perfeitamente por ele o ponto de vista inacessível do outro. Funes pode ser capaz de memorizar cada detalhe de cada vinco no rosto daquele com quem fala, mas enquanto enxerga isso, escapa-lhe o bater de asas de uma borboleta às suas costas e que apenas os olhos que estão à sua frente puderam ver. A única possibilidade de acesso a esse excedente, ainda que de modo parcial e precário, seria por meio da narração do outro. Se não puder ver aquilo que está às suas costas, se não se pode, consequentemente memorizá-lo à la Funes, aquele que está à frente de si mesmo, pode narrá-lo para si mesmo. Nesse procedimento a narração não supre o excedente, apenas ficcional o invisível.

Chega-se agora ao último ponto, o do esquecimento. Serão oferecidos mais alguns trechos do conto:

[Funes], no lo olvidemos, era casi incapaz de ideas generales, platónicas. No sólo le costaba comprender que el símbolo genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres y cuarto (visto de frente) [...]

Era el solitario y lúcido espectador de un mundo multiforme, instantáneo y casi intolerablemente preciso [...]

Había aprendido sin esfuerzo el inglés, el francés, el portugués, el latín. Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos [...]

Pensé que cada una de mis palabras (que cada uno de mis gestos) perduraría en su implacable memoria; me entorpeció el temor de multiplicar ademanes inútiles (Borges, 1994, pp. 123-124).

Nos trechos acima é possível perceber que a agonia de Funes resulta não da capacidade de rememorar tudo com precisão, mas, sim, do fato de não ser capaz de esquecer. «Pensar es olvidar[...]», este é o ponto. É preciso esquecer para significar, seja para silenciar, seja para «[...] escovar a história a contrapelo», nos termos de Walter Benjamin (1978, p. 225). No trecho final o narrador descreve sua sensação de desconforto diante da imagem agônica de Funes e utiliza a palavra gesto. Ainda que tema aumentar o acervo mnemônico e inútil de seus interlocutores, é apenas por seu gesto de leitura, conforme Agamben (2007), que o narrador poderá comunicar a história de Funes. Se, de acordo com Diana Luz Pessoa de Barros (2005, p. 26), «[...] o homem não só é conhecido através dos textos, como se constrói enquanto objeto de estudos nos textos ou por meio deles [...]», então é por meio dessa escrita, marcada pelo esquecimento, que é dado a conhecer Funes, visto que:

O sujeito [...] é o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto -se pôs- em jogo. Isso porque também a escritura [...] é um dispositivo, e a história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram - antes de qualquer outro, a linguagem (Agamben, 2007, p. 63).

Se Funes é incapaz de esquecer, o modo pelo qual sua história é contada está na base mesmo desse esquecimento discursivo, de cuja memória realiza uma tradução por meio do equívoco necessário à toda enunciação. Ainda sobre a incapacidade de esquecer, em seu artigo «Tiempo, identidad, memoria y sueño en Borges», Ana Maria Barrenechea destacou o trecho no prólogo do livro Ficções em que o autor argentino define Funes como uma metáfora da insônia:

Por su incapacidad para las ideas platónicas y las generalizaciones del pensamiento, con su grotesco sistema de numeración de infinitos símbolos particulares (a lo que se agrega la comicidad de los nombres elegidos y la motivación ridículamente localista que lo impulsa), o con el insensato catálogo de recuerdos, su creador aplaca burlonamente el entusiasmo que podría despertar el haber alcanzado una de las posibles intuiciones angélicas del universo (Barrenechea, 2000, p. 932).

Funes concretiza a utopia da memória fiel ao passado, como descrita por Ricoeur (2007), no entanto, seu feito torna o mundo perturbadoramente preciso: «Mis sueños son como la vigília de ustedes» (Borges, 1994, p. 121). Borges dirá em seu prólogo a uma obra de Lewis Carrol: «[...] o sonho é inventor de poesia [...]» (Borges, 1985, p. 126). Desse modo, assim como o insone é incapaz de se entregar aos sonhos, à personagem do conto é negado o esquecimento, esse duplo que compõe e viabiliza a memória.

5. Conclusões

Na análise do texto de Borges Funes, o memorioso foi possível encontrar traços que retomam o pensamento de Halbwachs (1990) a respeito de uma memória que é construída socialmente na fronteira entre o sujeito que lembra, e que é afetado por essa memória (Le Breton, 2009), e aquilo que é outro na construção dessas recordações. O narrador de Borges, tal como demonstrado, está consciente da falibilidade de sua recordação ao escrever um relato encomendado sobre um homem morto. A esse respeito, utilizando a leitura de Agamben (2007), foi possível demonstrar que, embora se tenha conhecimento da vida de Funes pela voz do narrador, a comunicação dessa vida se dá por intermédio da expressão de uma falta, ou seja, de tudo aquilo que Funes é, ou poderia ser, e que escapa às linhas que o narrador tece.

A respeito desse narrador, recorda-se que ele é, também, um corpo, elemento importante para compreender a construção dessa memória, tendo em vista as dualidades entre consciência e matéria e ficção e realidade às qual durante o estudo foi feita referência. Como se pôde perceber, o caminho teórico que foi seguido aponta, tomando como base Bergson (1999) e, mais tarde, Hall (2003) e Bakthin, no texto de Clark e Holquist (2008), um entrelaçamento da realidade com a ficção, compreendida de acordo com Candido (2011; 2006). Desse modo, a memória do narrador é também, dentro do contexto do conto, em certa medida ficcionada, o que se comprova no convite que faz ao leitor para que imagine a conversa que tivera com Funes. Nesse sentido, a memória e a imaginação se complementam para construir aquilo que o narrador conta por meio de uma tradução do passado realizada por via do equívoco inerente a tal procedimento.

Como último ponto, verificou-se que memória da personagem Funes não se constitui, de fato, infalível, visto que falta à ela o acesso ao olhar do outro. Tomando o conceito de excedente de visão, segundo o qual meu corpo possui uma perspectiva única no tempo e no espaço, à memória de Funes escaparia essa alteridade, essa capacidade ver, e de memorizar, aquilo que está às suas costas, em seu ponto cego. Funes, na verdade, ao ganhar a capacidade de lembrar-se de tudo, perde a necessária habilidade de esquecer. Como o próprio narrador do conto afirma, talvez falte a Funes a capacidade de pensar, uma vez que pensar é esquecer, afinal, como lembrou Ricardo Piglia (2006, p. 3) em O último leitor: «Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem a melhor visão lê melhor».

Chega-se ao fim afirmando que o estudo aqui realizado pôs em questão o papel da memória em sua relação com a literatura e a própria ficção. A partir disso foi possível pensar o papel da linguagem na constituição dessas memórias e esquecimentos presentes na enunciação do texto literário. Concordando com Agamben (2007), se diz que este estudo se insere também agora no esquecimento ou, antes, na expressão possível de algo que está condenado a enunciar-se em seu próprio apagamento.

Referências bibliográficas

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2O autor dá a essas exceções o título de fundadores de discursividade; em resumo, autores que fundaram ou inauguraram todo um novo campo de estudo. Seria exemplo disso Sigmund Freud, muito mais do que apenas um autor, o fundador da psicanálise.

Recebido: 15 de Agosto de 2019; Aceito: 25 de Novembro de 2019

*Autor para correspondência: Leandro De Bona Dias. E-mail: debona12@hotmail.com

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