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Lingüística y Literatura

Print version ISSN 0120-5587On-line version ISSN 2422-3174

Linguist.lit.  no.80 Medellìn July/Dec. 2021  Epub Dec 07, 2022

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n80a08 

Estudios literarios

OS REGIMES DE SENTIDO E INTERAÇÃO EM O CASARÃO DA RUA DO ROSÁRIO DE MENALTON BRAFF*

REGIMES OF MEANING AND INTERACTION IN O CASARÃO DA RUA DO ROSÁRIO, BY MENALTON BRAFF

Flavia Karla Ribeiro Santos1  * 

Renata Cristina Duarte2 

1Universidade Estadual Paulista (Brasil) flaviakarlar@hotmail.com

2Universidade de São Paulo (Brasil) duarte.renatac@gmail.com


Resumo:

Examinamos, neste trabalho, utilizando o referencial teórico-metodológico da semiótica francesa, como valores conservadores e progressistas emergem no romance O Casarão da Rua do Rosário, de Menalton Braff, conforme os actantes interagem entre si e com o mundo construído pela linguagem literária. Focalizamos a experiência sensível suscitada pelo fazer opressor de uma matriarca conservadora, com rígidos valores morais e religiosos, e pelo regime político em vigor no Brasil entre 1964 e 1985. A análise desvela a interação conflituosa entre a matriarca e sua irmã caçula, que, junto aos seus filhos, rejeita o conservadorismo figurativizado pelo próprio casarão onde vivem.

Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea; Menalton Braff; opressão política e social; regimes de sentido e interação; semiótica francesa

Abstract:

We examine how conservative and progressive values emerge in Menalton Braff’s O Casarão da Rua do Rosário as the characters interact with each other and with the world built by literary language ,using the theoretical-methodological reference of French semiotics ,. We focus on the feelings resulted from the oppression of a conservative matriarch with rigid moral and religious values and by the political regime in force in Brazil from 1964 until 1985. The analysis reveals the conflictive interaction between the matriarch and her younger sister, who, together with her children, rejects the conservative figured by the house they live.

Key words: contemporary Brazilian literature; Menalton Braff; political and social oppression; regimes of meaning and interaction; French semiotics

1. Interações e práticas sociais em um corpus literário

A semiótica francesa surgiu durante os anos 1960, apresentando-se como um projeto de construção teórica que pretende esclarecer «as condições da apreensão e da produção do sentido» (Greimas & Courtés, 2011, p. 455), assimilado por meio das formas linguísticas manifestadas nos discursos. Movida sempre pela grandiosidade do próprio projeto, a teoria partiu da tensão teórica de um modelo fundador e expandiu-se em um movimento interno de aprimoramento permanente. Assim, a semiótica passou a adotar, como objetos de estudo, discursos, comportamentos, objetos, práticas e visões de mundo a fim de entender e explicar o modo como, na diversidade das culturas, o sentido da vida se constrói. É com esse propósito que Eric Landowski funda a sociossemiótica, nos anos 1970, como um desdobramento da semiótica greimasiana que se compromete a «edificar com urgência uma conceptualização semiótica do “social”» (Landowski, 2017, p. 175).

Tudo isso ocorre simultaneamente à cessão de espaço, por parte da etnoliteratura, corpus predominante no início do projeto semiótico, para outras manifestações discursivas, embora o objeto literário permaneça, até hoje, interessante aos semioticistas. Dizemos isso, considerando a reflexão tecida por Landowski (1966) sobre uma nova forma de abordar o texto literário, que, assim como as demais manifestações discursivas, são construções sociais, cujo sentido é construído na relação dos actantes entre eles e com o mundo que os rodeia. Dessa interação surgem as «situações literárias», percebidas em um jogo enunciativo que medeia confrontação e negociação entre enunciador e enunciatário.

É nesse sentido que propomos analisar, neste artigo, o romance semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2013, O casarão da rua do Rosário, do escritor brasileiro contemporâneo Menalton Braff1; obra que se ocupa das interações conflituosas entre os moradores de um tradicional casarão. Esses conflitos ocorrem conforme os estilos de vida daqueles sujeitos se confundem com as suas preferências políticas em uma narrativa que compreende o período da Segunda Guerra Mundial e o movimento das «Diretas Já», quando se encerra a ditadura militar no Brasil.

Tendo em vista o jogo enunciativo e a sensibilização suscitada no interior do texto ora apresentado, à medida que ideias sociais e políticas entram em confronto, bem como a forma como essa sensibilização transcende o enunciado enunciado, impactando o enunciatário-leitor, verificamos, neste trabalho, como os regimes de interação propiciam a construção do sentido sobre os comportamentos humanos vividos, tanto no nível do enunciado, quanto na relação entre enunciador e enunciatário do romance braffiano. Antes disso, apresentamos, brevemente, os regimes de interação.

1.1. Os quatro modelos landowskianos de narratividade

A metodologia sociossemiótica ganha contornos mais delineados em 2005, quando Landowski publica As interações arriscadas e propõe a existência de quatro modelos de narratividade e não um, aquele do percurso narrativo canônico. Em outros termos, nessa obra o trabalho landowskiano assume a forma de um modelo teórico particular a uma semiótica geral: o dos regimes de sentido e interação. Tal proposta apresenta-se como uma base teórica que possibilita a reflexão sobre a maneira como processos socioculturais e comunicacionais pertencentes a determinados espaços geográficos e tempos históricos são configurados e, da mesma forma, como se transformam, seja desaparecendo, seja evoluindo (Demuru, 2019).

Assim, os quatro modelos de narratividade propostos pelo semioticista francês articulam-se elipticamente para construírem o sentido à medida que a experiência percebida escapa do tédio e da insignificância instaurados pela rotina e da dor do excesso que surge na descontinuidade (Greimas, 2002), tornado possível ao sujeito transcendê- los - o enfado e a dor -, graças aos diferentes graus de risco assumidos na interação. Dessa perspectiva, enquanto os regimes de interação pertencentes à constelação da prudência - obedientes à lógica da junção, ou seja, do «fazer-fazer», na semiótica Standard - assumem riscos mínimos, aqueles que compõem a constelação da aventura - regidos pela lógica da união, voltada à experiência sensível e ao «fazer-sentir», estudados após Da imperfeição -, como exploram o desconhecido, operam com maior margem de risco (Landowski, 2014a).

Destarte, o regime da programação, assumindo o risco mínimo da segurança, tem a regularidade e a previsibilidade como fios condutores das ações dos sujeitos, que interagem seguindo «à risca percursos e programas narrativos preestabelecidos por algum enunciador-destinador [...] ou historicamente, socialmente e culturalmente sedimentados, dos quais, muitas vezes, esquece-se a origem» (Demuru, 2019, p. 91) como ritos, hábitos, etc. Por conta de seu caráter previsível, o sentido, nesse regime, está predisposto à insignificância. Ele tem como contrário o regime do acidente ou assentimento, que só existe no risco puro, por isso, insensato, visto que ao irromper provoca atordoamento e inércia. Em razão da imprevisibilidade que assume, sob esse regime, o sujeito aceita se render à sorte, que é incerta e torna o acidente - o risco da ausência de sentido - possível de acontecer (Landowski, 2014b).

Assim como no esquema narrativo canônico, o regime da manipulação assume um risco limitado, na medida em que se funda na intencionalidade, ou seja, no fato do destinador ter a intenção de fazer com que o destinatário queira ou deva realizar dada performance. Contudo, a manipulação só se efetiva se houver aceite do contrato proposto pelo destinador por parte do destinatário e este, assumindo o papel actancial de sujeito, adquira competências modais do poder ou do saber-fazer para executar um programa narrativo de busca (Demuru, 2019).

Na interação subcontrária a esse regime, a do ajustamento, a sensibilidade conduz a construção do sentido. Nesse regime, não há busca por um objeto-valor, há apenas o sentir, o «fazer-sentir», portanto, uma reciprocidade entre os actantes, que pode acontecer por meio: i) do contágio - dois ou mais sujeitos sentem reciprocamente, ou seja, são contaminados pelo sentir um do outro, de tal forma que não se sabe quem provocou o sentir primeiro - ou ii) de relações de poder - um sujeito situado em posição de poder diferente da do outro resiste à tentativa deste de dominá-lo por intermédio da programação e da manipulação a partir de ajustamentos progressivos (Demuru, 2019, p. 93).

Da organização sintáxica dos regimes de interação, dotados de «valores existenciais», surgem os estilos de vida (Demuru, 2019), que correspondem à forma como o sentido da vida é construído pelos sujeitos semióticos. Dito de outro modo, as regularidades observadas nas formas de viver a vida, de dar sentido à vida vivida dentro da estrutura dos regimes de interação, constituem princípios de coerência que são dinâmicos, pois, em cada regime de interação, um estilo de vida diferente pode ser identificado, assim como novos estilos de vida podem surgir na transição de um regime para outro (Landowski, 2012).

Em vista de tudo isso, alargando o alcance do modelo narrativo clássico e, concomitantemente, situando o conjunto da problemática no ponto de encontro entre inteligível e sensível, o modelo abrange o conjunto das dimensões significantes que entram na experiência vivida. Complementando o percurso gerativo de sentido, os regimes de sentido e interação oferecem uma perspectiva metodológica capaz de abordar a construção do sentido «em ato», assim como os arranjos de valores existenciais, organizados em estilos de vida, produzem significação.

Por fim, essa abordagem apresenta-se como uma sintaxe geral que articula as relações entre as sintaxes particulares dos diferentes regimes sócio-interacionais através dos quais o mundo é continuamente ressignificado. Logo, a proposta de uma análise fundada nas situações concebe uma semiótica da experiência segundo a qual não apenas as obras de arte nos fazem «sentir», mas também os objetos do mundo natural, por meio da interação estésica.

2. O estilo de vida conservador em O casarão da rua do Rosário

A obra em análise divide-se em cinco capítulos, cada qual protagonizado por um ator vinculado em alguma medida ao espaço do casarão habitado pela família Gouveia de Guimarães. Destaca-se na narrativa a figura de Benvinda, a matriarca da família, alguém que não admite comportamentos que, no seu entendimento, agridam os rituais católicos, o direitismo e as normas socioculturais que governam as boas ou as más condutas, dentro e fora do seio familiar. Em vários momentos, no entanto, o estilo de vida conservador de Benvinda é colocado à prova, fazendo emergir experiências sensíveis que resultam no estilo de vida revolucionário de Isaura, a irmã caçula, e de seus filhos. Logo, como se verá na análise, Benvinda estabelece relações e modos de existir relativos à prudente lógica da manipulação-programação, ao passo que Isaura adere à lógica mais aventurosa do ajustamento-acidente.

A imponência da tradição e do conservadorismo aparece figurativizada já na arquitetura do casarão dos Gouveia de Guimarães, «Parados, nós quatro de mãos dadas, contemplávamos a fachada larga, a frontaria com o peso do estilo colonial, mas decorada com figuras clássicas e ramos entrelaçados de gosto barroco» (Braff, 2012, p. 13, grifos nossos), e ressoa, principalmente, na figura de Benvinda, a «primogênita, a guardiã da fé e das tradições, a depositária dos tesouros familiares, tanto os morais quanto os pecuniários» (Braff, 2012, p. 13).

Benvinda, enquanto actante do nível narrativo, assume o papel de destinador - «Sou eu quem zela pelo nome da família e esta casa que a abriga é o símbolo de nosso nome» (Braff, 2012, p. 27) -, e, por isso, Isaura precisa da permissão da irmã mais velha, no exercício do papel temático de matriarca, quando decide retornar ao casarão, trazendo consigo os filhos, após a prisão do marido ocorrida nos primeiros anos da ditadura militar no Brasil. A permissão é dada, mas com a condição de que Isaura não se esqueça de que a «casa tem um nome e uma tradição por que zelar», tem «regras que não se admite [que] sejam desrespeitadas» (Braff, 2012, pp. 16-17).

Ao mesmo tempo em que Benvinda é a responsável por manter a ordem daquele espaço, também é responsável por resguardar o tradicionalismo que envolve o sobrenome Gouveia de Guimarães - «Somos filhos de família tradicional, ela afirmava, nossos antepassados foram nobres portugueses que vieram desbravar este país» (Braff, 2012, p. 18, grifos nossos). Seu estilo de vida apoia-se no conservadorismo político arraigado no sobrenome de seus ancestrais, sinônimo do poder e da riqueza já em decadência, pois obtidos nos tempos do Império, e é sustentado pela rigidez que marca o período histórico e político em que se passa a narrativa: «O casarão dos Gouveia de Guimarães era regido por normas rígidas, […] Tia Benvinda […] levantou-se […] Imediatamente todos se levantaram e abandonaram a mesa. Coisa muito militar, eu pensei, mas coerente com a época em que vivemos» (Braff, 2012, p. 45, grifos nossos). Portanto, tal modo de ser, severo e rigoroso, revela-se nas práticas diárias da família, como o modo de sentar-se e portar-se à mesa, conforme hábitos antigos.

O conservantismo de Benvinda é reiterado ainda por uma isotopia temática de valores morais e religiosos. Ela impõe aos demais residentes do casarão não somente a obrigatoriedade de assistir à missa todos os domingos e de agir de acordo com as leis sacras, mas ainda um ritual diário, que consiste na presença de todos na sala, todos os dias às três horas para ouvir um programa católico no rádio, chamado a Benção das Três.

Observa-se, assim, como Benvinda assume um estilo de comportamento conduzido pela programação, um regime de segurança perfeita, que não aceita acidentes nem desvios de qualquer tipo. Esse regime de sentido é orientado pela regularidade, pela continuidade e pela manutenção das condutas. Logo, Benvinda é a melhor representante do regime da programação: ela deve guardar os princípios que construíram o nome da família, bem como tem a função de manter a tradição, os valores morais, espirituais, sociais e políticos que sustentam o nome Gouveia de Guimarães.

Por essa razão, ela rege o comportamento de todos ao seu redor, estabelecendo práticas rotineiras como o modo de se portar à mesa, a obrigatoriedade de assistir à missa e participar da Benção das Três. Benvinda assume, assim, o papel de destinador e, baseada na constância dos demais e na previsibilidade de seus comportamentos, sobretudo das irmãs, impõe todos esses hábitos e prescrições, seguidos, quase sempre, como veremos, rigorosamente. À vista disso, a regularidade e a continuidade que fundam o comportamento programado de Benvinda produzem, ao mesmo tempo, esferas de ação bem definidas e identidades constantes, de modo que «cada um desempenha seu papel, segue seu programa ou executa seu plano de atividade por sua própria conta e em seu lugar, independentemente do que possam estar fazendo os outros agentes que o rodeiam» (Landowski, 2014a, p. 28). Destarte, cabe às moradoras mais velhas do casarão, sobretudo, viver segundo a regularidade de comportamentos programados para que o sobrenome Gouveia de Guimarães se mantenha de geração a geração: «Muito ciosas, essas tias a quem competia carregar as duras e pesadas pedras daquela tradição de uma família de puro-sangue» (Braff, 2012, p. 24, grifos nossos).

Além disso, vale ressaltar que, a programação exercida por Benvinda é fundada sobre regularidades de comportamentos de ordem social e simbólica, ou seja, trata-se de uma estabilidade cujo princípio deriva da coerção social. Isto posto, é compreensível que haja sentido por trás de todos esses comportamentos estereotipados e dessas práticas cotidianas enquadradas pelo uso, apresentados como se fossem causalmente determinados (Landowski, 2014a, pp. 37-38). Desse modo, considerar o valor simbólico de comportamentos que procedem do hábito, do ritual e de outras formas de regularidade que escapam à ordem da causalidade equivale a constatar que os agentes desempenham suas condutas programadas movidos por motivações pessoais. Nesse caso, as regularidades de comportamento resultam de condicionamentos socioculturais, apreensíveis do excerto:

Lá da cabeceira, [...] tia Benvinda regia o pão e a manteiga, ordenava com energia, Pega mais. A mesa, no casarão dos Gouveia de Guimarães, deveria ser, por força desse nome, sempre farta. Desde os fundadores isso era uma questão fechada. [...] E uma tradição, [...] quando orientada para o bem, não se pode romper sem sofrer duras consequências. [...] Se havia cuidados com gastos, era porque os rendimentos andavam escassos. Mesmo assim, à mesa, lugar sagrado, mantinham-se os hábitos antigos. (Braff, 2012, pp. 18-19, grifos nossos).

Nesse sentido, os comportamentos de Benvinda e as práticas que ela impõe aos demais, apesar de seu aparente automatismo, são motivados pelo querer manter o nome da família e o status perante a sociedade, como reiteram as figuras «por força do nome», «questão de fachada», «a cidade toda haveria de dizer», «tradição». Esse conjunto de comportamentos humanos, em certa medida, depende de uma motivação e de uma intencionalidade, evidenciadas pela demonstração, por parte das irmãs solteironas, de uma motivação consensual, que se limita a continuar a realização dos programas instituídos, no cumprimento das práticas estabelecidas, já que é responsabilidade delas continuar as tradições do nome Gouveia de Guimarães.

Por conseguinte, Benvinda assume, na narrativa, o papel actancial de destinador-manipulador, visto que o sujeito da manipulação está inclinado a tentar programar os comportamentos do destinatário-sujeito. Assim, ela executa operações cujo princípio consiste em empreender procedimentos persuasivos, com o objetivo de fazer com que o sujeito manipulado não deixe de se conformar ao seu querer estratégico. Benvinda opera por tentação, quando propõe um objeto de valor positivo como recompensa (doces caseiros), visando levar o destinatário, no caso, o sobrinho Rodolfo, a querer-fazer com que ele persista na manutenção de valores compatíveis com os dela: «cravou um garfo nas carnes de um figo verde [...]. Com a testa enrugada, [...] ela depôs mais dois figos no pote [...], derramou a calda brilhante e lenta, por cima dos figos. Então entregou o pote ao sobrinho Rodolfo» (Braff, 2012, p. 44). Vale destacar que Rodolfo é o único que pode comer os doces oferecidos por Benvinda, aos demais é permitido apenas observar toda a cena, comendo uma fatia de bolo.

Benvinda opera, igualmente, por intimidação, ao ameaçar Isaura, por exemplo, com a intenção de levá- la a um dever-fazer. Isso ocorre, entre outras situações, quando a irmã caçula chega ao casarão em um carro, acompanhada de um homem, no caso, um advogado que a ajudava a procurar o marido, e sua irmã mais velha a repreende, ameaçando expulsar a mãe e seus filhos, caso volte a chegar no casarão acompanhada de um homem desconhecido.

Dessa forma, todo o trabalho persuasivo do destinador-manipulador Benvinda, seja na forma de tentação ou de intimidação, visa ao acordo entre as vontades dos destinatários. Isso em razão de que, enquanto sujeito provido de competência modal, o destinatário só se deixa manipular considerando suas próprias motivações e razões. Com base nisso, Rodolfo mantém-se conservador e, assim, continua a ser premiado, e Isaura comporta-se como as irmãs somente em duas situações: durante a infância e a juventude, pois, dependente das irmãs, não tem opção senão obedecer-lhes; no exercício dos papéis temáticos de mãe e de viúva e sem condições de sustentar os filhos, precisa aceitar o contrato para viver no casarão com eles. Isso, pelo menos até conscientizar-se de que é tão proprietária do casarão quanto os demais irmãos e irmãs e instalar um contraprograma da família Fortunatti, no qual Palmiro passa a se sentir dono do imóvel.

Benvinda assume, igualmente, o papel de destinador-julgador, sancionando as atitudes que se desviam dos comportamentos programados. É o que acontece quando o incidente do roubo dos figos sobrevém.

Após ter que assistir somente Rodolfo saborear os figos servidos como sobremesa no almoço de domingo, sabendo onde as tias escondiam as compotas com que o primo era agraciado, Palmiro decide roubar a compota de figos. Silenciosamente, entra na cozinha de olho no corredor vazio que o «incitava à aventura». Apreensivo e cuidadoso, vasculha o armário até encontrar a compoteira que guardava «os figos verdes e rachados de gordos, intumescidos», e os leva para o quarto, onde ele e as irmãs Dolores e Irene se fartam «daquela riqueza, um gosto físico de provocar abundância de saliva» (Braff, 2012, pp. 143-145).

Esse episódio apresenta-se como uma descontinuidade nos programas impostos pela matriarca, fazendo emergir o regime do acidente que, regido pelo princípio da aleatoriedade, instala a ameaça do risco puro. Esse risco é assumido por Palmiro ao longo de um programa narrativo que, mesmo executado com sucesso, por configurar o rompimento com o contrato proposto pelo destinador-julgador - não se comportar conforme o programa de Benvinda -, resulta em uma sanção pragmática negativa, aplicada por Benvinda na forma de castigos e punições físicas, ou seja, por meio de chicotadas, desferidas nas pernas de Palmiro enquanto seus braços eram segurados pelas tias para que a matriarca pudesse lhe desferir os golpes, parte da programação da matriarca.

Contudo, a relação de Palmiro e suas irmãs com a mãe é bem distinta. Isaura, no papel temático de mãe, mantém um vínculo com os filhos baseado no apreço e na empatia. Por isso, quando Isaura descobre como as irmãs puniram seu filho, fica enfurecida, agindo em defesa dele. Mas, antes de se entender com Benvinda, após ver os vergões resultantes das chicotadas, ela se dispõe a cuidar do menino, lavando as pernas do filho com água morna e as cobrindo de mercúrio.

Logo, a relação de Palmiro com Isaura é dirigida pelo regime do ajustamento, pois a interação entre eles se baseia no fazer-sentir, na experiência sensível dela, ao cuidar do filho, sentir sua dor. Isaura experiencia uma sensibilidade perceptiva que lhe permite vivenciar pelos sentidos as variações que lhe são exteriores por meio do corpo-sujeito do outro, do filho, o que a leva a ficar profundamente irritada e afrontar as irmãs.

A reação de Isaura à punição aplicada a seu filho emerge, então, como um novo acidente, um contraprograma na programação imposta por Benvinda. O acidente permite a negação ou a superação dos programas fixados previamente, provocando, no cotidiano de Benvinda, marcado pelo máximo de segurança, a passagem a uma condição outra, pois Isaura rompe a continuidade dos comportamentos programados e desafia a autoridade da matriarca: «Nunca mais, sua megera, nunca mais. Se você tocar outra vez em um de meus filhos, eu boto fogo neste casarão maldito com todas vocês aqui dentro» (Braff, 2012, pp. 300-301).

Isaura, agora no papel de destinador-manipulador, por meio da intimidação, visa levar as irmãs a não castigarem seus filhos, oferecendo valores negativos, mediante a ameaça, como queimar o casarão com as irmãs dentro dele, e, assim, impõe um novo regime de programação. Além disso, reclama seus direitos de proprietária do imóvel, ameaçando contratar um advogado para fazer o inventário e a partilha dos bens herdados dos pais. Com isso, nenhuma das irmãs pode mais punir seus sobrinhos, na medida em que a autoridade da matriarca foi retirada, tendo, como resultado, a flexibilização de suas deliberações.

2.1. Entre a prudência e a aventura: a emergência do estilo de vida revolucionário

A ameaça de incendiar o casarão, porém, não configura a primeira vez que Isaura assume o papel de destinadora de seu próprio fazer, mais que isso, que nega o conservadorismo defendido pelas irmãs mais velhas. Em oposição à Benvinda, movida pela aventura, a irmã caçula é, na narrativa braffiana, promotora da descontinuidade na programação guardada e mantida pelas «solteironas beatas»; uma descontinuidade que soa como catastrófica para as irmãs, crentes de que Isaura «tem parte com o demônio», haja vista as suas recusas em aceitar o contrato a ela imposto.

Desde a infância, sentindo-se oprimida pelo estilo de vida conservador dos moradores do casarão, Isaura rompe a continuidade e faz surgir contraprogramas narrativos conforme manipula as irmãs por intimidação e institui um estilo de vida revolucionário. Ainda criança, no dia seguinte a um tapa desferido por Benvinda em seu rosto, porque ousara tentar deixar a sala para trocar de saia durante a Benção das Três, a caçula recusa a etapa da programação voltada à participação daquele ritual. Empacada no corredor, Isaura é ameaçada por Benvinda, mas ela não acata as ordens da irmã mais velha. Diante da insistência de Benvinda em impor a sua autoridade, ameaçando surrá-la, caso não se sente e se aquiete, a menina sente o rosto incendiar-se e, quando cresce o estado patêmico do ódio, explode: «Se você me bater, eu me mato» (Braff, 2012, p. 260).

A explosão de Isaura resulta de um ajustamento por sensibilidade perceptiva, em que a interação das irmãs atinge tal grau de intensidade que ambas já não se preocupam com a troca de valores - manter a tradição de ouvir a Bênção das Três -. É, pois, mediante os ânimos exaltados pela discussão, figurativizados pela sensação do rosto de Isaura incendiar-se, que esta ultrapassa qualquer margem de segurança, desafiando Benvinda a surrá-la, caso queira vê-la morta. A ameaça de suicídio suspende o regime da programação, considerado insignificante para a menina, ao mesmo tempo em que faz as irmãs calarem-se, «abismadas», e ainda cederem a pequenos caprichos da caçula, como dar uma festa de aniversário para a qual são convidados os amigos da escola.

A bagunça que resulta da presença entusiasmada das crianças faz as irmãs mais velhas se questionarem sobre como «educar» a caçula, deixando claro para Benvinda que não sabem como agir com Isaura, pois têm medo de que ela cumpra a promessa de suicídio. Esse questionamento tanto evidencia o aceite das irmãs à manipulação de Isaura, quanto a sensibilização suscitada pela ameaça da menina, figurativizada pelos estados de admiração e de espanto, provocados pelo fato de Isaura não se permitir ser subjugada. O aceite ao contraprograma da caçula só é possível em razão do acidente no percurso imposto pelas irmãs mais velhas que, atordoadas pelo ineditismo do desafio da caçula, sentem-se no dever de evitar que ela cumpra a promessa. Assim, se, enquanto instauradora de um programa revolucionário, Isaura configura-se um sujeito do fazer, modalizado por um «querer não ser» como as irmãs, no programa conservador de Benvinda, ela é um actante joker (Landowski, 2014, p. 79), que intervém no resultado do processo de manutenção da tradição de seguir, com rigidez de princípios, as regras do casarão.

Sujeito autodestinado, Isaura não cessa de recusar os hábitos e as rotinas do casarão. Nascida no período da Segunda Guerra Mundial e sendo bem mais jovem do que os irmãos e as irmãs, ela cresce em meio a transformações socioculturais, como o fato de a mulher poder frequentar a escola. Assim, ao contrário do que ensinava o seu pai, Isaura estuda e cursa a faculdade, feito inédito entre as mulheres daquela família.

O baile de formatura propicia, então, o sobrevir de uma nova surpresa no casarão: Isaura veste-se para esse evento do qual nenhuma das moradoras já havia participado e comunica às irmãs que irá de táxi, o que as deixa perturbadas, uma vez que não consideravam adequado que uma moça saísse sozinha de casa à noite, sobretudo em um «carro dirigido por um desconhecido» (Braff, 2012, p. 274).

Mais uma vez, Isaura rompe com a programação, pois, para as irmãs, ela assume o que Landowski (2014, p. 71) chama de «risco puro», causador, do ponto de vista simbólico, da falta de sentido, do absurdo, haja vista, diante de tal atitude, elas calarem-se amedrontadas. A atitude da caçula é tão absurda para elas que a comparam a «um salto no despenhadeiro», característico de alguém que nascera para manchar o nome da família, de origem «nobre», na concepção das irmãs da jovem. Da parte de Isaura, no exercício do papel temático de formanda, não só na faculdade, mas na vida prática, visto já ter percebido que não devia obediência a outras pessoas em sua idade, ir sozinha ao baile em um carro de aluguel, e à noite, é mais uma maneira de manter a regularidade de seu estilo de vida revolucionário.

Na festa de formatura, Isaura entra em contato com outras práticas sociais, como dançar, ingerir bebida alcoólica, paquerar. A prática amorosa é figurativizada pelos olhares que se encontram, pelo sorriso mútuo de saudação e pela dança da jovem Gouveia de Guimarães com o operário Bernardo Fortunatti. A experiência sensível do interesse amoroso, figurativizada como «uma tempestade provisória, mas de uma violência absurda», portanto arrebatadora para o casal, instaura o regime de sentido do ajustamento, pois os jovens só se ocupam do estar juntos durante o baile. Após alguns meses de namoro, Isaura descobre estar grávida. Pedida em casamento, ela convoca as irmãs para uma reunião e comunica que irá se casar. Depois das irmãs se entreolharem abismadas, haja vista desconhecerem a existência de um noivo, questionam Isaura sobre a identidade dele. Em resposta, a jovem explica que ele é mecânico, tem «o ginásio completo, um fusca em boas condições, [um] bom emprego e [é] militante político de um partido clandestino» (Braff, 2012, p. 280).

Considerada uma afronta à moralidade a ser guardada, mas impossível de ser antecipada, em razão de sua imprevisibilidade, a descrição de Bernardo perturba, mais uma vez, a segurança do estilo de vida conservador que impera no casarão. Sensível ao comportamento das irmãs, Isaura imediatamente percebe o impacto da inesperada notícia: as irmãs ficam boquiabertas, de tão espantadas com a caçula, fazendo com que esta sinta vontade de rir da cena que presencia.

Longe de ter uma condição financeira considerada compatível com a dos tradicionais Gouveia de Guimarães, além de militante político, Bernardo ainda descende de imigrantes. A descoberta de que o seu sobrenome é Fortunatti, intensifica a indignação da guardiã da moralidade e da tradição da família, de maneira que, recuperada do impacto provocado pela notícia da possível união de Isaura com um homem cujo sobrenome não tem tradição, proíbe a caçula de se casar para, dessa forma, preservar os valores que, por tanto tempo, empreendeu esforços em conservar. Tal atitude marca justamente a recusa de Benvinda de abdicar do regime da programação que há tanto tempo defende, ao contrário de Isaura, que nega veementemente essa rígida programação ao desafiar as normas impostas pela irmã mais velha. Entretanto, Isaura despreza a segurança do casarão, ela quer assumir o risco de viver longe das irmãs, então rejeita a manipulação de Benvinda e retruca que se casará no mês seguinte. Para impor a sua autoridade e proteger o estilo de vida conservador, o tradicionalismo e o status que acompanha o sobrenome Gouveia de Guimarães, Benvinda busca restabelecer a regularidade que subjaz as práticas de vida dos moradores do casarão por intermédio de uma nova intimidação - «Pois, se casar, nunca mais volte a esta casa» -, mas o grito é inútil, pois Isaura não só deixa a reunião satisfeita com o desfecho, como nutre «planos para uma vida diferente» (Braff, 2012, p. 280).

Uma vez que o risco é inevitável, pois a interação não pode isentar-se totalmente dele, tanto a moral social conservadora, quanto a que explora o desconhecido, para existirem, operam com uma dada margem de risco ou de prudência aceitos. Sendo assim, como não há prevenção total ao imprevisível, nem submissão completa ao aleatório, segundo a perspectiva landowskiana, a assunção definitiva de um novo estilo de vida, também implica, para Isaura, conformar-se a uma nova rotina. Assim, o casamento com Bernardo instaura o rompimento completo daquele sujeito com um estilo de vida preestabelecido (conservadorismo) para «descobrir por si mesmo um sentido - uma significação e uma orientação - para seu próprio percurso de vida» (Landowski, 2014, p. 69). A rotina do convívio com uma classe social elitista dá espaço, de vez, para a rotina de uma mulher de operário, que não tem casa própria e é proprietário de um carro popular; um modelo oposto ao que as irmãs mais velhas de Isaura insistem em defender.

Nessa nova fase, o regime de sentido da vida prática de Isaura oscila entre o regime de risco da segurança de viver com o marido e os três filhos e o da insegurança de ser esposa de um líder sindical. Essa insegurança emerge na narrativa em vários momentos, a exemplo de quando Palmiro relata que, antes mesmo dos militares tomarem o poder, o casal já se mostrava «preocupado» e «assustado» com as notícias, estados patêmicos (da preocupação e do medo) confirmados no trecho: «Eles falavam baixo [...], segurando-se as mãos em cima da mesa» (Braff, 2012, p. 286).

Imersos no clima de incertezas instalado ante a assunção dos militares ao poder, não somente Isaura e Bernardo, mas, sobretudo Palmiro, começam a ser contagiados pelo estado patêmico do medo. No caso de Palmiro, embora criança, ele vê o medo transparecer nos cochichos e nas fisionomias preocupadas dos adultos. Ele observa o comportamento dos pais e dos professores, e sente, junto a eles, as transformações sociais e políticas que acontecem à sua volta: «Percebendo o medo das pessoas, achei que também eu deveria ficar amedrontado. E fiquei muito calado» (Braff, 2012, p. 334) ou «Nos primeiros dias depois da deposição do presidente, andei muito inclinado ao silêncio e à tristeza, porque era como andava meu pai» (Braff, 2012, pp. 335-336). O sentir de Palmiro, nesse caso, é diferente do sentir sentido pelos pais. Enquanto eles sentem medo pelo fato de Bernardo integrar um partido político clandestino e de oposição à Ditadura: - «Alguns dos presos poderiam não resistir às torturas e entregar os companheiros» (Braff, 2012, p. 289) -. Assim, em termos landowskianos, Palmiro sente o sentir do outro, percebe as «manifestações somáticas» do estado de medo vivido pelos adultos à sua volta e experimenta-os (Landowski, 2014a, p. 18).

Segundo o autor de Interações arriscadas, há sempre um grau de risco assumido na interação que a leva a se desdobrar em diferentes regimes de sentido (Landowski, 2014, p. 19). Concernente à família Fortunatti, apesar da cautela, a preocupação com o outro - com os demais militantes, no caso de Bernardo; com o pai e, em certa medida, com a mãe, a exemplo de Palmiro - é constante, deixando-a sempre no limiar do regime da catástrofe. Como esperado em situações desse tipo, a permanência no regime de ajustamento, depois de um tempo, vê-se suplantada pela total perda do controle sobre o risco. Apesar de não aceitar as implicações da manipulação por intimidação dos militares - se não seguir as regras, será preso e torturado - Bernardo e Isaura não esperam que ele seja emboscado e preso em sua casa. É, desse modo, no entrecruzamento da ação programada dos militares com a rotina familiar do militante político que sobrevém o regime de interação do acidente - prisão de Bernardo, que é algemado em casa, rendido por um homem armado -, uma interação que surge em meio à experiência sensível da família aterrorizada pela ação militar, como evidencia o excerto:

Ouvi os gritos de minha mãe e pulei do beliche porque as meninas começaram a chorar com suas vozes mais desesperadas. Acendi as luzes e vi o terror nos olhos das minhas irmãs. Seus gritos agudos saíam da boca e dos olhos e eu não sabia como lidar com tamanho medo, o meu e o delas. E os gritos todos se misturaram na noite daquela pequena casa, e eram tantos que nem cabiam mais em sua sala, sua cozinha e seus quartos, eram gritos que voavam para a noite da cidade, era um medo instalado em tudo: escolas, igrejas, bares. [...] (Braff, pp. 340-341), (grifos nossos).

A isotopia figurativa do estado patêmico do medo é notada pela reiteração das figuras «gritos», «chorar», «terror», «medo», ora sentidos pela mãe, ora pelas irmãs do narrador, ora por ele, ora por todos, pois o medo está «instalado em tudo». Assim, contagiados pelo medo, sendo o contágio, em sua definição global, um processo constituído da interação entre pelo menos dois sujeitos e na qual um deles reproduz os estados e as ações transmitidos pelo outro (Landowski, 2005) e, simultaneamente, todos os membros da família Fortunatti, implicados na cena da prisão de Bernardo, são tomados pelo mesmo estado passional.

Embora livre da opressão e dos castigos impostos pelas irmãs mais velhas para que se adequasse ao estilo de vida conservador, Isaura, agora, vê-se tomada pelo sobrevir do acidente, intimidada pelos militares. Sem o marido, que provia o sustento da família, durante meses busca seguir a programação inerente ao papel temático de mãe: cuidar dos filhos. Mas os recursos acabam e sem condições de pagar o aluguel e de sustentar os filhos, decide aceitar, inicialmente, a manipulação das irmãs solteironas e voltar a morar no casarão sob o jugo do estilo de vida conservador que ali impera, garantindo, assim, teto e comida para Palmiro, Irene e Dolores. E, assim, seus filhos conhecem o casarão, tal qual descrito no início desta análise, bem como o desprezo das tias solteironas pelos sobrinhos com sobrenome de imigrantes.

Concernente à relação de oposição entre a tradição (conservadorismo), do lado do regime da programação, e o progresso (revolucionismo), do lado do regime do acidente, os sobrinhos de Benvinda e de Isaura fazem perpetuar a relação conflituosa no seio da família Gouveia de Guimarães. Palmiro e Dolores, sobretudo, dão continuidade ao estilo de vida revolucionário - aquele, apoiando o movimento «Diretas Já», esta, liderando ações da União Nacional dos Estudantes (UNE) -, a despeito do primo político Rodolfo, que se torna vereador pelo partido da Arena, depois deputado, sempre defensor da ditadura militar, figurativizando o conservantismo e a tradição tão defendidos pela tia Benvinda.

2.2. Outra geração de Gouveia de Guimarães e a oposição continua

A narrativa é marcada, sobretudo, pela oposição semântica entre os valores e comportamentos tradicionais e conservadores, de um lado, e aqueles modernos e revolucionários, de outro. Como modelo dessas condutas, despontam na história as irmãs Benvinda e Isaura e a mesma rivalidade entre as irmãs é estendida aos sobrinhos, cuja interação é regida pela manipulação. Rodolfo reproduz, já na infância, o posicionamento político defendido pelas tias mais velhas ao acusar o pai de Palmiro de «baderneiro» e «assassino» em conversa entre os primos.

A provocação de Rodolfo desemboca em uma reação agressiva imediata do filho de Bernardo e Isaura, que o derruba e lhe desfere pontapés. Sujeito cognitivo, ao refletir sobre sua performance, Palmiro chega à conclusão de que a agressão foi um «gesto síntese», deflagrado pela forma como o primo defendia o regime político vigente, que ele aprendera a detestar à medida que ouvia as histórias contadas pela sua mãe sobre seu pai, e conclui que nessa tarde em que reage, exaltado, às provocações de Rodolfo, que se declara uma guerra entre os dois.

Quando adultos, a rivalidade se acirra. Na faculdade, Rodolfo filia-se à Arena e, no exercício do papel temático de vereador, faz o discurso de orador da turma em defesa das ações dos militares no Brasil, iniciadas em 1964, o que lhe rende algumas vaias. Mais tarde, considerado o maior defensor dos generais, é eleito para a Assembleia Legislativa, mesmo período em que o movimento das «Diretas Já», apoiado por Palmiro, ganha força. Se, da parte de Rodolfo, é notada a continuidade dos valores defendidos pelas Gouveia de Guimarães solteironas e da política da situação (ditadura militar), do lado de Palmiro, emana um discurso de mudança, de transformação política. Assim, o comício das Diretas Já é descrito por um sujeito emocionado, tocado pela experiência sensível de ter participado de um evento contagiante: «Um milhão de pessoas, Dolores, mais de um milhão, e eu, [...] parado na orla da avenida e só me lembrava da noite em que invadiram nossa casa e levaram nosso pai [...] Então percebi que eu não estava sozinho» (Braff, 2012, p. 235).

Como um sujeito autodestinado, Palmiro presencia o comício das Diretas Já, concluindo com sucesso uma performance de busca por vingança dos militares pelo que aconteceu com Bernardo. Ele é contagiado pela interação com milhares de pessoas que anseiam pelo fim da ditadura, ficando claro o ajustamento por contágio stricto sensu, aquele de mão dupla em que não é possível discernir aquele que contamina daquele que é contaminado pelo outro (Landowski, 2005, p. 42). Em vista disso e de tudo o que já foi observado, a oposição entre os principais estilos de vida que emergem no nível do enunciado desse romance pode ser resumida conforme um modelo de narratividade desliza ao outro:

Figura 1 Os regimes de interação em O casarão da rua do Rosário  

Em termos de enunciação, contudo, destaca-se o regime do ajustamento.

3. Entre ficção e realidade: as experiências sensíveis que transcendem o enunciado

Como demonstrado na análise, a oposição entre os valores tradicionais e conservadores e os valores modernos e revolucionários rege a narrativa braffiana. Todavia, a tensão entre os estilos de vida que manifestam tais valores ultrapassa o nível narrativo e invade também o nível enunciativo, na relação entre o enunciador e o enunciatário- leitor. Desse modo, a estratégia enunciativa de projetar um narrador por meio da debreagem enunciativa cria, por exemplo, o efeito de sentido de subjetividade, permitindo que o enunciatário se aproxime dos fatos narrados e experiencie os mesmos estados relatados pelo narrador, ator protagonista da história.

Destarte, a opressão das normas do casarão, que refletem a repressão do regime militar, sentida pelos atores do enunciado, é vivenciada também pelo enunciatário-leitor por meio do regime da união, do contágio concebido como «partilha imediata dos afetos do corpo e da alma» (Landowski, 2005, p. 38), um regime da co-presença sensível baseado na competência estésica. Isso porque nossa percepção das manifestações somáticas dos estados vivenciados pelo outro, no caso os sujeitos narrativos, pode fazer com que contraiamos os mesmos estados através de uma proximidade sentida que une os corpos-sujeitos.

Por meio da obra literária, e da arte de maneira geral, o destinatário é transformado em sujeito patêmico e, assim, sente a experiência estética e estésica partilhada pela criação artística. O enunciatário-leitor experiencia o domínio das regras regidas pela matriarca, da manutenção das tradições e dos preceitos morais e religiosos, o que figurativiza as inclinações ao regime militar. E não só isso, o enunciatário também compartilha do medo da coerção militar e dos estados dos sujeitos que foram vítimas desse período, como na cena da prisão de Bernardo e, consequentemente, o desamparo de sua família.

A sensibilização do enunciatário-leitor é também suscitada em momentos como a descrição da compota de figos, das marcas da surra sofrida por Palmiro e da emoção contagiante do narrador ao descrever a interação entre os presentes no comício das Diretas Já. Por meio da descrição dos figos «verdes», «entumescidos», «rachados de gordos», com «calda brilhante» e «gosto físico de provocar abundância de saliva», a dimensão sensorial desperta uma hierarquia de sensações (Greimas, 2002, p. 35) a partir da visão, do tato e do paladar. O tato, que conforme Greimas (2002, p. 36), «se situa entre as ordens sensoriais mais profundas», manifestando «a vontade de conjunção total», é igualmente convocado para fazer o enunciatário sentir junto o sofrimento da mãe e do filho no momento em que Isaura cuida dos ferimentos provocados pelo castigo aplicado por Benvinda a Palmiro, como mostra o excerto: «[...] mostrei. Em cada uma das pernas os vergões deixados pelo chicote. […] Minha mãe foi à cozinha e trouxe água morna. [...] Me levou para o banheiro, lavou minhas pernas, que cobriu de mercúrio» (Braff, 2012, pp. 299-300). Quanto ao abalo afetivo de Palmiro, questionado por Dolores sobre como tinha sido o comício das Diretas Já, a resposta do narrador, mais uma vez, convoca a sensibilização do enunciatário - o sentir junto a comoção provocada pela participação no evento (fazer justiça ao pai desaparecido):

A pausa era uma necessidade minha porque a emoção desmedida ataca o corpo, endurece o queixo e a garganta, molha os olhos com lágrimas quentes. Quando comecei a falar, comecei falando de minha emoção: uma das maiores que já senti na vida (Braff, 2013, p. 235).

Esses excertos evidenciam, portanto, momentos em que o sentir dos atores do enunciado invade a percepção do enunciatário-leitor.

4. À guisa de conclusão

Ao longo da narrativa, os valores que embasam todo o conservadorismo e que sustentam o regime militar são, gradativamente, substituídos por valores inovadores e subversivos. Essa transformação é figurativizada, por exemplo, pela construção de um edifício, que invade o espaço do casarão, impondo ares de modernidade:

Ergui novamente os olhos por cima de umas laranjeiras. [...] Operários caminhando sobre a [...] laje imensa, [...] de repente, aconteceu: a construção de um edifício. [...] A cinquenta metros. [...] Minha respiração era de surpresa com aquele novo mundo que vinha nascendo, independente de nossa vontade (Braff, 2012, p. 60, grifos nossos).

O edifício construído bem de frente do casarão é o primeiro indício das transformações que se firmavam não apenas nos costumes do casarão - as irmãs aderiram ao novo costume de assistir televisão, sendo, inicialmente, os discursos de Rodolfo e, depois, as novelas-, mas, sobretudo, nas relações com o exterior da propriedade. Benvinda recusa-se a aceitar essa situação e recorre aos seus conhecidos a fim de impedir a continuação da obra. Impedida de tal ação e percebendo-se derrotada, mesmo após pedir ajuda ao prefeito, a senadores, a ministros e até a um amigo general, a matriarca resigna-se diante do fato de o embargo da obra ser uma causa perdida. Essas transformações vão se refletir, de maneira acentuada, na esfera política, com o aparecimento de ações sociais contra a ditadura, como o movimento civil das Diretas Já, que reivindicava a retomada das eleições diretas e o consequente fim da ditadura militar.

É assim que ocorre a modificação dos valores que embasam o romance: o conservadorismo político torna- se obsoleto e os princípios libertários, preponderantes. Esse processo é figurativizado pelo edifício que cresce e pelo casarão que é corroído pelo tempo, como evidenciam as figuras «janela quebrada», «paredes com pintura descascada» e já com «uma cor indefinida», além da «calçada» que já se «desmanchava» à volta da edícula. Essa ação do tempo é notada pelo narrador ao caminhar pela propriedade quando, já formado em psicologia e há anos vivendo longe do casarão, retorna para o velório e sepultamento de Benvinda: «À medida que avançávamos [...], fui percebendo os estragos que o tempo ia fazendo» (Braff, 2012, p. 99).

Símbolo dos «valores assumidos ou assimilados pela memória cultural do seu tempo» (Silva, 1988, p. 59), o casarão, que um dia concretizara o estilo conservador e a tradição da família Gouveia de Guimarães, bem como um regime político autoritário e hostil, por fim, vai desmaterializando-se. A sua imponência e densidade figurativa é perdida tal qual esmorecera a ditadura militar, para, nas palavras de Braff (2012), vir a ser «apenas uma lembrança, até se tornar discurso» (p. 344).

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1. O autor venceu o prêmio Jabuti em 2000, com a coletânea de contos intitulada À sombra do cipreste, publicada em 1999. Foi finalista e semifinalista do mesmo prêmio nos anos seguintes com diversas obras, entre coletâneas de contos e romances, assim como do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Pelo romance A muralha de Adriano (2007), também recebeu Menção Honrosa no 50º Prêmio Casa das Américas (Havana), de 2009.

*Cómo citar: Ribeiro Santos, F. K., & Duarte, R. C. (2021). Os regimes de sentido e interação em O Casarão da Rua do Rosário de Menalton Braff. Lingüística Y Literatura, 42(80), 118-133. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n80a08

Recebido: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 18 de Janeiro de 2021

*Autora para correspondencia: Flavia Karla Ribeiro Santos. Correo electrónico: flaviakarlar@hotmail.com

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