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Lingüística y Literatura

versão impressa ISSN 0120-5587versão On-line ISSN 2422-3174

Linguist.lit.  no.80 Medellìn jul./dez. 2021  Epub 14-Dez-2022

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n80a24 

Reseña

Panóplias de um corpo intenso. Ananaz, K. (2020). Seios e ventres. Luanda: Tchingapy Editora, 71 pp.*

Édimo de Almeida Pereira1 

1Centro Universitário UniAcademia (Brasil) edimo2009@hotmail.com

Ananaz, K.. (, 2020. )., Seios e ventres. ., Luanda: :, Tchingapy Editora, , 71 pp.


Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

- dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Recobra-se, em epígrafe, a expressividade dos versos do emblemático poema da escritora mineira Adélia Prado para, a partir deles, proceder-se a uma conexão com os tempos de perseverança, de afirmação identitária e de redobrada capacidade de criação femininas, tendo em vista que tais tempos são também elementos identificáveis no livro de Kanguimbu Ananaz, intitulado Seios e ventres e lançado em 2020 pela Tchingapy Editora, casa editorial coordenada pela autora.

Arquétipo de mulher desdobrável, na amplitude semântica que a palavra comporta, Maria Manuela Cristina Ananaz, conhecida pelo pseudônimo Kanguimbu Ananaz, nascida no Bairro Forte de Santa Rita, na Província do Namibe, Angola, parece movida pela multiplicidade de talentos e de formações acadêmicas, para além das outras tantas atividades que desempenha. É psicóloga, consultora social, mestra em Língua e Literatura Africana pela Universidade Agostinho Neto, membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola e da União dos Escritores Angolanos, idealizadora de projetos culturais, palestrante acerca de variados temas sociais, idealizadora, realizadora e apresentadora de programas radiofônicos, além de vencedora de diversos concursos na área de gastronomia.

Como não pudera deixar de ser, dentro da máxima do eu-lírico adeliano «mas o que sinto escrevo» (Prado, 1993, p. 11), poder-se-ia afirmar que essa complexidade de ações que caracteriza a vida de Kanguimbu Ananaz se acha refletida nos poemas de Seios e ventres (2020), quiçá, marca a obra inteira dessa vivaz poetisa, contista e romancista angolana, se assim observada sob um olhar mais elastecido.

Analisando a escrita de autoras africanas, em artigo intitulado Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas (2004), Maria Nazareth Soares Fonseca observa que «[...] é possível perceber em vários poemas traços específicos do modo como as escritoras, projetando-se no mundo que recriam através das palavras, recuperam gestos, falas e sensibilidades de um corpo quase sempre condenado ao silêncio e à exclusão» (Fonseca, 2004, p. 283).

Essa anunciada sensibilidade de um corpo feminino encontra-se presente na escrita de Kanguimbu Ananaz, perceptível ao primeiro contato com os versos inscritos em Seios e ventres (2020). A obra em questão, constituída da profícua reunião de nada mais nada menos que cinquenta e dois poemas, conta com a apresentação de Daiana Nascimento dos Santos que, ao considerar o aguerrido percurso poético de Kanguimbu Ananaz, destaca que o recente lançamento da autora

[...] coloca em perspectiva, a arte do fazer literário com coragem, com força em uma sensibilidade profunda - traços marcantes em Kanguimbu ao exercitar a prática literária no discurso poético -, pois apresenta elementos linguísticos e simbólicos que denotam o cuidado na eleição de cada palavra ao construir o poema. Como uma verdadeira artesã, Kanguimbu vai moldando cuidadosamente o discurso lírico [...] para dar forma a uma construção poética heterogênea (Nascimento dos Santos apud Ananaz, 2020, p. 9).

No texto prefacial à obra, Jurema Oliveira ressalta que em Seios e ventres (2020) é possível detectar aquilo que a pesquisadora chama de

[...] marcas mais simbólicas de uma nuvem que alimenta o sonho em um corpo que é a mais pura expressão da vida poética. O corpo é uma espécie de torre delicada que abriga seios imaginários e ventres férteis, acolhedor de um olhar feminino repleto de imagens «robustas [que] encantam [o] céu da boca» de uma alma suspensa pronta para assediar o mar (Oliveira apud Ananaz 2020, p. 11).

Em Seios e ventres (2020), o eu-lírico a que Kanguimbu Ananaz dá voz cumpre a própria sina, inaugura linhagens, funda reinos em que, tomando-se agora por inspiração algumas das palavras de Oliveira (2020), torres delicadas abrigam seios imaginários e férteis ventres que encerram um sentido feminino no qual, pode-se concluir, a alegria, os sabores e os aromas de Angola se mostram revisitados.

Há espaço para tudo e para todos no dinâmico fazer poético da escritora, até mesmo para a dor, aspecto a que deu atenção Oliveira (2020) ao afirmar que: «A construção discursiva do livro de Kanguimbu repousa sobre elementos repetidos como o termo “dor”, se mostrando de formas variadas que vão desde o sentimento dor como distância de si àquela sustentadora, alimentadora da vida» (Oliveira apud Ananaz, 2020, p. 13), sobretudo, no sentido mesmo que traz à memória o verso adeliano: o de que «dor não é amargura» (Prado, 1993, p. 11). Vale ressaltar que esse verso é antecedido, pois, pela possibilidade que se anuncia na vida feminina e se encontra ligada ao empoderador momento em que somente à mulher cabem a envergadura e a dádiva de trazer à luz do mundo uma nova vida: «ora sim, ora não, creio em parto sem dor» (Prado, 1993, p. 11).

Nessa esteira de ideias, recorre-se a Fonseca (2004), mais exatamente ao ponto em que a teórica, abordando a denominada essência feminina, assevera que esta

[...] em diferentes culturas, é simbolicamente construída a partir de expressões do corpo da mulher - a menstruação, a gestação, o aleitamento - não deixa de ser celebrada em muitos poemas produzidos pelas escritoras presentes nas antologias e as ilustrações em várias delas celebram a mulher grávida, a mulher-mãe, mulher com o filho no colo (Fonseca, 2004, p. 286).

Fonseca (2004), tomando por base os países africanos de língua portuguesa, sem perder de vista as considerações ainda a respeito dessa essência feminina, acrescenta que a mulher escritora

[...] vai-se deslocando dos projetos que a esvaziam de si mesma para assumir uma escrita que deixa espaço para a expressão da intimidade do eu, para a escuta de sugestões mais comprometidas com o universo de mulheres que, ainda silenciadas por fortes tradições, motivam a escrita de textos que transitam no espaço da literatura, procurando não se fechar às inter-relações com outros campos em que o corpo desenha diferentes coreografias, ainda quando só pode ser observado no desempenho de obrigações cotidianas (Fonseca, 2004, p. 295).

A par disso, pode-se fazer juízo de que em Seios e ventres (2020), trabalho repleto da essência desse corpo feminino, na intimidade que há com o preparo cotidiano do alimento - seios que alimentam, ventres que abrigam e alimentam a vida - a dor seguirá temperada pelas hábeis mãos da premiada culinarista Kanguimbu Ananaz, mãos que emprestam ao verso o tanto sabor a que se acha habituada a escritora. Esse aspecto outro da poética de Kanguimbu Ananaz, de fato, parece não haver escapado ao crivo do poeta e prosador Ernesto Daniel, segundo o qual «em vários poemas encontramos também expressões como: Kitaba, Ngonguenha, Nbolo, mingueleka, Pirão, bombó, nengo, champae e outras, ingredientes gastronómicos, que a poetisa usa para apimentar a sua poesia» (Daniel, 2020, p. 18).

Nesse ano em que se tem fome de bons momentos de vida, Seios e ventres (2020) é um presente com que Kanguimbu Ananaz agracia os mais afeitos admiradores da poesia dessa espécie que alimenta a alma. O livro é - em suma e em sumo - um saboroso e versátil exercício da mais pura sensibilidade na lida com a linguagem poética, panóplias de um corpo intenso em feminilidade.

Referências bibliográficas

1. Ananaz, K. (2020). Seios e ventres. (Coleção Takula). Luanda: Tchingapy Editora. [ Links ]

2. Fonseca, M. N. S. (2004). Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas. Scripta, 8(15), 283-296. Belo Horizonte. [ Links ]

3. Prado, A. (1993). Com licença poética. Bagagem. São Paulo: Siciliano. [ Links ]

*Cómo citar: de Almeida Pereira, Édimo. (2021). Panóplias de um corpo intenso. Ananaz, K. (2020). Seios e ventres. Luanda: Tchingapy Editora, 71 pp. Lingüística Y Literatura, 42(80), 390-393. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n80a24

Recebido: 29 de Julho de 2020; Aceito: 18 de Novembro de 2020

*Autor para correspondencia: Édimo de Almeida Pereira. Correo electrónico: edimo2009@hotmail.com

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